'SE UM LEITOR NUM LIVRO DE ÍTALO CALVINO': UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A NARRATIVA DE “SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO”


Marcus Antonio Schifino Wittman
Graduado em História pela PUCRS

Resumo: Analisaremos as maneiras pelas quais Ítalo Calvino constrói a narrativa de seu livro “Se um viajante numa noite de inverno”, no qual o personagem principal, “O leitor”, vai em busca de uma leitura inacabada e se depara com diversas outras narrativas, também inacabadas, e com o universo da produção literária. Logo, o objetivo deste artigo é analisar a relação entre o autor, a escrita, o leitor e a leitura através da obra de Calvino. Procuramos evidenciar não apenas a estrutura do texto, suas premissas básicas e os acontecimentos, mas também ir mais fundo na questão da metalinguagem e da experiência da leitura de um livro, com suas implicações relacionais e sensíveis.
Palavras-chave: Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno, leitura, leitor/autor.

Abstract: We will analyze the ways by which Ítalo Calvino builds the narrative in his book “If on a winter’s night a traveler” in which the main character “the Reader” goes in the search of an unfinished reading and faces with other several unfinished narratives and the universe of the literary production. Therefore, the aim of this article is to analyze the relationship between the author, the writing, the reader and the reading through Calvino’s work. We seek to point not just the structure of the text, it’s basic premises and events, but also go deeper in the issues of metalinguistic and the reader’s experience of reading a book with its relational and sensitive implications.
Key-words Ítalo Calvino, If on a winter’s night a traveler, reading, reader/author.

O que o espera ao virar a primeira página?
            Você vai começar a ler mais um artigo sobre Ítalo Calvino, Se um leitor num livro de Ítalo Calvino: um olhar antropológico sobre a narrativa de “Se um viajante numa noite de inverno”. Relaxe. Concentre-se. É melhor fechar a porta, do outro lado sempre há uma televisão ou um rádio ligado. Não se esqueça de pegar seus óculos caso seja necessário, ligar a luz caso esteja escuro para não forçar seus olhos, ou, caso ainda esteja claro, ficar perto de uma janela, onde a luz do dia possa iluminar as páginas. Mas, caso leia através do computador não se esqueça de regular o brilho da tela. Talvez antes de começar a leitura seja importante buscar algo para beber, afinal ela pode ser longa e interessante assim você não gostaria de para-la para ter que ir à cozinha, ou talvez a leitura seja cansativa e insossa, então talvez o melhor seja fazer pequenas pausas para um café de vez em quando. Escolha a melhor posição para a leitura: se estiver lendo este artigo para se informar sobre o assunto ou por interesse pela obra de Ítalo Calvino, talvez você possa se deitar na cama, com as pernas estendidas, os pés para cima; mas, se você pretende fazer uma leitura mais avaliativa deste texto, talvez o melhor seja se concentrar mais profundamente, trocando o lugar para uma mesa, talvez em seu escritório, onde possa ficar sentado e que facilite as anotações ao longo da leitura. O motivo exato do porque seus olhos estão passando por essas palavras neste instante não é o mais importante, prossiga a leitura, siga pelas páginas e veremos onde vai dar.
            Esta pequena brincadeira introdutória feita no parágrafo acima foi baseada no Capítulo 1 do livro a ser analisado aqui “Se um viajante numa noite de inverno”. Ítalo Calvino, logo nas primeiras frases de seu livro, busca o leitor através das páginas, convidando-o e guiando-o pela experiência da ação de ler. Assim, Calvino narra os movimentos corporais que antecedem a leitura, o posicionamento do corpo, a preparação do ambiente, a questão da iluminação, as necessidades fisiológicas, etc. até os momentos anteriores que levaram o leitor a adquirir o livro que está em mãos: a busca na livraria, a dúvida do que adquirir, as tentações de outros livros... E foi a partir disso que a inspiração para redigir este artigo surgiu, pensando em problemáticas como: de qual forma Ítalo Calvino narra, se apropria e constrói, conjuntamente com o leitor de sua obra, a experiência da leitura?; como a narrativa do livro demonstra a relação entre o autor, o leitor, os personagens e os acontecimentos narrados? Dividimos este artigo em três momentos: a apresentação do livro, de sua narrativa e as premissas básicas, depois a estrutura do texto e suas diferentes formas narrativas, e, por último, a relação entre o leitor e autor na obra e explícita em sua narrativa.
            “Se um viajante numa noite de inverno” apresenta a jornada do personagem principal, apenas denominado como “leitor” ao longo do texto, na busca da continuação de um livro, o próprio “Se um viajante...”, que comprou em uma livraria e que apresenta um defeito de encadernação: o primeiro capítulo se repete constantemente. Isto leva o “leitor” a adentrar em mundo diferente do seu: o da escrita dos livros. Na perseguição do “leitor” a essa obra inacabada ele se depara com outros nove inícios de livros, cada qual com suas particularidades estéticas e temáticas, porém, nunca conseguindo prosseguir mais do que algumas páginas em cada obra: um possui páginas em branco, outro foi retalhado por um grupo de estudos, outro confiscado por policiais, etc. Ou seja, ao longo do livro “Se um viajante numa noite de inverno”, Calvino escreveu outros 10 inícios de romance, os quais dão seguimento à narrativa mestra de seu livro. Nas palavras do próprio Calvino:

Tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe, foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances; o protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não consegue terminar. (...). Mais que identificar-me com o autor de cada um dos dez romances, procurei identificar-me com o leitor – representar o prazer da leitura deste ou daquele gênero, mais que o texto propriamente dito [grifo nosso] (CALVINO, 2002, p. 266).

            Confirmamos assim, pela fala do autor do livro, a sensação que temos ao ler a obra: que ela dialoga constantemente com o leitor-real, o qual se reflete no leitor-personagem. Isso já fica muito claro no primeiro capítulo do livro, o qual narra a preparação do leitor-personagem para iniciar a leitura do livro, algo que ocorre também com o leitor-real. O mesmo podemos dizer da sensação de incompletude por não conseguir seguir na leitura de uma narrativa iniciada. Este sentimento é potencializado pela falta de explicitação do local ou época na qual se passa a narrativa, assim o texto tem um quê de atemporal e sua localização geográfica pode ser qualquer uma onde haja uma livraria. Sendo assim, poderíamos dizer que Calvino apresenta em “Se um viajante...” uma leitura-performance, na qual o corpo físico e psicológico do leitor é o foco e meta para um prazer da leitura. Afinal, para que um texto poético ou literário seja reconhecido como tal “depende do sentimento que nosso corpo tem”, sendo o prazer aqui o essencial, pois quando este cessa “o texto muda de natureza” (ZUMTHOR, 2013, p. 35). Logo, a identificação do autor (Calvino) com o leitor (eu e você) depende da recepção da leitura em “circunstâncias psíquicas privilegiadas”, por isso a introdução do livro sobre a preparação corporal e psicológica, mas também em deixar lacunas e espaços em branco, as incompletude dos romances inacabados por exemplo, os quais constituem um “espaço de liberdade” que só podem ser ocupados por um instante pelos leitores (op. cit., 2013, p. 52-53).
A jornada do “leitor” vai ficando mais complexa e nebulosa com o passar dos capítulos, outros personagens aparecem, eles também leitores, cada qual com visões próprias sobre o que é a prática da leitura. Sendo a principal delas, Ludmilla, o interesse romântico do “leitor”. E é nessa relação entre visões sobre literatura que Calvino insere uma discussão sobre teoria literária dentro de uma obra de ficção, pois esta “se respalda no ato de se pensar o ato da leitura e da escrita e traz subjacente a análise das teorias literárias propostas pelo embate das personagens no decorrer do romance” (SANTOS, 2013, p. 234). São nesses diferentes leitores-personagens, embora o personagem principal seja apenas um, que Calvino constrói o cerne de seu livro: a relação entre leitor e leitura e leitura e teoria. É por esse motivo que “Se um viajante...” é considerado um meta-romance, uma narrativa que caminha na beira da fronteira entre ficção e teoria literária, entre autor e leitor:

...ao oferecer possibilidades de um olhar teórico e questionador que parta da própria narrativa, o autor inscreve na mesma a reflexão sobre as fronteiras do literário, sobre os limites entre os mundos escrito e não escrito e sobre o papel da própria literatura no processo de movimentação desses limites (FUX, MOREIRA, 2008, p. 204).


            Esta posição de ítalo Calvino frente à escrita de romances é localizada por seus críticos em uma terceira fase de sua carreira. A primeira (1947-1952) seria ligada ao “neorrealismo” pós II Guerra Mundial; a segunda (1952-1963) é a fase da produção fantástica, onde foi escrita a trilogia “os nossos antepassados” (“O visconde partido ao meio”, “O barão nas árvores” e “O cavaleiro inexistente”); e a terceira (1963-1985), chamada de combinatória, onde “o autor deve fazer visível a estrutura da narração para o leitor e assim aumentar a sua participação na narrativa” (BRIZOTTO, BERTUSSI, 2013, p. 77-78). “Se um viajante numa noite de inverno” apresenta-se como uma narrativa híbrida e plural, onde o diálogo entre ficção e teoria produz um complexo narrativo que amplifica as possibilidades de produção de sentidos, os quais são construídos tanto pelo escritor quanto pelo leitor (FUX, MOREIRA, 2008, p. 204-205). Sentidos esses que ampliam o debate entre escritor e leitor dentro da obra, sobre os modos de ler e de escrever, sobre como pensar a escrita e a literatura, e também sobre as imposições político-ideológicas de cada posição acerca disso (SANTOS, 2013, p. 243).
            Deste modo, “Se um viajante...” ultrapassa o simples conceito de romance e de teoria literária. É um texto que transita entre ambos gêneros, “que não se atêm às fronteiras” e insiste em ultrapassar “as margens, em transbordar os limites comumente atribuídos a eles”, questionando assim o próprio estatuto de ficção (FUX, MOREIRA, 2008, 197). Se a ferramenta da comparação com outros modos de expressão artística pode adicionar algo nessa discussão, poderíamos citar “uma instalação plástica, uma assemblage, uma pintura”, os quais, ora um, ora outro estão presentes nesse “quadro-livro-objeto que, por um deslize de nossos sentidos, não podemos abarcar de uma só vez” (CHAVES, 1997, p. 82). Essa aproximação sensitiva do leitor com o texto pode ser tanto corporal, nos termo de Zumthor, quanto visual, nos termos de Chaves, mas é intrinsicamente ligada à leitura e, em nossa opinião, algo como um texto etnográfico. Se em “As Cidades Invisíveis” Calvino flerta com a sociologia das cidades (BECKER, 2009), em “Se um Viajante...” o flerte é com o olhar e a autoria etnográfica.
O texto de Calvino se aproxima da narrativa da Etnografia, nas concepções de James Clifford (2011), pois cria uma falsa presença do leitor quando do acontecimento narrado, ou seja, a ficção de Calvino dialoga com o realismo etnográfico. Se por um lado os antropólogos tentam inserir o leitor dentro de um contexto nativo, visto e sentido pelos olhos do outro, Calvino tem um trabalho mais “fácil”. Pois transforma o leitor-real em leitor-personagem, partilhando das mesmas funções dentro de um tempo-espaço não especificado, e passando pelas mesmas sensações e desapontamentos do cerne da obra: não terminar uma leitura iniciada. Essa sensação de estar “dentro do livro” perpassa o estilo narrativo deste e das narrativas inacabadas que o compõem, geralmente escritas em primeira pessoa. Exemplo claro disso é a primeira frase do capítulo 2, iniciado na página de número 32: “Você leu umas trintas páginas e já começa a se apaixonar pela história” (CALVINO, 2002, p. 32). Respondendo assim a pergunta colocada no enunciado desse subtítulo “O que o espera ao virar a primeira página?”, podemos dizer que é a própria experiência da leitura, de ler e ser lido, afinal o leitor-real confunde-se com o leitor-personagem. Antes de nos aprofundarmos nessa questão, refletiremos sobre, afinal, em qual narrativa nós, leitores, nos embrenhamos a continuar virando as páginas.

Perdido em uma biblioteca de um romance só
            O romance de Ítalo Calvino consiste de 12 capítulos que narram a história do personagem principal, o “leitor”, e outros 10 capítulos que são excertos iniciais de outros romances. Sendo assim a estrutura de “Se um viajante...” não é linear. A história do “leitor” avança ao longo e com a ajuda de outros inícios de histórias, estas sempre inacabadas. Esta artimanha de Calvino “coloca em xeque pensamentos retrógrados e tradicionais sobre romances organizados sistematicamente em início, meio e fim, fazendo do próprio leitor seu leitor-personagem, que tem como missão ler romances” (SANTOS, 2013, p. 233). Este procedimento de transformar o leitor-personagem em protagonista, e assim trazer o leitor-real para dentro da narrativa, não é apenas um recurso para atrair a atenção sobre a leitura, mas sim o procedimento modelo da narrativa, o modo como ela progride (MARINS, 1995, p. 171).
            Este leitor-personagem é um “leitor médio”, nem especialista em algum gênero ou autor, nem alguém que desconhece por completo a prática da leitura. É alguém que lê por lazer. Logo, alguém aberto para diversas experiências literárias, que é exatamente o que o livro de Calvino proporciona. Cada um dos 10 inícios de romances com os quais o leitor-personagem e o leitor-real se deparam pertencem a um tipo de gênero literário. Assim, Calvino não prepara o leitor-real para um modo particular de leitura, como muitos editores literários já o fazem na capa de livros (ZUMTHOR, 2014, p. 33). Ítalo Calvino joga com diversas técnicas narrativas ao longo dos capítulos, não de forma inconsciente ou aleatória, mas sim calculada a fim de representar e alegorizar “o envolvimento do leitor (do leitor comum) num livro que nunca é o que ele espera” (CALVINO, 2002, p. 270). Isso obriga o leitor-real a mesclar e criar intertextos em seu catálogo literário, mesmo que apenas com fragmentos de romances diversos, além disso ele é convidado a participar, investigar, imaginar e devanear sobre o fim de cada um deles (BRAUM, 2006, p. 156). Por isso que Calvino defende que o motivo estrutural de seu romance não é o “inacabado”, mas sim o “acabado interrompido”, ou o “acabado cujo final está oculto ou ilegível” (CALVINO, 2002, p. 268). Deste modo, repete-se constantemente ao longo do livro o motivo primordial da leitura: “ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém sabe ainda o que será...” (CALVINO apud SANTOS, 2013, p. 231), a não ser o leitor que permanece lendo, literalmente ou metaforicamente. Esta artimanha também é positiva para o autor do livro, o qual:

Primeiro: ele evita ter que escrever romances enormes, laboriosos, de uma única idéia, que poderiam afastar o leitor contemporâneo, educado por imagens e acostumado a obter as informações em poucos minutos; Segundo: é uma forma de resistência, uma ironia positiva, e, principalmente, à desorganização e à inconsistência da linguagem, das imagens e do mundo; Terceiro: o escrever breve é mais produtivo, do ponto de vista de formação de um leitor médio, do que romances com quinhentas páginas. Afinal o hábito da leitura se adquire lendo (SALDANHA, s.d., p. 2).


            Calvino incorporou em sua escrita dez outros autores imaginários, “todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si” (CALVINO, 2002, p. 266). Os dez romances iniciados por Calvino ao longo de seu livro são: um romance todo de desconfianças e sentimentos confusos; outro todo de sensações densas e sanguíneas; um introspectivo e simbólico; um existencial e revolucionário, um cínico-brutal; um de manias obsessivas; um lógico e geométrico; um erótico-pervertido; um telúrico-primordial; um apocalíptico-alegórico (op. cit., p. 266). O principal ponto que agrupa todos eles é a espera permanente do que está para acontecer elevada potencialmente pelo fim abrupto de cada um dele. Tal procedimento, como afirma Calvino (2002, p. 268), é o romanesco, e não o literário. O qual se diferenciaria deste por ser de cunho popular e de consumo, porém também adotado pela literatura culta.
            No apêndice de “Se um viajante numa noite de inverno”, Calvino explica que este livro representa uma espécie de autobiografia negativa, os romances que poderia ter escrito, porém descartou. Mas, além disso, é também um catálogo indicativo das “atitudes existenciais” que conduzem a caminhos obstruídos (CALVINO, 2002, p. 273). Esses trajetos são definidos por dilemas dialéticos que geram ou um final, uma forma (nesse caso um tipo de romance), ou um segmento para outro dilema. Calvino apresenta um esquema linear sobre seu livro no apêndice, mostrando cada prerrogativa para a construção dos romances inacabados que apresenta ao longo da obra. Seguindo aqui a própria observação do autor de que o esquema poderia ter circularidade, onde o último segmento se liga ao primeiro, o apresentamos assim:


Os títulos e os tipos dos romances em ordem horária começando do centro são: Se um viajante numa noite de inverno, o romance da neblina; Fora do povoado de Malbork, o romance da experiência densa; Debruçando-se na borda da costa escarpada, o romance simbólico-interpretativo; Sem temer o vento e a vertigem, o romance político-existencial; Olha para baixo onde a sombra se adensa, o romance cínico-brutal; Numa rede de linhas que se entrelaçam, o romance da angústia; Numa rede de linhas que se entrecruzam, o romance lógico-geométrico; No tapete de folhas iluminadas pela lua, o romance da perversão; Ao redor de uma cova vazia, o romance telúrico-primordial; Que história espera seu fim lá embaixo?, o romance apocalíptico.
Cada um desses fragmentos de romance possuem motivos sensitivos diferentes, como pode se ver pela nomenclatura que Calvino dá para cada um deles. Mas, todos eles são ligados por um sentimento de incompletude, de frustração, por não possuírem um desfecho concreto. A narrativa do livro, assim, torna o enredo “uma espécie de labirinto”, onde o leitor, tanto personagem quanto real, se depara sempre com uma descontinuidade, uma interrupção continua de seu caminho (SANTOS, 2013, p. 233). Outra particularidade compartilhada por todos os fragmentos de romance e a narrativa mestra do livro são os assuntos: o livro, o leitor, a leitura e a escrita. Logo, podemos dizer que o romance é metaficcional, pois sua narrativa é auto-reflexiva (MARINS, 1995, p. 169). Em cada um deles sempre há alguma relação com esses temas, pistas sobre o enredo principal do livro, questões sobre autoria e identidade, e todos são narrados em primeira pessoa por alguém que descreve ou escreve os acontecimentos. Inclusive o próprio fato do livro possuir diversas outras narrativa dentro de si é tratado em fragmentos de romances, como podemos ver nesse excerto de Olha para baixo onde a sombra se adensa:

Conto muitas histórias ao mesmo tempo porque desejo que em torno desse relato sinta-se a presença de outras histórias, até o limite da saturação; histórias que eu poderia contar ou que talvez venha a fazê-lo, ou quem sabe já tenha contado em outras ocasiões; um espaço cheio de histórias, que talvez não seja outra coisa senão o tempo de minha vida, no qual é possível movimentar-se em todas as direções, como no espaço sideral, encontrando sempre novas histórias, que para narrar seria preciso antes narrar outras, de modo que, partindo de qualquer momento ou lugar, encontre-se sempre a mesma densidade de matéria para relatar (CALVINO, 2002, p. 113).

            A presença do autor, Ítalo Calvino, é latente nessa citação. Como mostramos anteriormente, essa pluralidade de narrativas explicitada pelo personagem desse romance cínico-brutal é o objetivo do autor que o escreveu. Logo, as diversas narrativas botam em xeque o papel do leitor, que as lê em primeira pessoa, e o autor, que se esconde entre elas e as deixa sem final, para que quem as leia o faça. Outro exemplo desse autor, agora também personagem, que se esconde para se mostrar aparece em Numa rede de linhas que se entrecruzam, no qual o personagem principal forja identidades e sósias em uma constante fuga:

É minha imagem o que desejo multiplicar, mas não por narcisismo ou por megalomania, como se poderia facilmente pensar. Ao contrário: é para esconder, em meio a tantas imagens ilusórias de mim mesmo, o verdadeiro eu que as faz mover-se (op. cit., p. 166).

            A narrativa, de um modo geral, do livro segue a diegesis, onde “o narrador fala em seu nome ou, pelo menos, não dissimula as marcas de sua presença” (SANTOS, 2013, p. 233). Porém, em todos os capítulos o leitor-real não sabe quem é exatamente esse narrador (mesmo que seja, no mundo real, obviamente Ítalo Calvino). Isso não acontece apenas no capítulo oitavo, onde é reproduzido uma parte do diário de Silas Flannery, um dos personagens do livro e um dos escritores (ou não) desses fragmentos de romances. Flannery também personifica Calvino e a própria narrativa plural de “Se um viajante numa noite de inverno”: “Faz algum tempo, todo romance que me ponho a escrever se esgota pouco depois do início, como se ali eu já houvesse dito tudo o que tinha para dizer”, lamenta-se Flannery (CALVINO, 2002, p. 202).
            Agora que já temos um panorama do que o livro trata e como sua narrativa é construídas, vamos ao encontro daquele que percorre todos esses processos: o leitor, quem quer que ele seja. “Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras linhas da primeira página” (op. cit., p. 17).

Se um leitor num livro de Ítalo Calvino
            Como separar o escritor do leitor, a escrita da leitura? Ambas as ações são, de um certo modo, concomitantes e retroalimentadas uma pela outra. Afinal, todo escritor é um leitor, embora o contrário não seja verdade. Após um livro estiver escrito e seu autor não puder mais fazer modificações, o único agente passível de “reescrever” sua narrativa, de uma forma metafórica e simbólica/significativa, é o leitor. Cabe a ele a parte da interpretação, a parte de trazer para dentro do livro suas experiências pessoais e conhecimentos, transformando a narrativa da obra em algo pessoal e novo. Mas, e se o autor não acabar sua narrativa? Se a deixar em aberto? E se o autor fizer do leitor também outro autor, invertendo a lógica de que quem faz o autor é o leitor? Quem são esses personagens? Como se comportam? Essas são algumas problemáticas que surgem ao longo da leitura de “Se um viajante numa noite de inverno”. Afinal, o leitor-real confunde-se com o leitor-personagem. Este, com características pouco definidas, a única é seu perfil de “leitor médio” e o sexo masculino. A indefinição do “leitor” como pessoa o aproxima do leitor-real, pois este pode se colocar mais facilmente na imagem do personagem: “Seria indiscrição perguntar a você, Leitor, quem você é, qual a sua idade, estado civil, profissão, renda. É sua vida, é problema seu”, escreve Calvino (2002, p. 39).
            Na narrativa do livro, Calvino chama o leitor-real a fazer parte da obra, e consegue seu objetivo ao transformá-lo em personagem principal. Assim, aquele que lê não fica em uma “posição passiva de espectador perante o desenrolar dos acontecimentos” (SANTOS, 2013, p. 235). Este fenômeno é oportunizado pela própria voz do narrador, o qual não é onisciente e também está a procura do desenrolar da trama. Oportunizando assim a ascensão da voz do leitor, dando espaço para suas experiências e oportunizando que ele construa sentidos sobre o texto. O leitor, tanto real quanto personagem, é consciente e ativo perante a obra, pois, para Calvino, sem este ator a literatura se torna inócua e não legitimada (op. cit., 2013, p. 236,240). Nas palavras de Ítalo Calvino:

A obra continuará a nascer, a ser julgada, a ser destruída ou continuamente renovada pelo contato do olho que lê; o que desaparecerá será a figura do autor, esse personagem a quem continuamos a atribuir funções que não lhe competem, o autor como expositor da própria alma na mostra permanente das almas, o autor como usuário de órgãos sensoriais e interpretativos mais receptivos que a média; o autor, esse personagem anacrônico, portador de mensagens, diretor de consciências, declamador de conferências nos círculos culturais [grifo nosso] (2009, p. 123-124).

Este projeto literário de Calvino é posto em ação ao longo de toda a narrativa de “Se um viajante numa noite de inverno”. Os 10 romances iniciados pelo leitor não possuem um autor legítimo, apenas sabemos seus nomes (Tatius Bazakbal, Silas Flannery, Ukko Athi, Ermes Marana...), mas sua autoria é posto em cheque no desenrolar da trama. Ou seja, a figura do autor como aquele que escreve e possui a narrativa perde importância no livro de Calvino. Ao invés disso, sobrepõe-se o leitor, o olho que lê, eu, você, nós, como “se já tivéssemos escrito o que se está vivendo e como se vivêssemos o que é narrado” (CHAVES, 1997, p. 81). Esta desconstrução do antigo autor também é uma formação de um novo leitor, “um leitor que, numa relação dialética, constrói o autor e é por ele construído, numa espécie de jogo especular que reflete cumplicidade e sedução” (COTA, s.d., p. 1913).
                Este jogo de escrita e leitura entre autor e leitor fica visível no modo narrativo de todos os 10 romances apócrifos do livro. Nos dois primeiros (Se um viajante numa noite de inverno e Fora do povoado de Malbork) narra-se o ato da leitura do romance, o qual se confunde com a leitura do livro em si: “O romance começa numa estação ferroviária; uma locomotiva apita, um silvo de pistão envolve a abertura do capítulo, uma nuvem de fumaça esconde parte do primeiro parágrafo” (CALVINO, 2002, p. 18). Esta narrativa das sensações de ler é repetida no romance seguinte: “Quando se abre a página, um cheiro de fritura paira no ar, ou, antes um cheiro de cebola, de cebola refogada, um pouco queimadinha” (op. cit., p 41). Este tipo de narrativa se justifica pelo tipo de romance criado por Calvino para estas duas primeiras partes: o romance da neblina e o romance da experiência densa, um focado no “mínimo vital” e o outro “nas sensações”.
Após esses romances, a narrativa se foca “no eu” e seus desenrolar, como pode ser visto no esquema apresentado acima. O pronome usado  torna-se o “eu”, “possibilitando que o leitor assuma a perspectiva do narrador durante a leitura” (MARINS, 1995, p. 167). Separamos três exemplos desse narrador-leitor simbolizado pelo “eu”, eles são as primeiras linhas dos romances Debruçando-se na borda da encosta escarpada, o romance simbólico-interpretativo, Olha para baixo onde a sombra se adensa, o romance cínico-brutal e Que história espera seu fim lá embaixo, o romance apocalíptico: “Estou ficando convencido de que o mundo quer dizer-me alguma coisa, mandar-me mensagens, avisos, sinais” (CALVINO, 2002, p. 60); “Puxei em vão a boca do saco plástico: ela mal chegava ao pescoço de Jojo, e a cabeça ficava de fora” (op. cit., p. 107); “Caminhando ao longo da grande avenida de nossa cidade, apago mentalmente os elementos que decidi não tomar em consideração” (op. cit., p. 248).
Já na narrativa dos capítulos do livro, o pronome usado é o “você”, referindo-se ao leitor-personagem e ao leitor-real. Para Marins (1995, p. 167), “a diferença entre os dois leitores é marcada pela ação efetiva do primeiro, enquanto ente ficcional, que pode ser seguida ou não pelo segundo, mas não vivida”. Concordamos que as ações não podem ser vividas, porém elas podem ser sentidas em parte. Por exemplo, como já citado anteriormente, a preparação corporal e psicológica para o início da leitura no capítulo 1 e a constante frustração de não acabar um romance iniciado. Ao longo dessa narrativa na qual o narrador dialoga com o leitor recria-se todo o ambiente da produção de livros “desde a editora, incluindo o editor e a livraria, até o consumidor daquele produto cultural” (ARIAS, 2012, p. 22), incluindo-se assim o leitor em um mundo que não é propriamente o dele, porém também habitado por outros tipos de leitores.
Forma-se assim uma gama de diferentes leitores, cada um com suas especificidades, com seu modo de entender e significar a leitura e os livros.  Gama esta da qual o leitor-real pode retirar pontos de encontro com sua própria experiência pessoal. Os três personagens mais citados ao longo da narrativa de “Se um viajante numa noite de invernos” são: o leitor-personagem, caracterizado como um “leitor médio”; Ludmilla, o interesse romântico, que lê vorazmente um livro atrás do outro; e sua irmã, Lotaria, a qual simboliza a leitura acadêmica, analista. Mas, também há os personagens secundários: Uzzi-Tuzzi, o professor universitário especialista em literatura ciméria; Cavedagna, o editor de livros que já leu tantos que não sabe mais quais foram; chegando até Irnério, um não-leitor, porém que usa os livros como matéria-prima para esculturas.
No capítulo 11, o penúltimo do livro, somos expostos, o leitor-real e o leitor-personagem, a sete outros tipos de leitores apresentados brevemente (CALVINO, 2002, p. 257-259) e que simbolizam uma sensação que pode acontecer no ato de leitura de qualquer pessoa: o leitor que devaneia durante a leitura, pois sua mente salta de pensamento em pensamento; o leitor detalhista, que não se distrai em nenhum instante para não deixar escapar nenhum indício precioso; o leitor que relê, e que nota coisas novas em cada leitura repetida; o leitor para quem o ato da leitura é constante, mesmo que se mude o livro; o leitor que procura em todas as suas leituras o livro lido em sua infância; o leitor para o qual a promessa da leitura já o basta; e o leitor para o qual o final derradeiro, o ponto de chegada ao qual o livro quer conduzi-lo, é o que conta. Neste capítulo, o leitor-personagem encontra-se em uma biblioteca, procurando cada um dos livros que iniciou a ler, mas não acabou. Neste processo de procura e encontro com outros leitores, é revelado que os títulos dos romances apócrifos, somados a frase final da narrativa procurada pelo quinto leitor, formam um outro início de romance: Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas que se entrecruzam no tapete de folhas iluminadas pela lua ao redor de uma cova vazia. ‘Que história espera seu fim lá embaixo’, ele pergunta, ansioso por ouvir o relato. Abre-se assim, através de mais um início de romance “acabado interrompido”, a possibilidade da continuação do ato de ler mesmo após o final material do livro. Final este tanto para o leitor-real, quanto para o leitor-personagem, o qual despede-se deitado em sua cama ao lado de Ludmilla e terminando “Se um viajante numa noite de inverno”, de Ítalo Calvino.
            Sendo assim, Calvino não só dialoga com a escrita etnográfica, no que tange a inserção do leitor em um presente etnográfico, mas também insere dentro da Literatura a discussão sobre os olhares e vozes dentro da prática antropológica. Se para Roy Wagner a Antropologia é um diálogo entre alteridades (2012), para Calvino a Literatura também pode e deve ser isso. “Se um viajante numa noite de inverno” não é apenas um livro de ficção, mas também um comentário sobre a autoria da obra literária, do mesmo modo que Carvalho analisa para a antropologia (2001).
Por fim, concluímos (ou melhor, deixamos em aberto) voltando passo a passo para o início: Se um leitor num livro de Ítalo Calvino, perdido em uma biblioteca de um romance só, o que o espera ao virar a primeira página?

Referências
ARIAS, Maria Helena de Moura. O retorno do viajante: dispersões e reencontros na leitura. Letras em Revista, v. 03, n. 01. Jan/Jun. 2012, pp. 20-27.
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