ROBERTO PIVA: “POETA HOMOSSEXUAL-PROLETÁRIO”


Ricardo Mendes Mattos*
Doutorando em Psicologia da Arte 
(Universidade de São Paulo).
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Resumo
Discute-se a poesia engajada de Roberto Piva durante o período inicial de redemocratização do país, no final da década de 1970. A partir de suas publicações no jornal revolucionário Versus e no órgão gay Lampião da Esquina, reflete-se sobre a atuação política do poeta nos meios da esquerda e do nascente movimento homossexual. Com isso, amplia-se a crítica de sua poesia para além do anticomunismo veemente e das bravatas contra os movimentos de direitos que caracterizaram sua trajetória nas últimas décadas.
Palavras-chave: Roberto Piva; Poesia Contemporânea; Redemocratização; Queer.

Roberto Piva: “gay-proletarian poet”
Abstract
This paper discusses the political poetry of Roberto Piva during the initial period of Brazilian redemocratization. From his publications in the newspapers “Versus” and “Lampião da Esquina”, is reflected on the political activity of the poet in the socialistsmedia and in thegay movement. With this, it broadens the critique of Roberto Piva’s poetry beyond the anti-communism and his critique of the movement of social rights that characterized his history in recent decades.
Keywords: Roberto Piva; Poetry; Redemocratization; Queer.

“Sou comunista” – apresentava-se Roberto Piva, antes de ler um poema dedicado “aos presos políticos do Brasil. Contra a tortura, pelas liberdades democráticas” (1978a). Eram os recitais de 1977, organizados por Claudio Willer e Ruth Escobar em homenagem a poetas ligados ao comunismo, como Pablo Neruda, ou vítimas de Estados Totalitários, como Federico García Lorca. Tais atividades políticas foram pioneiras nas manifestações para a redemocratização do país.
Roberto Piva participava ativamente dos recitais, das passeatas e de alguns meios da esquerda, como a Libelu (Liberdade e Luta) – grupo trotskista atuante no movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Em sua atuação no movimento gay, Roberto Piva podia ser visto como ativista em uma mesa de debates sobre as “minorias”, na Universidade de São Paulo.
Os poemas publicados nesse período apresentam um Roberto Piva muito diferente daquele das últimas décadas, com cortantes bravatas anticomunistas e críticas ao movimento homossexual. Certamente o poeta não quis ser lembrado por esse momento de sua produção, pois não inclui nenhum desses poemas em suas Obras reunidas e chega mesmo a alterar materiais que explicitassem essa relação com a esquerda. É o caso de um poema do livro Abra os Olhos e Diga Ah! (1976), em que o nome da revolucionária Rosa Luxemburgo, como consta na primeira edição do livro e mesmo na antologia publicada pela editora L&PM (1985), é substituído pelo do poeta italiano Dino Campana. Os poemas em que se apresentava como “homossexual” também não foram incorporados à sua obra com maior repercussão pública.
Suas duras críticas ao comunismo e aos movimentos de luta por direitos sociais acabaram lhe rendendo a pecha de reacionário ou conservador, como se houvesse se eximido da atuação política durante o período da ditadura militar.
Daí a importância de apresentar a poesia engajada de Roberto Piva em sintonia com a crítica de esquerda e o nascente movimento homossexual nesse importante momento da vida política brasileira. Para tanto, centrarei fogo nas publicações do poeta no jornal revolucionário Versus e no órgão gay Lampião da Esquina, nos anos de 1978 e 1979, respectivamente.

Um estrangeiro na legião
O ano de 1977 viu pulular as primeiras passeatas na cidade de São Paulo após o AI-5 de 1968. Em uníssono, o coro dos manifestantes entoava palavras de ordem pelo fim da ditadura. Mas havia uma voz dissonante esbravejando frases escandalosas: “Esse pessoal acha que conhece o operário e sabe o que ele quer! Sabe nada! Eu trepo com operário e eles não estão nem aí para essa discussão toda!” (Peres Junior, 2011). Era Roberto Piva, frequentador de uma sauna na periferia da cidade onde transava com garotos por ele considerados “proletários”. Se os marxistas de plantão mantinham um vínculo com o operariado por meio do teórico pertencimento a uma classe social, o poeta tinha vivência bem mais corporal. Não por meio da abstração dos sujeitos da história e sua consciência de classe, mas por penetração erótica sentida na carne. Não no palanque, mas na cama! Não no chão de fábrica, mas na sauna! Para Roberto Piva não há fronteira entre o erótico e o político.
Justamente numa dessas passeatas de 1977 se fez o primeiro registro audiovisual do poeta, arremessando frases inusitadas: “Eu tô sentindo que realmente a população foi lobotomizada. Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra – e da palavra poética, que funda e ao mesmo tempo transforma o real” (Assombração Urbana, 2004). É inusitada, pois o lugar comum era a conclamação pelos direitos civis e políticos por meio do re-estabelecimento do Estado Democrático de Direito. Daí o estranhamento da imagem delirante da lobotomia. Provavelmente, o poeta a retira do espetáculo Gracias, Señor (1972), uma criação coletiva do Teatro Oficina de que gostava muito especialmente. No momento intitulado Aula de Esquizofrenia são exibidos cérebros submetidos à lobotomia, prática cirúrgica comum no tratamento da esquizofrenia até meados do século. Uma imagem que faz jus às intervenções violentas contra os “desajustados” em nome da medicina, além de traduzir bem o momento brasileiro calcado em torturas físicas. O enfrentamento dessa realidade repressora não é pela via partidária ou por meio das instituições políticas oficiais. Roberto Piva acredita na “palavra poética”. A potência revolucionária da poesia é exaltada, num tom muito próximo daquele de Martin Heidegger (2008), em seu famoso ensaio sobre Friedrich Hölderlin, por exemplo. A palavra poética, para o filósofo alemão, funda o real à medida que nomeia e atribui sentido ao que existe. Essa nomeação ocorre sempre no interior de um contexto histórico que passa a fazer sentido exatamente a partir de sua fundação poética. Assim, no limite, a palavra poética funda a própria história do homem. Não uma história instaurada de uma vez por todas, pronta e acabada, mas, ao contrário, uma história reinventada a cada momento em que é nomeada. A palavra poética para Heidegger tem o poder de fundar um começo – a cada momento. Roberto Piva acredita nessa possibilidade fundadora da palavra poética e sua potência de (re)começar a história.
Nessas passeatas uma questão fica muito clara: Roberto Piva participava das manifestações pela redemocratização, mas como dissidência. Fazia-se presente como rebelde, ora destruindo convicções consensuais, ora criando novas possibilidades de compreensão e atuação. Participava não como militante de partido ou movimento, mas como poeta instaurando o potencial transformador da poesia. Qual a produção poética de Roberto Piva durante este período? Que novas possibilidades de vida sua palavra poética funda?

Meditações de Emergência
Os recitais políticos de Claudio Willer e Ruth Escobar deram o que falar. Sua força mobilizadora atraiu simpatias da esquerda e logo foram classificados como subversivos pelo Estado. Baixou a repressão. O delegado Romeu Tuma chegou a proibir a realização de uma dessas leituras de poesia. O jornal Versus, de Marcos Faerman, interessou-se pelo fato e o noticiou. O amor pela poesia trouxe grande afinidade entre ambos, que redundou na contribuição de Willer como responsável por sua seção de poesia.Por seu intermédio, Roberto Piva contribuiu regularmente com o jornal Versus durante quase todo o ano de 1978.Vejamos seus poemas.

O MISSISSIPI NO AMAZONAS
filmado em tecnocolor

    A cidade & sua estrutura de navio japonês qualquer coisa como bambu & cheiro de sangue no ar de São Paulo antes de ir prá Moóca dar aula até o saco virar de cansaço & gostaria de ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes proletários se dependurarem nos cipós do Ocidente &aterrorizarem nos salões de banquetes como Tarzans enquanto o Burguês-Inseto recolhe as asas & faz cocô branco de susto-Impotência & úlceras pépticas na cristalização de química imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite & até que os atores criem vergonha &re-apresentem Gracias Señor antes do circo pegar fogo sem o torcicolo culposo de uma certa esquerda que adora chorar na sopa pobre sua emoção masoquista chamada realismo-socialista (invenção dos anos de caduquice de Gorki) & por isso mesmo eu sou pela re-volição do nosso quotidiano em profundidade sem a larva telenovela cagando problemas de pequeno-burguês nos nossos olhos & corações AMAR É BOM SEXO É BOM TRANSFORMAR O MUNDO É BOM nada mais saco que a lógica irracional-formal codificadora da febre amarela chamada CRISE consumismo de grilos de pessoas de energia que ninguém de alma bailarina aguenta tem saco ou curte esse tipo de polícia superficial hippie que se apossou em nível ideológico & corporal do país (1978b).

É um poema característico da atuação política de Piva. O poeta se apresenta como professor secundarista das escolas públicas da periferia da cidade. Um trabalhador que utiliza o transporte público e se queixa do extremo cansaço. O tom biográfico ainda deixa entrever as relações de Roberto Piva no período, seja com o amigo Zé Celso e a influência das criações do Teatro Oficina, seja pela presença do cinema (no subtítulo do poema), pois tinha como amigos os cineastas Jairo Ferreira e Julio Bressane ligados ao melhor cinema de invenção do período – conhecido como “cinema marginal”.
Mas é principalmente um poeta entusiasta pela juventude com a qual convivia: a “tribo maravilhosa de adolescentes proletários”. Essa mesma tribo surge como mote de seu livro Coxas sex fiction & delírios (1979a), composto neste período. Oriundos dos subúrbios da cidade, esses jovens aparecem num tom heroico, em contraste com o cansaço do professor ou com a atmosfera violenta da cidade.
Com o termo “proletário” Piva introduz um recorte de classe e, portanto, uma captura conceitual bem típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem numa figura ao mesmo tempo erótica e selvagem, o Tarzan, cuja força aterrorizadora é contraposta à classe social antagônica: a burguesia e sua impotência. Não se trata apenas da utilização das expressões “proletário” e “burguês”, mas de um conflito social que atribui aos garotos a condição ativa e viril de transformar o Ocidente, enquanto aos burgueses é reservado o medo de quem quer conservar a realidade como está. É uma luta de classes, a partir de uma visão dialética da história?
O burguês é um híbrido de inseto medroso, câncer ulceroso e “bicha de boite”. Em contraste à atividade dos adolescentes, o burguês é associado à fêmea com sua postura passiva, além de estar associado às amenas figuras do purgatório – como diria Piva sobre esta parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri, parte preterida em relação ao Inferno com suas figuras potentes e maravilhosas. O adjetivo “fêmea” denotaria certa misoginia do poeta? Não se pode afirmar, mas com certeza há uma crítica ferrenha as tais “bichas de boite”, aquele público homossexual frequentador de casas noturnas que o poeta vincula à burguesia. A imagem dos garotos ativos e burgueses passivos é a um só tempo política e erótica. Responde ao espectro político e à posição na cama.
Como signo da ação política revoltada, Piva coloca a criação Gracias, Señor, do Teatro Oficina, proibida pela censura durante sua temporada paulista de 1972. A atuação provocativa e licenciosa tira o tal “espectador” de seu papel passivo e o incita (e excita) a uma ação combativa e corporal. É esta forma de atuação política que o poeta vivencia, em contraposição ao “torcicolo culposo”de uma esquerda choraminga e masoquista. A imagem é ácida e muito bem humorada. Torcicolo como símbolo de um corpo travado, mas também com dificuldade de olhar para os lados e ampliar os horizontes. É um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade de quem se compraz com a pobreza alheia. Roberto Piva talvez esteja salientando a atração cristã pelos espoliados como impulso de negação da vida – como se vê nas críticas de Nietzsche ao comunismo como rebento do cristianismo. Uma vez mais Roberto Piva faz uma crítica política usando termos ligados à sexualidade: a “emoção masoquista”. Para um leitor de autores da psicanálise, como Roberto Piva, o masoquismo pode ser entendido como aquele laço entre a energia sexual e a agressividade voltado passivamente para dentro. É um sujeito novamente ligado à passividade que se autoflagela moralmente – e tem com isso prazer.
A crítica de Piva à esta tal “esquerda” passa pelo seu excesso de moralismo que atrofia o corpo. E está ligada ao realismo-socialista e a Máximo Gorki – o mesmo autor da bravata “Exterminem os homossexuais, e o fascismo desaparecerá”. O escritor russo foi consagrado após a Revolução de 1917 por obras encomendadas pelo Estado para a formação ideológica do país socialista. É um símbolo forte da arte manipulada por interesses partidários e estatais, subjugada a mero instrumento de formação política. É o símbolo do poeta obrigado a escrever o que determinava o Partido Comunista. Não se pretendia exterminar apenas os homossexuais, mas qualquer espontaneidade criativa. É a esse comunismo obediente à moral e ao partido que Piva rejeita. Mas o que o poeta propõe?
A “re-volição” do cotidiano – aqui uma vontade de mudança que diverge da “revolução”. Essa “re-volição” quer transformar o mundo na mesma medida em que quer amar e transar. O elemento do amor sexual parece ser a via de transformação social - diferente da revolução, restrita aos aspectos da economia-política.
Além do realismo-socialista, Roberto Piva rechaça a telenovela como proliferadora de valores pequeno-burgueses e manipuladora dos comportamentos. O poeta, considerado um dos precursores do que se veio a chamar “contra-cultura”, critica frontalmente a “polícia hippie” que teria se apossado do país. Veremos como tal crítica faz parte de uma postura fortemente anti-imperialista de Roberto Piva, postura que talvez esteja relacionada ao título do poema: as águas do grande rio estadunidense desaguando no rio brasileiro.
Não bastassem essas tensões com a esquerda e os hippies, Roberto Piva lança mão de um toque nietzschiano, evidente na expressão “alma bailarina”. A presença de Nietzsche é fundamental por dois motivos. Primeiro porque é um filósofo muito crítico ao comunismo e, por isso, execrado pela esquerda. Segundo porque a crítica ao moralismo da esquerda e sua negação do corpo acompanha as ideias deste Anticristo.
A imagem da dança é abundante e bastante aberta na obra deste filósofo e poeta. Seu Zaratustra andava como bailarino e a dança aparece ora como o exercício do livre pensar do filósofo ou como qualificativo de sua própria filosofia, ora como o próprio devir da vida num fluxo vário sem qualquer finalidade. Dionísio figura também como um deus que sabe dançar, especialmente quanto encarnado corporalmente nas almas bailarinas das bacantes em êxtase. Pode-se dizer que a “alma bailarina” de que fala Piva se refere à possibilidade de fluir na vida e nos pensamentos com força e flexibilidade; com a leveza de variar os ritmos e se enlevar com impulsos diversos. O movimento bailarino é o extremo oposto daquela fixação moral do mundo dotado de uma finalidade como, por exemplo, o determinismo dialético de uma revolução como superação dos antagonismos. A alma bailarina é o avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de um corpo em gozo em uma orgia para além do bem e do mal. É essa possibilidade de dançar através de várias perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que o poeta contrapõe à ditadura da conduta única do Moneyteísmo:

As desgraças do Moneyteísmo
                                 para o Eg

o coração é um meio meu coração frágil pássaro de vidro a roda do coração enroscou nas veias & eu me transformo em boomerang meu amor ferido anjo diante de vocês distribuindo panfletos & baixaremos todos na Tumba Eterna mesmo que no alto de Santana São Paulo cidade & periferia cacarejem na solidão das fábricas & o rio Tiête seja uma veia do corpo do meu amor uma ducha na aurora de sorriso de chumbo & os liberais são fascistas em férias (obrigado pela imagem Nando Ramos) que agora não tem nada a perder mas em 64 tinham & apelaram & foram hipnotizados por Plínio Salgado que foi guindado ao posto de ratazana cinzenta no Ministério da Educação ? engendrou a Moral & Cívica (Civismo rima com Fascismo) Deus Pátria & Família redivivos para contrariar os rabos loucos dos adolescentes prontos para o “sacrifício do mel” de que falava o alucinado Nietzsche NÃO TENHA PIEDADE ALGUMA digo eu & amem a pessoa amada até oxidarem os planetas & leiam Apollinaire bebendo uma cervejinha gelada num caneco gelado & Fourier deveria andar de boca em boca em forma de beijo postal sem que nossas minas de urânio (oh beijo de urânio!) sejam debulhadas meus olhos desaparecem nas manhãs de inverno quando a gravitação deixa de existir para um tênue sol se insinuar entre as páginas de Raymond Lulle principalmente o Libre delamic et L’Amat carregado de elétrica prosa de magia amorosa boa para esses tempos de hippilândia made in New York City Que passa New York ? assim como os babosos bichos bichanas &cocotas fortalecedores das circulações moneytárias do Sistema Capitalista Periférico AH AHAH na dose certa na cara certa na dimensão certa de vossas covardias (1978c).

O início do poema traz um imaginário do amor ferido repleto de simbologia mística,largamente utilizada pelo poeta em seu livro Piazzas (1964). Roberto Piva toma a palavra da periferia de São Paulo, do “alto de Santana”, ressaltando sempre esse vínculo com o subúrbio. Intercala versos de amor a um garoto com o contexto da cidade de São Paulo, cidade associada à “Tumba” e à “solidão das fábricas”. O rio Tietê se funde nas veias do amante, numa imagem do contexto sendo incorporado nos gestos das pessoas, como no “sorriso de chumbo” – aqui mais uma imagem da situação violenta daquele tempo.
Roberto Piva passa a criticar os liberais e sua participação no golpe militar. O fascismo da direita é associado aos ideais integralistas de Plínio Salgado, materializados na disciplina de “Educação Moral e Cívica” – obrigatória a partir de 1969. É o culto à Deus, Pátria e Família como tripé do conservadorismo moral que pretende adestrar os jovens. 
Roberto Piva contrapõe a este fascismo moral os “os rabos loucos dos adolescentes” prontos ao “sacrifício do mel”. No trecho inicial do derradeiro livro de Zaratustra, intitulado exatamente “Sacrifício do Mel” (Nietzsche, 1883-5/2010), o sacrifício é feito para retirar os humanos da negra angústia e alçá-los às felicidades da afirmação da potência da vida no “reino milenar de Zaratustra”. Roberto Piva associa esse vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força para amar sem qualquer piedade. Essas recomendações do poeta surgem num tom mais panfletário e assumem uma feição hedonista, como na cerveja gelada bebida durante uma leitura do poeta francês Guillaume Apollinaire.
A aposta de Roberto Piva em uma transformação social por meio do amor sexual torna fundamental a presença do profeta francês Charles Fourier. O erotismo da imagem também é importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados na forma de beijo – uma linguagem corporal e sexual. Qual a importância de Fourier nas ideias de Roberto Piva?
A mudança social proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão da Paixão (Fourier, 1846). Os sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas estariam pautados no controle repressivo das paixões, consideradas como um mal a ser extirpado. A partir desse denominador comum, Fourier faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na monotonia matrimonial da família burguesa, ou na hierarquização da produção econômica. Assim, sua utopia revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da autogestão econômica.  Ou seja, ao lado da organização da produção pela via associativa e igualitária, sua utopia sugere a criação de corporações amorosas que salientem inclusive a esfera pública e festiva do amor nas orgias. Essa experiência do potencial transformador das paixões sexuais é similar à “re-volição” proposta por Roberto Piva.
Esses beijos de urânio enlevam o poeta para aquele momento em que a “gravitação deixa de existir”. É o amor em êxtase, associado à “magia amorosa” do poeta, místico e alquimista catalão Raimundo Lúlio (1232-1315). Se a referência a Fourier destaca o potencial transformador do sexo, a presença de Lúlio enfatiza essa relação mística com o amor. São esses traços que o poeta experimenta em detrimento do modismo da “hippilândia made in New York”. Novamente o tom anti-imperialista atrela parte dos homossexuais à burguesia, sob as denominações pejorativas de “bichanas” e “cocotas”. Aqui as tais “bichas de boite” parecem atreladas não apenas à burguesia, mas aos modismos da ideologia capitalista estadunidense. São “bichanas” que fortalecem o “Sistema Capitalista Periférico” com a importação de mercadorias e ideias sem qualquer crítica. O poeta se ri dessa atitude conformista qualificada como covarde. Aqui o trocadilho do termo “moneyteísmo”: não sugere apenas a veneração do dinheiro como um deus, mas também atrela o capitalismo ao monoteísmo como tentativa de impor um único modo de vida. É uma expressão aberta que contém, a um só tempo, as críticas de Roberto Piva ao capital e ao cristianismo.
O texto “Desgraças do Moneyteísmo” inicia uma seção intitulada “Meditações de Emergência”, que Roberto Piva manteria no jornal Versus e na revista Singular & Plural. Na edição seguinte, de julho de 1978, surge o seguinte poema:

mortikultura

O adolescente que se liberta de 2.000 anos de superego bíblico-cristão & cai na vida já é alguma coisa mas falta muito para dar a porrada no alvo certo no inimigo exato & Nietzsche tinha razão ao dizer que os homens não acreditam mais em deus mas se comportam como se acreditassem & o futebol & a tv globo estão aí para não deixar Nietzsche mentir & esvaziar os bagos na sublimação morta da perda de tempo a morte em vida adolescentes adultos crianças morrendo num canto escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas coisas ridículas & se drogando no vazio da negação do CORPO até cagar pedra & perder o tesão de viver é preciso somente admitir morrer entre os braços da pessoa amada (“qualquer maneira de amar vale apena”) morrer em pleno êxtase-orgasmo estrelas escorrendo da boca vermelha aberta para os cometas do sexo oh manhã das manhãs molhadas com amêndoas verdes renascer para esta opulência eu sou sua beleza eu sou seu rei Davi deus adolescente da luz da manhã chovendo cravos vermelhos rumo à LIBERTAÇÃO.
P.S. Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os passageiros sentados nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo selvagem que lhes tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço generalizado testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil sendo usada para movimentar a engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H. Marcuse) neste sentido os homossexuais espanhóis tem razão “El coito anal derruba el capital”. Senão derruba não deixa de ser uma sugestão para        ajudar a derrubada.(1978d).

A juventude permanece como a preocupação do poema, exaltando os garotos que se liberam do “superego” cristão e caem na vida. Num tom discursivo, Roberto Piva critica o que considera uma cultura do instinto de morte, a mortikultura – ressaltando o “k” ligado ao “kapitalismo”. É uma cultura calcada exatamente no superego cristão, incubado no claustro privado da família nuclear burguesa. Ali a TV, agora nomeada com uma emissora, novamente ocupa lugar de alienação na veiculação dos valores burgueses e cristãos. Também o futebol se presta a este serviço, numa alusão reincidente nesses poemas de Piva da Versus – a exemplo de passagem na qual este esporte é visto como “militarização do corpo” (1978e).
A mortikultura é a “negação do CORPO” e a perda do tesão pela vida. Expressões como “superego”, “sublimação morta”, “energia sexual” e “sexualidade infantil” não deixam dúvida quanto à referência psicanalítica dessas ideias. A menção a Hebert Marcuse ganha importância exatamente por esse cruzamento da teoria psicanalítica das pulsões com as aspirações revolucionárias de inspiração marxista. A menção a Nietzsche em sua crítica à moral cristã compõe esse quadro analítico, bastante representativo das referências de Roberto Piva para pensar as contradições de seu contexto histórico.
A morte em vida se dá pela captura do corpo e seu potencial erótico. A moralidade de costumes é colocada como uma primeira forma de captura e se desenvolve na crítica de Nietzsche ao cristianismo (1888/2007). Em linhas gerais, o filósofo alemão associa o cristianismo à negação da vida terrena em prol de ideais ou ídolos prostrados num porvir abstrato. É a negação do corpo e de todo o devir por uma vontade de nada, ou seja, uma quietude inerte sem vida. Rejeita-se o devir pelo dever, a partir da submissão a um tal “deus” que representa toda a ordenação moral do mundo. Friedrich Nietzsche observa quanto, mesmo após a “morte de Deus”, suas sombras ainda se fazem sentir em todo ideal ascético da religião, da ciência, da arte e outras expressões da vida.
Essa ordem moral do mundo é associada ao “superego” psicanalítico, que pode ser entendido, resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções sociais e suas repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção na cultura o sujeito passa a ser atravessado pelas convenções na satisfação imediata de seus impulsos. Os impulsos sexuais mais suscetíveis à repressão e impedidos de uma descarga imediata vão encontrando espécies de objetos substitutivos, especialmente em atividades produtivas, em um processo que se denomina “sublimação”. É um movimento em que o impulso corporal do sexo, por exemplo, se torna mais abstrato, mais “sublime”, mais “dessexualizado”. É a negação da vida corporal similar àquela de Nietzsche. Roberto Piva considera que nesta cultura do instinto de morte (mortikultura), as possibilidades de descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de entretenimento que alimentam ainda mais esse ciclo de moralidade: a “sublimação morta”. A potência do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a vida sem tesão.
Herbert Marcuse, em seu clássico Eros e a Civilização, procura exatamente desenvolver a teoria freudiana das pulsões em um plano político-revolucionário de superação da sociedade capitalista repressiva. Este ousado frankfurtiano partia de uma crítica ao trabalho alienado como forma de captura da energia sexual do indivíduo e atrofia de seu potencial erótico – como aponta Roberto Piva em sua nota ao final do texto. No entanto, diferente de Freud, Marcuse acreditava no trabalho alienado como condicionado historicamente. Assim, o grau de desenvolvimento das forças produtivas com sua automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos vitais em atividades distintas da alienação do trabalho capitalista. Daí a aposta do filósofo em atividades nas quais o princípio da produtividade é substituído pelo princípio do prazer. Marcuse enfatiza sobretudo a “fantasia” e a “imaginação”, a exemplo da poetização da vida em Novalis ou da proposta de praticar a poesia no surrealismo. São atividades ligadas ao prazer e ao jogo, devir sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da esfera estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse busca respaldo mítico no mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo modo de vida. Aí vem a parte que mais nos interessa. Ouçamos Marcuse:“A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno” (1955/1972, p. 155).Ou seja, na homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição à procriação. Este sexo produtivo é símbolo da captura da atividade sexual pelo princípio de utilidade social, deixando o prazer restrito ao lazer (como espécie de parceiro da canalização das energias sexuais para o trabalho). Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da procriação como uma “ressexualização do corpo” ou “uma ressurgência da sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da supremacia genital”. E o filósofo prossegue destacando o potencial transformador desse corpo, que levaria a uma “desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal” (p. 177).
Em outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última instância, uma “transformação social” mais profunda. Não precisa dizer que, nos anos de 1950, essa transformação era a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva sexual e erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a Civilização com o lema homossexual, como sugere Roberto Piva. É certo que a “ressexualização” do corpo não é sinônimo de homossexualismo. Mais o coito anal, mesmo quando em relações denominadas heterossexuais, é uma das formas de experimentação dos prazeres do corpo para além de uma finalidade útil. É “neste sentido”, como ressalta Piva no texto, que se pode pensar no quanto a vida sexual contribui para a transformação social ou a tal “derrubada” do capital.
É nesse tom político, artístico e mítico que o poeta aposta em todas as formas de amor, com especial acento aos contornos místicos do “amor-êxtase”. É por esse amor experimentado em todas as suas possibilidades que se vale lutar e morrer. É por essa vivência amorosa que se chega à “LIBERTAÇÃO”.
É interessante notar como Roberto Piva se inspira no movimento homossexual espanhol para desenvolver suas ideais sobre essa re-volição sexual. O poeta não estava atento apenas às discussões da esquerda, mas também àquela parte da esquerda ligada e este movimento específico. E mais, Roberto Piva se apoia naquela parte do movimento homossexual que, diferentes das tendências norte-americanas e mesmo brasileiras daquele período, entendia a revolução sexual como indissociável da superação da sociedade burguesa. O manifesto da Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC) de janeiro de 1978, por exemplo, coloca como primeiro objetivo: “La revolución sexual em el marco de La revolución social que rompa las actuales estructuras económicas Y sociopolíticas...” (FLHOC, p. 141).
Em suma, Roberto Piva parece desenvolver à sua maneira diversas das propostas de Charles Fourier e Hebert Marcuse– mas também Wilhelm Reich e Norman Brown. É nesse desenvolvimento da psicanálise em diálogo com a economia-política, da questão do trabalho atrelado à vida sexual, que Piva adentra em diversos de seus textos do período. É por ai que continuará a caminhar, mesmo quando romper com uma orientação próxima dos socialismos – como na imagem do “golpe de estado erótico” (1987/2009).
Pois bem. Aqui chegados talvez seja sugestiva uma pequena digressão. Surpreende quanto as ideias de Roberto Piva crítico ao comunismo são similares às suas ideias de quando era mais abertamente anticomunista. Vejamos.
A produção poética de Roberto Piva no início dos anos 1960 movia-se por um ímpeto imoral e erótico que o distanciavam das várias expressões do moralismo provinciano da cidade: “São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil? Até teus comunistas são mais puritanos do que padres” (1961/2005, p. 24). Essa mesma associação do comunismo com a moral cristã era tema das conversas de Roberto Piva com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, em 1962 – ambos muito influenciados pelas críticas de Nietzsche à compaixão com os pobres e o messianismo comunista como expressão da moralidade cristã. É essa “piedade” que surge como sentimento moral que une, novamente, cristãos e comunistas, em poema de Paranóia (1963): “as senhoras católicas são piedosas / os comunistas são piedosos / os comerciantes são piedosos / só eu não sou piedoso” (1963/2005, p. 41). Aqui a tensão: a crítica ao moralismo daquela parte da esquerda “que adora chorar na sopa pobre sua emoção masoquista” permanece em bases similares.
Ou seja, Roberto Piva mantém uma coerência em sua crítica a algumas expressões da esquerda. O fato de publicar em órgão revolucionário não o priva de retomar essas ideias. O poeta participa das discussões da esquerda, mas sempre como voz dissidente, sempre com a rebeldia que lhe é peculiar. Não é tanto um poeta comunista, mas um poeta em estado de guerra com o comunismo, sustentando sempre uma tensão revoltada.
Mas não é só. Se dermos uma olhada no registro maior de sua poética no início dos anos 1960, o postfácio de Piazzas (1964), veremos o quanto sua visão de mundo permanece com igual coerência.Este texto audacioso vincula o estado militarista brasileiro ao fascismo e denuncia torturas como o “Pau-de-Arara & o choque elétrico” em plena vigência do golpe militar! Nele, Roberto Piva faz uma análise da realidade baseada exatamente em Nietzsche e Freud, com enfoqueno corpo e na sexualidade. É o “cristianismo como escola do Suicídio do Corpo”, em uma articulação das ideias de Freud sobre o deus cristão como projeção da figura do Pai (que se estende a toda ordem autoritária) e a crítica de Nietzsche sobre o cristianismo como desprezador do corpo e da vida, criando “homens mais consumidos de ressentimento, auto-flageladores& submissos” (1964/2005, p. 128). É a mesma base dos textos que acabamos de ver, coincidindo até algumas expressões.
Como em 1978, o texto de 1964 contrapõe à cultura do “instinto de morte (repressão)” uma via poética e erótica como forma de “Libertação”: “Poesia como instrumento de Libertação Psicológica& Total”, poesia entendida como “verdadeiro ATO SEXUAL” (1964/2005, p. 129). Pode-se ainda dizer que a crítica ao realismo-socialista de Máximo Gorki lembra a menção do postfácio a Octavio Paz quando contrapõe o “estilo oficial” atrelado ao Estado e à “espontaneidade criadora”. Também as manifestações da direita integralista em sua veneração a Deus, Pátria e Família encontram eco na crítica de 1964 ao movimento católico conservador “Tradição, Família e Propriedade” e suas passeatas pela castidade.
Enfim, Roberto Piva participou ativamente do processo de denúncia do totalitarismoda ditadura brasileira, assim como das manifestações pela redemocratização do país. No entanto, sempre com sua força subversiva e rebelde, erótica e escandalosa – força que sustenta desde o início dos anos 1960.
As colaborações de Roberto Piva noVersus finalizam com o sugestivo texto “Anticomunismo não enche barriga” (1978f). O poeta ambienta uma narrativa delirante em torno do “anticomunismo” como um prato servido numa cidade do interior, espécie de símbolo da atitude fascista disseminada em diversas instituições sociais.É um título bastante irônico tendo em vista a trajetória posterior de Roberto Piva: anticomunista e sempre de barriga vazia.
Mas em suas participações no movimento homossexual no período, o poeta era conhecido como “proletário” e entusiasta dos feitos das guerrilhas comunistas. Vejamos.

“Poeta homossexual-proletário”
No dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, foi organizada uma semana de discussões sobre as chamadas “minorias”. A mesa de debates sobre o movimento homossexual era composta por Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan e Roberto Piva, dentre outros. Uma reportagem sobre o evento foi publicada no jornal Lampião da Esquina, pioneiro na reflexão sobre as questões sexuais e políticas a partir da perspectiva homoerótica. Lá pelas tantas, o encontro debatia o posicionamento do movimento gay no maniqueísmo político da época, apontando a discriminação dos homossexuais pela direita conservadora e pela esquerda moralista. Roberto Piva, apresentado como “poeta homossexual-proletário”, toma a palavra para dizer que nos países do “bloco socialista” – como Cuba, Moçambique e Leste Europeu – há grande “liberdade sexual” (Dantas, 1979).O poeta proletário acreditava na liberdade sexual nos países comunistas!
Eis um traço pouco conhecido de Roberto Piva. Como um dos “representantes” dos “homossexuais” e como “proletário”, o poeta tem exaustivamente divulgado seu livro Coxasno mesmo órgão (1979, p. 17), considerado pelo jornal como “o melhor exemplo da nossa poesia” – grifo meu. O próprio poeta assina uma resenha sobre o recém-lançado livro de Fernando Gabeira, “O que é isso, companheiro?” (Piva, 1979b, p. 16). Na edição de novembro, escreve como entusiasta do comunismo e como professor – “recomendei para os meus alunos”. Piva fala de quanto a leitura rememorou suas próprias vivências do período. A exemplo do famoso sequestro do embaixador americano que o fez ligar para os amigos e dizer “em breve estaremos no poder...”. Ou das passeatas na Rua Maria Antônia em 1968, entremeadas com “as bacanais com os secundaristas nos apartamentos da cidade”. 
É uma faceta de Piva que correspondia bem ao rótulo “poeta homossexual-proletário”. A participação em debates como representante dessa “minoria”, o enamoramento explícito com os feitos mais radicais das guerrilhas revolucionárias e a divulgação de sua poesia como o melhor exemplo de uma literatura homossexual.
É a sombra de Roberto Piva. Em seu livro Coxas, o personagem Pólen fazia amor com Luizinho, um adolescente vestido com uma camiseta com o punho fechado socialista no peito. Luizinho é morto por guarda que atira de um helicóptero do Citibank – num símbolo da participação estadunidense na ditadura brasileira e na matança dos comunistas. Pólen fica desnorteado, pois: “Luizinho era uma sombra no seu coração anarquista”. Pólen, como Piva, poliniza e polemiza, traz as sementes de uma nova vida encharcada de rebeldia. Pólen traz também o nome da revista inaugural do romantismo alemão, com todo seu ímpeto revoltado. Como este personagem, Roberto Piva flertou com o comunismo e assistiu sua morte, como uma sombra no coração anarquista. Foi justamente o fim da utopia revolucionária que levou Pólen à questão: “Por onde é preciso começar” (Piva, 1979).
Neste mesmo ano de 1979, quando foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli, Roberto Piva rompe com todas suas esperanças ligadas à atuação política em meios da esquerda e participações no movimento gay: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações” (1981/2006, p.115). Não é à toa que é o livro da anarquia como um modo de vida. Durante a década de 1980, Roberto Piva se lançou nessa anarquia que pode ser acompanhada a partir de algumas publicações nas revistas Artes: e Cerdos &Peces. Também é a década da ecologia na experiência poética de Roberto Piva: seus manifestos publicados no Boletim Arte e Pensamento Ecológico e na seção “sindicato da natureza” que mantinha na revista Chiclete com Banana permitem acompanhar essa atuação política.
Mas é em um material pouco estudado de Roberto Pivaque podemos observar as críticas ao movimento gay e ao comunismo. No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva recebe em seu apartamento o historiador Claudio Roberto da Silva, que estudava o movimento homossexual a partir da narrativa de histórias de vida de alguns ativistas. Entre eles, o poeta foi escolhido pelas suas colaborações no Lampião da Esquina e, durante algumas horas, falou sem parar sobre sua história de vida. Neste material ficam claras as críticas de Roberto Piva ao termo “homossexual” e aos movimentos de luta pelos direitos.
O alvo é a “questão de identidade” – para usar sua expressão. O poeta destaca que a “identidade” acaba por formar guetos gays,não permitindo a experiência sexual como alteridade. Para ele, a “invenção do modelo gaycaracterizou o estilo americano da homossexualidade”, eficiente para formar um mercado consumidor e advogar uma pretensa “liberdade sexual, concedida pelo poder” (Silva, 1998, p. 301).Vê-se como a crítica à identidade também tem reflexos no campo político. Roberto Piva rejeitava a postura subserviente de solicitar autorização do estado, via direitos civis, para o exercício livre da sexualidade – a tal “liberdade sexual, concedida pelo poder”. Como total rebelde e insubordinado a qualquer forma de autoridade, o poeta acreditava que a experimentação sexual deve ser batalhada pela pessoa e por ela conquistada – não consentida como regra imposta por força alheia.Além disso, o poeta considera a libido como algo flutuante e aberta a diversas expressões. Nesse sentido: “‘homossexualidade’ é um termo médico forjado em 1869 para dividir o corpo das pessoas. A medicina poderia assim exercer seu poder nefasto e o desejo seria o único qualificativo viável para a manifestação de tesão” (idem, p. 326). Em outras palavras, Roberto Piva observa na “homossexualidade” um discurso médico que procura fixar, categorizar e controlar a sexualidade dessas pessoas. Em suma, “gay” e “homossexual” seriam expressões de uma “identidade” que trancafia o potencial subversivo da sexualidade nas peias do mercado, da medicina e do Estado.
No depoimento do amigo Sergio Cohn (2012, p. 61) podemos ver a angústia de Roberto Piva ao ser convidado para uma homenagem na passeata do Orgulho Gay. O poeta achava absurdo, por exemplo, as reivindicações pelo casamento gay, entendidas por ele como forma de reprodução do matrimônio patriarcal e repressor. Roberto Piva declinou do convite.
É interessante notar o quanto Roberto Piva antecipa algumas das questões atualmente presentes nos movimentos ligados à diversidade sexual: dentre elas exatamente o atual questionamento queer às políticas identitárias.
Nessa mesma narrativa de 1994 estão todas as principais críticas de Roberto Piva ao comunismo: moralista como o cristianismo, totalitário como o fascismo; ou retrógrado como uma “natureza morta”. E acrescenta quanto a pederastia é rejeitada pelos comunistas e quão “perseguido” foi pelos intelectuais de esquerda. Chega a atribuir suas dificuldades financeiras a essa perseguição.
É um momento em que Roberto Piva se declara de direita: “Sou um cara ligado na direita sagrada. Não acredito em nenhum político da direita no Brasil” (Silva, 1998, p. 321). Sua direita sagrada incluiria Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Julius Evola, Dante Alighieri e D. H. Lawrence, personalidades que estariam ligadas à eclosão do sagrado em uma perspectiva aristocrática. A rejeição dos políticos de direita mantém o ímpeto rebelde e contestador que o acompanhou em toda sua trajetória.
É essa fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde, sempre inquieto. Uma “alma bailarina” experimentando novas possibilidades de vida sem temer as contradições. É aquele garoto que em 1957 fundou o Movimento Niilista, com Jorge Mautner e João Quartim de Moraes, influenciado por personagens de Fiódor Dostoiévsky, por uma leitura muito radical da “revolução violenta” de Mikhail Bakunin ou do “niilismo ativo” de Nietzsche, sem esquecer a revolta de Albert Camus. Ou aquele poeta entusiasta do rock’n’roll como reaparição do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo de 1970, que iria se formar em sociologia e desenvolver ligações com as ideias comunistas no final da década. Aquele poeta da anarquia e da ecologia da década de 1980, que se admite ligado à “direita” em 1990. É este mesmo poeta que a partir dos anos 2000 irá repetir sua opção pela “anarco-monarquia, desde 1957”!

Referências Bibliográficas
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*Ricardo Mendes Mattos é poeta, autor de Espraiar (2014) e Acaso Subversivo (2012), e doutorando na área de Psicologia da Arte (Universidade de São Paulo), com tese intitulada “Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos e delírios místicos”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br