Ricardo
Mendes Mattos*
Doutorando em Psicologia da Arte
(Universidade de São Paulo).
Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Resumo
Discute-se
a poesia engajada de Roberto Piva durante o período inicial
de redemocratização do país, no final da década de 1970. A partir de suas
publicações no jornal revolucionário Versus
e no órgão gay Lampião da Esquina,
reflete-se sobre a atuação política do poeta nos meios da esquerda e do
nascente movimento homossexual. Com isso, amplia-se a crítica de sua poesia
para além do anticomunismo veemente e das bravatas contra os movimentos de
direitos que caracterizaram sua trajetória nas últimas décadas.
Palavras-chave:
Roberto Piva; Poesia Contemporânea; Redemocratização; Queer.
Roberto
Piva: “gay-proletarian poet”
Abstract
This paper discusses the political poetry of Roberto
Piva during the initial period of Brazilian redemocratization. From his
publications in the newspapers “Versus”
and “Lampião da Esquina”, is reflected on the political activity of the poet in
the socialistsmedia and in thegay movement. With this, it broadens the critique
of Roberto Piva’s poetry beyond the anti-communism and his critique of the movement
of social rights that characterized his history in recent decades.
Keywords: Roberto Piva; Poetry; Redemocratization; Queer.
“Sou
comunista” – apresentava-se Roberto Piva, antes de ler um poema dedicado “aos
presos políticos do Brasil. Contra a tortura, pelas liberdades democráticas”
(1978a). Eram os recitais de 1977, organizados por Claudio Willer e Ruth
Escobar em homenagem a poetas ligados ao comunismo, como Pablo Neruda, ou
vítimas de Estados Totalitários, como Federico García Lorca. Tais atividades
políticas foram pioneiras nas manifestações para a redemocratização do país.
Roberto
Piva participava ativamente dos recitais, das passeatas e de alguns meios da
esquerda, como a Libelu (Liberdade e Luta) – grupo trotskista atuante no
movimento estudantil e ligado à Organização Socialista Internacionalista. Em
sua atuação no movimento gay, Roberto Piva podia ser visto como ativista em uma
mesa de debates sobre as “minorias”, na Universidade de São Paulo.
Os
poemas publicados nesse período apresentam um Roberto Piva muito diferente
daquele das últimas décadas, com cortantes bravatas anticomunistas e críticas
ao movimento homossexual. Certamente o poeta não quis ser lembrado por esse momento
de sua produção, pois não inclui nenhum desses poemas em suas Obras reunidas e chega mesmo a alterar
materiais que explicitassem essa relação com a esquerda. É o caso de um poema
do livro Abra os Olhos e Diga Ah!
(1976), em que o nome da revolucionária Rosa Luxemburgo, como consta na primeira
edição do livro e mesmo na antologia publicada pela editora L&PM (1985), é
substituído pelo do poeta italiano Dino Campana. Os poemas em que se
apresentava como “homossexual” também não foram incorporados à sua obra com
maior repercussão pública.
Suas
duras críticas ao comunismo e aos movimentos de luta por direitos sociais
acabaram lhe rendendo a pecha de reacionário ou conservador, como se houvesse
se eximido da atuação política durante o período da ditadura militar.
Daí
a importância de apresentar a poesia engajada de Roberto Piva em sintonia com a
crítica de esquerda e o nascente movimento homossexual nesse importante momento
da vida política brasileira. Para tanto, centrarei fogo nas publicações do
poeta no jornal revolucionário Versus
e no órgão gay Lampião da Esquina,
nos anos de 1978 e 1979, respectivamente.
Um estrangeiro na legião
O
ano de 1977 viu pulular as primeiras passeatas na cidade de São Paulo após o
AI-5 de 1968. Em uníssono, o coro dos manifestantes entoava palavras de ordem
pelo fim da ditadura. Mas havia uma voz dissonante esbravejando frases escandalosas:
“Esse pessoal acha que conhece o operário e sabe o que ele quer! Sabe nada! Eu
trepo com operário e eles não estão nem aí para essa discussão toda!” (Peres
Junior, 2011). Era Roberto Piva, frequentador de uma sauna na periferia da
cidade onde transava com garotos por ele considerados “proletários”. Se os
marxistas de plantão mantinham um vínculo com o operariado por meio do teórico
pertencimento a uma classe social, o poeta tinha vivência bem mais corporal.
Não por meio da abstração dos sujeitos da história e sua consciência de classe,
mas por penetração erótica sentida na carne. Não no palanque, mas na cama! Não
no chão de fábrica, mas na sauna! Para Roberto Piva não há fronteira entre o
erótico e o político.
Justamente
numa dessas passeatas de 1977 se fez o primeiro registro audiovisual do poeta, arremessando
frases inusitadas: “Eu tô sentindo que realmente a população foi lobotomizada.
Foi arrancada uma parte do cérebro da população e eles estão tentando repor
esta parte do cérebro. A única forma de repô-la é através da palavra – e da
palavra poética, que funda e ao mesmo tempo transforma o real” (Assombração
Urbana, 2004). É inusitada, pois o lugar comum era a conclamação pelos direitos
civis e políticos por meio do re-estabelecimento do Estado Democrático de Direito.
Daí o estranhamento da imagem delirante da lobotomia. Provavelmente, o poeta a
retira do espetáculo Gracias, Señor
(1972), uma criação coletiva do
Teatro Oficina de que gostava muito especialmente. No momento intitulado Aula de Esquizofrenia são exibidos
cérebros submetidos à lobotomia, prática cirúrgica comum no tratamento da
esquizofrenia até meados do século. Uma imagem que faz jus às intervenções
violentas contra os “desajustados” em nome da medicina, além de traduzir bem o
momento brasileiro calcado em torturas físicas. O enfrentamento dessa realidade
repressora não é pela via partidária ou por meio das instituições políticas
oficiais. Roberto Piva acredita na “palavra poética”. A potência revolucionária
da poesia é exaltada, num tom muito próximo daquele de Martin Heidegger (2008),
em seu famoso ensaio sobre Friedrich Hölderlin, por exemplo. A palavra poética,
para o filósofo alemão, funda o real à medida que nomeia e atribui sentido ao
que existe. Essa nomeação ocorre sempre no interior de um contexto histórico
que passa a fazer sentido exatamente a partir de sua fundação poética. Assim,
no limite, a palavra poética funda a própria história do homem. Não uma
história instaurada de uma vez por todas, pronta e acabada, mas, ao contrário,
uma história reinventada a cada momento em que é nomeada. A palavra poética
para Heidegger tem o poder de fundar um começo – a cada momento. Roberto Piva
acredita nessa possibilidade fundadora da palavra poética e sua potência de
(re)começar a história.
Nessas
passeatas uma questão fica muito clara: Roberto Piva participava das
manifestações pela redemocratização, mas como dissidência. Fazia-se presente
como rebelde, ora destruindo convicções consensuais, ora criando novas
possibilidades de compreensão e atuação. Participava não como militante de
partido ou movimento, mas como poeta instaurando o potencial transformador da
poesia. Qual a produção poética de Roberto Piva durante este período? Que novas
possibilidades de vida sua palavra poética funda?
Meditações de Emergência
Os
recitais políticos de Claudio Willer e Ruth Escobar deram o que falar. Sua
força mobilizadora atraiu simpatias da esquerda e logo foram classificados como
subversivos pelo Estado. Baixou a repressão. O delegado Romeu Tuma chegou a
proibir a realização de uma dessas leituras de poesia. O jornal Versus, de Marcos Faerman, interessou-se
pelo fato e o noticiou. O amor pela poesia trouxe grande afinidade entre ambos,
que redundou na contribuição de Willer como responsável por sua seção de
poesia.Por seu intermédio, Roberto Piva contribuiu regularmente com o jornal Versus durante quase todo o ano de 1978.Vejamos
seus poemas.
O MISSISSIPI NO
AMAZONAS
filmado em
tecnocolor
A cidade & sua estrutura de navio
japonês qualquer coisa como bambu & cheiro de sangue no ar de São Paulo
antes de ir prá Moóca dar aula até o saco virar de cansaço & gostaria de
ver aquela tribo maravilhosa de adolescentes proletários se dependurarem nos
cipós do Ocidente &aterrorizarem nos salões de banquetes como Tarzans
enquanto o Burguês-Inseto recolhe as asas & faz cocô branco de
susto-Impotência & úlceras pépticas na cristalização de química
imperfeita-purgatório-fêmea & bicha de boite & até que os atores criem
vergonha &re-apresentem Gracias Señor antes do circo pegar fogo sem o
torcicolo culposo de uma certa esquerda que adora chorar na sopa pobre sua
emoção masoquista chamada realismo-socialista (invenção dos anos de caduquice
de Gorki) & por isso mesmo eu sou pela re-volição do nosso quotidiano em
profundidade sem a larva telenovela cagando problemas de pequeno-burguês nos
nossos olhos & corações AMAR É BOM SEXO É BOM TRANSFORMAR O MUNDO É BOM
nada mais saco que a lógica irracional-formal codificadora da febre amarela
chamada CRISE consumismo de grilos de pessoas de energia que ninguém de alma
bailarina aguenta tem saco ou curte esse tipo de polícia superficial hippie que
se apossou em nível ideológico & corporal do país (1978b).
É
um poema característico da atuação política de Piva. O poeta se apresenta como
professor secundarista das escolas públicas da periferia da cidade. Um
trabalhador que utiliza o transporte público e se queixa do extremo cansaço. O
tom biográfico ainda deixa entrever as relações de Roberto Piva no período,
seja com o amigo Zé Celso e a influência das criações do Teatro Oficina, seja
pela presença do cinema (no subtítulo do poema), pois tinha como amigos os
cineastas Jairo Ferreira e Julio Bressane ligados ao melhor cinema de invenção
do período – conhecido como “cinema marginal”.
Mas
é principalmente um poeta entusiasta pela juventude com a qual convivia: a
“tribo maravilhosa de adolescentes proletários”. Essa mesma tribo surge como
mote de seu livro Coxas sex fiction &
delírios (1979a), composto neste período. Oriundos dos subúrbios da cidade,
esses jovens aparecem num tom heroico, em contraste com o cansaço do professor ou
com a atmosfera violenta da cidade.
Com
o termo “proletário” Piva introduz um recorte de classe e, portanto, uma
captura conceitual bem típica dos marxismos. Esses adolescentes surgem numa
figura ao mesmo tempo erótica e selvagem, o Tarzan, cuja força aterrorizadora é
contraposta à classe social antagônica: a burguesia e sua impotência. Não se
trata apenas da utilização das expressões “proletário” e “burguês”, mas de um
conflito social que atribui aos garotos a condição ativa e viril de transformar
o Ocidente, enquanto aos burgueses é reservado o medo de quem quer conservar a
realidade como está. É uma luta de classes, a partir de uma visão dialética da
história?
O
burguês é um híbrido de inseto medroso, câncer ulceroso e “bicha de boite”. Em
contraste à atividade dos adolescentes, o burguês é associado à fêmea com sua
postura passiva, além de estar associado às amenas figuras do purgatório – como
diria Piva sobre esta parte da Divina
Comédia, de Dante Alighieri, parte preterida em relação ao Inferno com suas
figuras potentes e maravilhosas. O adjetivo “fêmea” denotaria certa misoginia
do poeta? Não se pode afirmar, mas com certeza há uma crítica ferrenha as tais
“bichas de boite”, aquele público homossexual frequentador de casas noturnas
que o poeta vincula à burguesia. A imagem dos garotos ativos e burgueses
passivos é a um só tempo política e erótica. Responde ao espectro político e à
posição na cama.
Como
signo da ação política revoltada, Piva coloca a criação Gracias, Señor, do Teatro Oficina, proibida pela censura durante
sua temporada paulista de 1972. A atuação provocativa e licenciosa tira o tal
“espectador” de seu papel passivo e o incita (e excita) a uma ação combativa e
corporal. É esta forma de atuação política que o poeta vivencia, em
contraposição ao “torcicolo culposo”de uma esquerda choraminga e masoquista. A
imagem é ácida e muito bem humorada. Torcicolo como símbolo de um corpo
travado, mas também com dificuldade de olhar para os lados e ampliar os
horizontes. É um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade de quem se
compraz com a pobreza alheia. Roberto Piva talvez esteja salientando a atração cristã
pelos espoliados como impulso de negação da vida – como se vê nas críticas de
Nietzsche ao comunismo como rebento do cristianismo. Uma vez mais Roberto Piva
faz uma crítica política usando termos ligados à sexualidade: a “emoção
masoquista”. Para um leitor de autores da psicanálise, como Roberto Piva, o masoquismo
pode ser entendido como aquele laço entre a energia sexual e a agressividade voltado
passivamente para dentro. É um sujeito novamente ligado à passividade que se
autoflagela moralmente – e tem com isso prazer.
A
crítica de Piva à esta tal “esquerda” passa pelo seu excesso de moralismo que
atrofia o corpo. E está ligada ao realismo-socialista e a Máximo Gorki – o mesmo
autor da bravata “Exterminem os homossexuais, e o fascismo desaparecerá”. O escritor
russo foi consagrado após a Revolução de 1917 por obras encomendadas pelo
Estado para a formação ideológica do país socialista. É um símbolo forte da
arte manipulada por interesses partidários e estatais, subjugada a mero
instrumento de formação política. É o símbolo do poeta obrigado a escrever o
que determinava o Partido Comunista. Não se pretendia exterminar apenas os
homossexuais, mas qualquer espontaneidade criativa. É a esse comunismo
obediente à moral e ao partido que Piva rejeita. Mas o que o poeta propõe?
A
“re-volição” do cotidiano – aqui uma vontade de mudança que diverge da
“revolução”. Essa “re-volição” quer transformar o mundo na mesma medida em que
quer amar e transar. O elemento do amor sexual parece ser a via de
transformação social - diferente da revolução, restrita aos aspectos da
economia-política.
Além
do realismo-socialista, Roberto Piva rechaça a telenovela como proliferadora de
valores pequeno-burgueses e manipuladora dos comportamentos. O poeta, considerado
um dos precursores do que se veio a chamar “contra-cultura”, critica
frontalmente a “polícia hippie” que
teria se apossado do país. Veremos como tal crítica faz parte de uma postura
fortemente anti-imperialista de Roberto Piva, postura que talvez esteja
relacionada ao título do poema: as águas do grande rio estadunidense desaguando
no rio brasileiro.
Não
bastassem essas tensões com a esquerda e os hippies,
Roberto Piva lança mão de um toque nietzschiano, evidente na expressão “alma
bailarina”. A presença de Nietzsche é fundamental por dois motivos. Primeiro
porque é um filósofo muito crítico ao comunismo e, por isso, execrado pela esquerda.
Segundo porque a crítica ao moralismo da esquerda e sua negação do corpo
acompanha as ideias deste Anticristo.
A
imagem da dança é abundante e bastante aberta na obra deste filósofo e poeta.
Seu Zaratustra andava como bailarino e a dança aparece ora como o exercício do livre pensar
do filósofo ou como qualificativo de sua própria filosofia, ora como o próprio devir
da vida num fluxo vário sem qualquer finalidade. Dionísio figura também como um
deus que sabe dançar, especialmente quanto encarnado corporalmente nas almas
bailarinas das bacantes em êxtase. Pode-se dizer que a “alma bailarina” de que
fala Piva se refere à possibilidade de fluir na vida e nos pensamentos com
força e flexibilidade; com a leveza de variar os ritmos e se enlevar com
impulsos diversos. O movimento bailarino é o extremo oposto daquela fixação
moral do mundo dotado de uma finalidade como, por exemplo, o determinismo
dialético de uma revolução como superação dos antagonismos. A alma bailarina é
o avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de um corpo em gozo em uma orgia
para além do bem e do mal. É essa possibilidade de dançar através de várias
perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que o poeta contrapõe à ditadura
da conduta única do Moneyteísmo:
As desgraças do Moneyteísmo
para o Eg
o coração é um
meio meu coração frágil pássaro de vidro a roda do coração enroscou nas veias
& eu me transformo em boomerang meu amor ferido anjo diante de
vocês distribuindo panfletos & baixaremos todos na Tumba Eterna mesmo que no
alto de Santana São Paulo cidade & periferia cacarejem na solidão das
fábricas & o rio Tiête seja uma veia do corpo do meu amor uma ducha na
aurora de sorriso de chumbo & os liberais são fascistas em férias (obrigado
pela imagem Nando Ramos) que agora não tem nada a perder mas em 64 tinham &
apelaram & foram hipnotizados por Plínio Salgado que foi guindado ao posto de
ratazana cinzenta no Ministério da Educação ? engendrou a Moral & Cívica
(Civismo rima com Fascismo) Deus Pátria & Família redivivos para contrariar
os rabos loucos dos adolescentes prontos para o “sacrifício do mel” de que
falava o alucinado Nietzsche NÃO TENHA PIEDADE ALGUMA digo eu & amem a
pessoa amada até oxidarem os planetas & leiam Apollinaire bebendo uma
cervejinha gelada num caneco gelado & Fourier deveria andar de boca em boca
em forma de beijo postal sem que nossas minas de urânio (oh beijo de urânio!)
sejam debulhadas meus olhos desaparecem nas manhãs de inverno quando a
gravitação deixa de existir para um tênue sol se insinuar entre as páginas de
Raymond Lulle principalmente o Libre delamic et L’Amat carregado de elétrica
prosa de magia amorosa boa para esses tempos de hippilândia made in New York
City Que passa New York ? assim como os babosos bichos bichanas &cocotas
fortalecedores das circulações moneytárias do Sistema Capitalista Periférico AH
AHAH na dose certa na cara certa na dimensão certa de vossas covardias (1978c).
O
início do poema traz um imaginário do amor ferido repleto de simbologia mística,largamente
utilizada pelo poeta em seu livro Piazzas
(1964). Roberto Piva toma a palavra da periferia de São Paulo, do “alto de
Santana”, ressaltando sempre esse vínculo com o subúrbio. Intercala versos de
amor a um garoto com o contexto da cidade de São Paulo, cidade associada à “Tumba”
e à “solidão das fábricas”. O rio Tietê se funde nas veias do amante, numa
imagem do contexto sendo incorporado nos gestos das pessoas, como no “sorriso
de chumbo” – aqui mais uma imagem da situação violenta daquele tempo.
Roberto
Piva passa a criticar os liberais e sua participação no golpe militar. O
fascismo da direita é associado aos ideais integralistas de Plínio Salgado,
materializados na disciplina de “Educação Moral e Cívica” – obrigatória a
partir de 1969. É o culto à Deus, Pátria e Família como tripé do
conservadorismo moral que pretende adestrar os jovens.
Roberto
Piva contrapõe a este fascismo moral os “os rabos loucos dos adolescentes”
prontos ao “sacrifício do mel”. No trecho inicial do derradeiro livro de
Zaratustra, intitulado exatamente “Sacrifício do Mel” (Nietzsche, 1883-5/2010),
o sacrifício é feito para retirar os humanos da negra angústia e alçá-los às
felicidades da afirmação da potência da vida no “reino milenar de Zaratustra”.
Roberto Piva associa esse vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força
para amar sem qualquer piedade. Essas recomendações do poeta surgem num tom
mais panfletário e assumem uma feição hedonista, como na cerveja gelada bebida
durante uma leitura do poeta francês Guillaume Apollinaire.
A
aposta de Roberto Piva em uma transformação social por meio do amor sexual torna
fundamental a presença do profeta francês Charles Fourier. O erotismo da imagem
também é importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados na forma de
beijo – uma linguagem corporal e sexual. Qual a importância de Fourier nas
ideias de Roberto Piva?
A
mudança social proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão
da Paixão (Fourier, 1846). Os sistemas político, econômico e moral das
sociedades civilizadas estariam pautados no controle repressivo das paixões,
consideradas como um mal a ser extirpado. A partir desse denominador comum, Fourier
faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na monotonia matrimonial da
família burguesa, ou na hierarquização da produção econômica. Assim, sua utopia
revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o desenvolvimento
da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da autogestão
econômica. Ou seja, ao lado da
organização da produção pela via associativa e igualitária, sua utopia sugere a
criação de corporações amorosas que salientem inclusive a esfera pública e
festiva do amor nas orgias. Essa experiência do potencial transformador das
paixões sexuais é similar à “re-volição” proposta por Roberto Piva.
Esses
beijos de urânio enlevam o poeta para aquele momento em que a “gravitação deixa
de existir”. É o amor em êxtase, associado à “magia amorosa” do poeta, místico
e alquimista catalão Raimundo Lúlio (1232-1315). Se a referência a Fourier
destaca o potencial transformador do sexo, a presença de Lúlio enfatiza essa
relação mística com o amor. São esses traços que o poeta experimenta em
detrimento do modismo da “hippilândia made in New York”. Novamente o tom
anti-imperialista atrela parte dos homossexuais à burguesia, sob as
denominações pejorativas de “bichanas” e “cocotas”. Aqui as tais “bichas de
boite” parecem atreladas não apenas à burguesia, mas aos modismos da ideologia
capitalista estadunidense. São “bichanas” que fortalecem o “Sistema Capitalista
Periférico” com a importação de mercadorias e ideias sem qualquer crítica. O
poeta se ri dessa atitude conformista qualificada como covarde. Aqui o
trocadilho do termo “moneyteísmo”: não sugere apenas a veneração do dinheiro
como um deus, mas também atrela o capitalismo ao monoteísmo como tentativa de
impor um único modo de vida. É uma expressão aberta que contém, a um só tempo,
as críticas de Roberto Piva ao capital e ao cristianismo.
O
texto “Desgraças do Moneyteísmo” inicia uma seção intitulada “Meditações de
Emergência”, que Roberto Piva manteria no jornal Versus e na revista Singular
& Plural. Na edição seguinte, de julho de 1978, surge o seguinte poema:
mortikultura
O adolescente
que se liberta de 2.000 anos de superego bíblico-cristão & cai na vida já é
alguma coisa mas falta muito para dar a porrada no alvo certo no inimigo exato
& Nietzsche tinha razão ao dizer que os homens não acreditam mais em deus
mas se comportam como se acreditassem & o futebol & a tv globo estão aí
para não deixar Nietzsche mentir & esvaziar os bagos na sublimação morta da
perda de tempo a morte em vida adolescentes adultos crianças morrendo num canto
escuro da casa em meio aos cheiros familiares & se dispersando em pequenas
coisas ridículas & se drogando no vazio da negação do CORPO até cagar pedra
& perder o tesão de viver é preciso somente admitir morrer entre os braços
da pessoa amada (“qualquer maneira de amar vale apena”) morrer em pleno êxtase-orgasmo estrelas escorrendo da
boca vermelha aberta para os cometas do sexo oh manhã das manhãs molhadas com
amêndoas verdes renascer para esta opulência eu sou sua beleza eu sou seu
rei Davi deus adolescente da luz da manhã chovendo cravos vermelhos rumo
à LIBERTAÇÃO.
P.S. Em qualquer horário da manhã tarde ou noite os
passageiros sentados nos ônibus estão dormindo esmagados pelo capitalismo
selvagem que lhes tira o sangue e pele & a energia sexual um bagaço
generalizado testemunhando este período de barbárie e sexualidade infantil
sendo usada para movimentar a
engrenagem capitalista (ver Eros & Civilização H. Marcuse) neste sentido os
homossexuais espanhóis tem razão “El coito anal derruba el capital”. Senão
derruba não deixa de ser uma sugestão para ajudar a derrubada.(1978d).
A
juventude permanece como a preocupação do poema, exaltando os garotos que se
liberam do “superego” cristão e caem na vida. Num tom discursivo, Roberto Piva
critica o que considera uma cultura do instinto de morte, a mortikultura –
ressaltando o “k” ligado ao “kapitalismo”. É uma cultura calcada exatamente no
superego cristão, incubado no claustro privado da família nuclear burguesa. Ali
a TV, agora nomeada com uma emissora, novamente ocupa lugar de alienação na
veiculação dos valores burgueses e cristãos. Também o futebol se presta a este
serviço, numa alusão reincidente nesses poemas de Piva da Versus – a exemplo de passagem na qual este esporte é visto como “militarização
do corpo” (1978e).
A
mortikultura é a “negação do CORPO” e a perda do tesão pela vida. Expressões
como “superego”, “sublimação morta”, “energia sexual” e “sexualidade infantil”
não deixam dúvida quanto à referência psicanalítica dessas ideias. A menção a Hebert
Marcuse ganha importância exatamente por esse cruzamento da teoria
psicanalítica das pulsões com as aspirações revolucionárias de inspiração
marxista. A menção a Nietzsche em sua crítica à moral cristã compõe esse quadro
analítico, bastante representativo das referências de Roberto Piva para pensar
as contradições de seu contexto histórico.
A
morte em vida se dá pela captura do corpo e seu potencial erótico. A moralidade
de costumes é colocada como uma primeira forma de captura e se desenvolve na
crítica de Nietzsche ao cristianismo (1888/2007). Em linhas gerais, o filósofo
alemão associa o cristianismo à negação da vida terrena em prol de ideais ou
ídolos prostrados num porvir abstrato. É a negação do corpo e de todo o devir
por uma vontade de nada, ou seja, uma quietude inerte sem vida. Rejeita-se o
devir pelo dever, a partir da submissão a um tal “deus” que representa toda a
ordenação moral do mundo. Friedrich Nietzsche observa quanto, mesmo após a
“morte de Deus”, suas sombras ainda se fazem sentir em todo ideal ascético da
religião, da ciência, da arte e outras expressões da vida.
Essa
ordem moral do mundo é associada ao “superego” psicanalítico, que pode ser
entendido, resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções
sociais e suas repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção
na cultura o sujeito passa a ser atravessado pelas convenções na satisfação
imediata de seus impulsos. Os impulsos sexuais mais suscetíveis à repressão e
impedidos de uma descarga imediata vão encontrando espécies de objetos
substitutivos, especialmente em atividades produtivas, em um processo que se
denomina “sublimação”. É um movimento em que o impulso corporal do sexo, por
exemplo, se torna mais abstrato, mais “sublime”, mais “dessexualizado”. É a
negação da vida corporal similar àquela de Nietzsche. Roberto Piva considera
que nesta cultura do instinto de morte (mortikultura), as possibilidades de
descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de entretenimento que
alimentam ainda mais esse ciclo de moralidade: a “sublimação morta”. A potência
do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a vida sem tesão.
Herbert
Marcuse, em seu clássico Eros e a
Civilização, procura exatamente desenvolver a teoria freudiana das pulsões
em um plano político-revolucionário de superação da sociedade capitalista
repressiva. Este ousado frankfurtiano partia de uma crítica ao trabalho
alienado como forma de captura da energia sexual do indivíduo e atrofia de seu
potencial erótico – como aponta Roberto Piva em sua nota ao final do texto. No
entanto, diferente de Freud, Marcuse acreditava no trabalho alienado como
condicionado historicamente. Assim, o grau de desenvolvimento das forças
produtivas com sua automação liberaria o trabalhador a investir seus instintos
vitais em atividades distintas da alienação do trabalho capitalista. Daí a aposta
do filósofo em atividades nas quais o princípio da produtividade é substituído
pelo princípio do prazer. Marcuse enfatiza sobretudo a “fantasia” e a
“imaginação”, a exemplo da poetização da vida em Novalis ou da proposta de
praticar a poesia no surrealismo. São atividades ligadas ao prazer e ao jogo, devir
sensual de Eros que cria um outro modo de viver. São atividades da esfera
estética, na qual o prazer, a sensualidade, a beleza e a verdade caminham
juntos. Ao contrário do mito de Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse
busca respaldo mítico no mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo
modo de vida. Aí vem a parte que mais nos interessa. Ouçamos Marcuse:“A
tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como
Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros
mais pleno” (1955/1972, p. 155).Ou seja, na homossexualidade simbolizada por
Orfeu, Marcuse vê uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família
e sua restrição à procriação. Este sexo produtivo é símbolo da captura da
atividade sexual pelo princípio de utilidade social, deixando o prazer restrito
ao lazer (como espécie de parceiro da canalização das energias sexuais para o
trabalho). Marcuse considera a exploração dos prazeres do corpo para além da
procriação como uma “ressexualização do corpo” ou “uma ressurgência da
sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da supremacia genital”. E o
filósofo prossegue destacando o potencial transformador desse corpo, que
levaria a uma “desintegração das instituições em que foram organizadas as
relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e
patriarcal” (p. 177).
Em
outras palavras, a experiência de prazer do corpo, para além da ditadura
genital e matrimonial, é parte de uma liberação dos instintos vitais que
Marcuse considera, em última instância, uma “transformação social” mais
profunda. Não precisa dizer que, nos anos de 1950, essa transformação era a
própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva sexual e
erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a Civilização com o lema
homossexual, como sugere Roberto Piva. É certo que a “ressexualização” do corpo
não é sinônimo de homossexualismo. Mais o coito anal, mesmo quando em relações
denominadas heterossexuais, é uma das formas de experimentação dos prazeres do
corpo para além de uma finalidade útil. É “neste sentido”, como ressalta Piva
no texto, que se pode pensar no quanto a vida sexual contribui para a
transformação social ou a tal “derrubada” do capital.
É
nesse tom político, artístico e mítico que o poeta aposta em todas as formas de
amor, com especial acento aos contornos místicos do “amor-êxtase”. É por esse
amor experimentado em todas as suas possibilidades que se vale lutar e morrer.
É por essa vivência amorosa que se chega à “LIBERTAÇÃO”.
É
interessante notar como Roberto Piva se inspira no movimento homossexual
espanhol para desenvolver suas ideais sobre essa re-volição sexual. O poeta não
estava atento apenas às discussões da esquerda, mas também àquela parte da
esquerda ligada e este movimento específico. E mais, Roberto Piva se apoia
naquela parte do movimento homossexual que, diferentes das tendências
norte-americanas e mesmo brasileiras daquele período, entendia a revolução
sexual como indissociável da superação da sociedade burguesa. O manifesto da
Frente de Liberácion Homosexual de Castilla (FLHOC) de janeiro de 1978, por
exemplo, coloca como primeiro objetivo: “La revolución sexual em el marco de La
revolución social que rompa las actuales estructuras económicas Y
sociopolíticas...” (FLHOC, p. 141).
Em
suma, Roberto Piva parece desenvolver à sua maneira diversas das propostas de Charles
Fourier e Hebert Marcuse– mas também Wilhelm Reich e Norman Brown. É nesse
desenvolvimento da psicanálise em diálogo com a economia-política, da questão
do trabalho atrelado à vida sexual, que Piva adentra em diversos de seus textos
do período. É por ai que continuará a caminhar, mesmo quando romper com uma
orientação próxima dos socialismos – como na imagem do “golpe de estado erótico”
(1987/2009).
Pois
bem. Aqui chegados talvez seja sugestiva uma pequena digressão. Surpreende quanto
as ideias de Roberto Piva crítico ao comunismo são similares às suas ideias de
quando era mais abertamente anticomunista. Vejamos.
A
produção poética de Roberto Piva no início dos anos 1960 movia-se por um ímpeto
imoral e erótico que o distanciavam das várias expressões do moralismo
provinciano da cidade: “São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do
Brasil? Até teus comunistas são mais puritanos do que padres” (1961/2005, p.
24). Essa mesma associação do comunismo com a moral cristã era tema das
conversas de Roberto Piva com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, em 1962 –
ambos muito influenciados pelas críticas de Nietzsche à compaixão com os pobres
e o messianismo comunista como expressão da moralidade cristã. É essa “piedade”
que surge como sentimento moral que une, novamente, cristãos e comunistas, em
poema de Paranóia (1963): “as
senhoras católicas são piedosas / os comunistas são piedosos / os comerciantes
são piedosos / só eu não sou piedoso” (1963/2005, p. 41). Aqui a tensão: a
crítica ao moralismo daquela parte da esquerda “que adora chorar na sopa pobre
sua emoção masoquista” permanece em bases similares.
Ou
seja, Roberto Piva mantém uma coerência em sua crítica a algumas expressões da
esquerda. O fato de publicar em órgão revolucionário não o priva de retomar
essas ideias. O poeta participa das discussões da esquerda, mas sempre como voz
dissidente, sempre com a rebeldia que lhe é peculiar. Não é tanto um poeta
comunista, mas um poeta em estado de guerra com o comunismo, sustentando sempre
uma tensão revoltada.
Mas
não é só. Se dermos uma olhada no registro maior de sua poética no início dos
anos 1960, o postfácio de Piazzas
(1964), veremos o quanto sua visão de mundo permanece com igual coerência.Este
texto audacioso vincula o estado militarista brasileiro ao fascismo e denuncia
torturas como o “Pau-de-Arara & o choque elétrico” em plena vigência do
golpe militar! Nele, Roberto Piva faz uma análise da realidade baseada
exatamente em Nietzsche e Freud, com enfoqueno corpo e na sexualidade. É o
“cristianismo como escola do Suicídio do Corpo”, em uma articulação das ideias
de Freud sobre o deus cristão como projeção da figura do Pai (que se estende a
toda ordem autoritária) e a crítica de Nietzsche sobre o cristianismo como
desprezador do corpo e da vida, criando “homens mais consumidos de
ressentimento, auto-flageladores& submissos” (1964/2005, p. 128). É a mesma
base dos textos que acabamos de ver, coincidindo até algumas expressões.
Como
em 1978, o texto de 1964 contrapõe à cultura do “instinto de morte (repressão)”
uma via poética e erótica como forma de “Libertação”: “Poesia como instrumento
de Libertação Psicológica& Total”, poesia entendida como “verdadeiro ATO
SEXUAL” (1964/2005, p. 129). Pode-se ainda dizer que a crítica ao
realismo-socialista de Máximo Gorki lembra a menção do postfácio a Octavio Paz
quando contrapõe o “estilo oficial” atrelado ao Estado e à “espontaneidade
criadora”. Também as manifestações da direita integralista em sua veneração a
Deus, Pátria e Família encontram eco na crítica de 1964 ao movimento católico
conservador “Tradição, Família e Propriedade” e suas passeatas pela castidade.
Enfim,
Roberto Piva participou ativamente do processo de denúncia do totalitarismoda
ditadura brasileira, assim como das manifestações pela redemocratização do
país. No entanto, sempre com sua força subversiva e rebelde, erótica e
escandalosa – força que sustenta desde o início dos anos 1960.
As
colaborações de Roberto Piva noVersus
finalizam com o sugestivo texto “Anticomunismo não enche barriga” (1978f). O
poeta ambienta uma narrativa delirante em torno do “anticomunismo” como um
prato servido numa cidade do interior, espécie de símbolo da atitude fascista
disseminada em diversas instituições sociais.É um título bastante irônico tendo
em vista a trajetória posterior de Roberto Piva: anticomunista e sempre de
barriga vazia.
Mas
em suas participações no movimento homossexual no período, o poeta era
conhecido como “proletário” e entusiasta dos feitos das guerrilhas comunistas.
Vejamos.
“Poeta homossexual-proletário”
No
dia 8 de fevereiro de 1979, na Universidade de São Paulo, foi organizada uma
semana de discussões sobre as chamadas “minorias”. A mesa de debates sobre o movimento
homossexual era composta por Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan e Roberto
Piva, dentre outros. Uma reportagem sobre o evento foi publicada no jornal Lampião da Esquina, pioneiro na reflexão
sobre as questões sexuais e políticas a partir da perspectiva homoerótica. Lá
pelas tantas, o encontro debatia o posicionamento do movimento gay no maniqueísmo político da época,
apontando a discriminação dos homossexuais pela direita conservadora e pela
esquerda moralista. Roberto Piva, apresentado como “poeta
homossexual-proletário”, toma a palavra para dizer que nos países do “bloco
socialista” – como Cuba, Moçambique e Leste Europeu – há grande “liberdade
sexual” (Dantas, 1979).O poeta proletário acreditava na liberdade sexual nos
países comunistas!
Eis
um traço pouco conhecido de Roberto Piva. Como um dos “representantes” dos
“homossexuais” e como “proletário”, o poeta tem exaustivamente divulgado seu
livro Coxasno mesmo órgão (1979, p.
17), considerado pelo jornal como “o
melhor exemplo da nossa poesia” –
grifo meu. O próprio poeta assina uma resenha sobre o recém-lançado livro de
Fernando Gabeira, “O que é isso, companheiro?” (Piva, 1979b, p. 16). Na edição
de novembro, escreve como entusiasta do comunismo e como professor –
“recomendei para os meus alunos”. Piva fala de quanto a leitura rememorou suas próprias
vivências do período. A exemplo do famoso sequestro do embaixador americano que
o fez ligar para os amigos e dizer “em breve estaremos no poder...”. Ou das
passeatas na Rua Maria Antônia em 1968, entremeadas com “as bacanais com os
secundaristas nos apartamentos da cidade”.
É
uma faceta de Piva que correspondia bem ao rótulo “poeta
homossexual-proletário”. A participação em debates como representante dessa
“minoria”, o enamoramento explícito com os feitos mais radicais das guerrilhas
revolucionárias e a divulgação de sua poesia como o melhor exemplo de uma
literatura homossexual.
É
a sombra de Roberto Piva. Em seu livro Coxas,
o personagem Pólen fazia amor com Luizinho, um adolescente vestido com uma
camiseta com o punho fechado socialista no peito. Luizinho é morto por guarda
que atira de um helicóptero do Citibank – num símbolo da participação
estadunidense na ditadura brasileira e na matança dos comunistas. Pólen fica
desnorteado, pois: “Luizinho era uma sombra no seu coração anarquista”. Pólen,
como Piva, poliniza e polemiza, traz as sementes de uma nova vida encharcada de
rebeldia. Pólen traz também o nome da revista inaugural do romantismo alemão, com
todo seu ímpeto revoltado. Como este personagem, Roberto Piva flertou com o
comunismo e assistiu sua morte, como uma sombra no coração anarquista. Foi
justamente o fim da utopia revolucionária que levou Pólen à questão: “Por onde
é preciso começar” (Piva, 1979).
Neste
mesmo ano de 1979, quando foram escritos os versos de 20 poemas com brócoli, Roberto Piva rompe com todas suas esperanças
ligadas à atuação política em meios da esquerda e participações no movimento gay: “eu abandonei o passado a esperança
/ a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das
futuras / combinações” (1981/2006, p.115). Não é à toa que é o livro da
anarquia como um modo de vida. Durante a década de 1980, Roberto Piva se lançou
nessa anarquia que pode ser acompanhada a partir de algumas publicações nas
revistas Artes: e Cerdos &Peces. Também é a década da
ecologia na experiência poética de Roberto Piva: seus manifestos publicados no Boletim Arte e Pensamento Ecológico e na
seção “sindicato da natureza” que mantinha na revista Chiclete com Banana permitem acompanhar essa atuação política.
Mas
é em um material pouco estudado de Roberto Pivaque podemos observar as críticas
ao movimento gay e ao comunismo. No dia 21 de fevereiro de 1994, Roberto Piva
recebe em seu apartamento o historiador Claudio Roberto da Silva, que estudava
o movimento homossexual a partir da narrativa de histórias de vida de alguns
ativistas. Entre eles, o poeta foi escolhido pelas suas colaborações no Lampião da Esquina e, durante algumas
horas, falou sem parar sobre sua história de vida. Neste material ficam claras
as críticas de Roberto Piva ao termo “homossexual” e aos movimentos de luta
pelos direitos.
O
alvo é a “questão de identidade” – para usar sua expressão. O poeta destaca que
a “identidade” acaba por formar guetos gays,não permitindo a experiência sexual como alteridade.
Para ele, a “invenção do modelo gaycaracterizou o estilo americano da homossexualidade”, eficiente
para formar um mercado consumidor e advogar uma pretensa “liberdade sexual,
concedida pelo poder” (Silva, 1998, p. 301).Vê-se como a crítica à identidade também tem reflexos no campo político.
Roberto Piva rejeitava a postura subserviente de solicitar autorização do
estado, via direitos civis, para o exercício livre da sexualidade – a tal
“liberdade sexual, concedida pelo poder”. Como total rebelde e insubordinado a
qualquer forma de autoridade, o poeta acreditava que a experimentação sexual
deve ser batalhada pela pessoa e por ela conquistada – não consentida como
regra imposta por força alheia.Além disso, o poeta
considera a libido como algo flutuante e aberta a diversas expressões. Nesse
sentido: “‘homossexualidade’ é um termo médico forjado em 1869 para dividir o
corpo das pessoas. A medicina poderia assim exercer seu poder nefasto e o
desejo seria o único qualificativo viável para a manifestação de tesão” (idem,
p. 326). Em outras palavras, Roberto Piva observa na “homossexualidade” um
discurso médico que procura fixar, categorizar e controlar a sexualidade dessas
pessoas. Em suma, “gay” e “homossexual” seriam expressões de uma “identidade”
que trancafia o potencial subversivo da sexualidade nas peias do mercado, da
medicina e do Estado.
No depoimento do amigo Sergio Cohn (2012, p. 61) podemos
ver a angústia de Roberto Piva ao ser convidado para uma homenagem na passeata
do Orgulho Gay. O poeta achava absurdo, por exemplo, as reivindicações pelo
casamento gay, entendidas por ele
como forma de reprodução do matrimônio patriarcal e repressor. Roberto Piva
declinou do convite.
É
interessante notar o quanto Roberto Piva antecipa algumas das questões
atualmente presentes nos movimentos ligados à diversidade sexual: dentre elas
exatamente o atual questionamento queer
às políticas identitárias.
Nessa
mesma narrativa de 1994 estão todas as principais críticas de Roberto Piva ao
comunismo: moralista como o cristianismo, totalitário como o fascismo; ou
retrógrado como uma “natureza morta”. E acrescenta quanto a pederastia é
rejeitada pelos comunistas e quão “perseguido” foi pelos intelectuais de
esquerda. Chega a atribuir suas dificuldades financeiras a essa perseguição.
É
um momento em que Roberto Piva se declara de direita: “Sou um
cara ligado na direita sagrada. Não acredito em nenhum político da direita no
Brasil” (Silva,
1998, p. 321).
Sua direita sagrada incluiria Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Julius Evola,
Dante Alighieri e D. H. Lawrence, personalidades que estariam ligadas à eclosão
do sagrado em uma perspectiva aristocrática. A rejeição dos políticos de direita
mantém o ímpeto rebelde e contestador que o acompanhou em toda sua trajetória.
É essa
fluidez nas questões políticas que caracteriza Roberto Piva: sempre rebelde,
sempre inquieto. Uma “alma bailarina” experimentando novas possibilidades de vida
sem temer as contradições. É aquele garoto que em 1957 fundou o Movimento
Niilista, com Jorge Mautner e João Quartim de Moraes, influenciado por personagens
de Fiódor Dostoiévsky, por uma leitura muito radical da “revolução violenta” de
Mikhail Bakunin ou do “niilismo ativo” de Nietzsche, sem esquecer a revolta de Albert
Camus. Ou aquele poeta entusiasta do rock’n’roll como reaparição do espírito
dionisíaco no mundo contemporâneo de 1970, que iria se formar em sociologia e
desenvolver ligações com as ideias comunistas no final da década. Aquele poeta
da anarquia e da ecologia da década de 1980, que se admite ligado à “direita”
em 1990. É este mesmo poeta que a partir dos anos 2000 irá repetir sua opção
pela “anarco-monarquia, desde 1957”!
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História Social, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
*Ricardo
Mendes Mattos é poeta, autor de Espraiar (2014)
e Acaso Subversivo (2012), e
doutorando na área de Psicologia da Arte (Universidade de São Paulo), com tese
intitulada “Roberto Piva: derivas políticas, devires eróticos e delírios
místicos”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP).
Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br