Saulo Lopes de Sousa
Pós-graduando em Estudos
Linguísticos e Literários (UESPI)
Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA)
RESUMO: A experiência homoerótica perpetua-se
desde longínquas datas, atravessando a cultura grega de exaltação do belo e
jovial, até firmar âncora no contexto pós-moderno, implicando na busca de uma
inacessível vivência individual da sexualidade. O jogo simbólico que objetiva
transformar o assunto em linguagem também é verificado nas produções de
artistas contemporâneos, cuja arte da palavra transmuta-se na palavra da arte e
questiona discursos até então cristalizados pela arcaica ordem moral. Isso
posto, o presente artigo busca analisar a simbologia no discurso visual do
clipe Alejandro, de Lady
Gaga, ao discutir a legitimidade homoerótica e a feminilização do papel
masculino. Este estudo investiga duas formas diferentes de expressão estética –
simbologia e mídia –, por isso pensa a “apoderação” midiática do simbólico,
fundindo perspectivas de sentidos e potencializando maneiras de significar.
Propõe-se refletir a maneira como os veículos midiáticos de massa são capazes
de se apossarem do simbólico como forma de (des)construção de sentidos,
potencializando seus dizeres.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade
homoerótica. Discurso simbólico. Alejandro. Lady Gaga.
ABSTRACT: The homoerotic
experience is perpetuated from distant dates,
crossing the Greco-Roman culture of
the beautiful and joyous exaltation, until firm anchor
in the postmodern context, implying
the pursuit of an unreachable
individual sexuality. Symbolic play that aims to transform the subject in language is also found in
the productions of contemporary artists, whose art transmutes the
word on the word art speeches and questions until
then crystallized by archaic moral order. This
post, this article seeks to
investigate the evidence of symbolic visual discouse in the clip Alejandro by Lady Gaga, who discusses the legitimacy homoerotic and
feminization of the male role. This study inestigates two different forms of
aesthetic expression – symbolism and media – so think “empowerment” symbolic
media, merning perspectives senses and empowering ways to mean. Is is proposed
to reflect the way mass media vehicles – video – are able to take possesion of
the symboli as a wayof (de)construction of meaning, enhacing their sayings.
KEYWORDS: Homoerotic identity. Symbolic
speech. Alejandro. Lady Gaga.
Em épocas de extrema censura e restrição, a temática da
relação homoerótica/homoafetiva ganha vislumbre na literatura. Obras como O nome da Rosa (Umberto
Eco), O
demônio familiar (José de Alencar), O Ateneu (Raul
Pompeia), Bom Crioulo (Adolfo Caminha) e O Cortiço (Aluísio
Azevedo) intentam legitimar não uma literatura dita homoerótica, mas o debate,
ainda que tímido, do que seria uma vertente homoerótica e, assim, provocar
alguma discussão sobre essa instância. Ao que parece, o tema não se revela como
razão última da estética literária destas obras, e sim como uma das veias humano-existencial
de suas criações, conforme Jessé Maciel em Momentos do Homoerotismo.
Maciel (2006) considera a obra de Alencar uma abordagem
“rasa”, oblíqua e anuladora de qualquer discussão sobre o homoerotismo,
reservando-se à insinuação de um possível indivíduo homossexual, sem atributos
para considerá-lo tal. A obra de Eco é ambientada nos ares medievais, época de
extrema repressão às práticas homoeróticas. Assim, há apenas a sugestão de
envolvimentos sexuais entre monges, sem apresentação de indícios
concretos ou análise profunda do assunto. Seguem também este exemplo Pompeia e
Caminha.
Partícipes
do cânone literário, os escritores brasileiros “iluminam as abordagens e
representações iniciais que foram dispensadas aos sujeitos homoeróticos”
(MACIEL, 2006, p.27). Talvez, somente com a crítica de Machado seja possível
reunir a base teórica apta a pensar uma identidade homoerótica, ainda que sob a
ótica machadiana do jogo de interesses. O conto Pílades e Orestes expõe
“a dissecação dos interesses, das motivações, e da mecânica que tornou
possível a dois membros de estratos sociais mais elevados a manutenção de uma
união homoafetiva em pleno século XIX” (MACIEL, 2006, p.27).
Para
Maciel, a corajosa competência da escritura machadiana é plausível ao descortinar
indivíduos homoeróticos que firmam relacionamento, mesmo sendo alvos de
comentários, insinuando a estratégia do matrimônio por interesses como
artifício de velamento da verdadeira essência da relação afetiva dos mesmos.
“No texto de Machado, as identidades erótico-afetivas são efetivadas segundo as
regras do jogo de interesse de classe que somente pode se realizar plenamente
sob o domínio do cânone heteronormativo, compreendido como lei” (MACIEL, 2006,
p.28).
Na Antiguidade clássica, a cultura greco-romana é
destaque como referência de exaltação das condutas homoeróticas. A prática da
pederastia era amplamente aceita e vista como singular enaltecimento do belo e
jovial. Na mentalidade grega, não havia a distinção hetero- e homossexual vinculada
aos desejos eróticos. Assim, homens casados mantinham, naturalmente, relações
eróticas com rapazes, sem que houvesse conflitos de sexualidade, isto é, o ato
homoerótico não maculava “nem a masculinidade do adulto nem a integridade moral
do jovem” (BARBO, 2008, p.32). Desse modo,
na percepção do ateniense, manter um relacionamento erótico
com um jovem não significaria jamais um risco de transpô-lo para uma outra
identidade ou essência sexual. Significa, apenas, mais uma forma de obter
prazer erótico plenamente conciliável, em sua cultura, com a forma matrimonial
(BARBO, 2008, p.32).
Com a ausência de conflitos oriundos
desse comportamento, o homoerotismo na antiga sociedade greco-romana não
apresentava a significância subversiva e o aspecto depreciativo que, tempos
mais tarde, assimilou. Na era medieval, o dogmatismo religioso e a instituição
do pecado atribuíram ao homoerotismo caráter diabólico, sendo severamente
proibido. A abordagem dita religiosa do homoerotismo pautava-se na análise dos
dogmas católicos sacralizados, que reconheciam nos atos homoeróticos o pecado
da sodomia.
Barbo,
ao analisar a íntima relação das instâncias eróticas com a cultura na qual se
manifestam, postula “a determinação cultural das categorias eróticas” (2008,
p.32). Diferentemente das culturas e sociedades antigas, o mundo moderno
articula a edificação de sentidos sobre o erotismo mediante as categorias da
sexualidade. Para tanto, é preciso entender a formação desses sentidos em
sociedades que não possuíam a sexualidade institucionalizada. Com base nas
dimensões eróticas do mundo grego antigo, o autor expõe a poética
cultural do desejo.
Por
essa proposta, o universo erótico de determinada sociedade deixa de ser
meramente um campo apartado e independente do contexto social e passa a congregar
os múltiplos setores socioculturais dessa comunidade. Entende-se que “os
múltiplos significados da vida erótica, em qualquer sociedade, só são
inteligíveis se tomados em relação ao todo do tecido social” (BARBO, 2008,
p.33). Essa perspectiva redireciona a concepção de sexualidade, que passa a ser
discutida
como uma
das linguagens para definir, descrever, interpretar e negociar todas as
condutas, modos, valores e perspectivas dos outros campos culturais da
sociedade. […] A sexualidade passa a ser pensada como uma instância social que
sofre mudanças (BARBO, 2008, p.33).
A compreensão das estruturas eróticas sociais requer o
entendimento sobre o sentido de poética cultural. Barbo cita os
idealizadores desse pensamento – Halperin, Winkler e Zeltlin –, constante na
obra Before sexuality. A poética cultural diz respeito “ao processo pelo qual uma
sociedade e seus subgrupos constroem significados largamente compartilhados –
convenções comportamentais, distinções sociais, [...] atitudes religiosas,
códigos morais, papéis masculinos e femininos e paradigmas de excitação sexual”
(apud BARBO, 2008, p.34). Entende-se,
pois, que a poética cultural nasce das institucionalizações sociais, acordadas
entre os membros da sociedade e assimiladas como constituintes essenciais da
estrutura sociocultural. A amplitude desse processo de construção da semântica
cultural possibilita “a formação de identidades eróticas” (BARBO, 2008, p.34). Vista assim, a poética cultural do desejo representa uma porção da totalidade poética cultural de certa sociedade,
cuja análise é vertente possível para se entender a formação das identidades
eróticas de um núcleo social.
Sobre sexo, desejo e cultura[1]
Souza
(cf. 2010, p.22) entende a articulação entre desejo e cultura; o desejo é
condicionado pela cultura, normatizado pela sociedade e construído
historicamente. Por outro lado, acredita-se que não é o desejo em si –
entendido como pulsão natural e autônoma do indivíduo – que seja alvo das
imposições normalista-culturais inerentes ao conservadorismo, e sim a externação do mesmo. Isso leva a
identificar o sujeito desse desejo como verdadeiro fito da normalitização
cultural, que condiciona a maneira adequada desse indivíduo manifestar o
próprio desejo. Considerar o desejo um objeto cultural só é possível se houver
a evolução histórica do modo como o homem o manifesta, ou seja, se o desejo do amor
grego fosse distinto do desejo do amor gay moderno.
Isso garantiria, de fato, a intrínseca relação entre cultura e desejo. O que
ocorre é que a compreensão do desejo enquanto fenômeno culturalmente construído
resulta do princípio da irreversível união entre sujeito e desejo.
Somente em meados do século XIX, as
Ciências Humanas adentraram nas sinuosas veredas do homoerotismo. Nesse
sentido, destaca-se a tese de Michel Foucault: História da Sexualidade. Segundo esse
estudioso, o ato homoerótico pendia mais para um reverso dos papéis masculino e
feminino do que propriamente uma relação sexual. Essa perspectiva concedeu
permissão ao surgimento de nomenclaturas equivocadas, como “terceiro sexo”. De
fato, o Ser homossexual é – e sempre será – homem ou mulher.
Conforme Foucault (apud SOUZA,
2010), a condição feminina na sociedade grega antiga era de inferioridade,
posto que a mulher era vista como um homem invertido, incompleto.
Implicitamente nessa conjuntura se apoiam as vigas do preconceito sexual, pois
há a recusa da inferiorização masculina, ligada diretamente à função passiva da
mulher no coito – ser penetrada. Ao assumir a condição de passividade no ato
sexual, o homem exerceria o papel feminino, tornando-se inferior, o que
abalaria os alicerces da dominação masculina.
Foucault ainda discorre sobre a inacessível prática
sexual entre mulheres. A inaceitabilidade surge porque uma das mulheres “usurpa
o papel do homem” (FOUCAULT, 1985, apud SOUZA,
2010, p.19). Em contrapartida, esse risco não ocorreria na cópula masculina,
porque um dos atuantes estaria desempenhando a dominação própria de sua posição
viril.
Entre dois homens, o ato viril por excelência, a penetração,
não é em si mesmo uma transgressão da natureza. Em troca, entre duas mulheres
um tal ato que se efetua […], e com recurso a subterfúgios, é tão fora da
natureza como a relação entre um humano com um deus ou com um animal (FOUCAULT,
1985, apud SOUZA, 2010, p.20).
Para Souza (2010), a discussão central considera o mais
notável simbolismo de dominação: a penetração. Esse símbolo da hegemonia
masculina ainda bloqueia a concretude do desejo sexual homoerótico, tanto
masculino como feminino. As duas manifestações eróticas ameaçam o poderio da
masculinidade, pois no ato sexual entre indivíduos do sexo masculino, o homem –
dominador – é deslocado de sua posição ativa, para avocar a condição de
dominado – passivo. No outro caso, a mulher – dominado – sublima-se à categoria
de dominador ao assumir a função ativa no ato sexual homoerótico. Com efeito,
há descentralização do poder masculino.
No centro da dominação masculina, historicamente
alicerçada, reside a fator sexual, pautado em regras e modelos
pré-estabelecidos. Assim, “a crescente demarcação do sexo legítimo entendido
como heterossexual e conjugal bane para a marginalidade comportamentos
polimorfos e atores que antes não eram objeto de rotulação no espaço difuso da
atividade sexual” (FOUCAULT, 1977, p.47).
Literatura e homoerotismo:
um grito silencioso em busca de voz
Em
se tratando de construção das identidades culturais, a proposta atual de
abordagem dos constituintes identitários pelo viés homoerótico tem produzido
importantes discussões, favoráveis ou contrárias. E considerando o olhar
crítico-literário que elucida a multiplicidade de fatores de geram as
identidades sociais, a orientação homoerótica pode servir de parâmetro ao
estudo das culturas, como uma de suas multifacetadas expressões. “O olhar homoerótico
revolve as raízes da compreensão cultural de fenômenos da ordem do social, que
interferem diretamente na 'produção' que a cultura, a cada passo, em cada
contexto, realiza” (SOUZA JÚNIOR, 2007, p.139-140).
A
ideia de homoerótico constitui importante veículo questionador dos princípios
sociais engessados, referente à questão de gênero ou mesmo de masculinidade. Em
todo o caso, serve não só à investigação crítico-literária, como também
dispensa qualitativo aos estudos da cultura, no que tange desde o processo de
demérito e silenciário dos indivíduos homoeróticos até a compreensão da fluidez
das posturas identitárias.
A
aliança empreendida por esses dois eixos analíticos intenta edificar um viés
investigativo acerca das ocorrências culturais e identitárias pós-modernas e
resguardar princípios sociais sacralizados. “De certo modo, esse encontro
[literatura e homoerotismo] é um esforço que pretende evitar a pulverização
pós-moderna de conceitos e diretrizes” (MENDES, 2002, p.81). Não é de interesse
dos estudos culturais, tão pouco da análise literária, abolir conceitos
vigentes na sociedade para que se implantem novos, e sim perscrutar
profundamente sua estrutura para desvendar seus mecanismos de expressão e
transformação.
O
terreno da cultura, onde repousam os entendimentos de mundo, é um conjunto
pré-ordenado simbolicamente, de modo que os conteúdos ideológicos e de valores
recriados pelas produções artísticas originam-se de um extenso território de
textualizações que insuflam uma visão de realidade já concebida. O que a
literatura problematiza é, de imediato, a interpretação já fornecida da
realidade objetiva, do meio social e da subjetividade, ao passo que sujeita a
expressão da linguagem a uma crítica similar, dada sua competência analítica e
sua lógica.
A
descontinuidade das experiências sócio-históricas, sobretudo no espaço
pós-moderno, exige a todo instante sucessivas repartições sociais e desarticula
as identidades estáveis. Isso gera um conflito entre as identidades assumidas,
sempre suscetíveis à alternância e com as quais o sujeito se identifica
temporariamente. Rejeitar o conceito de identidade [gay] equivale,
perigosamente, a negar o próprio indivíduo homoerótico e mergulhar na
invisibilidade da minoria oprimida.
Por uma escritura
pós-identitária
Conforme Maciel (2006), no vislumbre dos conflitos
humanos, é nítida a situação inconsistente dos sujeitos, cujas identidades
enfrentam um profundo estado de crise. Nesse sentido, a chamada concepção pós-identitária
surge como problematização das identidades, compreendidas como
papéis subjetivos arrogados em maior ou menor grau de autonomia dos sujeitos.
Por essa visão, as identidades não são estáveis, formuladas sob a estrutura de
uma identidade-piloto reguladora, fruto de um regimento heteronormativo. A proposta
pós-identitária rejeita o engessamento do sujeito em concepções historicamente
apregoadas e entende a manifestação dos desejos humanos como princípio
revelador de uma situação íntima e sentimental. “Está se efetuando uma completa
desconstrução das perspectivas identitárias em uma variedade de áreas
disciplinares, todas as quais […] criticam a ideia de uma identidade integral,
originária e unificada” (HAAL, 2004, apud
MACIEL, 2006, p.35).
O
drama dos sujeitos homoeróticos se deve, em grande parte, à complexidade de se
preencherem as lacunas sensíveis do coração, embora também diga respeito à
difícil aceitação do sentimento devotado a outro do mesmo sexo, ainda que
obstáculos lhe impeçam sua concretude. Não há desmedida entre o eu e o
desejo, que conjetura o acolhimento da diversidade de molduras assimiladas pelo
desejo nas performances do prazer, ainda condizente com o significado operante
de identidade: “As perspectivas que teorizam o pós-modernismo têm celebrado,
por sua vez, a existência de um 'eu' inevitavelmente performativo” (HALL, 2004,
apud MACIEL, 2006, p.36).
A
verificação de que não existem identidades fixas é o gatilho da crise
identitária do sujeito pós-moderno, haja vista que “a identidade é um desses
conceitos que operam 'sob rasura', no intervalo entre a inversão e a
emergência” (HALL, 2004, apud MACIEL,
2006, p.36). Dada a impossibilidade de se pensar a identidade como instância
fracionável a um cerne regulador, responsável por ditar o valor dos indivíduos
de forma mecânica, vê-se claramente o estilhaçar das subjetividades do sujeito
como efeito da ausência o outro – ser amado – na autodefinição. “Parece que é
na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas que
a questão da identidade – ou melhor, a questão da identificação, como se
prefira enfatizar o processo de subjetivação [...] – volta a aparecer” (HALL,
2004, apud MACIEL, 2006, p.36).
Em virtude da crise da
definição de uma identidade fundamental, pode-se afirmar a negação de uma
identidade cartesiana e imutável, capaz de condizer com a hierarquização dos
sujeitos. Assim, não há fundamento em aceitar a servidão da multiplicidade
intrínseca do Ser à adaptação a um paradigma que resuma as identidades numa só.
Alejandro, de Lady Gaga – simbologia
homoerótica
Alejandro é um dos singles a
compor o álbum The Fame Monster (2010), da cantora americana Lady Gaga.
O videoclipe Alejandro leva assinatura de direção do fotógrafo de moda
Steven Klein. Seu estilo fotográfico muitas vezes aborda a temática
homoerótica. O cosmo de Alejandro projeta-se na grande metáfora às
sociedades ditatoriais da Segunda Guerra, principalmente a hitleriana. A
insígnia ufanista dessas sociedades eleva suas doutrinas a patamares quase
religiosos. Nesse sentido, Alejandro toma a dianteira na problematização
desses “dogmas”, ao discutir a feminilização do papel masculino e a
legitimidade homoerótica.
O videoclipe se inicia numa
espécie de prólogo às avessas, in ultima res, pois expõe de modo
reflexivo os lances finais e consecutivos da trama musical, bem ao gosto de um
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”. A abertura traz a curiosa aparição de um
soldado desnudo – acredita-se estar vestindo roupa íntima –, usando quepe
militar, mas utilizando meia-calça e sapato feminino de salto alto (Fig. 1). Esse infante “feminilizado”
simboliza o prenúncio do viés homoerótico que permeará a película musical.
Também nele se antecipa o embate dos princípios masculino e feminino,
dado o conflito existente na presença dos elementos que o compõem: meia-calça,
sapato de salto e pernas cruzadas – componentes do feminino –; quepe de soldado
e metralhadora sob a mesa – componentes do masculino.
Adiante, visualiza-se uma
pequena tropa de soldados em marcha de combate, com passada militarista, tal
como pelotão de frente (Fig. 2).
Ao fundo, um clarão ofuscante, que remete ao alvorecer. Chevalier explica que,
“em astrologia, o Sol é símbolo de vida, calor, dia, luz, autoridade, sexo
masculino e de tudo o que brilha” (2000, p.839). A priori, simboliza a
potência masculina, pisando forte e impondo-se violenta e soberanamente. A
ideia de virilidade dominante é reforçada pela presença do capuz em alguns
soldados, que é lido como “um símbolo fálico” (CHEVALIER, 2000, p.185).
Diferentemente, “a luz pode também aparecer […] como a ancestral fêmea que o
homem fecunda” (CHEVALIER, 2000, p.569). Assim, detecta-se a dualidade
simbolizada na antítese luz/sombra:
o vigor da masculinidade contra a delicadeza da feminilidade. Esse jogo de
contraste, devido à luz no horizonte, projeta as sombras dos soldados, mas
também os “torna” sombras: “O casamento do preto com o branco […] engendra o
cinza intermediário, que […] é o valor do centro, isto é, do homem” (CHEVALIER,
2000, p.742). Por isso, a dicotomia masculino/feminino reside no cerne da
existência humana, herança do ato criacionista no mito adâmico. Porém,
“tornando-se” sombras, perde-se a identidade: passa-se a ser apenas uma
projeção do que seria de fato.
A
sombra e, principalmente, o capuz aludem “ao manto da invisibilidade. […]
Cobrir a cabeça significa ainda mais do que se tornar invisível: significa
desaparecer e morrer” (CHEVALIER, 2000, p.185). Encarnando a face homoerótica,
esses indivíduos permanecem invisíveis diante da sociedade e desaparecem ou
morrem para si, posto que são moldados aos paradigmas de conduta socialmente
edificados. São prisioneiros – estão encapuzados – e devem se adequar ao
sistema, militar ou social, e agir conforme determinada postura, negando a
própria identidade. Mas existe uma áurea feminina sob as vestes de um uniforme.
Outros soldados carregam artefatos de ferro que
funcionam como símbolos: estrela – de Davi –, pirâmide escadeada e círculo. Na
estrutura da estrela de Davi se observa a união do masculino – falo, espada ou triângulo para cima – com o feminino – útero, cálice ou triângulo
para baixo – e, em última instância, o divino. A pirâmide é para Chevalier “um
símbolo de ascensão” (2000, p.720). Desse modo, o exército passa a
sinalizar não mais o poderio falocêntrico, e sim a força homoerótica, que se
lança ao campo de guerra para reclamar sua posição social relegada. A forma
escadeada condensa o caráter ascensional, pois “a escada é símbolo por
excelência da ascensão e da valorização” (CHEVALIER, 2000, p.378). Visando a
um estatuto visível na sociedade, a intenção é creditar semblante valorativo ao
desejo homoerótico, conformando-o em igual visibilidade com o desejo
heterossexual.
Tem-se, por fim, o círculo: “O símbolo do círculo é uma
imagem arquetípica da totalidade da psique, o símbolo do self”
(CHEVALIER, 2000, p.254). O círculo se fecha, delimitando espaços: “Em sua
qualidade de forma envolvente, qual circuito fechado, o círculo é símbolo de
proteção, […] assegurada dentro de seus limites” (CHEVALIER, 2000, p.254).
Desse modo, a proteção auferida aos indivíduos homoeroticamente inclinados
insere-se num nítido círculo vicioso, cujo movimento ininterrupto os leva
incansavelmente ao ponto de partida, ou seja, não há o abandono da condição
estigmatizada. O abrigo está na perpetuação cíclica da posição subalterna dos
sujeitos homoeróticos, pois exceder os limites do espaço circular é assumir o
risco do combate, sem escudo, com as forças pungentes da sociedade.
Na Fig. 3,
que marca o início da canção, visualiza-se a imagem de Lady Gaga[2] sobrepondo-se à imagem de
Alejandro, interpretado pelo modelo Evandro Soldati. O efeito visual dessa
sobreposição aponta para a temática da Androginia, do Duplo. O tema do
Andrógino participa da esfera homoerótica de maneira a viabilizar a
autointegração do sujeito mediante a integração com outro ser igual. Essa autointegração entre dois
seres masculinos – ou femininos – bebe da fonte do Duplo, pois ele “é a alma
gêmea de forte proximidade e afeto. O amor entre homens e o amor entre mulheres
[…] baseia-se na projeção do duplo” (WALKER, 19994, p.61). Veja-se que, pelo
fato de o Duplo ser a figura da alma, o instinto sexual pode ou não estar
envolvido, ou seja, “o motivo do duplo pode incluir uma tendência para a
homossexualidade, mas este não é necessariamente um arquétipo homossexual. Em
vez disso, o duplo encarna o espírito do amor entre seres do mesmo sexo”
(WALKER, 19994, p.61).
Ao
longo do videoclipe, Gaga assume diferentes performances, assimilando variados
sujeitos identitários. Ao todo, são oito subjetividades incorporadas. Contudo,
são analisadas aqui aquelas que mais se coadunam com o conteúdo homoerótico.
Provavelmente, a sequência em que Gaga é mostrada simulando atos sexuais com
três homens seja a mais chocante de todo o clipe, no sentido de desnudamento e
crueza no tratado da temática homoerótica. Com atmosfera fria, o espaço soturno
apresenta três camas individuais, com iluminação ao alto, recordando o ambiente
militarista, sobretudo os antigos campos de concentração do período nazista. Na
primeira cena, Gaga aparece sobre a cama na qual um dos soldados está deitado
de bruços (Fig. 4). Nas mãos,
segura uma corda amarrada à cabeceira da cama. A disposição dos corpos lembra o
cavalgar num equino. Assim, o estado postural da personagem Gaga simboliza uma
posição superior e dominadora, pois ela tem sob seu controle as rédeas do
desejo homoerótico. É interessante pontuar que, no prólogo, Gaga aparece com
extravagante casco preto e um tipo de binóculos, vista em posição de poder,
líder de um determinado grupo. Pressupõe-se que essa Gaga-tirana é a mesma
que estar a ter o seu desejo com esses soldados, por isso a superioridade
conservada na imagem.
As
pernas abertas simbolizam uma postura masculinizada, se considerarmos a
oposição imediata com as pernas cruzadas do soldado que é mostrado no prólogo
do vídeo, característica da feminilização. Além disso, a abertura remete à
aceitação do desejo pelo sexo idêntico: Gaga está aberta à nova experiência da descoberta de si pelo contato com o
Outro-igual. Enquanto Gaga aparece masculinizada, simbolizada pelo corte de
cabelo curto e lingerie com tom da pele, os cadetes estão feminilizados (Fig. 5), não só pela expressão
corporal, mas também pelo elemento caracterizador: sapato de salto alto. O
calçado simboliza o princípio feminino no corpo masculino, o desejo homoerótico
psíquico, pois na psicanálise, é comumente associado ao pé um significado fálico. Percebe-se que o infante se
agarra à corda não como o faz Gaga, mas de modo a transmitir a ideia de aprisionamento
a uma condição à margem. Vê-se ao fundo a presença de uma cruz. Com efeito,
poderia se cogitar a (con)fusão entre dois espaços: o quartel militar e o
seminário. Na verdade, esse duplo
espaço funciona como corroboração ao senso-comum de que é nesses dois ambientes
que ocorre a maioria das vivências homoeróticas, justificadas principalmente
pela ausência da figura da mulher nesses locais de domínio masculino.
A
partir da Fig. 6, o enredo se
torna mais delicado, quando
adquire maior profundeza na revelação do homoerotismo, ao simular práticas
homoeróticas entre Gaga e os soldados. As insinuações ao coito ocorrem com
abordagens posteriores (Fig. 6 e
7), aludindo à cópula anal –
sodomia –, comumente associada à relação sexual entre indivíduos do sexo
masculino. Sabendo-se que a personagem Gaga assume o papel masculino no
relacionamento com os cadetes, os atos homoeróticos que praticam simbolizam a
inversão de papéis do masculino – dominador – e feminino – dominado. Se em
certos momentos, é ativa/superior (Fig.
7), controlando a situação erótica e imprimindo gozo ao parceiro, em
outros se torna passiva/inferior (Fig. 8),
recebendo prazer do companheiro, que a manipula tal qual uma marionete no jogo
sexual. A intercalação de posições – ativa e passiva – aponta
para a não predominância de um papel homoerótico específico, sendo possível a
cada um dos sujeitos desempenhar as duas funções na conjunção amorosa.
Os
corpos em êxtase ascendem ao grau máximo do homoerotismo pela via plena do desejo,
na medida em que a abertura para o erótico encontra no sexo idêntico a
satisfação inteira do Ser, no sentido de experiência liberta e consciente da
sexualidade não mais bloqueada. O desnudamento das cenas de sexo gay dessa
sequência intenta elevar a condição homoerótica a um patamar socialmente
aceitável por meio da externação plena e natural do desejo. Aliás, isso explica
a conduta heteronormativa que muitos homossexuais adotam como camuflagem para
escapar aos olhares inquisitórios da sociedade, ou ainda a experiência
homoerótica clandestina que alguns heterossexuais vivenciam para darem vazão ao
desejo – secreto – que escondem.
Ao fim da sequência, Gaga e seus soldados bailarinos se põem numa instigante
posição “crucificada” (Fig. 9).
A cruz reporta à ideia de sofrimento, sacrifício, holocausto. A imagem final
também condensa a primeira performance associada ao desejo homoerótico: o sujeito
andrógino. O corte de cabelo, usado pelos homens do exército na
Segunda Guerra Mundial, torna andróginos os soldados, porque congrega a figura
dupla do militar e do monge. À Gaga também converge essa designação,
pois o cabelo curto e as atitudes masculinas a tornam um duplo. Além disso, ao fundo escuro,
as roupas íntimas pretas criam a impressão de que os soldados foram cortados ao
meio, sendo a região genital extirpada. Simbolicamente, esse efeito visual
representa o bloqueio à expressão do desejo por que passam os sujeitos
homoeróticos. Em Gaga, a lingerie na cor da pele simboliza a assexualidade. Então, ambos –
soldados e Gaga – não possuem sexo, ou possuem os dois. Assim, o desejo
homoerótico independe das atribuições masculino
e feminino, tampouco das
orientações hetero e homossexual, para ser externado e sentido.
Viu-se
que o sujeito andrógino filia-se
exemplarmente à estética homoerótica presente no videoclipe, sobretudo na
inquisição do binômio gênero/desejo sexual. Em contrapartida, outra identidade
também é abraçada no interesse de simbolização do homoerotismo: o sujeito
religioso. Na sequência “religiosa” da película, Gaga é focalizada
usando um hábito de freira (Fig. 10).
Por sua vez, a parte superior do figurino, que envolve a cabeça, é branca, e a
que encobre o corpo, vermelha. A cor branca pode significar a manifestação
divina, bem como funcionar como símbolo da consciência. “Universalmente
considerado como o símbolo fundamental do princípio da vida, […] o vermelho,
cor do fogo e de sangue,” (CHEVALIER, 2000, p.626) pode simbolizar a violência
consumidora dos desejos irrefreáveis. Dessa forma, desvela-se a dualidade
imperante entre razão/mente – branco – e pathos/corpo – vermelho.
Gaga
está sobre um travesseiro e cama negros, cor que se associa ao “universo
instintivo que é preciso esclarecer, domesticar” (CHEVALIER, 2000, p.744).
Sendo a cama símbolo de intimidade – do amor e do sexo –, daquilo que é
pessoal, bem como da dimensão do inconsciente, entende-se que o sujeito
religioso tenta desvencilhar-se de seu secreto – e proibido – desejo
homoerótico, condenável aos olhos da Santa Sé, buscando na religião conforto ou
livramento. Contudo, há de se notar que cabos de aço sustentam as extremidades
do móvel, criando a impressão de que Gaga-religiosa é um objeto
manipulável, uma marionete da ideologia dogmática à qual se associa. Também é
nítida a referência ao fanatismo religioso, pela presença de muitos rosários ao
lado da cama.
A
cena seguinte, bastante polemizada pela crítica, mostra Gaga engolindo um
rosário (Fig. 11). O ato “profano” simboliza a incorporação em seu interior da
devoção religiosa, na tentativa desesperada de absorção da completude prometida
pelo contato com o sagrado ou, ainda, uma forma de assimilação dos dogmas e
ditames da Igreja. Depreende-se, pois, desse sujeito religioso a ideia
de identidade estável, na medida em que o indivíduo molda-se a um princípio
cristalizado de conduta. Simultaneamente, porém, há no mesmo sujeito a negação
de tal identidade, uma vez que coabitam nele a (in)adequação a um pré-modelo e
a ânsia de externação do desejo – aqui, homoerótico –, levando-o ao profundo
estado de crise interior.
Se esse primeiro sujeito
religioso, fragmentado entre corpo e alma, não oferece condições
possíveis para a experiência do desejo homoerótico, Gaga, então, o rebela. Na
nova roupagem religiosa, ela se apresenta com túnica branca e capuz (Fig. 12), reminiscência a mártir Joana
d'Arc. A vestimenta branca simboliza a quase total assimilação aos dogmas da fé
cristã. No entanto, a dalmática apresenta cruzes vermelhas e invertidas. Na
história do Cristianismo, o apóstolo Pedro foi pregado numa cruz de
ponta-cabeça, por não se julgar merecedor de ser crucificado como foi o Cristo.
Desse modo, as cruzes vermelhas e invertidas representam o desejo homoerótico
“indigno”.
Apesar
da insurreição contra a áurea proibitiva da religião, ainda assim esse sujeito
religioso rebelado precisa ser “aniquilado” como forma de libertação do
instinto erótico. Por isso, Gaga é erguida pelos soldados (Fig. 13), assemelhando-se aos rituais de
sacrifício, ou mesmo ao episódio da crucificação. Oferenda em holocausto, esse
sujeito religioso ainda está preso a dogmas que condenam o desejo e o impedem
de vivê-lo plenamente. Assim, Gaga-religiosa deve “morrer” para a
plenitude do desejo. Enquanto é elevada, a túnica se abre, descobrindo uma cruz
invertida sobre sua região genital. Confundindo-se com uma seta, essa cruz
funciona como símbolo fálico, resgatando o tema anterior da Androginia. Gaga já
possui o princípio masculino – falo; agora, precisa aviltar a couraça dogmática
para, enfim, se congregar ao desejo.
Quando
se despe da túnica (Fig. 14),
Gaga-religiosa se desnuda de toda e qualquer carapuça
ideológica pré-concebida, podendo assim externar com plenitude o desejo
homoerótico e ser aceita pelo grupo de soldados. Nesse sentido, pode-se ler o
símbolo da túnica como um manto ritual de iniciação sexual, que a revelara
enquanto essência. Por outro lado, ainda que o sujeito – andrógino, religioso,
homoerótico – tenha se despido de toda e qualquer forma de enquadramento identitário,
no final, é suplantando pelo sistema, por isso, Gaga explode (Fig. 15). Inevitavelmente, o sujeito sucumbe,
é aniquilado sempre. Gaga morre, enquanto ser. Neste caso, o sujeito acaba por
assumir diferentes facetas identitárias, fruto da fragmentação tanto das
ideologias quanto das identidades sociais.
Considerações finais
As transformações
sociais a que estão submetidos os indivíduos os impelem a constantemente
buscarem alternativas de, ora ocultar, ora satisfazer seus impulsos sexuais.
Nesse percurso, o sujeito homoeroticamente inclinado esbarra em diversos
entraves que a sociedade lhe encrava, sobretudo as pejorativas nomeclaturas.
Com a abertura
empreendida pelas mídias tecnológicas, associada ao intento de artistas em pôr
à vista assuntos tão delicados quantos urgentes como a esfera homoerótica – ou
homoafetiva –, a identidade gay adquire espaço para ser discutida e também
reconhecida com o devido respeito.
O videoclipe de
Lady Gaga, além de ser declaradamente uma homenagem à comunidade LGBT, levanta
a questão do desejo homoerótico, ao mesmo tempo em que o questiona como
identificador-piloto das noções de “masculino”
e “feminino”. Por ele, entende-se que
o desejo homoerótico independe de uma cultura ou identidade gay, visto que é
ímpeto autônomo da natureza humana.
Referências
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de Steven Klein. EUA: Intercope Records. 2010. Videoclipe (08min44sec): som.,
color. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=niqrrmev4mA.
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do self: as imagens arquetípicas que moldam sua vida. São Paulo:
Cultrix, 1994. p. 60-63.
[1] O
texto desta seção reitera o pensamento de Warley Matias de Souza, em Literatura homoerótica: o homoerotismo
em seis narrativas brasileiras.
[2]
Por estar inserida num contexto musical, Lady Gaga é lida, para fins
analíticos, como personagem, e não
propriamente como a artista Lady
Gaga. Portanto, faz-se referência à mesma pelo seu sobrenome artístico – Gaga. Quando houver acréscimo de algum
atributo à personagem, isso se dará mediante a justaposição do adjetivo ao
nome.