EM TORNO DE ALGUNS CONCEITOS DE LEITOR: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE 'DOM CASMURRO'

Gilberto Zolotorevsky Alves Junior
Mestrando da UFSM

Resumo:A relação do narrador com o leitor constituído na narrativa é de suma importância em Dom Casmurro. Machado de Assis foi um dos precursores no Brasil desses “diálogos”, colocando o leitor de forma escancarada como parte produtora da obra, instigando-o a produzir sentidos, significados, preencher vazios e lacunas. À luz da Teoria da Recepção e com um viés histórico, o presente trabalho visa revisitar alguns conceitos da metanarrativa ficcional introduzida na segunda fase da obra Machadiana e traçar na obra um esboço da maneira na qual esse “manual” de como ler a obra, como se comportar diante da narrativa, com certo fim “pedagógico” é constituído.
Palavras-chave:Machado de Assis; Romance; Metanarrativa Ficcional; Leitor;Dom Casmurro

Abstract: The relationship narrator/reader constituted in the narrative plays a major role in Dom Casmurro. Machado de Assis has been one of the pioneers of such “dialogues” with the reader, placing him in a wide-open position as a producer of the work, pushing, inciting, instigating him to have a meaningful reading, filling gaps and empty spaces. In the light of the Reception Theory and with a historical approach, the following paper aims to revisit some concepts on the ficcional metanarrative inserted by the author on the second half of his work. It also aims to draft the way in which this “manual” on how to read the book, how to behave before the narrative with a certain “teaching” goal is constituted.
Key-words:Machado de Assis. Novel. Ficcional Metanarrative. Reader. Dom Casmurro


O gênero literário romance, segundo Claudio Magris em O romance é concebível sem o mundo moderno?,nasce com a ruptura da civilização agrária e da ordem feudal. Com o advento do capitalismo, que ganhou forças principalmente após a Revolução Industrial no século XVIII,nasce uma sociedade de consumo pautada no comércio, finanças e indústria, com a economia baseada na compra e venda de produtos e com a utilização de moedas.
No Brasil,mesmo com um processo de industrialização com início no final do século XIX, O país ainda engatinhava no novo sistema de capital, com a mão-de-obra assalariada, iniciada com a imigração em massa, a abolição da escravatura e a melhoria nas estruturas pré-capitalistas, com a sociedade sendo modificada pelo surgimento de artefatos modernos da indústria, meios de transporte, imprensa, influenciando de forma particular também o modo como era produzida a literatura.
Na sociedade brasileira da época, a produção literária representa toda essa mudança em que o homem é representado como indivíduo, um sujeito que, segundo Claudio Magris (2009, p. 1018), “sente-se inicialmente como um estrangeiro na vida, cindido entre sua nostálgica interioridade e uma realidade exterior indiferente e desvinculada.” O romance expressa, dessa forma, o conflito do indivíduo em relação ao mundo em que vive. É importante situar o romance como um produto dessa nova sociedade de consumo, como afirma Magris:

O romance é com frequência uma mistura da celebração e crítica da modernidade; o que mais conta é que, assim, esta última se torna sua respiração, a circulação do seu sangue. O romance é simultaneamente a cruel representação e a manifestação do novo demônio do mundo moderno, o consumo. O romance é o gênero literário burguês por excelência e a burguesia é a criadora e protagonista do mundo moderno e de seu nexo de produção e consumo. (2009, p. 1020).

Considerando o livro como esse “produto”, fruto da industrialização, do avanço tecnológico do início do século XX, Hélio de Seixas Guimarães aponta uma importante contradição que, descreve a cena de um escravo com um balaio na cabeça vendendo livros junto com frutas, tecidos e outros produtos artesanais, trazendo na comicidade da imagem a realidade de um Brasil em que a modernidade chegava devagar.
André Bueno (2004, p. 16), em seu ensaio Memórias do futuro: mitos do Brasil moderno, que aponta o panorama social, histórico e cultural do Brasil nos séculos XIX e XX, marcado por extremos desequilíbrios e desigualdades, citando as regiões,as etnias diversas e traços culturais, o campo e a cidade, as classes, o litoral e o sertão, o interior e as capitais. A experiência do cotidiano trouxe o mal-estar evidenciado nas desigualdades e, dessa forma, ganhou corpo e representação na literatura.
            Existe a impressão, até os dias atuais, que no Brasil a modernidade nunca atingiu sua forma plena, perpetuando traços de atraso e avanço social no mesmo panorama. Com relação à venda de romances, que representa a modernidade de forma evidente, a situação atinge caráter quase cômico. Os hábitos comerciais vigentes no Brasil em meados do século XIX faziam com que os romances fossem comercializados de porta em porta, junto com flores, frutas, legumes e tecidos, como bem afirma Helio de Seixas Guimarães:

A imagem do preto de balaio na cabeça vem carregada das contradições que estamos acostumados a reconhecer no Brasil, a começar pela contiguidade entre o romance, produto industrial, manifestação recente e sofisticada da burguesia europeia, e o cesto de palha, produto artesanal fabricado pelo índio e pelo escravo. (Guimarães, 2012, p. 58)

O público leitor no país era restrito e as condições eram bem diferentes das europeias, mesmo assim, o romance surgiu no brasil. Guimarães afirma que após as publicações de O filho do Pescador, em 1843 e A Moreninha, em 1844, deu-se início a uma produção de livros que traziam escrito em suas capas “Romance Brasileiro”. Contudo, o país contava com uma grande maioria de iletrados, tendo toda a base cultural e de informações na Europa. O pequeno número de leitores figurava uma situação peculiar, segundo Guimarães (20012, p. 76), em que o público leitor europeu era heterogêneo para a produção literária, enquanto no Brasil, a produção era voltada para um público homogêneo, geralmente formado por pessoas do círculo do autor, tendo uma “forte personalização da relação autor e público”.
Nesse contexto, pode-se considerar Dom Casmurro, de Machado de Assis como um divisor de águas na integração do leitor à matéria da narração, ao processo de leitura e construção da narrativa. Como afirma Helio de Seixas Guimarães (2012, p. 195), em seu capítulo Dom Casmurro e o leitor lacunar, “o leitor é explicitamente convocado a participar do processo literário na condição de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo julgamentos do que lhe é relatado.”
Dom Casmurro, obra de Machado de Assis que foi publicada em 1900 traz um narrador-personagem,autodiegético chamadoBento Santiago.O narrador conta sua história, sua vida e seu amor por Capitu com a intenção,segundo o narrador, de “atar as duas pontas da vida”.A obra foi escrita do meio para o final do século XIX, com as nações europeias, principalmente a Inglaterra e a França, com o poder comercial e financeiro, bem como o maior número de produções artísticas e, por conseguinte, produções literárias. O Brasil consolidava seu império e gozava de relativa modernização.
Helio de Seixas Guimarães (2012, p. 26 – 27),ao tratar de uma crônica de Machado de Assis, faz uma comparação que faz alusão à associação do passageiro do bonde, um dos principais adventos tecnológicos do Brasil oitocentista, com o leitor do final do século XIX e os acontecimentos históricos vividos por ele. O leitor seria para o escritor da época o mesmo que o passageiro para o condutor. Nessa comparação, o autor traz o pouco valor, ou a escassez de passageiros e, consequentemente, leitores, considerando que poucos sabiam ler e escrever e menos ainda teriam a capacidade de serem leitores de obras imbricadas como as de Machado de Assis.
Há na construção da obra Machadiana, principalmente em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, a presença da metaficção ou metatexto ficcional, que elucida para o leitor a dinâmica da narrativa, sendo ele (o leitor) contruindo na própria narrativa, sendo necessário fazermos a distinção deste com o leitor empírico. É como se o autor quisesse colocar à disposição do leitor um “manual” de como ler a obra, como se comportar diante da narrativa, um certo fim “pedagógico” em uma época em que a representatividade da literatura e suas possibilidades de circulação eram de suma importância e, naturalmente, dependiam da aceitação do público leitor em relação à obra e da maneira na qual esse “pacto ficcional” se daria.
Considerando a teoria acerca das relações obra-leitor, veremos brevemente alguns pontos essenciais da Estética da Recepção, corrente iniciada em meados dos anos 1960, que passa a privilegiar a relação da tríade literária autor-obra-público. O receptor (leitor) passa a ser considerado em relação à sociedade em que vive, sendo parte da obra produzida, tornando-a mais dinâmica. A corrente que teve como um dos principais expoentes Wolfgang Ise rconsidera o efeito que as obras têm no leitor e os espaços vazios, as lacunas que esse texto produz, deixando a cargo do receptor ir além, preencher as lacunas e os espaços, “reescrevendo” ou resignificando a obra a partir de sua realidade, a partir de seu mundo, com suas inferências e percepções de leitura.
Ao termos uma perspectiva de contrução da obra com a participação do leitor, estabelece-se uma relação de dialogia, que certamente não é pré-estabelecida, haja vista que as leituras da obra passam a considerar as diferentes épocas, tendo um leitor formado a partir de suas experiências e interações sócio-culturais.
Podemos então entender o texto como algo inacabado e passivo da participação do leitor na construção de seu significado. O texto seria então um

[...] sistema de combinações e assim deve haver também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios, que assim se oferecem para a ocupação do leitor. (ISER, 1979, P. 91).

O papel do leitor emDom Casmurroe a relação do narrador com o leitor constituído na narrativa são de suma importância. Machado de Assis foi um dos precursores no Brasil desses “diálogos” com o leitor, colocando-o de forma escancarada como parte produtora da obra, instigando-o a produzir sentidos, significados, preencher vazios e lacunas.
Como afirma Guimarães (2012, p. 195), em Dom Casmurro a nostalgia melancólica apela à empatia do leitor. O narrador tenta convencer seu interlocutor de sua versão mas, ao mesmo tempo, vai deixando dúvidas, falsas pistas que indicam outros possíveis caminhos, outras interpretações. O motivo do discurso não está no que afirma o narrador e sim no leitor, que é, em última instância, co-produtor da obra ao criar sentidos e completar a narração.
A partir desse processo, pode-se notar uma interação dinâmica entre obra e leitor, fazendo com que a construção de sentido seja feita não apenas pelo texto em si, mas também pelo receptor. Tais “diálogos”, tão recorrentes na obra Machadiana, dispõem comentários, pontos de vista, pedidos e observações do narrador, na maioria das vezes de uma forma irônica, sagaz e ambígua, chamando o leitor configurado na narrativa de amigo algumas vezes e, em outras ocasiões, com xingamentos e adjetivações para conduzir a narrativa pelo caminho desejado pelo narrador. “Eu, leitor amigo” (ASSIS, 2005, p. 9, grifo do autor); “leitora castíssima” (ASSIS, 2005, p. 57, grifo do autor); “leitor das minhas entranhas” (ASSIS, 2005, p. 67, grifo do autor); “dona leitora” (ASSIS, 2005, p. 62, grifo do autor); “há leitores tão obtusos, que nada entendem” (ASSIS, 2005, p. 100, grifo do autor); “A leitora, [...], ficará espantada” (ASSIS, 2005, p. 102, grifo do autor); “ao leitor, pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio”. (ASSIS, 2005, p. 103, grifo do autor); “leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico”. (ASSIS, 2005, p. 120, grifos do autor).
A narrativa de Dom Casmurrotraz um discurso irônico e imbricado, rompendo com tudo o que já havia sido produzido em termos de narrativa literária no Brasil, requerendo assim um leitor mais atento às nuances do discurso.Existe então, uma relação mais dialógica entre obra e leitor. Deve-se considerar esse leitor pelas diferentes épocas, interagindo de formas diferentes, trazendo à tona, na construção da obra, suas experiências anteriores, sua bagagem de mundo, interferindo na sua recepção da obra.
O narrador em Dom Casmurro utiliza a metanarrativa ficcional para elaborar seus “diálogos” com o leitor. Todorov (1970, p. 47) faz uma descrição do narrador personagem e como ele se configura em relação ao sujeito da enunciação:

O personagem-narrador não é, pois, uma personagem como as outras; não se assemelha tampouco ao narrador de fora [...]. Isso seria confundir o “eu” com o verdadeiro sujeito da enunciação, que conta o livro. No momento em que o sujeito da enunciação se torna sujeito do enunciado, não é mais o mesmo sujeito que enuncia. Falar de si próprio significa não ser mais “si próprio”. O narrador é inominável: se quisermos dar-lhe um nome, ele nos permite o nome, mas não se encontra por detrás dele: refugia-se eternamente no anonimato. O narrador do livro é tão fugidiço quanto não importa que sujeito da enunciação, o qual, por definição, não pode ser representado. Em “ele corre”, há “ele”, sujeito do enunciado, e “eu”, sujeito da enunciação. Em “eu corro”, um sujeito da enunciação enunciada se intercala entre os dois, tomando a cada um uma parte de seu conteúdo precedente, mas sem fazê-los desaparecer inteiramente: não faz mais que imergi-los. Pois o “ele” e o “eu” existem sempre: o “eu” que corre não é o mesmo que enuncia. “Eu” não reduz dois a um, mas de dois faz três. (TODOROV, 1970, p. 47). 

O processo de construção da personagem Capitu traz a visão do narrador-personagem, que “conduz” o leitor a acreditar na única versão que a narrativa traz: a de Bento Santiago, colocando-a da forma que o apraz para a sequência das ações. Nas passagens seguintes, podemos ver as muitas maneiras na qual o narrador descreve a personagem Capitu ao longo da narrativa com o intuito de direcionar o leitor para acreditar naquilo que seria “conveniente” à narrativa, porém, deixanado algumas vezes essas “iscas” para afirmar que, algumas vezes, existe uma “outra possibilidade” de interpretação. Capitu“era naturalmente o anjo da Escritura”. (Assis, 2005, p. 30),“passou a ser a flor da casa, o sol das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites;” (Assis, 2005, p. 30); Capitu é um anjo! (Assis, 2005, p.98); Capitu era tudo e mais que tudo, não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela (Assis, 2005, p. 104). Em outros trechos, como na maior parte da narrativa, Capitu é descrita como uma mulher, determinada, forte e dissimulada.
Todorov (1970) ao falar sobre a visão na narrativa afirma que:

[...] a personagem que narra pode ter das outras uma visão “de fora” ou “de dentro”; no primeiro caso, não procuraria – ou não poderia – interpretar os atos alheios; no segundo, aproximar-se-ia do narrador onisciente. (TODOROV, 1970, p. 48).

O leitor é então convidado a fazer parte do processo de construção da obra, no momento em que o narrador tenta persuadir o leitor de suas acepções e a versão dada dos acontecimentos, acaba por deixar espaços, lacunas que deverão der preenchidos pelo leitor. Para Guimarães (2012, p. 195), tais espaços, lacunas, contituem-se “em iscas para enredar o leitor no campo ficcional”. Sendo a narrativa construída não apenas pelo narrador, mas, ativamente, também por quem lê.
 O processo de fragmentos de metatextos ficcionais começa no capítulo inicial da obra, onde onarrador afirma o seguinte:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. (ASSIS, 2005, p. 1, grifos do autor).

                O imperativo usado pelo narrador em “não consultes” demonstra a questão do guiar da obra pelo narrador. É como se o narrador estivesse junto ao leitor e o guiasse no que ele deve ou não fazer ao ler a obra. Nos grifos dos pronomes possessivos “seu” e “sua”, o narrador convida o leitor para participar/contribuir com a obra, dando a impressão que esse leitor pode ou não aceitar o que está sendo contado.
Guimarães (2012, p. 196), ao falar da recepção do texto e da transferência da responsabilidade da interpretação dos fatos narrados afirma que existe uma recusa da recepção do texto, da mesma forma que o apelido casmurro fora dado pela cena do trem e pelo fato do narrador não querer ouvir os versos de seu interlocutor, trazendo umaimpressão de que algumas partes da obra foram construídas “ao acaso”. O autor ainda sedimenta essa visão quando afirma que:

A insistência na importância dos interlocutores no processo de constituição das histórias, assim como dos leitores na consumação do processo literário, é um dos estratagemas do narrador para transferir ao outro a responsabilidade sobre a interpretação dos fatos, o que ele fará explicitamente no trecho que atribui ao leitor a tarefa de preencher lacunas. (Guimarães, 2012, p. 197).

                O processo de construção da narrativa em Dom Casmurro se dá então por essas referências dialógicas queparecem acontecer ao acaso, sem função, mas que considerando uma leitura mais profunda, traz significados imbricados que serão constituídos ecompreendidos apenas na relação com o leitor. O narrador configura o leitor de modo a parecer que ele (o leitor) ajudará na construção da obra. Como no trecho a seguir, onde esse convite para construir a narrativa junto com o narrador é feito de maneira explícita:

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as egrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (ASSIS, 2005, p. 58, Grifos do autor).

                É importante destacar também que, mesmo com o auxílio do leitor, existe uma impossibilidade de recomposição dos fatos passados, colocando o leitor como uma entidade impotente, mesmo que a ele (o leitor) tenha sido dada a função de “ajudar/participar” da construção da narrativa. Não tem como retomar o que foi feito, e mesmo que tenha sido dada ao leitor a impressão de qualquer participação na obra, lhe é tirado esse poder pelo próprio conformismo do narrador, e, logicamente pelos fatos estarem sendo contados em um tempo da narrativa posterior ao tempo da narração.  No trecho que segue, são explicitadas as afirmações:

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. (ASSIS, 2005, p. 2, Grifos do autor).

            O autor foi um dos precursores, juntamente com José de Alencar desse processo dialógico na narrativa. Importante salientar a necessidade de, ao ler a obra, termos uma visão das lacunas, dos vazios deixados pelo narrador a serem completados pelo leitor, nessa relação intrínseca entre a obra e o efeito. Tal efeito produzido pela obra no leitor torna-se uma experiência individual, anterior à existência do leitor em si. Faz-se assim uma obra que não é fechada, pronta, e sim construída ao longo da narrativa com o auxílio desse leitor, que tem um papel ativo na construção/interpretação do texto narrativo lido, passando por um efeito estético.
            A narrativa metaficcional assinala a presença do narrador e sua auto-consciência como uma instância exegética da narrativa, desconstruindo o papel passivo do leitor. O narrador fica em uma posição de superioridade nesse papel dialógico, podendo construir a narrativa de forma a levar o leitor por seus caminhos. O menor distanciamento do narrador no processo metaficcional atribui a ele a figura de personagem, criando uma ilusão de narrativa ou o maior distanciamento confere ao narrador um papel de cronista que está fora do universo ficcional.
Segundo Guimarães (2012, p. 52), a importância da obra de Machado de Assis se dá em grande parte pelas “relações que o autor estabelece com elementos específicos da narrativa, tais como a temporalidade, a focalização e o leitor”. O último, definido como “receptor interno do texto” é a quem o narrador se dirige explícita ou implicitamente. A problematização da figura do leitor na produção literária é, ainda hoje, tenra. Na obra Machadiana, o leitor começa a ser “convocado” explicitamente a participar da obra em Memória Póstumas de Brás Cubas, que Guimarães (2012, p. 52) coloca também como obra precursora de metatextos ficcionais na literatura brasileira. Importante salientar que ao considerar a figura do leitor na obra, Machado traz marcas de uma relação social fundamental para qualquer escritor que é a relação com seu público, seja ele “real, imaginado ou simplesmente desejado”.
Machado de Assis, por estar a frente de seu tempo e ser um escritor consciente da situação da literatura e do contexto oitocentista do país, foi um marco essencial ao “refinar a representação do país, afastando-se do pitoresco e da busca exclusiva da cor local”. Incorporando à forma do romance a presença, naquela época pouco provável, do leitor. Machado sempre será um escritor a frente de qualquer época e sempre teremos o que ver/rever/entender sobre sua obra, em um processo de construção de sentido que vai além do tempo da produção de sua obra, que hoje, mais de 100 anos depois, ainda é atual.

Referências bibliográficas
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