Francisca
de Lourdes Souza Louro [i]
“Todas as epopeias - criadas pelo espírito dos poetas,
já as vividas pelos homens e pelos povos –
são documentos vertiginosos
de pessimismo” .
Jorge Adriano.
DAS
ÁGUAS GRANDES
Alcides
Werk.
Resumo
Em princípios gerais, a análise
literária tem por regra fixar-se nos elementos que a constituem como metro,
estrofação, rimas, figuras de linguagem,
etc. Ou buscar os sentidos “infinitos”
no movimento vertical de leitura, ou o entrelaçamento de recorrências
explicitadas a partir das associações morfossintáticas, fônicas, fonéticas e
semânticas. Também, no desvelamento da polissemia concentrada nas imagens, em
seu jogo de sinonímia e homonímia e, as significativas observações sobre a
língua, de como foi estruturado o texto.
Não é objetivo usar todos esses recursos, mas destaque-se a Semântica para se
olharas imagens deste texto do poeta Alcides Werk, nascido em Aquidauana,
mas, de tanto viver em Manaus, adotou como temática lírica e poética os movimentos do Cosmos Amazônico.
O homem, a natureza, as águas grandes das enchentes, são elos de limite na vida
ribeirinha,sendo esta a temática recorrente desse texto. É do rio e da floresta
que o homem caboclo, assim denominado, tira o sustento para si e sua família. E
é, sobre a vida ribeirinha, a angústia e o sofrimento que se destacará nesta
poesia. É a “Vida Severina” na Amazônia de todos nós que não temos escolhas,
senão a descomunal imagem do rio, soberbo e dominante do espaço,deixando uma só opção ao homem: obedecer.
Palavras – chave: Texto,
Poesia, Semântica, Águas grandes, Narrador.
Otávio Paz diz que
“o sentido do poema é o próprio poema. As imagens são irredutíveis a
qualquer explicação e interpretação”. Por
isso se entende que a linguagem é representação e, o elemento – chave da
poesia é a imagem: o concreto da
representação. Daí se dizer que toda interpretação deve ser sustentada pelo
texto. A postura do escritor revela, pelas vias da literatura de como
diferentes autores, aí incluídos romancistas, poetas, assumem consciente ou inconsciente
esse estágio em sua produção e o próprio conceito de identidade linguística
brasileira, em nós, “amazônica”.
Ver-se-á a pressão psicológica exercida pelo regime
de subida e descida das águas, e, nas imagens
pintadas pelas tintas poéticas de Werk
a de conformismo gerado pelas gerações. A realidade do texto literário,
não é o que vem depois ou o que está fora do texto, mas o que o texto sugere e
instaura nos limites do seu espaço e de sua construção. A metáfora do rio, do
homem, do sofrimento são formas outorgada de linguagem, é por essa via de
análise que se olhará no conjunto das frases no texto de como se apresentam.
Na primeira estrofe do poema tem a marcação de um
ritmo narrativo, parecendo indicar a continuação de um discurso que já vinha
sendo mentalmente elaborado e instaurando um processo de narrativização. Nesse
aspecto, as categorias de ação, tempo, espaço se imbricam, já que toda ação
ambienta-se em um cenário composto por marcações de duas figuras fazendo parte do
contexto como personagens de um mundo insólito.O menino molhado e o homem doente
deitado na rede.As vítimas que motivam essa narrativa são vistos por um
narrador viajante e observador, é como se estivesse gravando, filmando a
paisagem, composta de homem e água. E, como não lhes sabe os nomes,
chama-os de “o menino molhado” e “o homem
doente”. Temos dois sujeitos e dois predicativos. É aprova contundente das
maneiras de que a sociedade contemporânea dispõe para tornar o cidadão
invisível é não dar-lhe o nome.
Em certa medida, o tratamento dado à falta de
visibilidade das vítimas constitui uma versão cruel, no entanto, não lhes tira
o valor poético do texto. Trata-se de ficção
literária construída rente à diferença e a violência social e psicológica
gerada pelas grandes cidades.
O núcleo da história que subjaz ao poema é ainda
completado pela transformação do “eu lírico” em personagem, que faz conjunto
com as duas figuras. E,as personagens são tocadas pela mesma atmosfera de estranhamento
que faz oscilar as coordenadas do mundo.
No primeiro momento, um realismo objetivo, um olhar
perscrutador e, depois, a teatralização da pregação da doutrina da fé, baseado
na tradição cristã e,no terceiro discurso,o redimido possível político “nobre”,
cheio de bondade, numa clara ironia do real.A monotonia aparente das repetições parece dizer-nos: veja, a
vida humana é sempre isso, é eternamente assim no mundo registrado.
Toda manifestação
linguística faz parte de um sistema aberto e, por estar associada a um sentido,
pode revelar uma cultura que é a ponte entre o indivíduo e o mundo em sua plena
realização. Muitas vezes usamos a língua para“representar”, “criar mundos”, e
ter a possibilidade de usar no lugar de, pôr no lugar de (como ocorre com a
ficção literária, por exemplo). Letras formam palavras que geram imagens, isso
é o que se chama Literatura. O que dá prazer, virar e revirar páginas que
desperta-nos para o mundo de recônditas memórias, de descrições, de
experiências e de cultura.
Por assim ser,
escolheu-se o texto de Alcides Werk por ter uma correspondência com os sentidos
que nos serve de ponte entre a língua e a cultura; o retrato da vida
interiorana da Amazônia. Nessa perspectiva,poder-se-á perceber que, toda
manifestação linguística aplicada nesta poesia, está inter-relacionada com o
pensamento que a gera e com um sistema linguístico que a representa.“O mundo repetido no texto é
obviamente diferente daquele a que de refere, porque toda descrição pode ser
aquilo que descreve” (LIMA,2002).
O que quer que seja
repetido no texto não visa a denotar o mundo, mas apenas um mundo encenado que
se prestará á interpretação. É um jogo de assimilação, porém, sujeito á
desfiguração dependendo do esquema dado pelo autor e a decifração do leitor. E,
decifrar, é buscar significado nas palavras, é um exercício interpretativo que
requer apoio teórico, para isso, contar-se-á com a Semântica que preconiza que “nenhuma
palavra” tem um sentido próprio, que seja dela e sempre associada a ela. Nenhuma
mesmo.
Na verdade, essa associação
de um ou mais sentido a uma palavra é um fenômeno que ocorre no processo de
comunicação e segue o seguinte princípio: sinal; contexto; cenário que se
constituem em sentidos que são divididos em sentido menor; sentido médio e
sentido maior. É, neste último, que nos deteremos por ser totalmente
especializado, conseguindo, pela inserção do contexto, perceber pelo produto da
linguagem, “palavra”, revelar a riqueza de um cenário, de uma vida, de uma
história aquarelada com as tintas do sofrimento e da solidão na Amazônia.
A representação do
mundo por meio da linguagem exige a possibilidade de especificação dos
elementos representados, o que nem sempre é possível com a utilização dos
nomes. Assim, a habilidade de representar de forma bem sucedida está
diretamente ligada à habilidade de utilizar os recursos disponíveis da língua
para especificar, embora se saiba que, em literatura, as palavras ganham, na
voz poética, recursos disponíveis de possibilidades de representações variadas
e, em geral, expressivos em que o cenário vai se remontando e se mostrando no
mundo exposto. Nessa visão poética a que observaremos, podem estar inseridas
diversas perspectivas a que nos deteremos nessa leitura textual, assim proposta:
1- Localização/espaço;
2- Linha imaginária do tempo;
3- As diferentes formas dos eventos e
como eles se desenvolvem na linha do tempo;
4- A maneira como esses eventos
ocorreram;
5- Se há
participação de algo ou alguém além do ator principal.
1- Nessa possibilidade tem como localização o
mundo amazônico, especialmente as barrancas do interior, onde moram os
representantes nativos da vida ribeirinha. A Amazônia, em suas instâncias mais recônditas
e plenas, apresenta uma realidade subjetiva em puro movimento criador, uma transparência
de afetos se sucede numa multiplicidade qualitativa, gerando permanentemente o
outro e o si desnudando-se em intensidade e que nunca poderá ser domado: as águas,
reflexo do devaneio em que a imaginação torna-se ilimitada, contemplada e
constituída pela imensidão. O nó central
das relações que movem a narrativa, justificando as atitudes, comportamentos e
os sentimentos do narrador é dado a saber através de narração que o próprio faz
ao narratário. Este, por sua vez é invocado explicita ou implicitamente e pode
ser o leitor virtual. Nós, o “leitor modelo” na perspectiva de Eco (1994).
A cheia dos rios é a
metáfora da representação do sofrimento humano, o espelho onde reflete a imagem
que sobre ele se debruça o homem, como uma espécie de duplo, real. Essa
representação sensorial de algo que existe, traduz lógicas de percepção que
passam pelos caminhos do imaginário. No caso, a identidade refletida pode, como
representação, coincidir – ou não – como modelo original, sem que com isso
deixe de ser aceita.“É substancial retomar a questão do homem e a sua
interioridade, basta lembrar a leitura bergsoniana da subjetividade, a
realidade do Eu transcende os contornos da consciência e ultrapassa em muito a
condição de instrumento de ação”.(PAIVA, 2005,191).
Vejamos esses
registros:
O barco passando e a onda molhando /o menino molhado, na porta da frente. / O homem doente / deitado na rede / com os olhos cansados de espanto e de mágoa / de ver tanta água / de ver tanta água / bebendo do sangue, roendo as raízes / de tudo o que fez. / Na estreita maromba / Os bichos chorando de fome e de frio, / com medo do rio / Com medo do rio que cresce outra vez.
Aqui se vê que o verdadeiro
herói, o verdadeiro centro do poema, é a força das águas. Força que manipula os
homens, que os submete à força perante a qual a carne dos homens se retrai.
Nela, a alma humana, surge incessantemente alterada pelas relações com a força:
arrastada, ceifada, curvada pelo constrangimento da força que não suporta.
Força a que o submetido, o homem, torna-se uma coisa no sentido literal, porque
faz dele um cadáver.
O menino molhado, na
porta da frente é o herdeiro dessa desafortunada herança
que o destino reserva aos filhos dos alagados senhores dessa terra. Os
olhos cansados de ver tanta água /de ver tanta água / bebendo do sangue, roendo
as raízes da esperança, pela força manipuladora que impera a alma como a
fome a que está submetido.
O homem, em toda parte,
é sempre o mais fraco de todos os seres do universo, isto está na Ilíada de
Homero. Aquiles, o mais orgulhoso,
invicto, é-nos mostrado, desde o início do poema, chorando de humilhação e de
dor impotente, depois que raptaram, à sua frente, a mulher que queria para
esposa. Em Werk, são os animais que choram. Neste poema todos padecem desde a
nascença da mesma sorte; sofrer a violência da força das águas, como se
constata nestes versos:Na estreita maromba / Os bichos chorando de
fome e de frio, / com medo do rio / Com medo do rio que cresce outra vez.
Seja como for,este
poema é uma coisa miraculosa. Nele está a
amargura, a miséria e a subordinação da vida humana/animal à força da matéria
água. Assim, “Das águas grandes” parece ser uma excelente imitação, por vezes
do poema Ilíada, mas também, iluminado pelo pensamento de justiça, igualdade e
fraternidade, um pensamento Iluminista que ainda não chegou por aqui.
Então, nesses
registros, o esquema engendrado na duração de natureza substancialmente
virtual, desencadeia o esforço intelectual; e, as imagens captadas nessa perspectiva,
é de luta e de oscilação, em que se visualizam os sentidos amalgamados, numa
lógica de consciência discursiva em que,
o narrador, sai do plano superficial para o plano materializado em estado presente e atuante,
organizado pela própria vida, emblematizante, para ilustrar-nos e apresentar-nos
em fios de experiências penetrada pela viagem ciceroneada com o EU lírico viajante.
Loureiro
(2001), em sua obra Uma Poética do
imaginário diz-nos que isso éuma
identificação com a paisagem natural e a ideal, com a física e a cultural além
de provocar uma espécie de aderência física, moral e estética à terra, não se
confunde com a simples contemplação passageira que encanta o viajante, é
essencialmente ontológica, necessária, profunda, vital, quase instintiva.
A primeira tomada
panorâmica ofusca a vista e atiça os ouvidos do leitor que, num relance,
absorve a paisagem caótica e dinâmica expostas pelas lentes do narrador:O
barco passando e a onda molhando o menino molhado, na porta da frente evidencia que os fatos da vida pode servir
como base para a constituição de uma forma literária. Está claro que os fatos
da vida espelhados pelo drama podem e devem ser figurados e eles acontecem com
muita frequência, isso significa que a vida oferece ininterruptamente a possibilidade
de um grande e verdadeiro drama. O poeta, o ser, cuja
missão é a de desorientador de paradigmas, desnuda o contrassenso do mundo e
torna visível as relações entre as coisas, especialmente, no sentido de
transformar as formas simbólicas da representação em investidas interpretativas
como se pode perceber nesta repetição: de ver tanta água / de ver tanta água,
percebe-se na intenção da repetição do termo a verdadeira forma de drama real e
histórico e, em primeira e última análise daquele (poeta) que resolve mergulhar
a fundo no desvelamento das formas simbólicas,
“uma vez que o poeta não se escusa de entregar-se por inteiro à eficácia da
imagem”(BACHELARD, 2006,164).
O que se vê está
enquadrado pelo ponto de vista do narrador, por meio avaliativo do léxico, do
estado e do ambiente onde e como estão os personagens: com medo do rio / Com medo do rio
que cresce outra vez. A paisagem hídrica e seus habitantes,
distinguidos por seu estado de saúde, deixam expostas as fraturas que
constituem o interior da Amazônia. O mesmo jogo de imagem está refletida na
frase “de ver “tanta” água”, para os olhos e os ouvidos desatentos,podem
constituir um lapso que está a serviço da textura desse universo que emerge da
vida cíclica e comum na Amazônia, no entanto, a abundância de “tanta” água está vinculada à vida de
sempre, pois as águas brotam do chão e pontenciam-se
na poeticidade da língua portuguesa falada por esse universo poético.O poder linguístico dessas palavras não tem,
é claro, uma fonte apenas linguística. Trata-se para o poeta, sobretudo, de
criar tais homens, tais espaços e pô-los em tais situações em que as palavras
como essas resultem “naturalmente”.(LUKÁCS, 2011,147).
Nessa visualidade há
uma espécie de evocação estética, tornando-a destinação de ser contemplada. “O
barco passando” pelos olhos do eu lírico surge como primeiro esquema de ação
verbal, que não só determina a dimensão pragmática do texto, mas, ao mesmo
tempo implica nas condições elementares para a figura do texto e para as
oposições constitutivas, demarcadoras do campo temático e das figuras em
relevância: a onda molhando e menino
molhado, uma analogia desenfreada sugerindo o elemento Água.
É a água o objeto
apresentado. É dela que nasce o interesse e a subjetividade do artista que pretende mostrar como figura e
conteúdo, com valor preponderante e modificador
na vida do homem ribeirinho.A abertura do conceito água faz-se necessária para
mostrar a outra pauta do texto: O drama da vida ribeirinha no espelhamento da
realidade.
As portas de entrada
para essa compreensão são múltiplas, mas, cabe-nos, somente, a possível
decifração dos códigos postos em relação no momento da leitura da criação, observando
a seleção do tema, dos vocábulos e estruturas feitas pelo poeta, que a fez
tanto de forma consciente ou inconsciente, e, por isso, a verdade de uma poesia
é sempre uma dialética entre dois momentos; o da construção e o da leitura.
O autor nos impõe o real
através do virtual, que concerne à matéria presente que passa para dar lugar ao
novo e ao diferente. Infere-se, então, que o virtual é dotado de uma realidade
plena que coincide como o ser, a duração e à própria realidade que se conhece
sobre a Amazônia. “Daí decorre que duas realidades temporais, em princípios
antitéticos,equalizam-se sob a ótica associacionista”. (PAIVA. 2005;211).
O homem existe, o rio e
a enchente existem, o sofrimento é real, e etc.,passando a existir no mundo
real memória, e no virtual, o textual. Assim a beleza artística é superior à beleza
natural, porquanto nela o “espírito” está em obra conscientemente. O possível
exagero abstrato não reside na crítica, na recusa do conteúdo social das ações,
mas no fato de lhes negar, desde o início, toda e qualquer verdade.
A matéria poética e a
memória, como se sabe, são construções simbólicas, que estabelecem uma
comunidade de sentido e um ponto de referência no mundo. E, o rio, reflete a
imagem e as coisas que significam outras coisas, como a que é submetido os
ribeirinhos, na época das grandes cheias,é como as ideias e as palavras que inundam o mundo textual e em que poderá ser
observado o sofrimento, a fome, a miséria,
as promessas e o descaso político... Entre outros, guerra e paz.
A rigor, a imagem como
produto de uma instância criadora da consciência, assume a condição de objeto de reflexão para nossa
consciência. Vejamos estes versos bastante significativos a despertar-nos a
alma de emoção:
O homem doente / deitado na rede / com os olhos cansados de espanto e de mágoa / de ver tanta água / de ver tanta água / bebendo do sangue, roendo as raízes / de tudo o que fez.
Caberia, neste caso,
indagar, com ironia, se cabe, finalmente, distinguir as imagens “reais” das que
foram “criadas”?. Se tudo que se lê e se
experimenta é, por sua vez, recriado enquanto sensação, revivido enquanto
memória articuladora de lembrança e decodificada em seus significados? A atribuição de sentido às imagens poderá
depender do ponto de vista ou do lugar de quem o lê e de como sente aquilo que
se representa?
O discurso de Werk em
primeira instância é passeísta e, um segundo, é político-demagógico, nos propondo
caminhar na narrativa saindo do desconforto ao conforto,evocando um horizonte
de possibilidade de reconstituir a sociedade pelos valores humanos, que se
apresentam marginalizados pela política brasileira.
Quando lemos estes
versos/Os olhos cansados de ver tanta água,/ tanta água/ bebendo do sangue,
a repetição dos termos tanta água,
configura a amplidão do período de cheia do rio no poema, parecendo-nos que o
poeta quer obrigar-nos a pronunciar a palavra “tanta” para se perceber como ela é geradora de uma
musicalidade, exigindo que a respiração seja lenta e calma,assim, ganhando relevo sobre as demais palavras.
Esta poesia é metáfora
do trabalho inútil de toda a vida que trouxe como retorno as doenças, a
velhice, o desconforto econômico ao homem. Essa imagem ante-épica é cifra da
condição humana, nitidamente consolidada pela falta de apoio das autoridades
locais, governamentais. Diante da proporção magnífica que ultrapassa o
horizonte do olhar, as águas, a floresta na Amazônia,confere ao homem uma ideia
de grandeza contínua, geradora de uma espécie de sentimento de unidade da
região. “Nessa grandeza se inter-relacionam”, água, floresta, homem vivente
nela, com ela, dela. A existência local está em íntima e espontânea relação com
a totalidade”. (LOUREIRO, 2001)
2- Na linha
imaginária do tempo percebe-se um tempo diluviano
denominado de verão chuvoso. O tempo das águas na Amazônia é cíclico, seis
meses enchendo, seis meses secando. Na cheia, a representação da escassez de
comida, doenças, tempos difíceis de viver pela falta de trabalho na terra. Na
seca, vê-se fartura no plantio e na colheita, a felicidade.
A literatura torna-se
uma força social que se dirige a todos, pois traduz uma sensibilidade coletiva
deste mundo de informação, traduzindo as antinomias urbanas no narrador
observador, e rural, nos personagens observados. Na poesia, é claro, o rural
vicioso e o rural virtuoso, um pouco cínica pela característica niilista do ser
sempre novo e sempre igual, pela continuidade da existência que se repete como
as águas do rio. O homem, (EU LÍRICO), é suplantado pela perplexidade diante da
condição angustiante, tomado por forças afetivas observa, e pensa em reconduzir
essa dimensão quase pré-humana, que emerge, de uma absurdidade e um
deslocamento da lógica da razão e da sobrevivência.
Na poesia de Werk percebe-se
uma chamada de tomada de consciência do leitor para os problemas expostos, com
as contradições que a vida rural suscita. Trabalhando no âmbito do imaginário,
a literatura fala de um tempo supostamente acontecido para a voz narrativa e
frente ao qual, o leitor se reconhece. Embora o texto seja um sintoma de uma
realidade próxima da existência, não nos apresenta um guia prático de ação
concreta, tem sim, uma ilusória possibilidade, um sonho como se constata nestes
versos da última estrofe:
E, de repente, / me vem uma vontade provisória / de encher os bolsos de demagogia, /entrar em cada casa com um estória, / qualquer que seja _ que não seja séria, / falar de tudo _ menos de miséria, / prometer coisas que não cumprirei, / como se faz em tempo de eleições, / para que sejam menos infelizes / mastigando ilusões.
Nestes versos há o
desmentido das promessas dos versos da estrofe anterior. A questão dos narradores é paranoica, prometer coisas que não cumprirei, promessas
de vantagens como se faz em tempo de
eleições, tal qual fazem os políticos, passado o processo, o já
eleito, põe na conta do esquecimento e
só volta a prometerem uma nova enchente, nova eleição.Tal qual as enchentes, a
promessa política é também um processo contínuo na vida humana. “A propósito, a teoria da
sociedade é a de que ela é sempre má, e que a reforma ou a transformação da
sociedade não pode ter outro objetivo senão o de torná-la o menos má possível. Platão
entendeu isso, e a sua construção de uma sociedade ideal na República
é meramente simbólica”(WEIL, 2006) tal o desejo do
discurso do possível político do texto.
3-As
diferentes formas dos eventos e como eles se desenvolvem na linha do tempo vão
encontrar nos versos de Werk as possibilidades temporais:
(Quando eu for Presidente, / de amplos e amorosíssimos poderes, / decretarei, /sem visto do congresso, / nem processo, / canonizando santos nacionais / os mártires da enchente. /Convocarei um exército de anjos / Para domar o rio e o desvario / Dos prováveis dilúvios anuais. / Mesmo assim, por razões de previdência, / Visto que temos mártires demais / E precisamos de gente, / Levarei meus irmãos pra terra firme, / Onde casa não pode ser navio, / Nem se esteja sujeito / As caprichosas emoções do rio).
Sem dúvida, o que se vê,
é a sensibilidade poética que privilegia o momento de crise política e o insere
de forma crítica e cáustica no contexto da poesia. O efeito dessa problemática
é integrar a obra literária num dispositivo de comunicação, organizado a partir
da leitura do texto com o contexto social. Tal roteiro define um processo
linear que corresponde, absolutamente, ao contexto politico histórico do país. O escritor é um sonhador e conhece tudo isso,
sente isso e, pela diminuição da dor do mundo exterior sente um aumento de
intensidade em propagar os valores da vida. A imaginação ultrapassa o reino dos
fatos, ajuda-nos a encarara poesia como um documento que marca uma biografia. Acredita-seque
o cidadão, (poeta / leitor) nessa rede invisível, atravessa divisões sociais e
assiste à emergência da sociedade e, num registro distinto, põe o texto sobre e
pela via ótica do interesse da política territorial.
O confronto criativo
com o momento político é destaque e, a enunciação, duplica-se por seu reflexo
no espelho da Literatura. Neste texto, pode-se dizer que há um contexto; uma
narrativa onde o escritor se posiciona na cenografia e valida, no discurso, a
possibilidade de existência por compartilhar com o seu narratário.
O poeta convocado por
Deus é um dos elos de uma cadeia providencial cuja cronografia cósmica abrange
Moisés e, em tal universo, a enunciação da promessa política prometendo a
salvação, eliminando todo o Mal, é voltada à cronografia cósmica que abrange
Moisés e, assim o poeta ressurge no plano divino providencial por ser mais um
convocado por Deus para a salvação dos homens na terra.
A cenografia aqui é
aprisionada no jogo das forças materiais e espirituais pelo qual o universo é
atravessado. A obra mostra um mundo que reivindica a própria cenografia que o instaura e nenhuma outra.
4-A
maneira como esses eventos ocorreram
É de forma plana nos
dois discursos que o texto apresenta. São personagens problematizadas, como não
poderia deixar de ser, uma vez viver longe da cidade e ser um Ser esquecido
pelo poder público, torna-o vivente à margem da sociedade. Gente resignada, sem
reclamações onde a certeza é a de que tudo vivido é desde os ancestrais. O
primeiro discurso nos primeiros versos é a do narrador observador, estratégia
para captar a atenção, apontando para onde quer que o leitor veja e se envolva
na melancolia, na doença, na relação de abandono a que está fadado o
caboclo.
A imagem do menino
molhado, na porta da frente,depois a repetição dos versos de
ver tanta água, de ver tanta água, reconfigura a ruína a que vive o
homem das enchentes, fechado em si mesmo, enfraquecido entre o seu eu e o mundo
caleidoscopicamente fragmentado pelas duas estações: verão seco e verão
chuvoso. Este emparedado é um naufrago constantemente ameaçado sobrevivendo ao
caos de toda ordem natural. No segundo discurso, o demagógico e político:
(Quando eu for Presidente, / de amplos e amorosíssimos poderes, / decretarei, /sem visto do congresso, / nem processo, / canonizando santos nacionais / os mártires da enchente. /Convocarei um exército de anjos / Para domar o rio e o desvario / Dos prováveis dilúvios anuais. / Mesmo assim, por razões de previdência, / Visto que temos mártires demais / E precisamos de gente, / Levarei meus irmãos pra terra firme, / Onde casa não pode ser navio, / Nem se esteja sujeito / As caprichosas emoções do rio)vê-se a emoção, o desejo e a euforia de compensar a falta de afeto, de vontade coletiva de uma nação, ausência de feitos heroicos de governantes.
O Eu lírico, utiliza-se
de promessas tresloucadas e utópicas para resgatar os órfãos alagados do
esquecimento na terra para serem coroados como anjos e santos do céu. A
exploração desses meandros subjetivos (arma-se de poder Divino para divinizar
os sofredores terrenos/alagados), faz o leitor refletir na trama e na armadilha
do discurso. Será mais um a prometer? Ou este é mais um Dom Quixote, o do
Amazonas, surgindo e brigando, não com moinhos de vento, e sim com o monopólio
capitalista do Sul, e os
desgovernos do Estado que não
tomam providencias com as enchentes que inundam este universo amazônico,(
se isto é poder do homem, domar a fúria das águas).
As vítimas que motivam esse discurso, vivem num
“beco sem saída”, é uma prova contundente das maneiras que a sociedade tem e
dispõe para tornar o cidadão invisível. Fingir que esse problema não é nosso, é
a forma egoísta de esconder a miseranda vida do irmão distante. Vê-se, então,
que o texto de Werk está construído e constituído de violência social e
psicológica, gerada pelas grandes cidades. Em certa medida,o tratamento dado à
falta de visibilidade às vítimas constitui uma versão cruel, mas não menos
poética.
5-Se
há participação de algo ou alguém além do ator principal
Um autor constrói sua
assinatura no interesse do leitor. Pensemos que o poeta, em todas as épocas, é
um observador importante da vida e refaz essas vidas, pela experiência
linguística na fala de suas personagens, o que denominamos de “Eu Lírico”. A
consciência de transfigurar a figura emblemática do caboclo interiorano é um
desafio, e mais, um documentário e experiências de vidas traduzidas para que
alguém perceba a complexidade da Amazônia. Nesse poema quase prosa, espécie de
confissão, há um narrador em primeira pessoa, um eu lírico observador e outro
demagógico em si mesmo,que descreve dois sujeitos, suas ações e condições,
caracterizam-se como o menino molhado e o homem doente tendo
como consequência o ato de ver tanta água.
A dimensão do termo
visual na expressão “tanta água” e o sinalizador que dinamiza o texto. Isso
significa as formas diferenciadas de organizar o assunto e as consequências de
produzir esses referentes visuais e,para que o leitor encontre a necessidade de
descobrir e tenha interesse na exposição discursiva de todo o texto.
(Quando eu for Presidente .... E de repente, / me vem uma vontade provisória / de encher os bolsos de demagogia, / entrar em cada casa com um estória, / qualquer que seja _ que não seja séria, / falar de tudo _ menos de miséria, / prometer coisas que não cumprirei,/ como se faz em tempo de eleições, / para que sejam menos infelizes / (enquanto o rio esconde as roças podres) / Mastigando ilusões.
O
uso adequado do advérbio no verso “quando”
eu for Presidente, demonstra a
memoria ampliada no passado urdido pelas demagogias políticas já tão “fracassadas” por todos os tempos. A
historia no futuro “do menino molhado”
se repetirá no presente para o futuro “homem doente”.
In
principio erat verbum
“O mito mostra que as duas categorias
fundadoras do cosmo, do sentido são a linguagem (primeiro relato da criação e o
trabalho (segunda narrativa)”,(FIORIN, 2008,11).Os vários discursos textuais no
referido poema gera um interesse particular, repito aqui o que Fiorin et al diz:
O sujeito pragmático da
enunciação - aquele mesmo que se inscreve na atividade de comunicação
linguageira – torna-se desde então “configurável” como um feixe de atitudes em
relação aos objetos de conhecimento que ele põe no lugar e dispõe segundo as
aberturas e as coerções de uma certa ordem de saber.
O
sujeito de que fala o referido autor é o narrador na função de atestador, de
testemunha da ação dos sujeitos do mundo observado por ele; sujeito na função
ideológica, quando se enche de arrogância política e de poder santificado. Os
tempos verbais desse texto estão organizados em torno do eu narrador na posição de
presente, e futuro.
A tese central da
poesia é a existência do ser humano que primeiramente existe, sem qualquer
determinação prévia da existência, depois define-se pelo que vier a fazer de si,
mas, o que fazer de si se no si falta-lhe a essência da liberdade? E esta é subjetividade em atos livres como
pensou Sartre. No homem da Amazônia faltam-lhe liberdade e determinação. Um ethos vivente de Agonia e Êxtase e, esse ethos está condicionado a produzir habitus intransponíveis, marcado para aceitar
os desígnios da natureza sem discutir.
Werk, nesta poesia,
deixa que o leitor exale o som melancólico e triste, perceba o suspense da vida
e da morte, veja o ser corporificado e cansado de existir que anda uma trilha
solitária, meditativa. Um eu derramando os olhos na imagem do rio que reflete
em si mesmo. Duas grandezas indissolúveis; uma que determina a existência da
outra.
Na poesia de Alcides Werk há, finalmente, um tecido
de oposições, uma oscilação entre o belo e feio, um espírito de dialética
agónica, que, na maior parte do texto, ressume-se numa vitalidade combativa e
contagiante. Sob a égide da prosopopeia, a «deliciosa tristura» e a «melancólica
alegria» desenham uma das muitas faces do homem: uma face sombria é certo, mas,
como adverte o pensamento rico, denso, envolvente e provocante de Werk é
entregue a nós, seus leitores.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi: revisão da
traduçãoAlain Marcel Mouzat, Mário Laranjeira.- 2ª ed. – São Paulo : Martins
Fontes, 2006.
BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: contexto, 2010.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. São
Paulo; Leya,2011.
CYNTRÃO, Sylvia Helena. Como ler o texto poético; caminhos
contemporâneos. Brasília: Plano Editora, 2004.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque de ficção. São Paulo, SP: Companhia das
Letras,1994.
FERRAREZI, Celso Jr. Semântica para a educação básica. São
Paulo: Parábola Editorial:2008.
FERREIRA,
António Manuel. Traços de distorção na poesia de José Régio.Universidade
de Aveiro, 2002, pp. 25-32.
FIORIN,
José Luiz. As astúcias da enunciação.
As categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Editora Ática S.A. 2008.
LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor:Textos de Estética da Recepção. Hans Robert
Jauss...et al.; Coord. E Trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras
reunidas: Cultura Amazônica: Uma poética do imaginário. São Paulo:
Escrituras Editora, 2001.
LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2011.
MOYSES, Leyla Perrone. Inútil poesiae outros ensaios breves.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PAIVA,Rita. Subjetividade e Imagem. Aliteratura como horizonte da filosofia em
Henri Bergson. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, Fapesp,2005.
PAZ, Otávio. O arco e a lira. Trad.Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões
literárias do urbano. 2ª edição. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS,2002.
PELLEGRINI, Tania. A imagem e a letra. Aspectos da ficção brasileira contemporânea. Campinas,
SP: Mercado das Letras; São Paulo : Fapesp,1999.
WEIL, Simone. A fonte Grega. Estudos sobre o pensamento e o espírito da Grécia.
Trad. Filipe Jarro. Livros Cotovia, Lda. Lisboa, 2006.
[i]Francisca
de Lourdes Souza Louro.
Doutora em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra.