ENTRE MITSI E COCOTES: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM 'CORONEL DE BARRANCO'




Jamescley Almeida de Souza
Graduado em Letras – Língua Inglesa (UNINORTE)


RESUMO:
Em Coronel de Barranco, a representação da mulher encontra-se reduzida a dois estereótipos triviais: esposa e prostituta. O romance de Cláudio de Araújo Lima não consegue desprendê-la dessas duas imagens comezinhas marcantes na literatura. Sem apresentar entretons, todo o mundo feminino fica polarizado nesses dois lugares-comuns. Essa simbolização contrasta, por exemplo, com a do homem, disperso em copiosos matizes sociais. Esse fato que pode ser explicado pelo forte domínio masculino na produção literária, ao contrário da mulher, que somente depois começou a se autorrepresentar. Apontando para sombras dessa representação na literatura, este artigo tem como objetivo mostrar a representação feminina em Coronel de Barranco, bem como tentar responder por que a sua presença era terminantemente proibida nos seringais.
Palavras-chave: Mulher. Representação. Coronel de Barranco.

ABSTRACT:
In Coronel de Barranco the woman representation is reduced to two trivial stereotypes: wife and prostitute. Cláudio de Araújo Lima’s novel does not achieve to distance woman from these two common and expressive images. Without presenting degrees of color, the entire female world is polarized between these two clichés. This symbolization contrasts, for instance, with that of man, who is met dispersed in abundant social shades. This fact can be explained by the strong male control of literary production, unlike woman who started to represent herself only afterward. Pointing out signs of that stereotypes in literature, this article aims to show the female representation in Coronel de Barranco, as well as trying to reply why her presence was categorically prohibited in rubber tree plantations.
Keywords: Woman. Representation. Coronel de Barranco.


Introdução

A literatura é um campo privilegiado de representação do feminino (SCHWANTES, 2006). Por meio dela transitam imagens, símbolos e estereótipos criados à medida que a literatura funciona como reflexo das relações sociais (ALTAMIRANO; SARLO, 1980). Essas imagens ajudam a formar o imaginário social de um povo. Definido, em sentido específico, como o “conjunto de representações, crenças, desejos, sentimentos, através dos quais um indivíduo ou um grupo de indivíduos vê a realidade e a si mesmo” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001), um imaginário auxilia na visão da realidade. Aí a razão de a literatura ser uma forma de acesso privilegiado ao imaginário de diferentes épocas (MENDES, 2012). É por meio dela, por exemplo, que se descobre que a identidade da mulher moçambicana, assim como a de mulheres de outras sociedades africanas, é ligada à imagem da mulher-mãe, a geradora da vida, que cria e cuida dos filhos, personificando a terra, a capacidade de gerar o novo homem.
Em Coronel de Barranco, o imaginário do homem amazônico está representado por um mosaico de discursos e de personagens, como o seringueiro, o seringalista, o caboclo, o nordestino, o dono de casa aviadora, o comendador etc. Os matizes sociais pelos quais se dispersa a figura masculina são consideráveis, o que já não acontece com a feminina. Parte integrante desse mesmo mosaico, a mulher parece não se afastar dos estereótipos comuns empregados na literatura de autoria masculina para retratá-la: esposa e prostituta. Aderindo à história das mulheres contada pelos homens, Coronel de Barranco se recusa a mostrar exceção a essa regra, não deixa entrever gradação de cores, entretons, ou classificação intermediária nessa divisão simplista. Na obra, as mulheres ou são Mitsi — esposa — ou são “francesas e polacas” — as cocotas de luxo da pensão “Floreaux” em Manaus.
O objetivo desse trabalho é mostrar a representação feminina no romance Coronel de Barranco. Ao delinear exemplos de representação da mulher na literatura, o trabalho procurará descrever como é representada a mulher no romance, bem como tentará responder por que a sua presença era terminantemente “proibida” nos seringais.
Coronel de Barranco é um romance histórico-documental publicado em 1970 por Cláudio de Araújo Lima. Sua narrativa abrange cerca de meio século do passado amazônico, partindo de 1876 e indo até 1926. É uma reconstituição da cultura da sociedade amazônica durante o apogeu do primeiro ciclo da borracha. Nessa obra fundamental da literatura amazônica, traz-se à baila a poética do homem amazônico em sua dura realidade pela sobrevivência nos seringais da região (SOUZA; LOURO, 2014). Mostra uma Amazônia em dicotomia, girando em torno da riqueza produzida pela borracha: de um lado os exploradores — seringalistas, casas aviadoras, indústrias do ramo do látex — e de outro, os explorados — o seringueiro e a sua súcia, que também anseia por andar de “terno branco, chapéu chileno, relógio de algibeira e bengala”. Transitando entre essas duas fronteiras está Matias, o narrador, que não é seringueiro nem seringalista (MENDES, 2012). Ele é o elo entre esses dois mundos.

Sombras da representação feminina na literatura

É Esther Vilar, na obra que polarizou o universo feminino nos idos de 1970 O Homem Domado —, quem diz que é relativamente recente o fato de a mulher saber ler e escrever. Barreiras culturas, em sua grande maioria impostas por sociedades patriarcais, permitiram que o “sexo belo” somente viesse a dominar a escrita e a leitura há pouco tempo. Mecanismos de exclusão como esses têm sido estudados por teóricas feministas francesas e angloamericanas, mas longe ainda de um consenso (SCHWANTES, 2006). É razoável até afirmar que a história da literatura é uma história construída pelo homem, uma história de autoria masculina. Como lembra Bourdieu (1983), “a língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos”. Daí os homens terem se apropriado de forma tão categórica do poder que emana da língua.
A literatura da maioria das nações teve sua origem com “pais”. A palavra pátria, apesar de ser tomada como substantivo feminino em português e em muitas outras línguas (motherland, em inglês), deriva de pater que, em grego, quer dizer pai (MULDER et al., 2005). Assim, como ressalta Carpeaux (2011), o pai da literatura inglesa será Geofrey Chaucer (1340-1400); o da Itália, Guido Cavalcanti (1255-1300), o da Dinamarca, Arrebo (1587-1637) e o da literatura russa moderna, Gogol (1809-1852). A grande maioria dos livros sagrados também é de autoria masculina. O livro judaico-cristão, conquanto conte a história de grandes mulheres, foi inteiramente escrito por homens. E o mesmo se pode dizer em relação aos livros das outras grandes religiões, como o islamismo e o hinduísmo. Daí Schwantes (2006) apontar que “um fato incontestável, com o qual a pesquisadora de literatura de autoria feminina se defronta, é o apagamento da produção literária feminina”.
A ausência da mulher no leme autoral da literatura permitiu que ficasse ao bel-prazer do homem a forma como representá-la na arte. A literatura, mesmo sendo a carreira artística mais largamente exercida por mulheres (SCHWANTES, 2006), ao homem, pois, coube a tarefa de se posicionar diante do belo sexo, de mirar-lhe os mistérios, de tentar decifrá-lo e de registrá-lo nessa arte. Como Édipo diante da esfinge, assim ele tenta, pois, traduzir os enigmas femininos e simbolizá-los na literatura. Essa simbolização, contudo, salvo raríssimas exceções ao longo da história, sempre esteve longe de corresponder à realidade. Quase sempre apagando entretons que compõem o caráter feminino, o homem facilmente descambou para os extremos nessa prática de significação. Ora ele a pinta como deusa, como ser inatingível, à maneira de Pandora — a mulher ideal do mito hesiódico (BRANDÃO, 1986); e ora a pinta como prostituta, escrava, demoníaca, realizadora de suas fantasias e desejos sexuais. Alexandre Hardy (1570-1632), por exemplo, criador do teatro francês, via as mulheres como vítima do instinto sexual do homem (CARPEAUX, 2011). Na França, o mestre da nuance, “o Leibniz do amor”, o maior representante do rococó literário, Pierre de Marivaux (1688-1763), mostra a mulher dirigindo o jogo dos sexos, na eterna luta entre os gêneros. Daí que — sempre dualista — a construção da imagem da mulher pela voz masculina resultou mais em silenciamento do que em compreensão da condição feminina. Como Sófocles ([V a.C.] 2005), incrivelmente, faz Édipo dizer: “Eu, Édipo, impus silêncio à terrível Esfinge”.
De acordo com a mitologia grega, a primeira mulher foi Pandora. Feita no céu, cada deus contribuiu com alguma coisa para aperfeiçoá-la. Vênus deu-lhe a beleza; Mercúrio, a persuasão; e Apolo, a música. “Assim dotada, a mulher foi mandada à Terra e oferecida a Epimeteu, que de boa vontade a aceitou, embora advertido pelo irmão para ter cuidado com Júpiter e seus presentes” (BULFINCH, 2002). Mais tarde, Pandora abre a caixa que o marido tinha em casa, em que se guardavam os males e as pragas que ainda não tinham vindo ao mundo e atingido os mortais. Hesíodo ([VII a.C.] 1995), em Teogonia, apresenta, assim, a mulher como o “mal tão belo”, como o “flagelo terrível” e ao mesmo tempo “maravilhoso, revestido pelos deuses de atrativos e de graça. Raça maldita, mas imprescindível ao homem” (BRANDÃO, 1986).
Ainda com os gregos, “o mais trágico dos poetas” — Eurípedes (480-406 a.C.) — tem nas personagens femininas as suas maiores criações: Fedra, Ifigênia, Electra, Medéia e Alceste, quase todas envolvidas em conflitos sexuais (CARPEAUX, 2011). A explicação é que, no imaginário do homem comum, a mulher sempre esteve associada à Terra, que recebe as sementes — semen virile —, e o trabalho agrícola é o símbolo da união conjugal (ELIADE, 1992). “Vossas mulheres são como campos para vós”, diz o sagrado Corão.
Na literatura latina, Cátulo (84-54 a.C.) também desliza para a erotização da mulher. Suas elegias, como grande autor lírico, percorrem desde a simples observação da beleza natural da mulher até às características mais amargas e contundentes portadas pelas mulheres de “vida fácil” em Roma (MARTINS, 2009). A mulher em Cátulo, Lésbia, parece também transitar entre os dois polos batidos da representação feminina pela visão do homem. Convém salientar que o elegíaco romano é o autor da famosa expressão “Odeio e amo”, e que Lésbia, uma amante convencional em seus poemas, foi uma mulher real que o fez sofrer amargamente. Como um erótico inveterado, Cátulo canta a alegria ébria da noite de núpcias em “Hymen, O Hymen ades, O Hymenaee!” (CARPEAUX, 2011), além de convidar à paixão poderosa, como aparece no Poema 5, em tradução de Oliva Neto (1996):

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
E aos rumores dos velhos mais severos,
A todos, voz nem vez vamos dar. Sois
Podem morrer ou renascer, mas nós
Quando breve morrer a nossa luz,
Perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
Muitos mil, depois outros sem fim, dá
Mais mil ainda e enfim mais cem então
Quando beijos beijarmos (aos milhares!)
Vamos perder a conta, confundir,
P’ra que infeliz nenhum possa invejar,
Se de tantos souber, tão longos beijos.

Ovídio (43a.C.-17d.C.), o mais sentimental entre os elegíacos romanos, também inundou seus poemas de erotismo (MARTINS, 2009). Houve, inclusive, quem quisesse “purificar” os seus textos, na tentativa de torná-los mais morais e apreciados na escola (CARPEAUX, 2011). Entretanto, é justamente o erotismo e o culto à mulher que faz Ovídio cair na graça e na preferência de seus leitores e lança o autor para o Monte Olimpo da literatura. O jovem poeta romano sobrevive porque decidiu cantar, com seu verdadeiro nome, episódios amorosos e fazer da elegia erótica romana a sua vitrine.
Hábil narrador em verso admirado por Dante (1265-1321) e por Chaucer, Juvenal (ca. 60-140d.C.) fala da lascívia das mulheres em suas sátiras. Na Itália, o poema De contempto mundi (ca. 1140) está cheio de eloquência terrível contra a mulher: “femina pérfida, femina foetida”. Alfonso Martínez de Toledo (1398-1470), pretendendo acabar com o amor profano para chegar ao puro amor de Deus, também redige sátiras contra as mulheres em Tratado contra las mujeres ó Reprobación. Essas sátiras medievais contra o público feminino parecem apontar para uma via média no dualismo feminino, uma espécie de misoginia, em especial, naqueles que eram obrigados a viver em ascese forçada.
Giovanni Boccaccio (1313-1375), com quem nasce a prosa em língua italiana, encheu a literatura do “Trecento” de panfleto violento, rancoroso, até nojento nos pormenores, uma das típicas sátiras medievais contra as mulheres. Em parte seguindo as pisadas do desgosto lascivo de clérigos medievais, que viviam em celibato forçado, as personagens mulheres do autor mais traduzido do século XV se reuniam fora dos muros da cidade, não para rezar, mas para contar histórias sem ascese alguma, sem disciplina ou autocontrole do corpo. Daí se polarizar Boccaccio de Dante. Este, em A Divina Comédia, platonizou seu amor por Beatriz, a empírea musa que o guiou pelo Céu; enquanto aquele, no que respeitava à mulher, não conseguia levar nada a sério, com exceção do prazer proporcionado pelo sexo. Como diz Carpeaux (2011), “não há Céu por cima do mundo de Boccaccio”.
Mas a mulher também foi divinizada e colocada no templo. François Villon (1431-1464), clérigo da Universidade de Paris, cantou a Virgem e a vida pastoril, e Maurice Scève (1505-1564), em sua obra Délie (1544), entregou a “maior declaração de amor que já se fez a uma mulher” e a “maior meditação poética em língua francesa” que o mundo já viu. Coventry Patmore (1823-1896) pulverizou todo conflito erótico entre homem e mulher no poema The angel in the House (1854) e glorificou o matrimônio, ficando conhecido, entre os ingleses, como o “poeta do amor conjugal. Já Maquiavel (1469-1527), conhecido por seu O Príncipe, é a própria encarnação do simbolismo dualista da mulher pela visão masculina. Em sua obra La Mandragola (1524), o único teórico político que foi ao mesmo tempo um grande humorista exibe os dois polos na comédia do marido que, buscando um remédio para conseguir ter um filho, é levado a introduzir o amante de sua mulher no quarto de dormir dela (CARPEAUX, 2011). É possível ver, lado a lado, nessa grande comédia da literatura universal, a imagem feminina da esposa e da prostituta.
No teatro espanhol, Francisco Rojas (1607-1648) exibe a independência moral da mulher. Na Inglaterra, Middleton (1570-1627) — o maior mestre da psicologia feminina entre os elisabetanos — fala da traição repentina de uma mulher que sucumbe à sedução em Women Beware Women. John Donne (1572-1631), conhecido como “advocatus diaboli”, defendia em seus poemas, ao lado do suicídio e do riso, a infidelidade erótica como supremo encanto da mulher. Basta dizer que a sua poesia erótica é considerada a mais original do mundo. E da obra que constitui o documento mais singular da literatura inglesa — Diary, de Samuel Pepys (1633-1703) — fluem orgias desenfreadas, na mais completa auto-revelação de qualquer homem em qualquer época e qualquer literatura (CARPEAUX, 2011).
Na França, as principais personagens de Racine (1639-1699) são todas mulheres: Hermione, Bérénice, Agripine, Roxane, Monique, Phèdre, Athalie. Por serem mais emotivas do que os homens, as mulheres exprimem suas paixões com gestos verbais mais vivos, de modo que se tornam melhor representáveis no palco. Para Balzac (1594-1654), apontado como o escritor mais adulto entre os escritores franceses, as mulheres são o objeto de prazer e de tentações. Todos os romancistas antes dele tendem a parecer como adolescentes que acreditam no amor para a vida inteira: seus romances terminam com o casamento, enquanto os de Balzac começam desse ponto e lançam os fundamentos de uma observação mais realista da sociedade. Só Molière (1622-1673) — mais tarde — trabalhando para a sociedade, restabelecerá o tratamento digno das mulheres em L’école des femmes (1662). Assim como Diderot, feminista por sua mentalidade natural, para quem “a mulher está no mesmo plano moral e intelectual que o homem, bem como no direito a uma felicidade dos sentimentos e dos sentidos” (CALVINO, 1993).
No Brasil, desde o começo, dominaram o colonizador português dois sentimentos tirânicos: o sensualismo e a busca por riquezas. As cartas de Caminha a “El Rei” transbordam de índias com suas “vergonhas” de fora (CAMINHA, 1963). O escrivão-mor da frota cabralina não conseguiu dar as alvíssaras à Coroa sem erotizar o seu relato. Essa luxúria despertada à época do desembarque pela junção dos fatores clima-terra-mulher, será uma tônica e um dos maiores fenômenos na formação sociocultural do país, como mostrou Freyre (2003) em Casa-grande e senzala.
Para Gregório de Matos, a mulher ora será angelical, ora demoníaca, imortalizada no verso “anjo no nome, angélica na cara”. Durante o Neoclassicismo nacional, Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810) diviniza a mulher Marília em suas éclogas. No romantismo, a dignidade feminina retratada por José de Alencar (1829-1877) — o primeiro grande prosador do Brasil — pode ser explicada pelo fato de o autor relatar história de mulheres de classe social elevada, como o faz em Senhora e em Encarnação, à maneira dos trovadores provençais, que se dirigiam a damas de classe superior (CARPEAUX, 2011). Quando pelas terras tupiniquins aporta o realismo literário, a figura feminina é abordada de forma mais profunda, em conflitos envolvendo relacionamentos amorosos. Machado de Assis (1839-1908) — o maior escritor da literatura brasileira — faz sucesso explorando, em seus romances, a análise psicológica inaugurada por Madame de La Fayette (1634-1693) em La Princesse de Clèves (1678). As suas maiores personagens, à moda de Ésquilo e de Racine, também serão mulheres.

A representação feminina em Coronel de Barranco

Em Coronel de Barranco a mulher se apresenta dicotomizada, debaixo da imagem de dois estereótipos triviais: esposa e prostituta. A figura da esposa é representada por Mitsi, a oriental radicada em Paris com quem o narrador e protagonista Matias Cavalcanti se casa. Também é esposa Raimunda, tia de Matias e mulher de Amâncio, o dono do seringal “Tristeza” onde o jovem se hospeda. Já a imagem da prostituta é sustentada pelas inúmeras cocotes francesas, polacas, italianas, russas, húngaras e portuguesas que habitam a famosa pensão Floreaux em Manaus. Elas são o símbolo de uma época, a efígie da Manaus cosmopolita e abastada, da “Belle époque”, enriquecida pelo dinheiro advindo da extração da borracha.

Bares e cafés-concerto, que só fechavam as portas ao amanhecer [...] Luxuosas pensões alegres. Como a afamada Floreaux, situada no centro de um jardim, que se dava ao luxo de manter, diariamente, noite adentro, um jantar-dançante, com orquestra exclusiva. E onde só se bebia champanha, na companhia das belas cocotes internacionais. Francesas, italianas, russas, húngaras, polacas, orientais. Mulheres todas as línguas, cores e raças, apenas niveladas pelos figurinos e perfumes que vinham diretamente de Paris.

Apenas Rosinha, filha de Amâncio e Raimunda, parece orbitar entre os dois polos, não figurando claramente nem como uma nem como outra. Desponta como “moça de família” e se apaixona por Matias. Os tios fazem gosto pela união dos dois primos, até descobrirem que a jovem carrega no ventre um “filho proibido”, um sacrílego, produto de suas relações com certo pároco da região. Mais tarde Rosinha é executada por Sandoval, seringueiro que nutria esperanças pelo seu amor e não suportou a dor de ver seu sonho de unir-se à jovem ser desfeito.
A representação dicotômica do sexo feminino — como mostrada em Coronel de Barraco — é mais comum na literatura do que se possa imaginar. Serve para mostrar que a literatura funciona como reflexo das relações sociais (ALTAMIRANO; SARLO, 1980). Sociedades como a africana e a médio-oriental, por exemplo, são eminentemente patriarcais. Logo, é de se esperar que o estereótipo da mulher-mãe permeie toda a literatura desses povos. Em outras palavras, pode-se até encontrar outras imagens femininas, mas será comum encontrar a identidade da mulher ligada ao fato de ela ser mãe. No antigo Oriente Próximo, uma mulher estéril podia ser vista com desdém e até ser rejeitada pela sociedade (MULDER et al., 2005). Em Esparta, a mulher era sinônimo de “matriz sadia”, cujo dever sagrado, antes do mais, era se preparar para ser mãe fecunda de filhos robustos. Segundo Brandão (1986), a história, guardadas as devidas proporções, se repete com a juventude de estados totalitários na primeira metade do século XX — a Gioventú fascista e a Hitlerjugend. Para citar Sebastian Haffner (1907-1999), “a história é a morte que se gaba sedutoramente dos seus nascimentos”.
Na Grécia antiga, o estereótipo da esposa serve de fundamento a toda a organização social, cujo modelo exemplar é representado “pelo casal formado pelo rei e pela rainha” (VEMANT, 2006). Em Coronel de Barranco, a esposa também é o núcleo da família, o cerne do convívio social, o centro em torno do qual giram a casa e os filhos. É por ela que o marido se desdobra em cuidados, como vemos em Mitsi:

Noites amargas, que eu passava sem dormir, aconchegado a ela. Como se estivesse a despedir-me, segundo por segundo, da criatura que fora a única a quem eu amara de fato. E que a mim, também, dera a plena certeza de me encher de amor, ao longo dos sete anos em que nossas vidas se fundiram na mais total identificação.

É pela esposa, ainda, que seu íntimo é tocado pelos sentimentos mais profundos, aqueles que fazem um homem chorar:

Lágrimas tão doídas, como as que espoucaram de meus olhos, na tarde seguinte, quando cuidava, as mãos trêmulas, e frias como as dela, de mudar-lhe a camisa ensopada por súbita crise de suor. E fui obrigado a ver os seus seios descarnados, as costelas desenhadas no busto emaciado, as clavículas pontiagudas. Um simples espectro do que fora o seu túrgido corpo.

Os laços mais fortes presentes na sociedade provêm dessa união, são derivados da linha materna. Essas mulheres são vistas como poderosas, reverenciadas como doadoras de vida, elo entre a prole e os antepassados, portadora da cultura. É a ela que os homens devem escolher — uma boa esposa —, como recomenda Hesíodo em Teogonia (BRANDÃO, 1986).
Mas a outra imagem, a da prostituta, também é poderosa no romance. É sob esse estereótipo que, em Coronel de Barranco, a mulher mais aparece. E não podia ser diferente, já que a obra é um romance histórico que retrata um período em que toda uma estrutura foi montada, na Manaus da Belle époque”, para atender às fantasias eróticas do cosmopolitismo presente na cidade. Seringalistas abastados, autoridades públicas, europeus radicados, todos desfrutavam do calor corpóreo das cocotes e das cortesãs mais afamadas e belas da época trazidas a Manaus.
Aliada à força da libido e do apetite sexual masculino, a imagem da prostituta é tão poderosa que transcende leis físicas e barreiras geográficas. Para os seringalistas, como o coronel Cipriano, que passavam meses em celibato forçado na faina da seringa, as cocotes não estavam apenas na pensão Floreaux, mas principalmente nas suas fantasias e nos seus devaneios eróticos. Acostumado a frequentar a pensão nos momentos em que estava em Manaus, Cipriano sonha com elas nas noites de solidão nos seringais:

— Agora, por falar nisso, o que está faltando hoje aqui (no seringal) é mulher. Umas francesas, daquelas da Floreaux. Ao que acrescentou, vendo que ninguém retrucava: — Mas me digam uma coisa: com tanto doutor junto aqui, bem que os senhores podiam fazer aí uma mistura de medicina com engenharia e fabricar umas fêmeas pra gente. Aí sim, a gente ficava que nem na Floreaux, e fechava a festa com chave de ouro.

É por elas que o seringalista perguntava, quando aportava no seringal o comandante de algum vapor:

— E o mulherio, Comandante? — Aquilo que o senhor sabe. — Que beleza. — Cada francesa nova... — A Floreaux... Ah, meu Deus. O senhor pode acreditar, Comandante, que é a pura verdade, tem noite que eu até perco o sono, só pensando na Floreaux. — Agora tem uma nova pensão. A da Adélia. — Com francesa também? — Ora se... — Valha-me, Nossa Senhora. Por que este seringal não fica mais pertinho de Manaus, meu Deus?

E ficava interessado pelo voyeurismo, já presente na Paris do final do século XIX:

— Será mesmo verdade, seu Albuquerque, o que me disseram? Ouvi contar que tem um lugar lá que a gente paga pra espiar por um buraco os homens e as mulheres fazendo safadezas? [...] Falei do Moulin Rouge. Das midinettes e lorettes. Da facilidade de arranjar raparigas bem jovens [...] — Mas nua mesmo, seu Albuquerque? — Completamente nuas. E mulheres belíssimas. — Não me diga. [...] — Nuas sem roupa, sem nada, assim como as francesas, lá em Manaus, deitam com a gente na pensão? — Isso mesmo. O senhor nem pode imaginar. — Acho que preciso mesmo dar um bordejo lá pela estranja. — Tenho certeza de que o senhor vai se divertir muito. O senhor, que adora as francesas.

Para Patai (1974), o apetite sexual desregrado do homem torna-se um problema, pois ele é maior do que sua capacidade sexual. “Mesmo quando exerce toda a atividade sexual de que é capaz, ele ainda assim quer mais. O desempenho não acompanha o desejo. A libido segue à frente da tumescência. Embora alcançada à exaustão, a mente do homem ou da mulher ainda alimenta fantasias eróticas”. Para homens como o coronel Cipriano, vivendo em abstinência sexual forçada nos seringais, as fantasias eróticas recrudescem à medida que ele se sente incapaz de possuir as mulheres com que sonha. Como esclarece Patai (1974), autor de O mito e o homem moderno, essa é uma descoberta tipicamente masculina:

Outro é a incapacidade que tem o homem de possuir sexualmente as mulheres que mais o atraem e excitam. O homem médio, comum, em nosso mundo moderno, pode ter convívio sexual com mulheres sem se valer dos serviços de prostitutas. Mas as mulheres que lhe é dado desfrutar são, por força, as suas equivalentes femininas; em outras palavras, mulheres médias, comuns. A posse delas talvez lhe satisfaça a fome sexual, mas não lhe satisfará as fantasias eróticas. Nelas, o homem continuará a imaginar-se conquistando e possuindo as mulheres mais requintadas, os espécimes mais atraentes do sexo feminino, não só do ponto de vista estético, mas também sexual, erótico e emocional.

O sexo é o maior prazer que um homem pode experimentar (VILAR, 1971). Nada, no mundo, pode ser colocado como substituto da maior necessidade que ele carrega dentro de si: a necessidade de contato físico com o corpo de uma mulher. Para o coronel Cipriano, a mulher ideal era aquela pronta para lhe tirar o estresse causado pela abstinência sexual. O mito do playboy ensina isso, que “as mulheres são rigorosamente unidirecionais — a única função é servir de brinquedo, de divertimento sexual do homem” (PATAI, 1974). Como um playboy, o seringalista se entrega a desregramentos orgíacos em Manaus:

Em busca da vida noturna em que chafurdaria até a baixa das águas, como era o hábito daqueles falsos potentados que, ano por ano, sempre tratavam de trocar, no período da cheia, o mísero primitivismo da choupana na selva pelo luxo europeu do Hotel Cassina. A abstinência sexual forçada, pelos desregramentos orgíacos da Pensão Floreaux.

Apesar do novo sexismo, que transformou tudo em um jogo do “pego quem quero e quem posso pegar, e quem me quiser, que me pegue, se eu estiver de acordo” (PATAI, 1974), o homem sempre se considerou superior à mulher. Parte da oposição havida em relação ao cristianismo, por exemplo, deveu-se ao fato de este apresentar um discurso de igualdade entre homens e mulheres (BIANCO, 1987). O homem estima ser o sexo mais próximo de Deus (LEACH, 1983). De acordo com Lévi-Strauss (1989), em O pensamento selvagem, o sistema mítico indígena considera superior tudo o que é puro, sagrado e macho; e inferior tudo o que é impuro, profano e fêmeo. Logo, pelo cânone da lógica indígena, os homens são superiores às mulheres assim como os iniciados são superiores aos não-iniciados. E os inferiores são “comidos” pelos superiores. Daí também a razão de se referir ao ato sexual como uma necessidade fisiológica, onde um “come” o outro.
Apesar de venerar a imagem da mulher-esposa, é à prostituta que o homem recorre para a satisfação de suas fantasias, um dualismo a que o homem se vê enredado por toda a vida: a esposa, tendo sua sexualidade “controlada pelos homens e seu poder reprodutivo a serviço da sociedade; e a puta, controlando ela própria seus favores sexuais, colocando por isso mesmo uma condição no uso dos seus poderes reprodutivos” (LEACH, 1983). O homem precisa preencher essa necessidade cuja regra do sistema continua a ser a troca: a sujeição do corpo pelo recebimento do dinheiro. E como não há homem nenhum que escape a essa cobiça, “o uso exclusivo da vagina feminina” foi elevado a preços de loucura (VILAR, 1971).
A prostituição, tida como a profissão mais antiga do mundo, sempre gozou de incentivos masculinos e religiosos. As nações ao redor de Israel, no antigo Oriente Próximo, possuíam “prostitutas cultuais”, que sempre serviram de grande laço para os judeus, adeptos de uma religião detentora de rigorosa disciplina moral (STAMPS; ADAMS, 1995). A cultura greco-romana, igualmente, contava com sacerdotisas reconhecidas pela “coloração branca do rosto e pela indumentária”, tanto que o elemento masculino somente tardiamente apareceu no sacerdócio (BRANDÃO, 1986). Em sociedades brâmanes, mulheres respeitáveis, se viúvas ou se negligenciadas pelo marido, poderiam tornar-se esposas da divindade. O rito matrimonial consistia simplesmente em comer um pouco de arroz que tivesse sido oferecido à divindade. Se a mulher então escolhesse morar no templo, ela teria o status de um tipo de deusa e seria alimentada e vestida às custas do templo. “Ela seria livre para ter relações sexuais com qualquer brâmane, mas geralmente tornava-se a concubina permanente de uma pessoa de posição social alta, tal como um funcionário do governo” (LEACH, 1983). Hoje, questões envolvendo o livre comércio do corpo feminino dividem debates feministas no mundo inteiro: de um lado as que veem a prática como uma forma de autonomia frente ao uso do próprio corpo; e de outro, as que entendem a prostituição como uma forma de escravidão da mulher ao homem.

A proibição de mulheres nos seringais

A presença feminina era terminantemente proibida nos seringais. Tratava-se de uma das cláusulas pétreas do regimento do local. O primeiro dia de trabalho de um “brabo” — o seringueiro recém-chegado e, portanto, endividado no armazém — era marcado pela reunião em que o seringalista, sem muito diálogo, lia a “carta magna” do mundo em que ele era um deus:

Na manhã do dia seguinte, um sábado, a faina no barracão principiou cedo, mal despontado o sol [...] — Agora, lê pra ele o regulamento do seringal. Antoninho apanhou a folha de almaço, escrita com sua letra bem desenhada. Ajeitou os óculos de grossas lentes. E pediu ao brabo que prestasse atenção. Explicou-lhe as cláusulas mestras do contrato de fato. Uma por uma, repetindo aqui, simplificando o enunciado ali, quando houvesse alguma dúvida.

Uma das perguntas que compunha a sabatina feita pelo dono do seringal era se o “brabo” possuía esposa:

— Casado ou solteiro? Já deixou noiva lá, ou mulher com filho, pensando que seringa dá ouro logo no pé? — Solteiro, sim senhor. E não tenho noiva, não. — Deus te conserve e aumente. Porque seringueiro que já chega aqui com mulher na cabeça só dá prejuízo. — Vim de cabeça vazia, graças a Deus.

Para a questão da presença de mulher no seringal, o proprietário apresentava uma posição já formada e bastante firme:

— Com franqueza... Fico besta de ver que ainda tem proprietário de seringal que contrata um brabo com mulher pendurada. E mulher de bucho cheio, no ponto de parir, comigo não tem isso, não [...] No “Fé em Deus”, fêmea?... Não quero nem fêmea de bicho. Já ando meio danado com um cearense lá que se meteu a comprar uma mula. O senhor já pensou, seu Albuquerque? Como é que um seringueiro vai trabalhar direito, cortar mesmo de verdade desde manhã cedo, com mulher parindo a toda hora e cuidando de curumim?

Os seringueiros, de alguma forma, entendiam os desdobramentos de se ter mulher em um seringal, geralmente interpretado em termos de incrementos na dívida para com o patrão. O armazém, a bem da verdade, era a alma de um seringal, o “segredo” de todo o negócio, o embuste por meio do qual fluía a exploração feita pelo seu dono. Logo, ter mulher, mais um boca para alimentar e vestir, poderia significar nunca sair de lá com saldo, formar seu “pé de meia” e usar terno branco, chapéu chileno, relógio de algibeira e bengala:

— Está doido? A gente vindo sozinho já começa o trabalho devendo mais de um conto pro patrão. Imagine se quiser pagar passagem pra dois. — Tem razão. Aí o sujeito nunca mais acaba o débito. E morrer sem saldo nem no dia de São Nunca. — E se morrer, outro seringueiro vai comer a mulher da gente. — E os aviamentos? — Pois é, uma boca já sai caro. Imagine duas. — Duas? Sozinho com mulher na mata? Com nove meses, começa a coisa. Quando der fé, tem dez bocas. E adeus, Ceará. — Com mulher não tem jeito, não. Nem que a seringa desse um conto por quilo.

A proibição da presença feminina nos seringais tinha a ver, em especial, com a questão do saldo. “Na lógica capitalista do “coronel” a mulher era um fator gerador de despesas” (GUEDELHA, 2013). O seringueiro esperava contar com o saldo após anos de faina no corte da seringa: se tinha muito saldo era um manso; se tinha pouco saldo era um brabo. O armazém era o sistema por meio do qual perpassava toda a corrupção. A cotação da borracha nas bolsas de valores do mundo inteiro não parava de subir, e dinheiro começou a jorrar dos seringais amazônicos. Houve mesmo machadinhos que acumularam muito saldo nas escriturações do armazém. No entanto, em virtude do clima inóspito e das endemias letais (beribéri, malária, febre-amarela, gripe espanhola), muitos deles morriam no auge da carreira produtiva. E como não possuíam mulher, noiva, filhos, família ou qualquer outro parente que reclamasse o saldo que, de direito, era seu, este ia direto para as mãos do seringalista. E assim, seguindo o mesmo ramerrão de sempre, a proibição e a ausência de mulheres nos seringais permitia que o patrão continuasse com a exploração que pela região ficou famosa: ele cada vez mais rico, torrando contos de réis nas pensões de Manaus; e o seringueiro, quando não morria, cada vez mais miserável. Somente infringindo esse sistema, negociando por fora com regatões, era que ele conseguia vencer.
De acordo com Cuché (1999), a mulher é, por natureza, empreendedora e dinâmica. Ela pensa em termos de ascensão social, conforto e mudança. Estudos sociais revelam que, em sociedades agrárias, quando a análise é centrada no homem sobressaem a estabilidade e a continuidade. O que é diferente quando o foco é a mulher, em que aparecem, antes, o movimento, a mudança e o fluxo. Na verdade, como diz Bianco (1987), “o movimento de mulheres na sociedade agrária relaciona-se muito mais com a mobilidade social do que com a geográfica”. Esse tipo de caráter seria uma ameaça para o sistema de exploração. Daí a proibição de sua presença nos seringais e o temor demonstrado pelos proprietários.
O homem, ao contrário, geralmente pensa diferente. Costumam estar de passagem, como expressa, em Coronel de Barranco, o narrador Matias:

O homem sabe que ali está de passagem. Numa transitoriedade que, só ela, é capaz de ajudá-lo a suportar a vida. Tem a plena certeza de que jamais criará raízes e assentará o chão de um lar. Tudo se resume em suportar a monotonia dos dias que passam, no ermo de um floresta fechada, onde só a custo conseguem, a golpes diários de terçado, manter meio aberta a picada que palmilham duas vezes por dia, para extrair o leite que imaginam ser um dia a moeda de sua alforria.

A mulher, de alguma forma, consegue trazer essa ideia de continuidade, esse ar de raiz, de família, de vida social. Há muita diferença entre uma casa sem a presença de uma mulher e outra em que uma mulher figura como o centro tutelar de uma sociedade organizada. Matias descobre isso quando compara as casas do seringal “Tristeza” — onde havia uma família estruturada, com mulheres — e as do seringal “Fé em Deus”, onde não “pairava o calor maternal”. Neste vivia-se somente para esperar o fim de uma aventura; enquanto naquele, a ideia da continuidade de uma vida social, a lembrança de datas — algo simples, mas essencial para uma vida plena. Características tipicamente femininas e singelas iguais a essas — lembrar datas, homenagear, acompanhar o passar do tempo, divisar o dia da libertação — desperta sentimentos perigosos:

Porque Cipriano, que não reclamava do requinte de certas iguarias que lhe mandava o aviador, mesmo que não as pedisse, tinha como princípio inviolável do seu seringal que não se devia remexer, nos seringueiros, a lembrança de determinadas datas, capazes de despertar sentimentalismos perigosos.

Quase no fim do romance, momento em que é retratado o período da derrocada do preço da borracha amazônica, Matias permite que os seringueiros contraiam casamento, plantem e pesquem. E tudo muda. A presença da mulher renova e traz um novo ar, um ar de família, de sociedade, de continuidade, de raiz. Foi preciso a Amazônia ficar órfã da riqueza proporcionada pela extração da borracha para que o panorama social dos seringais mudasse. Guedelha (2013), citando WOLFF (2011), aponta que é precisamente nesse momento — de crise — que a mulher é integrada a esse sistema.
Mas a presença da mulher não mudava apenas o ar social dos seringais. Sendo o sexual o maior prazer físico que um homem pode experimentar (VILAR, 1971), a mulher, quando presente nesses rincões, ajudava a mitigar o estado de permanente lubricidade em que viviam os homens (WOLF, 2011 apud GUEDELHA, 2013). Dentre as necessidades de ordem masculina parece não haver nenhuma maior do que esta: “a necessidade de contato físico com o corpo de uma mulher” (VILAR, 1971). Talvez seja esse o motivo que leve Stendhal (1783-1842) a fazer uma de suas personagens dizerem, em De l’amour, que “o ideal de beleza é uma mulher que a todo instante sugere o prazer físico” (CALVINO, 1993). Sem esse deleite, os homens que viviam nos seringais “eram empurrados pelos instintos a atos extremados de pedofilia, zoofilia, bestialidades e crimes passionais”, conforme expressa Guedelha (2013) em O abrasamento sexual nos seringais amazônicos, por Alberto Rangel e Ferreira de Castro. E assim, como que voltando ao velho mito hesiódico de Pandora, a mulher se torna o “mal tão belo”, o “flagelo terrível” e “imprescindível ao homem”.

Considerações Finais

Em Coronel de Barranco, a representação da mulher não se afasta dos estereótipos comuns empregados na grande literatura para retratá-la. No romance de Cláudio de Araújo Lima a mulher é, também, esposa ou prostituta. Sem entretons, gradação de cores ou classificação intermediária. Os matizes sociais que aparecem na simbolização do homem amazônico parecem não se aplicar à figura feminina. Parte integrante do mesmo mosaico de discursos e personagens, o narrador não consegue desligar a mulher das duas imagens triviais. Ou elas são Mitsi (esposas) ou elas são cocotes (prostitutas).
Na literatura, essas sombras da representação feminina sempre foram marcantes. Desde o mito de Pandora, a primeira mulher no corpus mithorum hesiódico, o sexo feminino é dicotomizado. Lá, ela é o “maravilhoso, revestido pelos deuses de atrativos e de graça”, mas é também o “mal tão belo”, o “flagelo terrível” e “imprescindível ao homem”. A literatura da Idade Média, polarizada entre Dante e Boccaccio, também reflete esse dualismo: em Dante, Beatriz, a empírea musa, o amor platônico; em Boccaccio, a mulher demoníaca, a realizadora de fantasias e desejos sexuais. E assim, em todas as literaturas modernas, sobressai a dualidade da representação feminina, fato que, talvez, pode ser explicado pelo apagamento da produção literária feminina. Como só muito tardiamente a mulher se apropria do leme autoral da literatura, coube ao homem simbolizá-la na arte. E nada mais comezinho do que a dicotomia criada por ele, em que se têm os seus dois ideais de mulher: a esposa, mãe de seus filhos; e a prostituta, o objeto de seu prazer e de suas tentações. Fora dessa órbita, a miopia do homem não lhe permite enxergar mais nada naquele que é considerado o sexo multifacetado.
Considerada uma das cláusulas pétreas do regimento de um seringal, a proibição da presença feminina assentava-se em razões puramente capitalistas. Pensando somente no lucro, o patrão não contratava seringueiro com esposa ou noiva para tentar economizar gastos e elevar ad infinitum a produtividade do explorado. Sem a mulher, o seringalista poderia manter, ainda, o status quo do sistema de espoliação, uma vez que estruturava o ar social de sua propriedade com vistas a evitar a permanência na terra, levando os homens a se sentirem sempre de passagem. Em um sistema assim o caráter feminino, empreendedor e dinâmico, seria uma ameaça. No entanto, por força de seu instinto sexual — de longe a maior necessidade que ele leva sobre si — o homem jamais conseguiu ficar de todo distante do que lhe é “imprescindível”. Nenhum substituto, mesmo amplamente usado, foi capaz de tomar-lhe o lugar. A vida encontrou um meio. E “a delícia dos filhos dos homens”, de que fala Salomão, foi integrada ao sistema dos seringais.

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