Jamescley Almeida de
Souza
Graduado em Letras – Língua Inglesa
(UNINORTE)
RESUMO:
Este
trabalho trata da relação do homem árabe com a mitologia amazônica, conforme é narrado
em E Deus chorou sobre o rio (2006).
De Elizabeth Azize, a obra revela como esse médio-oriental chegou à Amazônia,
se embrenhou pelas matas e pelos rios e conseguiu nela criar o seu nicho
particular e inamovível. As sagas e as aventuras narradas estão cheias de
histórias de entidades míticas — o boto, a mãe-d’água, a rasga-mortalha, as assombrações
e a cobra-grande — dão testemunho da robusta mitologia presente na Grande
Planície. Este trabalho tem como objetivo descrever como esse monoteísta se
comportou diante dos mitos amazônicos encontrados por ele e tentar interpretar a
reflexão mítica que resultou dessa experiência.
Palavras-chave: Mito. Árabe. Comportamento. Reflexão
mítica.
Amazônia.
ABSTRACT:
This paper deals
with the relationship between the Arab and the Amazonian mythology, as it is
narrated in E Deus chorou sobre o rio (2006).
Writeen by Elizabeth Azize, the work revels how this
middle-oriental man arrived at the Amazon, penetrated woods and rivers, and
created his particular and immobile place. The sagas and adventures narrated
are full of stories about mythical entities ─ Amazonian dolphin, Water mother,
ghosts and Anaconda ─ give testimony about the powerful mythology settled in
the Great Plain. This paper aims to describe how this monotheist man conducted
himself before the Amazonian myths met by him, and tries to interpret the
mythical reflexion resultant from this experience
Introdução
O
tipo humano árabe é um dos pilares da cultura da Amazônia. Ao lado dos elementos
indígena, europeu e negro ele ajudou a dar formação à matriz biológica e
sociocultural presente no Grande Vale. Com sua coragem, força incansável para o
trabalho e uma excepcional habilidade para os negócios, esse membro dos povos
semíticos construiu seu nicho inamovível na Amazônia e conseguiu deitar raízes
em suas plagas. Aqui chegando, ao final do século XIX e início do século XX,
ele logo se embrenhou pelos rios e pelas matas e fez de suas aventuras em seu
regatão um conto tão famoso e grandíloquo como aqueles narrados nas Mil e uma noites. Seus descendentes — já
caboclos — elaboraram, mais tarde, verdadeiros repositórios de suas sagas,
dando origem a fontes profusas da história da imigração árabe na hinterlândia
amazônica. E Deus chorou sobre o rio (2006),
de Elizabeth Azize, se ergue imponentemente como uma dessas histórias.
Narrando
a história de vida do personagem Marmud, a obra de Azize é uma exposição das
peripécias vividas pelo representante da coletividade árabe. Entremeando
histórias entre Manaus, Manacapuru, Itacoatiara e rios vizinhos, a narrativa
ressoa a fibra do homem médio-oriental nos alhures amazônicos, mesmo no Purus, lá
para as bandas de Canutama. Sua epopeia em seu combate para superar os duros
óbices da realidade do homem do Norte se mescla ao folclore político do
interior, às marotagens do mundo do comércio, às tramas de homicídios, às cenas
de sexo e a muitos mitos amazônicos.
Nesses
trópicos a inveterada fé do homem árabe, antiga e firmemente estabelecida, entrou
em contato com o sincretismo religioso prevalecente no lugar. Ele aquerenciou
mesmo muito do mosaico formado pela mitologia e pelo animismo embrionário herdado
dos indígenas (ARAÚJO, 2003, p. 158). Mitos e lendas amazônicas, como a
cobra-grande, o olho de boto, a mãe-d’água, o rasga-mortalha e as assombração
são os elementos de que Marmud e seus filhos se valem para cingir sua cultura,
seu modo de pensar e seu modo de ver o mundo. O encontro do árabe monoteísta
com a robusta mitologia amazônica fez dele um bricoleur, palavra de origem francesa cunhada por Lévi-Strauss
(1989, p. 32) para designar o processo por meio do qual o pensamento ou a
reflexão mítica são formados. O bricoleur
é aquele que faz bricolagem, uma
criação do modo de pensar a partir de “materiais fragmentários”, dando origem a
um “repertório cuja composição é heteróclita”. Quando, na Amazônia, o semita
árabe encontrou essa mitologia, um modo de lidar com ela, de tipo único e
particular, todo seu, teve formação: ele se tornou um bricoleur. Este trabalho tem como objetivo descrever o
comportamento árabe frente à mitologia amazônica e tentar interpretar a reflexão
mítica que desse encontro resulta.
O mito
Impressiona
a maneira como o conceito de mito (gr. mythos,
relato, história) só duramente se deixa explicar. Nada parece ser tão banal
ao fundo comum da humanidade e ao mesmo tempo tão controverso e de tão difícil
apreensão. Filosoficamente, chega mesmo a constituir verdadeira dialética, um
conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos
empíricos. Como instância mediadora, atrela-se a ele a coincidentia oppositorum (BOSI,
1992, p. 166) e é “uma realidade extremamente complexa” (ELIADE, 1972, p. 9). Em Jung (1875-1961), por exemplo, eles “são imagens
arquetípicas, constituídos historicamente e socialmente por meio de cuja
decifração se pode chegar a elementos comuns a toda a humanidade” (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 2001, p. 111). Já em Ovídio “é o campo de tensão em que tais forças
se defrontam e se equilibram” (CALVINO, 1993, p. 34). De outra sorte, ele pode
ser tomado como uma narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um
povo, veiculado por certas sociedades humanas (ELIADE, 1979, p. 34), e aí se
tem o mito de Isis e Osíris, o mito de Prometeu, o de Baldr (filho de Odin) ou o
mito do olho de boto. Da mesma maneira também pode ser entendido como uma
crença não-justificada, comumente aceita e que, no entanto, pode e deve ser
questionada do ponto de vista filosófico. Daí o mito da neutralidade
científica, o mito do bom selvagem, o da superioridade da raça branca ou o mito
do simples, proposto por Alfred Sauvy (RICOEUR, 1990, p. 152).
Parte
dessa confusão origina-se do fato de a palavra grega para mito ter sofrido
corruptelas ao longo do tempo e ter adquirido reputação ruim em alguns círculos
(PALMER, 2001, p. 39). Originalmente, as mythoi
gregas, traduzidas por histórias ou relatos, eram palavras perfeitamente
boas, frequentemente sobre os deuses e sua interação com os seres humanos, e
não tinham o sentido de história fantasiosa que adquiriu posteriormente (CARTLEDGE,
2009, p. 440). Com o passar do tempo, entretanto, a mitologia grega caiu em má
fama e os seus mitos vieram a ser vistos como histórias não baseadas em fatos,
histórias falsas.
O
primeiro golpe é dado pelo surgimento da filosofia grega, reprimindo o mythos pelo logos, instaurando o niilismo e fazendo da aletheia o termo capital da investigação (FAYE, 2009, p. 16). Em
seguida, a depreciação toma volume à luz da cultura judaico-cristã e da sua
cosmovisão de deuses pagãos garimpada no contexto sócio-histórico do povo de
Israel e das nações circunvizinhas. O culto aos deuses pagãos em detrimento do
culto exclusivo exigido por Javé custou caro ao hebreu, o que o fez afastar de
si toda e qualquer conotação idólatra da religião cananeia após a deportação de
Judá para a Babilônia, sob o rei Nabucodonosor (VII a.C.) em 605 a.C. Os
primeiros teólogos cristãos, na busca pela historicidade de Jesus, também
impulsionaram o conceito (ELIADE, 1972, p. 115) e a Europa cristã, herdeira
religiosa dessa ideologia, influenciará daí quase toda a cultura ocidental, pouco
se importando em distinguir se o mito se tratava de uma narrativa verdadeira ou
não. A Eliade (1972, p. 6) a palavra:
Todos
sabem que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470 a.C.) — que foi o
primeiro a criticar e rejeitar as expressões "mitológicas" da
divindade utilizadas por Homero e Hesíodo — os gregos foram despojando
progressivamente o mythos de todo
valor religioso e metafísico. Em contraposição ao logos; assim como,
posteriormente, à história, o mythos
acabou por denotar tudo "o que não pode existir realmente". O
judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da "falsidade"
ou "ilusão" tudo o que não fosse justificado ou validado por um dos
dois Testamentos.
Hoje, todavia, os mitólogos reconhecem
que “a avaliação da verdade de um mito é um item separado da questão do papel
que desempenha na cosmovisão [...]. Mesmo que não fosse historicamente factual,
ainda pode funcionar como narrativa que contribui de modo importante” (PALMER,
2001, p. 39). Por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século
XIX, o mito passou a ser tratado não na acepção usual do termo — fábula ou
invenção —, mas tal qual era compreendido
pelas sociedades arcaicas, onde designa uma história verdadeira (ELIADE, 1972,
p. 6). E ai, como em um verdadeiro mito de regressus
ad uterum, o conceito toma o caminho contrário na pós-modernidade, se
ressemantiza e passa a ser entendido como no princípio da reflexão filosófica,
quando “era poderosa a mistura entre a via racional e o veio místico-religioso”
(LIMA, 1980, p. 8). Passou-se a compreender, a partir de Schelling (1775-1854)
e de sua Filosofia da Mitologia, que
a
mitologia [...] não tem outro sentido senão aquele que ela exprime. [...]
Verificada a necessidade com a qual nasce igualmente a sua forma, ela é
inteiramente própria, ou seja, devemos entendê-la exactamente como ela se
exprime, e não como se ela pensasse urna coisa e dissesse outra. A mitologia
nao é alegórica: ela é tautegórica [termo que Schelling vai buscar a Coleridge].
Para ela, os deuses são seres que realmente existem; em vez de serem urna coisa
e significarem outra, eles só significam aquilo que são (TODOROV, 1977, p. 172).
Como
lembra Calvino (1993, p. 24), falando da Odisseia,
“talvez para Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse,
talvez ele narrasse a mesma experiência ora na linguagem do vivido ora na
linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande,
sempre é Odisseia”.
Mito e literatura
A
relação existente entre mito e literatura é primeva e origina-se, em grande
parte, do poder e do fascínio exercido por essas narrativas. Lá atrás, in illo tempore[i], quando o tempo e
a vida humana transcorriam mergulhados nelas sem qualquer preocupação em
indagar o que elas vinham a ser, uma classe de homens começou a se mostrar mais
interessada por elas do que o homem comum (PATAI, 1974, p. 20). Os poetas —
como essa tribo ficou mais tarde conhecida — foram, pois, os primeiros homens a
coligir mitos e a emprestar-lhes formas rítmicas, levando os outros homens a
aceitar e recordar as novas versões. Aristóteles, a propósito, disse que “o
poeta era antes de tudo um artífice de mitos” (ARISTÓTELES, IV a.C. apud LIMA, 1980, p. 1). E apesar do fato
de que quase tudo o que os homens possuem sobre ciência está “fundado sobre a
base do que foi inventado pelos gregos” (BACON, 2002, p. 45), a preservação do
mito se deu, em grande parte, às expensas dos poetas que vieram antes dos
gregos e romanos. Na verdade, bem antes que o maior tragikotatos[ii]
grego (Eurípedes) surgisse em cena, poetas sumerianos, acadianos, hititas e
cananeus acreditavam nos mitos que incorporavam aos seus poemas épicos e os
usavam como tema de seus versos (PATAI, 1974, p. 20). Dizer que o mundo deve a
salvaguarda do antigo corpus mithorum do
Oriente Próximo quase que exclusivamente ao primitivo interesse poético não
seria um exagero.
Como
fundo comum da humanidade, o mito é “um vislumbre real embora mal focalizado da
verdade divina percebida pela imaginação humana” (LEWIS, 2006, P. 109). É uma
história verdadeira e extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e
significativo (ELIADE, 1972, p. 6). Por revelar verdades naturalistas e morais e
por ser a imagem original do espírito, o mito parece antecipar descobertas
científicas, como aponta Sigmund Freud (1856-1939). Em Délires et rêves na Gradiva de Jensen (1907), o psicanalista austríaco
revela que encontrou na novela fantástica de um escritor contemporâneo as
antecipações de suas próprias hipóteses clínicas, apontando para o pano de
fundo comum da humanidade presente no inconsciente:
Poetas
e romancistas são nossos preciosos aliados, e seu testemunho deve ser posto bem
alto, pois conhecem mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa sabedoria
escolar não pode sequer sonhar. Dominam o conhecimento das almas, são nossos
mestre, pois bebem em fontes que ainda não tornamos disponíveis à ciência
(ROGER, 2002, pp. 96,97).
Daí
que o poeta que, no edifício de sua obra de imitação, quis falar de modo
profundo ao destinatário coletivo de sua literatura teve que recorrer às mythoi. Em Fédon, Sócrates julga “que um poeta para ser verdadeiramente um poeta
deve empregar mitos e não raciocínios” (PLATÃO, [IV a. C.] 1991, p. 110). E
realmente falou de forma mais perene ao coração de gerações e gerações o poeta
que soube reconhecer e cultivar o significado dos mitos. É dessa maneira que se
distingue a primazia de Homero (ca. VIII a.C.) entre os autores ocidentais,
cujos poemas épicos — Odisseia e Ilíada —
falaram eloquentemente a todos os gregos de todas as épocas. E tentar
responder por que eles continuam a ressoar com grande impacto ainda hoje aos
homens da civilização ocidental é descobrir que a obra do “maior dos poetas”
(CARPEAUX, 2011, p. 159) “ultrapassou as categorias conscientes do estilo ou da
sintaxe” (ROGER, 2002, p. 99) e logrou um alcance insuspeito para além do
contexto que a viu nascer e a determinou; que o homem cujo nome se tornou
sinônimo de poeta explorou como nenhum outro homem já fez o significado último
dos mitos, que “têm a ver com os impulsos profundos de nossa psique” (PALMER,
2001, p. 40); que o mito tem um significado comunal predominante, pois ele “não
é apenas sobre mim: é sobre nós” (SMART, 1995, p. 94). A história de Odisseu
não é a história de um grego somente; mas a do povo helênico inteiro. E, pelo
fundo comum sustentado pelo mito, é a história de todos os seres humanos.
Na
Grécia Antiga, os mitos eram passados de boca a boca nas assembleias públicas,
nos mercados, nos teatros, nos lares, sobretudo através das mulheres, como ocorria
na relação entre as amas-de-leite e os filhos dos colonos, narrado por Gilberto
Freyre em Casa-grande e senzala (2003).
Quando foram passar à forma escrita já moldavam o quadro mental por meio do
qual os gregos naturalmente imaginavam a vida, o mundo e os deuses. As mythoi eram o verdadeiro fundamento da
cidade grega. Foi o entrelaçamento complexo e hábil dos mitos locais com os
mitos helênicos em geral que proporcionou a Píndaro, por exemplo, garantir a
unidade do mundo grego (BAKHTIN, 1997, p. 275). Não havia uma colina ou enseada
na costa helênica aonde eles não chegassem. Veiculado pela voz dos poetas, “o
fundo eternamente humano” torna-se acessível à inteligência (VERNANT, 2006, p.
15) e consistirá no único conteúdo possível da tragédia grega, fornecido pela
tradição (CARPEAUX, 2011, p. 172). O teatro da Antiguidade deve ao poder destes
a sua enorme força.
A estrutura dos mitos
O
mito é a história dos entes sobrenaturais (ELIADE, 1972, p. 9). Ele fala de uma
realidade que passou a existir em virtude do que estas personagens fizeram no
tempo do primórdio. Daí a numerosa existência de mitos teogônicos, teológicos,
antropogônicos e cosmogônicos, pois ele se refere sempre a uma criação. Seja
uma realidade total que passou a existir, seja o cosmo, uma ilha, um fragmento,
uma instituição ou um comportamento humano. A conduta e as atividades profanas
do homem têm por modelo as façanhas dos entes sobrenaturais. Eliade (Op. cit., p. 10) lembra que entre os
Navajos, por exemplo, "as mulheres devem sentar-se sobre as pernas, que
estarão voltadas para um lado, e os homens com as pernas cruzadas à sua frente,
porque foi dito que, no princípio, a Mulher Cambiante e o Matador de Monstros se
sentaram nessas posições".
Como
é possível perceber, o mito sempre narra ou conta uma história (LÉVIS-STRAUSS,
1989, p. 41). Essa história é sagrada e é considerada absolutamente verdadeira,
pois fala de uma realidade (ELIADE, 1972, p. 18). Ele parte de uma estrutura
por meio da qual empreende a construção de um conjunto que é o objeto mais o
fato (LÉVIS-STRAUSS, 1989, p. 41). Nesse sentido, o mito pode ser definido
“como um sistema semiológico segundo construído sobre uma série semiológica já
existente antes dele [...]. A língua, enquanto sistema semiológico primeiro é a
matéria prima ou a linguagem objecto do mito enquanto sistema semiológico
segundo” (FIDALGO, 1998, p. 12).
Outro
caráter é que o mito precisa ser conhecido. Não de forma exterior ou
abstratamente, mas de uma maneira que ele possa ser vivido (ELIADE, 1972, p.
18). Daí a razão e a necessidade do mito ter atrelado a si o ritual, pois este elemento
“recria um evento, tornando-o real no presente” ou “facilita a transição de um
estado a outro” (PALMER, 2001, pp. 49, 50). Na celebração do Dia da
Independência dos Estados Unidos da América, por exemplo, costuma-se soltar
fogos de artifício à noite cuja função é representar os disparos dos mosquetes
e a detonação dos canhões durante a Guerra Revolucionária. Já no segundo
exemplo têm-se o bar mitzvah, o
batismo cristão ou as cerimônias de
graduação nas instituições educacionais. Geralmente utilizando uma classe
especial de palavras e ações, eles põem em relevo características comuns da
linguagem frequentemente ignoradas. Algumas palavras são banais, mas outras são
“executantes”, ou seja, elas fazem coisas, como chama atenção a Teoria dos Atos
de Fala postulada pelo filósofo oxfordiano John L. Austin (1911-1960), em seu
livro How to Do Things with Words (1975).
Em
qualquer sistema mítico também é certa a presença de certos aspectos (LEACH,
1983, p. 62). Um deles é o que é chamado de discriminação binária, em que se
estabelecem categorias opostas (Op. cit.,
p. 58). Assim se tem o céu e o inferno, a vida e a morte, o tipo humano e o
sobre-humano, o mortal e o imortal, o bom e o mau, o masculino e o feminino
etc. Essas oposições binárias são completamente intrínsecas ao processo do
pensamento humano e são, universalmente, as mais importantes oposições.
É
forte, ainda, no mito a mistura entre ciência e religião, crença e experiência.
Filósofos gregos do século VI a. C., como Tales e Pitágoras, examinaram os
mitos e os acharam deficientes em razão desse caráter (PATAI, 1974, p. 20). Cosmovisões
como a judaico-cristã e o racionalismo ajudaram a incrementar a separação entre
os dois aspectos e durante muito tempo o mito foi visto como “uma função
fabuladora que volta as costas à realidade” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 31). Mas no
princípio não havia distinção entre essas narrações e a História, e era forte a
relação entre o pensamento mitológico e o pensamento racional.
Função dos mitos
A
principal função do mito “consiste em revelar os modelos exemplares de todos os
ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento,
quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1972, p. 10). O
mito lhe ensina as histórias primordiais que o constituíram existencialmente, e
tudo o que se relaciona com a sua existência e com o seu próprio modo de existir
no Cosmo o afeta diretamente. Ele ajuda a suportar a dor da existência (ECO,
1991, p. 234). Por esta função que desempenha, um mito nunca é narrado
indiferentemente e sua recitação nunca é “desprovida de consequências para quem
o recita nem para quem os escuta. Pelo simples fato da narração de um mito, o
tempo profano é — pelo menos simbolicamente — abolido: narrador e auditório são
projetados num tempo sagrado e mítico” (ELIADE, 1979, p. 57).
Como os mitos sobrevivem
O
mito continua a ser o símbolo supremo da ligação entre o mundo divino e o mundo
humano (CARPEAUX, 2011, p. 174). Ainda hoje sempre que
um mito é recitado o homem se esquece de sua condição profana e de sua situação
histórica (ELIADE, 1977, p. 57). O mythos
derruba os muros levantados pela ilusão da existência profana e projeta o homem
num plano sobre-humano e sobre-histórico, aproximando-o de uma Realidade. Nela
o homem espera alcançar os valores axiológicos e transcendentes que possam ser
capazes de guiá-lo e de conferir uma significação à sua existência. A eterna
busca por essa Realidade é a razão de ser da perduração do mito, pois somente
por meio dele ela pode ser alcançada (CARTLEDGE, 2009, p. 58).
O mito sobrevive ainda
hoje porque existe no ser humano o imperativo de se conectar e de rasgar o véu
ilusório criado pelo tempo profano; mesmo sendo mortal, o homem aspira à
imortalidade; a eternidade foi posta no coração dele[iii].
Daí a universalidade e a perpetuidade do mito, já que é perpétua a necessidade
humana nesse sentido. E essa mesma tendência vai se encontrar igualmente em
todos, seja nos civilizados, nos primitivos ou nos selvagens. “Os símbolos e os
mitos vêm de muito longe: fazem parte do ser humano e é impossível não os
encontrar em alguma situação existencial do homem no Cosmos” (ELIADE, 1979, p.
26).
Outra razão do mito
perdurar é a sua maleabilidade (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2007, p. 9). Mitos da
Antiguidade podem ser renovados e recontados sob diversas formas para o homem
moderno. Patai (1974, p. 16) pontua, por exemplo, que
a
mecânica e o sexo são os temas predominantes na consciência pública. Mas
acontece que vamos encontrar a mecânica e o sexo como temas igualmente
predominantes, ou pelo menos igualmente importantes, na mitologia grega, hajam
visto os mitos de Dédalo, o grande artífice, e Afrodite. Eles foram reformulados
para a nossa moderna sociedade industrial [...] Não é a sobrevivência (grifos do autor) do passado no presente, por mais
importante que fosse uma análise nesse sentido, mas um tópico muito diferente:
o exame das forças e processos
mitopoéticos vivos que atuam em nossa cultura. Claro está que tais forças e
processos são fundamentalmente idênticos aos que motivaram o homem nos séculos
passados. Na realidade, essa precisa semelhança deveria recordar-nos que os
produtos em que podemos observar a ação das forças mitopoéticas não constituem
mera herança nem sobrevivência do passado, mas resultam de um vivo e real
dinamismo psicossocial, que opera na psique do homem moderno em grau tao
intenso quanto aquele em que operou em gerações do passado remoto.
Mas em outras
sociedades humanas a presença do mito é tão viva que reformulações consideradas
mais pertinentes às circunstâncias modernas são prescindíveis. Nas assim
chamadas camadas populares o mito reside em toda a sua força. Mesmo que ainda
hoje ele influa no pensamento dos teóricos da antropologia e da teologia,
transpareça nas ideias dos marxistas e sustente os manjares oferecidos pelos
programas televisivos, são as camadas populares que o guardam com tenacidade
(CARPEAUX, 2011, p. 166). A grandeza da obra mítica de Hesíodo (VII a. C.), por
exemplo, vem, em parte, do enfoque dado a essa classe — os camponeses —, como
aparece em Os Trabalhos e os Dias.
Os
mitos e a Amazônia
A Amazônia é permeada
por mitos. Praticamente tudo, na região, é influenciado por essas narrativas
(GARCIA, 2010, p. 18). A vida do homem amazônico, em seus fatos mais
corriqueiros e triviais, é efusivamente dominada e alimentada pelas faladas
crendices. Costa (2006, p. 2), ao estudar a “vivência marcada pelo estigma da
floresta” percebeu “toda uma riqueza de valores, de crenças, de mitos e de
estetizações da vida e da cultura dentro da mata”. Parte disso se deve ao fato
de a Amazônia ter sido o cenário perfeito encontrado pelos europeus para a
difusão de seus mitos e lendas garimpados na cultura e na ideologia
greco-romana-ibérica-renascentista (TOCANTINS, 2000, p. 64). Como constatará,
mais tarde, Gondin (1994, p. 9), “a Amazônia não foi descoberta, sequer foi
construída”. Ela foi inventada.
A representação mítica
da Amazônia, entretanto, não ficou no passado. Construí-la de forma objetiva,
fundada em bases científicas, como sonhou Euclides da Cunha (1866-1909) em Á margem da história, ou metamorfoseá-la
“pelo poder da indústria e da agricultura tecnológica”, como vislumbrou
Franklin Távora em O Cabeleira (MURARI,
2014, p. 57), não foi possível. Daí que ainda hoje as representações feitas
sobre a região no discurso nacional evocam antigas utopias ligadas a conquistas
do território inóspito e uma época de ouro que já passou. No discurso da
imprensa nacional a Amazônia parece não ter conseguido se desvencilhar dessa
forma mítica de construir o lugar. Topos como
o do espaço feliz e o da riqueza fácil são comuns, colocando a paisagem
amazônica diretamente entre o cenário perfeito e maravilhoso e o lugar que salvaguarda
a riqueza do Eldorado, a Terra Prometida, o futuro do planeta, o pulmão do
mundo, “a área de incalculável potencial” (CHAVES, 2009, p. 153).
O comportamento e a reflexão mítica do árabe frente à
mitologia amazônica
Em
E Deus chorou sobre o rio estão
alguns dos principais arquétipos míticos da Amazônia. A obra de Azize passa a
percepção da presença de um verdadeiro corpus
mythorum regional, constituindo a existência de um patrimônio cultural
imaterial referenciado em elementos intangíveis representativos do homem, em
seu percurso terrestre transmitidos de geração em geração. É dessa maneira que,
relatando a saga do homem médio-oriental na Amazônia, aparecem as narrativas da
cobra grande, da mãe-d’água, assombrações, do boto, do eclipse da lua, do rasga-mortalha,
da cobra encantada e da erva tajá-cobra e da tajá-onça.
O mito do boto
O
primeiro mito que aparece na obra de Elizabeth Azize fala de um personagem
bastante conhecido. Ele surge à moda comum das narrações a seu respeito, pois o
mito do boto, corriqueiro de uma ponta a outra da Amazônia, fala de um rapaz
bonito
todo
vestido de branco, de paletó e tudo, terno bem passado e engomado e um chapéu
branco de fita marrom, na cabeça. Com muita elegância se aproximou de Das
Dores, a moça mais bonita da festa e do Cambixe. — Quer me dá uma parte?
Perguntou o desconhecido, fazendo mesuras à cabocla, cheia de pavulagem e que
nunca havia recebido tanta gentileza. — Dô sim sinhô, sapecou Das Dores. E lá
dançaram, sem parar, das onze até quase meia-noite. Sem quê nem pra quê, o
desconhecido cavalheiro olhou avexado o relógio de ouro que tinha no braço, viu
que ia dar meia-noite, beijou a mão da parceira e saiu empurrando o povo que
lotava o salão, chegando om muito esforço à porta do barracão de dança. E numa
disparada, observada por todos aqueles que se achavam do lado de fora do
barracão, secando o suor, desandou para a beira do rio e sumiu. — Quem era, seu
João? Perguntou a meninada que ouvia de olho arregalado. — Era um boto! — disse
sem nenhum espanto (AZIZE, 2006, pp. 83, 84).
De tão comum na
mitologia amazônica, a narrativa sobre a antropomorfização do cetáceo não
poderia faltar no relato da saga do árabe na região. O prosaísmo do mito do
boto — narrado, inclusive, por Milton Hatoum (2000, p. 162) em Dois Irmãos— chama a atenção para o
papel ou para a funcionalidade simbólica que desempenha a imagem do elemento
água na Amazônia. Aqui, os rios não são somente a fonte de alimento ou as
estradas reais. Eles são o condutor do progresso e o sangue da vida (TOCANTINS,
2000, p. 80). Aqui, o rio solapa a noção de jus
soli, de apego à terra, pois faz parte do ethos regional se dizer que nasceu em tal rio, cortou seringa em
outro, e casou no e viveu certo período em tal afluente. É nas águas que se
encontram os deuses e os totens alvos da fé do caboclo e as personagens dos
mitos amazônicos, como é possível constatar nas narrativas do boto. E é das
águas que surge o tipo humano mais comum da Amazônia: o canoeiro e mariscador
(SOUZA, 2000, p. 834).
Oriundo de um ethos fortemente ligado ao papel
fertilizador do homem, como é a cultura semita, o árabe não compreendeu a
significação desempenhada pelo boto na Amazônia. O lema “vossas mulheres são como
campos para vós” (SOUZA, 2015, p. 4), tal como está no Corão, habita o
imaginário do homem árabe. De maneira que ele não poderia entender que o boto
entra em cena para evitar que o caboclo chefe de família, descendente de
nordestino, tentasse lavar a honra da família expulsando a filha grávida de
casa ou deixando-a na porta de um prostíbulo. Como o homem amazônico vive
isolado pela mata e pela água, a saída encontrada foi dotar o boto de
características antropomórficas e fantásticas. Assim, a mulher não seria
expulsa de casa, não teria culpa e seria aceita pelo grupo social sem
discriminação, pois o mamífero conta com poderes amorosos de encante. Daí
usarem o seu olho para encantamentos: — “Bra quem essa olho de boto, Pretinho?
Perguntou Marmud. — Pro meu irmão, seu Marmud, que ele tá meio azarado com esse
negócio de mulher” (AZIZE, 2006, p. 164).
— “Com quem se parece a criança? — perguntou Gaspar,
cheio de espanto. — Olha, mano, num sei não, mas pela bênção de Nossa Senhora
que o curumim é a fuça do Zecão” (Op.
cit., p. 85). É como termina a narrativa sobre o mito do boto. O parabe não
“engoliu” esse.
A Mãe-d’água
É das águas que surge também a musa do caboclo, a
mulher de seus encantos — a linda e sedutora mãe-d’água, Iara ou Uiara. De
maviosa voz, não há quem possa lhe resistir ao poderoso canto (BULFINCH. 2002,
p. 289). Certa noite, Marmud avisou ao marinheiro do leme que ia dormir para
acordar meia-noite. Foi para o seu camarote e sonhou. “Uma bela mulher
estendia-lhe a mão, saindo do fundo do rio, cheia de brilho nas vestes e uma
magnífica coroa de pedras azuis” (Op.
cit., p. 208):
Mãe-d’água sai do fundo
Que eu quero te ver
És princesa, és rainha
Que o povo crê
Este é o meu reino
Aqui é o meu lugar
Trago de conviva
A quem eu quero amar
Marmud reagiu ao canto tentando acordar, pois sabia
que as intenções da Iara — a sereia europeia — são malignas e fatais (FUNARI,
2002, p. 18). A Senhora das Águas cantava para atrair o árabe para a morte,
mostrando a ele “um caminho aberto no leito do rio” (Op. cit., 2009). Tal como as ninfas marinhas tentavam seduzir os
marinheiros para irem com seus navios de encontro aos rochedos, local onde elas
moravam, assim a Iara tenta encantar Marmud. Mas apesar da música que soava
forte aos seus ouvidos, o árabe “fez um esforço maior e com medo de não
resistir à formosura da mulher do sonho, abriu os olhos à força, empurrou o
corpo para fora do beliche e acordou”. Ele agora se colocava ao lado de
Odisseu, o único homem conhecido a ouvir o canto da sereia e ter sobrevivido,
pois obedeceu a recomendação feita por Circe de tapar os ouvidos de sua
tripulação e pediu para ser amarrado no mastro do navio (HOMERO, 2009, XII, vv.
26-40):
Pois bem; atende agora, e um deus na mente
Meu conselho te imprima. Hás de as sereias
Primeiro deparar, cuja harmonia
Adormenta e fascina os que as escutam:
Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos
Não regozijará nos doces lares;
Que a vocal melodia o atrai às veigas,
Onde em cúmulo assentam-se de humanos
Ossos e podres carnes. Surde avante;
As orelhas aos teus com cera tapes,
Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros.
Meu conselho te imprima. Hás de as sereias
Primeiro deparar, cuja harmonia
Adormenta e fascina os que as escutam:
Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos
Não regozijará nos doces lares;
Que a vocal melodia o atrai às veigas,
Onde em cúmulo assentam-se de humanos
Ossos e podres carnes. Surde avante;
As orelhas aos teus com cera tapes,
Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros.
O árabe Marmud conseguira resistir ao canto da
mãe-d’água. No entanto, é interessante notar de que modo esse mito se revela em
sua vida: em sonho. Considerando que, para a ciência, o sonho é uma experiência
do inconsciente durante nosso período de sono, é possível afirmar que a imago da Iara habitava o complexo
psíquico de Marmud ─ background ─,
brotando, agora, na busca pela realização de desejos reprimidos, como afirma a
teoria psicanalítica de Freud (FREUD, 1999). Dito de outra maneira, se o que o
indivíduo sonha tem importância para ele, significa dizer que o mito da
mãe-d’água já havia sido agregado pela reflexão mítica do árabe. Ademais, havia
sido um sonho oniromântico, pois naquela mesma noite a Jatahy, junto com
Marmud, naufragaram, indo para no fundo do rio. Eis o mito do duplo
sepultamento. “Morreu como um fenício, do outro lado do mundo, do mesmo lado da
vida [...] As águas subiram mais com a morte de Marmud. Porque nesse dia, Deus
chorou sobre o rio”.
A rasga-mortalha
Conhecida
também como Suindara, a rasga-mortalha é uma coruja (Tyto alba) que possui fama de maus agouros. Na Amazônia e em
algumas regiões do Nordeste existe a crendice de que quando essa ave passa por
cima de alguma casa soltando um ruído semelhante a um pano sendo rasgado —
donde o nome popular — é sinal de que alguma pessoa por ali vai morrer ou ficar
doente. Coruja-católica, coruja-das-torres ou coruja-de-igreja são as outras
designações para a mesma ave.
O
árabe Marmud singrava o Solimões na altura da Costa do Marrecão, local fértil
de temporal, quando a “rasga-mortalha passou perto do galho do pau, cantando
seu grito de morte. Marmud soltou um berro: — Acrute, vai gorar teu mãe! A ave se foi, porque todos se salvaram,
e até gente nasceu” (AZIZE, 2006, p. 94). Fica evidente que nenhuma doença ou
morte resultou da presença e do grito da ave agoureira. Pelo contrário, Marmud
bendisse em árabe — Niscor Alah! Meu
lancha agora é abençoada por Alah —, pois
a mulher de Davino Doca, que estava prenhe, deu à luz na Jatahy. E agora a sua lancha
era “abençoada”.
Existindo,
na maioria das vezes, para impedir a felicidade do homem amazônico (LOURO,
2007, p. 77), como pode ser evidenciado no romance Chuva Branca (1968) de Paulo Jacob (1921-2004), o mito da
rasga-mortalha parece não ter funcionado com o homem médio-oriental. No
entanto, a algaravia disparada pelo árabe bem na hora do canto do pássaro é
reveladora. O “acrute” pronunciado por Marmud deixa entrever que ele se
inteirara do corpus mythorum amazônico
e agregou em seu pensamento mítico o ethos
regional de tentar espantar o agouro trazido pela ave com um
contra-feitiço. Datada na língua portuguesa desde o ano de 1572, como aponta o
Dicionário Houaiss (2001), o agouro quer dizer o “presságio de acontecimento ou
notícia nefasta com base na observação do voo e canto das aves”. Na Amazônia é
comum as pessoas que ouvem o canto de “pano sendo rasgado” pronunciarem
expressões do tipo “aqui não tem tesoura nem pano, aqui não mora ninguém não”.
Logo, o “acrute” do árabe pode se interpretado como uma dessas palavras ou
fórmulas mágicas usadas pelos amazônidas para afastar o augúrio, algo
semelhante à expressão latina vade retro (afasta-te,
vai para trás), imortalizada por Cristo no Evangelho de São Mateus.
Eclipse da lua
Um
dos fenômenos astronômicos mais extraordinários que existem também virou mito
na Amazônia. O eclipse lunar, causador de temor e admiração em diferentes povos
e diferentes épocas, também vestiu aqui a capa da “interferência de figuras
mitológicas” (RENNER, 2003). Como é narrado em E Deus chorou sobre o rio,
nessa
mesma noite houve eclipse de lua. Os caboclos não entendiam bem essa história,
mas sabiam que tinham de fazer alguma coisa para a lua não se acostumar
escondida. E tanto nas ruas da cidadezinha do Solimões, como nos beiradões, era
gente batendo lata velha, prato de esmalte, garrafa e tudo que fizesse zoada, e
a lua voltar a botar luz na terra. Em Manaus o povo dava de bater com algum
pedaço de ferro ou pedra dura nos postes de ferro da Manaus Light Company (AZIZE,
2006, pp. 128, 129).
O
eclipse de lua é um fenômeno astronômico que ocorre quando a lua é ocultada
totalmente ou parcialmente pela sombra da terra, geralmente visível a olho nu. Mas,
para o homo religiosus, a natureza
nunca é exclusivamente natural,
estando sempre carregada de um valor religioso (ELIADE, 1972, p. 68). É por
isso que “os caboclos não entendiam bem essa história, mas sabiam que tinham de
fazer alguma coisa para a lua não se acostumar escondida”. E recorreram a um
costume perdurado através das eras para impedir que o astro e a sua luz fossem
devorados, pois teve “gente batendo lata velha, prato de esmalte, garrafa e
tudo que fizesse zoada, e a lua voltar a botar luz na terra”. Renner (2003)
ressalta que esse é
um
costume que perdurou desde a Idade Média, e que continuou em pequenas comunidades,
foi o de fazer muita algazarra e barulho por ocasião dos eclipses. O toque dos
gongos pelos chineses e os gritos e batidas produzidos por outros povos tinham
por finalidade afugentar o monstro cosmológico que ameaçava engolir o sol e a
lua.
O
mito ligado ao eclipse lunar é largamente encontrado no topos universal. Os escandinavos, por exemplo, falavam de Skoll e Hati, dois lobos que, com o tempo devorariam o Sol e a Lua. Já os
chineses, de um dragão e os hindus, do demônio Rahu que perseguia o Sol e a Lua, por terem-no denunciado aos
deuses pelo roubo do vinho da imortalidade. Os mexicanos pré-colombianos
flagelavam-se e faziam sacrifícios durante os eclipses, e os antigos romanos
elevavam suas tochas ao céu pedindo por suas vidas. Também é encontrado na
China, onde se acreditava que “um gênio do mal com sua mão direita escondia o
sol e no inicio do fenômeno tinham que ajoelhar e bater a testa contra o chão,
ao mesmo tempo, tocar tamborim e gongos” (AFONSO, 2005).
Não
se sabe, ao certo, por quais meios o costume de fazer algazarra para a “lua não
se acostumar escondida” migrou para a mitologia amazônica. Mas, considerando
que o homo religiosus espera que os
ritmos cósmicos manifestem a ordem, a harmonia e a permanência (ELIADE, 1972, p.
68), a colocação de caos nesse ciclo pelo eclipse causa temor. Daí também que
culturas tão distantes e isoladas revelem um pano de fundo comum, já que um
antigo mito tupi-guarani narre
que
a onça (xivi, em guarani) sempre
persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse solar (kuaray onheama) ou do lunar (jaxi
onheama) os indígenas fazem a maior algazarra, com o objetivo de espantar a
Onça Celeste, pois acreditam que o fim do mundo ocorrerá quando ela devorar a
Lua, o Sol e os outros astros, fazendo com que a Terra caia na maior escuridão.
No céu, a cabeça da onça desse mito é representada pela estrela vermelha
Antares, da constelação zodiacal do Escorpião, e pela estrela Aldebaram, também
vermelha, da constelação zodiacal do Touro. Essas duas constelações ficam no
zodíaco onde, observados da Terra, passam o sol, os planetas e a lua. Assim, de
fato, pelo menos uma noite por mês e um dia por ano, a Lua e o Sol,
respectivamente, aproximam-se de Antares e de Aldebaram (AFONSO, 2005).
E
assim, como em muitos outros aspectos, o ethos
amazônico tem suas origens na cultura indígena. Como quase tudo o que se sabe e
o que se faz na Amazônia, salvaguardado pelo homem que nela habita através dos
tempos, a heurística indígena está envolvida.
Cobra-grande
A
cobra-grande é mais um mito brotando das águas em E Deus chorou sobre o rio. A boiuna, boiaçú, Mbaê-tatá ou boitatá
(do tupi, boi, cobra, e tatá, fogo, significando cobra-de-fogo)
é uma entidade mítica que cresce de forma gigantesca e ameaçadora, abandonando
a floresta e passando a morar no fundo dos rios (CASCUDO, 2002). Às vezes é
vista como um facho cintilante de fogo correndo de um lado para o outro na
mata. Mas Marmud viu o fogo-fátuo descendo o rio:
—
Que cobra, titio? Perguntava Miguel, irmão de Gabriel, que havia entrado na
conversa do balcão. E Ayub contava que assim que começou a regatear, subia pelo
rio São Tomé, no Purus, remando, quando avistou uma luz incandescente descendo
o rio. Parecia uma bola de fogo encarnada. — Vamos esberar lancha “Americana” e
nós bega reboque dela, disse ao prático, que ia com ele a bordo. E esperaram
mais de uma hora, quando a distância da luz não dava meia hora de viagem. Num
pé e noutro a luz sumiu do meião do rio. — Seu Ayub essa luz não é de lancha
não sinhô, disse o prático. É a cobra-grande, no duro sim sinhô, completou todo
espantado, o olho sem desgrudar do rumo de onde estava a luz. — Será, home? —
Tô lhe dizendo patrão (AZIZE, 2006, p. 147)
Diferentemente
de outras regiões do país, na Amazônia o boitatá está sempre ligado aos rios.
No Sul, por exemplo, ele aparece relacionado às grutas escuras e deslizando
pelas campinas. Mas no “mundo das águas”, o boitatá não só mora no fundo dos
rios, como transforma os sulcos por onde rasteja em igarapés. O árabe Marmud
observou que durante uma
“vazante
de rachar terra, quase nenhum pau descendo o rio, mureru morando nos lagos,
mata mais perto da lancha, barulho mais perto do homem, e gemidos de aves, tudo
deixava claro que a seca estava incomodando a morada do bicho-do-fundo. Ninho
de cobra se desfazia buscando água” (AZIZE, 2006, p. 2007).
Reza,
ainda, o mito que a cobra-grande tem o poder de se transformar em outras
coisas, buscando castigar os homens que destroem as matas e rios. Para provar,
Marmud conta uma história ocorrida no Alto Purus, que demonstra que o “mundo
das visagens continua fazendo sentido para as pessoas na Amazônia”
(ARAMBURU-OTAZU, 1996, p. 191). Uma cobra-grande, uma sucuriju “se mexia
lentamente, como se nada lhe estivesse tocando o couro” quando estava sendo
alvejada por cem cartuchos de espingarda.
É
digno de nota que a reflexão mítica do árabe tenha não somente incorporado o
mito da cobra-grande como passado por experiências nas quais o mito tenha se
mostrado o que ele, no fundo, é: uma “história verdadeira”. Navegando pelos
rios da Amazônia, enfrentando perigos mil, Marmud podia dizer “que cobra
encantada existia sim”, senhor (AZIZE, 2006, p. 148).
Tajá-cobra, tajá-onça: ervas de
encanto
O
tajá ou tinhorão (Caladium bicolor) é
uma erva muito venenosa, nativa do Brasil e Peru, de folhas oblongas verdes
manchadas de branco ou verdes com o centro vermelho. Na Amazônia, ele é usado
nos segredos e mistérios da bruxaria nativa, passando a ser chamado de tajá
“curado”. O caboclo é imensamente crédulo em poderes mágicos e encantados de
ervas e cipós. Em Chuva Branca, por
exemplo, o personagem Luis Chato crê que se perdeu na mata porque passou
debaixo do “cipó-jiboia, mato de encanto. Cipó-jiboia tem mesmo parecença com o
diabo” (JACOB, 1968, p. 118). Outros elementos míticos do reino vegetal
amazônico são o cipó-titica e o cipó-ambé.
Em
E Deus chorou sobre o rio, o
protagonista Marmud diz que
conheceu
um caboclo do Arara que curava tajá-cobra e tajá-onça e deixava a planta
tomando conta da tapera quando ia fazer roçado no centro da mata. Nenhum bicho
encostava no lugar. Podia até deixar criança e mulher sem munição que bicho não
aparecia, nem açoitava (AZIZE, 2006, p. 148).
Nessa
história contada pelo árabe a erva tajá é usada para guarda e proteção dás
residências e comércios. Outros são usados para fazer de um homem um bom
caçador ou pescador, e outros ainda para torná-lo invisível. Como um verdadeiro
fenício, aventureiro e navegador, Marmud precisa de “broteção” — como ele
diria. Longe de casa, sempre entrega sua família às bênçãos de Allah. Mas na Amazônia, no inferno
verde, proteção adicional sempre é bem-vinda. Mesmo vindo de uma erva ou de um
cipó.
Considerações Finais
O
mito é uma realidade viva e essencial ao ser humano. Na Amazônia, em especial,
ele pode até ser intercambiado com a realidade, estando presente nos fatos mais
corriqueiros da vida. O homem árabe, na região chegando, aquerenciou a
mitologia existente e incorporou, ao seu modo monoteísta de pensar e de ver o
mundo, elementos fragmentários garimpados diretamente na realidade do homem
amazônico. Tornando-se um bricoleur,
ele formou uma reflexão mítica heteróclita, um composto das cosmovisões
médio-oriental e amazônica.
Alguns
mitos, em virtude de rivalizar fortemente com o seu modo árabe de ser e de
pensar, ele teve dificuldades para congregar. O do boto, por exemplo, que ele
jamais poderia aceitar a função social que tem o cetáceo na vida isolada da
Amazônia, uma vez que é tão viva nele a ideologia do papel fertilizador do
homem. O seu pensamento viril não acolhe esse apagamento da função masculina no
âmbito da procriação. Já outros mitos, como o da mãe-d’água, o da
rasga-mortalha e o da cobra-grande ele se apropriou como um autêntico
autóctone.
Na
Amazônia, o árabe se caboclizou. Veio trazer a sua força, a sua fé e a sua
teimosia. Uniu o oriente Médio e a hinterlândia amazônica, sendo a ponte e o
elo entre as duas mitologias e culturas. A sua força e a sua teimosia transformaram
a mitologia de impedimento, responsável, em grande parte, pelos óbices
enfrentados pelo homem amazônico. O boto não o enganou; a mãe-d’água não o
arrastou para o fundo do rio e a rasga-mortalha não lhe trouxe doença ou morte.
Ele criou um novo topos para a
Amazônia ─ o topos do Persista, Não Desita, Lute até o Fim. Fez
jus à teimosia genética dos ismaelitas.
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[i] Lat. “Naquele tempo”... Eliade
(1972, p. 13), por exemplo, diz que o homem “é mortal porque algo aconteceu in illo tempore”. Ou seja, naquele
tempo...
[ii] Superlativo grego traduzido como
“o poeta mais trágico de todos”, como Aristóteles chama a Eurípedes na obra Arte Poética (CARPEAUX, 2011, p. 176).
[iii] Eclesiastes capítulo 3, verso
11: “Ele fez tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o
anseio pela eternidade: mesmo assim este não consegue ver inteiramente o que
Deus fez”.