Ana
Monique Moura de Araujo*
RESUMO: Este
trabalho pretende fornecer uma ideia de cópula entre filosofia e literatura.
Com isso, trazemos o conto “Vinte anos
outra vez e a virgindade do mundo” do escritor Edson Guedes de Morais como
baluarte para uma exposição literária da fenomenologia da percepção de
Merleau-Ponty.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura;
Filosofia; Percepção;Corpo.
ABSTRACT: This paper intends to give an idea of
copulation between philosophy and literature. With this, we bring the short
story "Twenty years again and
virginity of the world" of the writer Edson Guedes de Morais as a
bulwark for a literary exposition of phenomenology of perception by
Merleau-Ponty.
KEY-WORDS: Literature; Philosophy; Perception; Body.
O
conto “Vinte anos outra vez e a
virgindade do mundo” de Edson Guedes de Morais[1]
(1930) narra um jovem de vinte anos que chega a uma aldeia e lá é imediatamente
cultuado por sua juventude e visto como espelho da percepção de um mundo novo.Queremos,
a partir deste enredo, levantar uma leitura do conto com o apoio da
fenomenologia de Merleau-Ponty. Com efeito, este ensaio não se trata de uma
análise do conto tomando-o como um porta-voz dos aspectos da filosofia de
Merleau-Ponty, nem tampouco pretende analisar a fenomenologia prontamente por
meio do conto. Trata-se de um exercício de leitura que, na tentativa de se dar
como um ofício filosófico, expande a compreensão do conto e encontra laços com o
pensamento de Merleau-Ponty, filósofo que, desde já, nos permite esta
empreitada, se tomamos seu dizer que: “uma história narrada pode significar o
mundo com tanta profundidade quanto um tratado de filosofia.” (MERLEAU-PONTY,
1994, p. 19)
I
Iniciemos
com uma não breve citação do conto em discussão:
O
sol a prumo, tininte, as sombras por debaixo das coisas, as sombras das árvores
à roda dos troncos, geometricamente, sobre os dormidos da grande sesta. O céu
ardendo, campanulado de prata, sobre a casa, o lago, a vastidão perdida nos
confins vislumbrados, sobre o caminho, o que chamavam de caminho, passagem de
ventos, remoinho, sem vegetação, terra crestada, pedra, pó, quase esquecida
lembrança de gente passando, chegando. Silêncio. Imobilidade. Uns nas redes
rotas, outros nos batentes das portas ou sobre troncos e pedras sombreados,
tosquenejando, baba escorrendo, cheiro forte de sumim, de tabaco, de urina
velha pelos cantos. Velhas paredes, velho teto esburacado, velha mesa, um copo,
um livro, uma faca.(MORAIS, 2004, p.7).
Vê-se
nesta passagem o quão forte é a presença de imagens, que por sua vez estão
lançadas no conto sem nenhum comprometimento com formação de frases
prolongadas, ou seja, elas se mostram condensadas em palavras soltas, ditas
rapidamente, sem se demorarem. Se seguem umas às outras capazes de adentrar no
imaginário do leitor como uma paisagem matizada que caracteriza o conto, que no
modo como é narrado, nos deixa uma evidência: trata-se da percepção da paisagem
pelo narrador, que se coloca como um personagem, na medida em que percebe e
descreve a paisagem, como se ele estivesse lá.
O conto inteiro é um conjunto de feixes de percepções desta paisagem, uma miscelânea de palavras que indicam os componentes da paisagem percebida. Até aqui, parece estarmos falando de algo tão somente do conto, mas reside exatamente no já dito a condição para visitarmos a fenomenologia de Merleau-Ponty.
O conto inteiro é um conjunto de feixes de percepções desta paisagem, uma miscelânea de palavras que indicam os componentes da paisagem percebida. Até aqui, parece estarmos falando de algo tão somente do conto, mas reside exatamente no já dito a condição para visitarmos a fenomenologia de Merleau-Ponty.
O
que queremos focar é o modo como é indicada esta paisagem no conto. É aí que
reside o ponto com o qual queremos atingir Merleau-Ponty. Em sua fenomenologia,
o espaço da paisagem é um meio(Cf. MERLEAU-PONTY, Op. cit., p. 328). Neste
sentido, ele não se dá como um locus
determinado e fechado em si mesmo, mas como uma mediação para as coisas
percebidas e/ou a serem percebidas. A paisagem percebida neste espaço nos chega
anterior à linguagem que, enfim, expõe a percepção. O conto é um exemplo disso.
A
percepção nasce como sensibilidade primordial diante de uma realidade também
primordial, ou seja, uma realidade que por ser perceptiva corrobora os sentidos
do sujeito como fundamentais para a percepção. A paisagem é um foco da visão,
do “para onde” ela se movimenta.
Merleau-Ponty quer com esta tese estabelecer a subjetividade como nicho no qual
se confirme a experiência perceptiva em detrimento de uma objetividade
imperativa que tente definir ou limitar a percepção. Não há uma recusa à
objetividade, mas antes, uma tentativa de avançá-la, ou seja, considerar sua
importância, contudo vislumbrar uma posição para
além dela.
Assim, Edson Guedes de Morais nos fala no
conto: “O sol a prumo, tininte, as sombras por debaixo das coisas, as sombras
das árvores à roda dos troncos, geometricamente, sobre os dormidos da grande
sesta”(MORAIS, op. cit., p. 328) nos expondo tanto uma percepção subjetiva,
como objetiva.
II
O
corpo, em Merleau-Ponty, percebe primeiramente o que lhe aparece não segundo um
pensamento que julga, nem segundo uma imaginação ou uma memória (Cf. CAMINHA, 2010,
175).O corpo percebe pelos seus sentidos, sem apoio da objetivação, que é secundária.
É no domínio pré-objetivo que a percepção mora. Neste sentido, compreender a
percepção nos conduz à compreensão primordial da capacidade de sensação
presente no corpo. Perceber é sentir o mundo pelo corpo.
A
experiência se reúne consagrando-se como tal, quando lhe é possível “saber-se”
e “ter-se” na evidência de uma unidade corporal [...] portanto ela é, junto com
o movimento da vida e a vida anímica com os que se confundem no ato perceptivo,
a modalidade primeira do ser-no-mundo. [...] (MORAIS,op. cit., p. 34)
A
forte presença dos sentidos é exposta por Edson Guedes de Morais, tanto como
elemento constituinte do enredo como elemento que explora, na medida em que
exposto, os sentidos também do leitor.
Encontrar
na literatura qualquer presença dos sentidos físicos da percepção não é coisa
extraordinária, sabemos. Mas a presença deles no conto de Edson Guedes de
Morais tem uma força singular (na falta de um termo mais criativo), uma vez que
se propõe como foco. Enfim, não se trata de uma referência aos sentidos, mas de
sua invocação.
O
que o autor ali colocou enquanto dados perceptivos, o leitor os recebe numa
percepção que é sentida em todas as suas instâncias, muito embora tanto mais
presente no imaginário, claro, próprio de quem apenas lê. Neste seguimento, com
o conto é possível abarcar a visão, como já o mostramos, e também a audição:
De
repente, um grito. Sobressalto, cunha no sono, no entorpecimento de depois do
sumim. Confundidos, sem entenderem, ainda, aquele grito, a própria surpresa de
haver um grito, um silêncio maior, depois, expectante, e o burburinho, ruído de
passos, novos gritos: “No Caminho!”Alguns deixando a casa, suas ruínas, as
sombras das árvores, subindo ao mirante, confirmando o grito: “No Caminho!”(Ibd.,p.
8)
Da
mesma forma, o olfato: “... cheiro forte de sumim, de tabaco, de urina velha
pelos cantos”(Id. loc.
cit).O tato se mostra muito bem na relação do corpo do jovem com os corpos da
aldeia:
Não
podiam deixar, novamente, que lhes escapasse a Primavera: correram para ela,
lutaram por ela, prenderam-na nos braços, aos gritos, desesperados, garras
fincadas, espadanando sangue e a areia do fundo, amontoado de corpos
derrengados... (Id.,p.8)
III
Como
o conto de Edson Guedes de Morais se flexibiliza na perspectiva de uma
fenomenologia da percepção? Como, sobremaneira, se molda aos estudos de
Merleau-Ponty sobre a percepção do corpo, não só no sentido do corpo como
reduto de percepções originárias, ou como intenção perceptiva originária do
corpo, mas também segundo o sentido de fornecer ao corpo um estatuto de
prioridade no sujeito que habita o mundo? Responder a isso só é possível ao
invocarmos, no conto, corpo e percepção, entrelaçados:
Mas
logo, de novo, o corpo surgindo, recriando o mundo.
Alguns caíram apagados, dormidos para sonhos mais leves; outros correram, revigorados, para o meio do lago, contaminados, possuídos, soprados de novo, transfigurados, pois se viam, reviam-se, naquele corpo jovem, tinham vinte anos, outra vez, e a virgindade do mundo. (Ibd.,loc. cit.)
Alguns caíram apagados, dormidos para sonhos mais leves; outros correram, revigorados, para o meio do lago, contaminados, possuídos, soprados de novo, transfigurados, pois se viam, reviam-se, naquele corpo jovem, tinham vinte anos, outra vez, e a virgindade do mundo. (Ibd.,loc. cit.)
Merleau-Ponty
trata de uma intenção originária do corpo, capaz de perceber o mundo
originariamente. Dizê-lo não implica afirmar uma realidade fechada em si mesma,
mas admitir, na disposição da intenção corpórea a possibilidade de uma
percepção que transpassa a objetividade, ou seja, que penetra no mundo por,
antes, torná-lo apresentado (Cf. CAMINHA, 2010, p.181).Assim, o objeto
percebido não se completa na percepção enquanto objeto descrito formalmente, da
mesma forma, um espaço percebido não se completa pela geografia a ele dada. A realidade
aqui se completa pela objetividade não porque pela subjetividade poderia ser
completa, mas porque, diríamos, para Merleau-Ponty, a percepção subjetiva é um continuum, algo que começa, persiste,
não acaba. “Perceber é viver a presença permanente do mundo”. (Id. loc. cit.) E,
como bem disse Ferraz, “o corpo não possui o segredo antecipadamente da
constituição de todas as experiências possíveis, mas pode responder
concretamente a elas” (FERRAZ, 2006, p. 92).
A
virgindade do mundo, no conto, é um“outra
vez” perceber o mundo, ou seja, é o não abraçar a percepção envelhecida,
mas a percepção imbuída do novo, e isso se faz possível quando a percepção
aceita continuar alargando a si própria e inventa, cria outras percepções. Claramente,
“o corpo é o nosso ancoradouro em um mundo.” (MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 200) No
conto, uma percepção jovem (nova) apreende um mundo virgem (a ser conhecido ou
vivenciado). Isto, Merleau-Ponty e Edson Guedes de Morais, se nós invocamos o
velho casamento entre filosofia e literatura, talvez tenham nos mostrado de
modo quase evidente: Aqui, a percepção apreende um mundo a ser compulsivamente assediado
pelo corpo que o percebe.
REFERÊNCIAS
CAMINHA,
Iraquitan de Oliveira. O distante-próximo
e o próximo-distante. Corpo e Percepção na filosofia de Merleau-Ponty. João
Pessoa, PB. Editora UFPB,
2010.
FERRAZ,
Marcus Sacrini. O transcendental e o
existente em Merleau-Ponty. São Paulo: Associação Editorial Humanitas;
Fapesp. 2006.
MERLEAU-PONTY,
M. A fenomenologia da percepção.
Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo. Martins Fontes, 1994.
MORAIS,
Edson Guedes de. “Vinte anos outra vez e a virgindade do mundo”. In: Quatro contos. Jaboatão, PE. Editora
Guararapes, 2004.
______
* Ana Monique Moura é mestre em
filosofia pela UFPB, com doutorado em andamento pelo Programa Integrado de
Doutorado em Filosofia (UFPE-UFPB-UFRN); Livros publicados: “Entre Kant,
filosofias & arte” (2012) e “O olho e o pensamento: uma contribuição de
óticas da filosofia para filmes” (2013).
[1]Contista e poeta.
Nasceu em Campina Grande, PB em 23 de Janeiro de 1930. Publicou, entre outros
trabalhos, o livro “Poemas deDispersão”
(Ed. Clube dos XII, 1956), “O homem e os
homens lá de fora” (Edição GRD, 1963).