O MITO E O ÁRABE, EM 'E DEUS CHOROU SOBRE O RIO'


Jamescley Almeida de Souza
Graduado em Letras – Língua Inglesa (UNINORTE)


RESUMO:
Este trabalho trata da relação do homem árabe com a mitologia amazônica, conforme é narrado em E Deus chorou sobre o rio (2006). De Elizabeth Azize, a obra revela como esse médio-oriental chegou à Amazônia, se embrenhou pelas matas e pelos rios e conseguiu nela criar o seu nicho particular e inamovível. As sagas e as aventuras narradas estão cheias de histórias de entidades míticas — o boto, a mãe-d’água, a rasga-mortalha, as assombrações e a cobra-grande — dão testemunho da robusta mitologia presente na Grande Planície. Este trabalho tem como objetivo descrever como esse monoteísta se comportou diante dos mitos amazônicos encontrados por ele e tentar interpretar a reflexão mítica que resultou dessa experiência.
Palavras-chave: Mito. Árabe. Comportamento. Reflexão mítica. Amazônia.
ABSTRACT:
This paper deals with the relationship between the Arab and the Amazonian mythology, as it is narrated in E Deus chorou sobre o rio (2006). Writeen by Elizabeth Azize, the work revels how this middle-oriental man arrived at the Amazon, penetrated woods and rivers, and created his particular and immobile place. The sagas and adventures narrated are full of stories about mythical entities ─ Amazonian dolphin, Water mother, ghosts and Anaconda ─ give testimony about the powerful mythology settled in the Great Plain. This paper aims to describe how this monotheist man conducted himself before the Amazonian myths met by him, and tries to interpret the mythical reflexion resultant from this experience
Keywords: Myth. Arab. Behavior. Mythical reflexion. Amazon.


Introdução

O tipo humano árabe é um dos pilares da cultura da Amazônia. Ao lado dos elementos indígena, europeu e negro ele ajudou a dar formação à matriz biológica e sociocultural presente no Grande Vale. Com sua coragem, força incansável para o trabalho e uma excepcional habilidade para os negócios, esse membro dos povos semíticos construiu seu nicho inamovível na Amazônia e conseguiu deitar raízes em suas plagas. Aqui chegando, ao final do século XIX e início do século XX, ele logo se embrenhou pelos rios e pelas matas e fez de suas aventuras em seu regatão um conto tão famoso e grandíloquo como aqueles narrados nas Mil e uma noites. Seus descendentes — já caboclos — elaboraram, mais tarde, verdadeiros repositórios de suas sagas, dando origem a fontes profusas da história da imigração árabe na hinterlândia amazônica. E Deus chorou sobre o rio (2006), de Elizabeth Azize, se ergue imponentemente como uma dessas histórias.
Narrando a história de vida do personagem Marmud, a obra de Azize é uma exposição das peripécias vividas pelo representante da coletividade árabe. Entremeando histórias entre Manaus, Manacapuru, Itacoatiara e rios vizinhos, a narrativa ressoa a fibra do homem médio-oriental nos alhures amazônicos, mesmo no Purus, lá para as bandas de Canutama. Sua epopeia em seu combate para superar os duros óbices da realidade do homem do Norte se mescla ao folclore político do interior, às marotagens do mundo do comércio, às tramas de homicídios, às cenas de sexo e a muitos mitos amazônicos.
Nesses trópicos a inveterada fé do homem árabe, antiga e firmemente estabelecida, entrou em contato com o sincretismo religioso prevalecente no lugar. Ele aquerenciou mesmo muito do mosaico formado pela mitologia e pelo animismo embrionário herdado dos indígenas (ARAÚJO, 2003, p. 158). Mitos e lendas amazônicas, como a cobra-grande, o olho de boto, a mãe-d’água, o rasga-mortalha e as assombração são os elementos de que Marmud e seus filhos se valem para cingir sua cultura, seu modo de pensar e seu modo de ver o mundo. O encontro do árabe monoteísta com a robusta mitologia amazônica fez dele um bricoleur, palavra de origem francesa cunhada por Lévi-Strauss (1989, p. 32) para designar o processo por meio do qual o pensamento ou a reflexão mítica são formados. O bricoleur é aquele que faz bricolagem, uma criação do modo de pensar a partir de “materiais fragmentários”, dando origem a um “repertório cuja composição é heteróclita”. Quando, na Amazônia, o semita árabe encontrou essa mitologia, um modo de lidar com ela, de tipo único e particular, todo seu, teve formação: ele se tornou um bricoleur. Este trabalho tem como objetivo descrever o comportamento árabe frente à mitologia amazônica e tentar interpretar a reflexão mítica que desse encontro resulta.

O mito
Impressiona a maneira como o conceito de mito (gr. mythos, relato, história) só duramente se deixa explicar. Nada parece ser tão banal ao fundo comum da humanidade e ao mesmo tempo tão controverso e de tão difícil apreensão. Filosoficamente, chega mesmo a constituir verdadeira dialética, um conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos. Como instância mediadora, atrela-se a ele a coincidentia oppositorum (BOSI, 1992, p. 166) e é “uma realidade extremamente complexa” (ELIADE, 1972, p. 9). Em Jung (1875-1961), por exemplo, eles “são imagens arquetípicas, constituídos historicamente e socialmente por meio de cuja decifração se pode chegar a elementos comuns a toda a humanidade” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 111). Já em Ovídio “é o campo de tensão em que tais forças se defrontam e se equilibram” (CALVINO, 1993, p. 34). De outra sorte, ele pode ser tomado como uma narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, veiculado por certas sociedades humanas (ELIADE, 1979, p. 34), e aí se tem o mito de Isis e Osíris, o mito de Prometeu, o de Baldr (filho de Odin) ou o mito do olho de boto. Da mesma maneira também pode ser entendido como uma crença não-justificada, comumente aceita e que, no entanto, pode e deve ser questionada do ponto de vista filosófico. Daí o mito da neutralidade científica, o mito do bom selvagem, o da superioridade da raça branca ou o mito do simples, proposto por Alfred Sauvy (RICOEUR, 1990, p. 152).
Parte dessa confusão origina-se do fato de a palavra grega para mito ter sofrido corruptelas ao longo do tempo e ter adquirido reputação ruim em alguns círculos (PALMER, 2001, p. 39). Originalmente, as mythoi gregas, traduzidas por histórias ou relatos, eram palavras perfeitamente boas, frequentemente sobre os deuses e sua interação com os seres humanos, e não tinham o sentido de história fantasiosa que adquiriu posteriormente (CARTLEDGE, 2009, p. 440). Com o passar do tempo, entretanto, a mitologia grega caiu em má fama e os seus mitos vieram a ser vistos como histórias não baseadas em fatos, histórias falsas.
O primeiro golpe é dado pelo surgimento da filosofia grega, reprimindo o mythos pelo logos, instaurando o niilismo e fazendo da aletheia o termo capital da investigação (FAYE, 2009, p. 16). Em seguida, a depreciação toma volume à luz da cultura judaico-cristã e da sua cosmovisão de deuses pagãos garimpada no contexto sócio-histórico do povo de Israel e das nações circunvizinhas. O culto aos deuses pagãos em detrimento do culto exclusivo exigido por Javé custou caro ao hebreu, o que o fez afastar de si toda e qualquer conotação idólatra da religião cananeia após a deportação de Judá para a Babilônia, sob o rei Nabucodonosor (VII a.C.) em 605 a.C. Os primeiros teólogos cristãos, na busca pela historicidade de Jesus, também impulsionaram o conceito (ELIADE, 1972, p. 115) e a Europa cristã, herdeira religiosa dessa ideologia, influenciará daí quase toda a cultura ocidental, pouco se importando em distinguir se o mito se tratava de uma narrativa verdadeira ou não. A Eliade (1972, p. 6) a palavra:

Todos sabem que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470 a.C.) — que foi o primeiro a criticar e rejeitar as expressões "mitológicas" da divindade utilizadas por Homero e Hesíodo — os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo valor religioso e metafísico. Em contraposição ao logos; assim como, posteriormente, à história, o mythos acabou por denotar tudo "o que não pode existir realmente". O judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da "falsidade" ou "ilusão" tudo o que não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos.

Hoje, todavia, os mitólogos reconhecem que “a avaliação da verdade de um mito é um item separado da questão do papel que desempenha na cosmovisão [...]. Mesmo que não fosse historicamente factual, ainda pode funcionar como narrativa que contribui de modo importante” (PALMER, 2001, p. 39). Por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, o mito passou a ser tratado não na acepção usual do termo — fábula ou invenção —, mas  tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde designa uma história verdadeira (ELIADE, 1972, p. 6). E ai, como em um verdadeiro mito de regressus ad uterum, o conceito toma o caminho contrário na pós-modernidade, se ressemantiza e passa a ser entendido como no princípio da reflexão filosófica, quando “era poderosa a mistura entre a via racional e o veio místico-religioso” (LIMA, 1980, p. 8). Passou-se a compreender, a partir de Schelling (1775-1854) e de sua Filosofia da Mitologia, que

a mitologia [...] não tem outro sentido senão aquele que ela exprime. [...] Verificada a necessidade com a qual nasce igualmente a sua forma, ela é inteiramente própria, ou seja, devemos entendê-la exactamente como ela se exprime, e não como se ela pensasse urna coisa e dissesse outra. A mitologia nao é alegórica: ela é tautegórica [termo que Schelling vai buscar a Coleridge]. Para ela, os deuses são seres que realmente existem; em vez de serem urna coisa e significarem outra, eles só significam aquilo que são (TODOROV, 1977, p. 172).

Como lembra Calvino (1993, p. 24), falando da Odisseia, “talvez para Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse a mesma experiência ora na linguagem do vivido ora na linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é Odisseia”.

Mito e literatura
A relação existente entre mito e literatura é primeva e origina-se, em grande parte, do poder e do fascínio exercido por essas narrativas. Lá atrás, in illo tempore[i], quando o tempo e a vida humana transcorriam mergulhados nelas sem qualquer preocupação em indagar o que elas vinham a ser, uma classe de homens começou a se mostrar mais interessada por elas do que o homem comum (PATAI, 1974, p. 20). Os poetas — como essa tribo ficou mais tarde conhecida — foram, pois, os primeiros homens a coligir mitos e a emprestar-lhes formas rítmicas, levando os outros homens a aceitar e recordar as novas versões. Aristóteles, a propósito, disse que “o poeta era antes de tudo um artífice de mitos” (ARISTÓTELES, IV a.C. apud LIMA, 1980, p. 1). E apesar do fato de que quase tudo o que os homens possuem sobre ciência está “fundado sobre a base do que foi inventado pelos gregos” (BACON, 2002, p. 45), a preservação do mito se deu, em grande parte, às expensas dos poetas que vieram antes dos gregos e romanos. Na verdade, bem antes que o maior tragikotatos[ii] grego (Eurípedes) surgisse em cena, poetas sumerianos, acadianos, hititas e cananeus acreditavam nos mitos que incorporavam aos seus poemas épicos e os usavam como tema de seus versos (PATAI, 1974, p. 20). Dizer que o mundo deve a salvaguarda do antigo corpus mithorum do Oriente Próximo quase que exclusivamente ao primitivo interesse poético não seria um exagero.
Como fundo comum da humanidade, o mito é “um vislumbre real embora mal focalizado da verdade divina percebida pela imaginação humana” (LEWIS, 2006, P. 109). É uma história verdadeira e extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo (ELIADE, 1972, p. 6). Por revelar verdades naturalistas e morais e por ser a imagem original do espírito, o mito parece antecipar descobertas científicas, como aponta Sigmund Freud (1856-1939). Em Délires et rêves na Gradiva de Jensen (1907), o psicanalista austríaco revela que encontrou na novela fantástica de um escritor contemporâneo as antecipações de suas próprias hipóteses clínicas, apontando para o pano de fundo comum da humanidade presente no inconsciente:

Poetas e romancistas são nossos preciosos aliados, e seu testemunho deve ser posto bem alto, pois conhecem mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa sabedoria escolar não pode sequer sonhar. Dominam o conhecimento das almas, são nossos mestre, pois bebem em fontes que ainda não tornamos disponíveis à ciência (ROGER, 2002, pp. 96,97).

Daí que o poeta que, no edifício de sua obra de imitação, quis falar de modo profundo ao destinatário coletivo de sua literatura teve que recorrer às mythoi. Em Fédon, Sócrates julga “que um poeta para ser verdadeiramente um poeta deve empregar mitos e não raciocínios” (PLATÃO, [IV a. C.] 1991, p. 110). E realmente falou de forma mais perene ao coração de gerações e gerações o poeta que soube reconhecer e cultivar o significado dos mitos. É dessa maneira que se distingue a primazia de Homero (ca. VIII a.C.) entre os autores ocidentais, cujos poemas épicos — Odisseia e Ilíada — falaram eloquentemente a todos os gregos de todas as épocas. E tentar responder por que eles continuam a ressoar com grande impacto ainda hoje aos homens da civilização ocidental é descobrir que a obra do “maior dos poetas” (CARPEAUX, 2011, p. 159) “ultrapassou as categorias conscientes do estilo ou da sintaxe” (ROGER, 2002, p. 99) e logrou um alcance insuspeito para além do contexto que a viu nascer e a determinou; que o homem cujo nome se tornou sinônimo de poeta explorou como nenhum outro homem já fez o significado último dos mitos, que “têm a ver com os impulsos profundos de nossa psique” (PALMER, 2001, p. 40); que o mito tem um significado comunal predominante, pois ele “não é apenas sobre mim: é sobre nós” (SMART, 1995, p. 94). A história de Odisseu não é a história de um grego somente; mas a do povo helênico inteiro. E, pelo fundo comum sustentado pelo mito, é a história de todos os seres humanos.
Na Grécia Antiga, os mitos eram passados de boca a boca nas assembleias públicas, nos mercados, nos teatros, nos lares, sobretudo através das mulheres, como ocorria na relação entre as amas-de-leite e os filhos dos colonos, narrado por Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (2003). Quando foram passar à forma escrita já moldavam o quadro mental por meio do qual os gregos naturalmente imaginavam a vida, o mundo e os deuses. As mythoi eram o verdadeiro fundamento da cidade grega. Foi o entrelaçamento complexo e hábil dos mitos locais com os mitos helênicos em geral que proporcionou a Píndaro, por exemplo, garantir a unidade do mundo grego (BAKHTIN, 1997, p. 275). Não havia uma colina ou enseada na costa helênica aonde eles não chegassem. Veiculado pela voz dos poetas, “o fundo eternamente humano” torna-se acessível à inteligência (VERNANT, 2006, p. 15) e consistirá no único conteúdo possível da tragédia grega, fornecido pela tradição (CARPEAUX, 2011, p. 172). O teatro da Antiguidade deve ao poder destes a sua enorme força.

A estrutura dos mitos
O mito é a história dos entes sobrenaturais (ELIADE, 1972, p. 9). Ele fala de uma realidade que passou a existir em virtude do que estas personagens fizeram no tempo do primórdio. Daí a numerosa existência de mitos teogônicos, teológicos, antropogônicos e cosmogônicos, pois ele se refere sempre a uma criação. Seja uma realidade total que passou a existir, seja o cosmo, uma ilha, um fragmento, uma instituição ou um comportamento humano. A conduta e as atividades profanas do homem têm por modelo as façanhas dos entes sobrenaturais. Eliade (Op. cit., p. 10) lembra que entre os Navajos, por exemplo, "as mulheres devem sentar-se sobre as pernas, que estarão voltadas para um lado, e os homens com as pernas cruzadas à sua frente, porque foi dito que, no princípio, a Mulher Cambiante e o Matador de Monstros se sentaram nessas posições".
Como é possível perceber, o mito sempre narra ou conta uma história (LÉVIS-STRAUSS, 1989, p. 41). Essa história é sagrada e é considerada absolutamente verdadeira, pois fala de uma realidade (ELIADE, 1972, p. 18). Ele parte de uma estrutura por meio da qual empreende a construção de um conjunto que é o objeto mais o fato (LÉVIS-STRAUSS, 1989, p. 41). Nesse sentido, o mito pode ser definido “como um sistema semiológico segundo construído sobre uma série semiológica já existente antes dele [...]. A língua, enquanto sistema semiológico primeiro é a matéria prima ou a linguagem objecto do mito enquanto sistema semiológico segundo” (FIDALGO, 1998, p. 12).
Outro caráter é que o mito precisa ser conhecido. Não de forma exterior ou abstratamente, mas de uma maneira que ele possa ser vivido (ELIADE, 1972, p. 18). Daí a razão e a necessidade do mito ter atrelado a si o ritual, pois este elemento “recria um evento, tornando-o real no presente” ou “facilita a transição de um estado a outro” (PALMER, 2001, pp. 49, 50). Na celebração do Dia da Independência dos Estados Unidos da América, por exemplo, costuma-se soltar fogos de artifício à noite cuja função é representar os disparos dos mosquetes e a detonação dos canhões durante a Guerra Revolucionária. Já no segundo exemplo têm-se o bar mitzvah, o batismo cristão ou as cerimônias de graduação nas instituições educacionais. Geralmente utilizando uma classe especial de palavras e ações, eles põem em relevo características comuns da linguagem frequentemente ignoradas. Algumas palavras são banais, mas outras são “executantes”, ou seja, elas fazem coisas, como chama atenção a Teoria dos Atos de Fala postulada pelo filósofo oxfordiano John L. Austin (1911-1960), em seu livro How to Do Things with Words (1975).
Em qualquer sistema mítico também é certa a presença de certos aspectos (LEACH, 1983, p. 62). Um deles é o que é chamado de discriminação binária, em que se estabelecem categorias opostas (Op. cit., p. 58). Assim se tem o céu e o inferno, a vida e a morte, o tipo humano e o sobre-humano, o mortal e o imortal, o bom e o mau, o masculino e o feminino etc. Essas oposições binárias são completamente intrínsecas ao processo do pensamento humano e são, universalmente, as mais importantes oposições.
É forte, ainda, no mito a mistura entre ciência e religião, crença e experiência. Filósofos gregos do século VI a. C., como Tales e Pitágoras, examinaram os mitos e os acharam deficientes em razão desse caráter (PATAI, 1974, p. 20). Cosmovisões como a judaico-cristã e o racionalismo ajudaram a incrementar a separação entre os dois aspectos e durante muito tempo o mito foi visto como “uma função fabuladora que volta as costas à realidade” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 31). Mas no princípio não havia distinção entre essas narrações e a História, e era forte a relação entre o pensamento mitológico e o pensamento racional.

Função dos mitos
A principal função do mito “consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1972, p. 10). O mito lhe ensina as histórias primordiais que o constituíram existencialmente, e tudo o que se relaciona com a sua existência e com o seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. Ele ajuda a suportar a dor da existência (ECO, 1991, p. 234). Por esta função que desempenha, um mito nunca é narrado indiferentemente e sua recitação nunca é “desprovida de consequências para quem o recita nem para quem os escuta. Pelo simples fato da narração de um mito, o tempo profano é — pelo menos simbolicamente — abolido: narrador e auditório são projetados num tempo sagrado e mítico” (ELIADE, 1979, p. 57).

Como os mitos sobrevivem
O mito continua a ser o símbolo supremo da ligação entre o mundo divino e o mundo humano (CARPEAUX, 2011, p. 174). Ainda hoje sempre que um mito é recitado o homem se esquece de sua condição profana e de sua situação histórica (ELIADE, 1977, p. 57). O mythos derruba os muros levantados pela ilusão da existência profana e projeta o homem num plano sobre-humano e sobre-histórico, aproximando-o de uma Realidade. Nela o homem espera alcançar os valores axiológicos e transcendentes que possam ser capazes de guiá-lo e de conferir uma significação à sua existência. A eterna busca por essa Realidade é a razão de ser da perduração do mito, pois somente por meio dele ela pode ser alcançada (CARTLEDGE, 2009, p. 58).
O mito sobrevive ainda hoje porque existe no ser humano o imperativo de se conectar e de rasgar o véu ilusório criado pelo tempo profano; mesmo sendo mortal, o homem aspira à imortalidade; a eternidade foi posta no coração dele[iii]. Daí a universalidade e a perpetuidade do mito, já que é perpétua a necessidade humana nesse sentido. E essa mesma tendência vai se encontrar igualmente em todos, seja nos civilizados, nos primitivos ou nos selvagens. “Os símbolos e os mitos vêm de muito longe: fazem parte do ser humano e é impossível não os encontrar em alguma situação existencial do homem no Cosmos” (ELIADE, 1979, p. 26).
Outra razão do mito perdurar é a sua maleabilidade (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2007, p. 9). Mitos da Antiguidade podem ser renovados e recontados sob diversas formas para o homem moderno. Patai (1974, p. 16) pontua, por exemplo, que

a mecânica e o sexo são os temas predominantes na consciência pública. Mas acontece que vamos encontrar a mecânica e o sexo como temas igualmente predominantes, ou pelo menos igualmente importantes, na mitologia grega, hajam visto os mitos de Dédalo, o grande artífice, e Afrodite. Eles foram reformulados para a nossa moderna sociedade industrial [...] Não é a sobrevivência (grifos do autor) do passado no presente, por mais importante que fosse uma análise nesse sentido, mas um tópico muito diferente: o exame das forças e processos mitopoéticos vivos que atuam em nossa cultura. Claro está que tais forças e processos são fundamentalmente idênticos aos que motivaram o homem nos séculos passados. Na realidade, essa precisa semelhança deveria recordar-nos que os produtos em que podemos observar a ação das forças mitopoéticas não constituem mera herança nem sobrevivência do passado, mas resultam de um vivo e real dinamismo psicossocial, que opera na psique do homem moderno em grau tao intenso quanto aquele em que operou em gerações do passado remoto.

Mas em outras sociedades humanas a presença do mito é tão viva que reformulações consideradas mais pertinentes às circunstâncias modernas são prescindíveis. Nas assim chamadas camadas populares o mito reside em toda a sua força. Mesmo que ainda hoje ele influa no pensamento dos teóricos da antropologia e da teologia, transpareça nas ideias dos marxistas e sustente os manjares oferecidos pelos programas televisivos, são as camadas populares que o guardam com tenacidade (CARPEAUX, 2011, p. 166). A grandeza da obra mítica de Hesíodo (VII a. C.), por exemplo, vem, em parte, do enfoque dado a essa classe — os camponeses —, como aparece em Os Trabalhos e os Dias.

Os mitos e a Amazônia
A Amazônia é permeada por mitos. Praticamente tudo, na região, é influenciado por essas narrativas (GARCIA, 2010, p. 18). A vida do homem amazônico, em seus fatos mais corriqueiros e triviais, é efusivamente dominada e alimentada pelas faladas crendices. Costa (2006, p. 2), ao estudar a “vivência marcada pelo estigma da floresta” percebeu “toda uma riqueza de valores, de crenças, de mitos e de estetizações da vida e da cultura dentro da mata”. Parte disso se deve ao fato de a Amazônia ter sido o cenário perfeito encontrado pelos europeus para a difusão de seus mitos e lendas garimpados na cultura e na ideologia greco-romana-ibérica-renascentista (TOCANTINS, 2000, p. 64). Como constatará, mais tarde, Gondin (1994, p. 9), “a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída”. Ela foi inventada.
A representação mítica da Amazônia, entretanto, não ficou no passado. Construí-la de forma objetiva, fundada em bases científicas, como sonhou Euclides da Cunha (1866-1909) em Á margem da história, ou metamorfoseá-la “pelo poder da indústria e da agricultura tecnológica”, como vislumbrou Franklin Távora em O Cabeleira (MURARI, 2014, p. 57), não foi possível. Daí que ainda hoje as representações feitas sobre a região no discurso nacional evocam antigas utopias ligadas a conquistas do território inóspito e uma época de ouro que já passou. No discurso da imprensa nacional a Amazônia parece não ter conseguido se desvencilhar dessa forma mítica de construir o lugar. Topos como o do espaço feliz e o da riqueza fácil são comuns, colocando a paisagem amazônica diretamente entre o cenário perfeito e maravilhoso e o lugar que salvaguarda a riqueza do Eldorado, a Terra Prometida, o futuro do planeta, o pulmão do mundo, “a área de incalculável potencial” (CHAVES, 2009, p. 153).


           O comportamento e a reflexão mítica do árabe frente à mitologia amazônica

Em E Deus chorou sobre o rio estão alguns dos principais arquétipos míticos da Amazônia. A obra de Azize passa a percepção da presença de um verdadeiro corpus mythorum regional, constituindo a existência de um patrimônio cultural imaterial referenciado em elementos intangíveis representativos do homem, em seu percurso terrestre transmitidos de geração em geração. É dessa maneira que, relatando a saga do homem médio-oriental na Amazônia, aparecem as narrativas da cobra grande, da mãe-d’água, assombrações, do boto, do eclipse da lua, do rasga-mortalha, da cobra encantada e da erva tajá-cobra e da tajá-onça.

O mito do boto
O primeiro mito que aparece na obra de Elizabeth Azize fala de um personagem bastante conhecido. Ele surge à moda comum das narrações a seu respeito, pois o mito do boto, corriqueiro de uma ponta a outra da Amazônia, fala de um rapaz bonito

todo vestido de branco, de paletó e tudo, terno bem passado e engomado e um chapéu branco de fita marrom, na cabeça. Com muita elegância se aproximou de Das Dores, a moça mais bonita da festa e do Cambixe. — Quer me dá uma parte? Perguntou o desconhecido, fazendo mesuras à cabocla, cheia de pavulagem e que nunca havia recebido tanta gentileza. — Dô sim sinhô, sapecou Das Dores. E lá dançaram, sem parar, das onze até quase meia-noite. Sem quê nem pra quê, o desconhecido cavalheiro olhou avexado o relógio de ouro que tinha no braço, viu que ia dar meia-noite, beijou a mão da parceira e saiu empurrando o povo que lotava o salão, chegando om muito esforço à porta do barracão de dança. E numa disparada, observada por todos aqueles que se achavam do lado de fora do barracão, secando o suor, desandou para a beira do rio e sumiu. — Quem era, seu João? Perguntou a meninada que ouvia de olho arregalado. — Era um boto! — disse sem nenhum espanto (AZIZE, 2006, pp. 83, 84).

De tão comum na mitologia amazônica, a narrativa sobre a antropomorfização do cetáceo não poderia faltar no relato da saga do árabe na região. O prosaísmo do mito do boto — narrado, inclusive, por Milton Hatoum (2000, p. 162) em Dois Irmãos— chama a atenção para o papel ou para a funcionalidade simbólica que desempenha a imagem do elemento água na Amazônia. Aqui, os rios não são somente a fonte de alimento ou as estradas reais. Eles são o condutor do progresso e o sangue da vida (TOCANTINS, 2000, p. 80). Aqui, o rio solapa a noção de jus soli, de apego à terra, pois faz parte do ethos regional se dizer que nasceu em tal rio, cortou seringa em outro, e casou no e viveu certo período em tal afluente. É nas águas que se encontram os deuses e os totens alvos da fé do caboclo e as personagens dos mitos amazônicos, como é possível constatar nas narrativas do boto. E é das águas que surge o tipo humano mais comum da Amazônia: o canoeiro e mariscador (SOUZA, 2000, p. 834).
Oriundo de um ethos fortemente ligado ao papel fertilizador do homem, como é a cultura semita, o árabe não compreendeu a significação desempenhada pelo boto na Amazônia. O lema “vossas mulheres são como campos para vós” (SOUZA, 2015, p. 4), tal como está no Corão, habita o imaginário do homem árabe. De maneira que ele não poderia entender que o boto entra em cena para evitar que o caboclo chefe de família, descendente de nordestino, tentasse lavar a honra da família expulsando a filha grávida de casa ou deixando-a na porta de um prostíbulo. Como o homem amazônico vive isolado pela mata e pela água, a saída encontrada foi dotar o boto de características antropomórficas e fantásticas. Assim, a mulher não seria expulsa de casa, não teria culpa e seria aceita pelo grupo social sem discriminação, pois o mamífero conta com poderes amorosos de encante. Daí usarem o seu olho para encantamentos: — “Bra quem essa olho de boto, Pretinho? Perguntou Marmud. — Pro meu irmão, seu Marmud, que ele tá meio azarado com esse negócio de mulher” (AZIZE, 2006, p. 164).
— “Com quem se parece a criança? — perguntou Gaspar, cheio de espanto. — Olha, mano, num sei não, mas pela bênção de Nossa Senhora que o curumim é a fuça do Zecão” (Op. cit., p. 85). É como termina a narrativa sobre o mito do boto. O parabe não “engoliu” esse.

A Mãe-d’água
É das águas que surge também a musa do caboclo, a mulher de seus encantos — a linda e sedutora mãe-d’água, Iara ou Uiara. De maviosa voz, não há quem possa lhe resistir ao poderoso canto (BULFINCH. 2002, p. 289). Certa noite, Marmud avisou ao marinheiro do leme que ia dormir para acordar meia-noite. Foi para o seu camarote e sonhou. “Uma bela mulher estendia-lhe a mão, saindo do fundo do rio, cheia de brilho nas vestes e uma magnífica coroa de pedras azuis” (Op. cit., p. 208):

Mãe-d’água sai do fundo
Que eu quero te ver
És princesa, és rainha
Que o povo crê
Este é o meu reino
Aqui é o meu lugar
Trago de conviva
A quem eu quero amar

Marmud reagiu ao canto tentando acordar, pois sabia que as intenções da Iara — a sereia europeia — são malignas e fatais (FUNARI, 2002, p. 18). A Senhora das Águas cantava para atrair o árabe para a morte, mostrando a ele “um caminho aberto no leito do rio” (Op. cit., 2009). Tal como as ninfas marinhas tentavam seduzir os marinheiros para irem com seus navios de encontro aos rochedos, local onde elas moravam, assim a Iara tenta encantar Marmud. Mas apesar da música que soava forte aos seus ouvidos, o árabe “fez um esforço maior e com medo de não resistir à formosura da mulher do sonho, abriu os olhos à força, empurrou o corpo para fora do beliche e acordou”. Ele agora se colocava ao lado de Odisseu, o único homem conhecido a ouvir o canto da sereia e ter sobrevivido, pois obedeceu a recomendação feita por Circe de tapar os ouvidos de sua tripulação e pediu para ser amarrado no mastro do navio (HOMERO, 2009, XII, vv. 26-40):

Pois bem; atende agora, e um deus na mente
Meu conselho te imprima. Hás de as sereias
Primeiro deparar, cuja harmonia
Adormenta e fascina os que as escutam:
Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos
Não regozijará nos doces lares;
Que a vocal melodia o atrai às veigas,
Onde em cúmulo assentam-se de humanos
Ossos e podres carnes. Surde avante;
As orelhas aos teus com cera tapes,
Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros.

O árabe Marmud conseguira resistir ao canto da mãe-d’água. No entanto, é interessante notar de que modo esse mito se revela em sua vida: em sonho. Considerando que, para a ciência, o sonho é uma experiência do inconsciente durante nosso período de sono, é possível afirmar que a imago da Iara habitava o complexo psíquico de Marmud ─ background ─, brotando, agora, na busca pela realização de desejos reprimidos, como afirma a teoria psicanalítica de Freud (FREUD, 1999). Dito de outra maneira, se o que o indivíduo sonha tem importância para ele, significa dizer que o mito da mãe-d’água já havia sido agregado pela reflexão mítica do árabe. Ademais, havia sido um sonho oniromântico, pois naquela mesma noite a Jatahy, junto com Marmud, naufragaram, indo para no fundo do rio. Eis o mito do duplo sepultamento. “Morreu como um fenício, do outro lado do mundo, do mesmo lado da vida [...] As águas subiram mais com a morte de Marmud. Porque nesse dia, Deus chorou sobre o rio”.

A rasga-mortalha
Conhecida também como Suindara, a rasga-mortalha é uma coruja (Tyto alba) que possui fama de maus agouros. Na Amazônia e em algumas regiões do Nordeste existe a crendice de que quando essa ave passa por cima de alguma casa soltando um ruído semelhante a um pano sendo rasgado — donde o nome popular — é sinal de que alguma pessoa por ali vai morrer ou ficar doente. Coruja-católica, coruja-das-torres ou coruja-de-igreja são as outras designações para a mesma ave.
O árabe Marmud singrava o Solimões na altura da Costa do Marrecão, local fértil de temporal, quando a “rasga-mortalha passou perto do galho do pau, cantando seu grito de morte. Marmud soltou um berro: — Acrute, vai gorar teu mãe! A ave se foi, porque todos se salvaram, e até gente nasceu” (AZIZE, 2006, p. 94). Fica evidente que nenhuma doença ou morte resultou da presença e do grito da ave agoureira. Pelo contrário, Marmud bendisse em árabe — Niscor Alah! Meu lancha agora é abençoada por Alah —, pois a mulher de Davino Doca, que estava prenhe, deu à luz na Jatahy. E agora a sua lancha era “abençoada”.
Existindo, na maioria das vezes, para impedir a felicidade do homem amazônico (LOURO, 2007, p. 77), como pode ser evidenciado no romance Chuva Branca (1968) de Paulo Jacob (1921-2004), o mito da rasga-mortalha parece não ter funcionado com o homem médio-oriental. No entanto, a algaravia disparada pelo árabe bem na hora do canto do pássaro é reveladora. O “acrute” pronunciado por Marmud deixa entrever que ele se inteirara do corpus mythorum amazônico e agregou em seu pensamento mítico o ethos regional de tentar espantar o agouro trazido pela ave com um contra-feitiço. Datada na língua portuguesa desde o ano de 1572, como aponta o Dicionário Houaiss (2001), o agouro quer dizer o “presságio de acontecimento ou notícia nefasta com base na observação do voo e canto das aves”. Na Amazônia é comum as pessoas que ouvem o canto de “pano sendo rasgado” pronunciarem expressões do tipo “aqui não tem tesoura nem pano, aqui não mora ninguém não”. Logo, o “acrute” do árabe pode se interpretado como uma dessas palavras ou fórmulas mágicas usadas pelos amazônidas para afastar o augúrio, algo semelhante à expressão latina vade retro (afasta-te, vai para trás), imortalizada por Cristo no Evangelho de São Mateus.

Eclipse da lua
Um dos fenômenos astronômicos mais extraordinários que existem também virou mito na Amazônia. O eclipse lunar, causador de temor e admiração em diferentes povos e diferentes épocas, também vestiu aqui a capa da “interferência de figuras mitológicas” (RENNER, 2003). Como é narrado em E Deus chorou sobre o rio,

nessa mesma noite houve eclipse de lua. Os caboclos não entendiam bem essa história, mas sabiam que tinham de fazer alguma coisa para a lua não se acostumar escondida. E tanto nas ruas da cidadezinha do Solimões, como nos beiradões, era gente batendo lata velha, prato de esmalte, garrafa e tudo que fizesse zoada, e a lua voltar a botar luz na terra. Em Manaus o povo dava de bater com algum pedaço de ferro ou pedra dura nos postes de ferro da Manaus Light Company (AZIZE, 2006, pp. 128, 129).

O eclipse de lua é um fenômeno astronômico que ocorre quando a lua é ocultada totalmente ou parcialmente pela sombra da terra, geralmente visível a olho nu. Mas, para o homo religiosus, a natureza nunca é exclusivamente natural, estando sempre carregada de um valor religioso (ELIADE, 1972, p. 68). É por isso que “os caboclos não entendiam bem essa história, mas sabiam que tinham de fazer alguma coisa para a lua não se acostumar escondida”. E recorreram a um costume perdurado através das eras para impedir que o astro e a sua luz fossem devorados, pois teve “gente batendo lata velha, prato de esmalte, garrafa e tudo que fizesse zoada, e a lua voltar a botar luz na terra”. Renner (2003) ressalta que esse é

um costume que perdurou desde a Idade Média, e que continuou em pequenas comunidades, foi o de fazer muita algazarra e barulho por ocasião dos eclipses. O toque dos gongos pelos chineses e os gritos e batidas produzidos por outros povos tinham por finalidade afugentar o monstro cosmológico que ameaçava engolir o sol e a lua.

O mito ligado ao eclipse lunar é largamente encontrado no topos universal. Os escandinavos, por exemplo, falavam de Skoll e Hati, dois lobos que, com o tempo devorariam o Sol e a Lua. Já os chineses, de um dragão e os hindus, do demônio Rahu que perseguia o Sol e a Lua, por terem-no denunciado aos deuses pelo roubo do vinho da imortalidade. Os mexicanos pré-colombianos flagelavam-se e faziam sacrifícios durante os eclipses, e os antigos romanos elevavam suas tochas ao céu pedindo por suas vidas. Também é encontrado na China, onde se acreditava que “um gênio do mal com sua mão direita escondia o sol e no inicio do fenômeno tinham que ajoelhar e bater a testa contra o chão, ao mesmo tempo, tocar tamborim e gongos” (AFONSO, 2005).
Não se sabe, ao certo, por quais meios o costume de fazer algazarra para a “lua não se acostumar escondida” migrou para a mitologia amazônica. Mas, considerando que o homo religiosus espera que os ritmos cósmicos manifestem a ordem, a harmonia e a permanência (ELIADE, 1972, p. 68), a colocação de caos nesse ciclo pelo eclipse causa temor. Daí também que culturas tão distantes e isoladas revelem um pano de fundo comum, já que um antigo mito tupi-guarani narre

que a onça (xivi, em guarani) sempre persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse solar (kuaray onheama) ou do lunar (jaxi onheama) os indígenas fazem a maior algazarra, com o objetivo de espantar a Onça Celeste, pois acreditam que o fim do mundo ocorrerá quando ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros, fazendo com que a Terra caia na maior escuridão. No céu, a cabeça da onça desse mito é representada pela estrela vermelha Antares, da constelação zodiacal do Escorpião, e pela estrela Aldebaram, também vermelha, da constelação zodiacal do Touro. Essas duas constelações ficam no zodíaco onde, observados da Terra, passam o sol, os planetas e a lua. Assim, de fato, pelo menos uma noite por mês e um dia por ano, a Lua e o Sol, respectivamente, aproximam-se de Antares e de Aldebaram (AFONSO, 2005).

E assim, como em muitos outros aspectos, o ethos amazônico tem suas origens na cultura indígena. Como quase tudo o que se sabe e o que se faz na Amazônia, salvaguardado pelo homem que nela habita através dos tempos, a heurística indígena está envolvida.

Cobra-grande
A cobra-grande é mais um mito brotando das águas em E Deus chorou sobre o rio. A boiuna, boiaçú, Mbaê-tatá ou boitatá (do tupi, boi, cobra, e tatá, fogo, significando cobra-de-fogo) é uma entidade mítica que cresce de forma gigantesca e ameaçadora, abandonando a floresta e passando a morar no fundo dos rios (CASCUDO, 2002). Às vezes é vista como um facho cintilante de fogo correndo de um lado para o outro na mata. Mas Marmud viu o fogo-fátuo descendo o rio:

— Que cobra, titio? Perguntava Miguel, irmão de Gabriel, que havia entrado na conversa do balcão. E Ayub contava que assim que começou a regatear, subia pelo rio São Tomé, no Purus, remando, quando avistou uma luz incandescente descendo o rio. Parecia uma bola de fogo encarnada. — Vamos esberar lancha “Americana” e nós bega reboque dela, disse ao prático, que ia com ele a bordo. E esperaram mais de uma hora, quando a distância da luz não dava meia hora de viagem. Num pé e noutro a luz sumiu do meião do rio. — Seu Ayub essa luz não é de lancha não sinhô, disse o prático. É a cobra-grande, no duro sim sinhô, completou todo espantado, o olho sem desgrudar do rumo de onde estava a luz. — Será, home? — Tô lhe dizendo patrão (AZIZE, 2006, p. 147)

Diferentemente de outras regiões do país, na Amazônia o boitatá está sempre ligado aos rios. No Sul, por exemplo, ele aparece relacionado às grutas escuras e deslizando pelas campinas. Mas no “mundo das águas”, o boitatá não só mora no fundo dos rios, como transforma os sulcos por onde rasteja em igarapés. O árabe Marmud observou que durante uma

“vazante de rachar terra, quase nenhum pau descendo o rio, mureru morando nos lagos, mata mais perto da lancha, barulho mais perto do homem, e gemidos de aves, tudo deixava claro que a seca estava incomodando a morada do bicho-do-fundo. Ninho de cobra se desfazia buscando água” (AZIZE, 2006, p. 2007).

Reza, ainda, o mito que a cobra-grande tem o poder de se transformar em outras coisas, buscando castigar os homens que destroem as matas e rios. Para provar, Marmud conta uma história ocorrida no Alto Purus, que demonstra que o “mundo das visagens continua fazendo sentido para as pessoas na Amazônia” (ARAMBURU-OTAZU, 1996, p. 191). Uma cobra-grande, uma sucuriju “se mexia lentamente, como se nada lhe estivesse tocando o couro” quando estava sendo alvejada por cem cartuchos de espingarda.
É digno de nota que a reflexão mítica do árabe tenha não somente incorporado o mito da cobra-grande como passado por experiências nas quais o mito tenha se mostrado o que ele, no fundo, é: uma “história verdadeira”. Navegando pelos rios da Amazônia, enfrentando perigos mil, Marmud podia dizer “que cobra encantada existia sim”, senhor (AZIZE, 2006, p. 148).

Tajá-cobra, tajá-onça: ervas de encanto
O tajá ou tinhorão (Caladium bicolor) é uma erva muito venenosa, nativa do Brasil e Peru, de folhas oblongas verdes manchadas de branco ou verdes com o centro vermelho. Na Amazônia, ele é usado nos segredos e mistérios da bruxaria nativa, passando a ser chamado de tajá “curado”. O caboclo é imensamente crédulo em poderes mágicos e encantados de ervas e cipós. Em Chuva Branca, por exemplo, o personagem Luis Chato crê que se perdeu na mata porque passou debaixo do “cipó-jiboia, mato de encanto. Cipó-jiboia tem mesmo parecença com o diabo” (JACOB, 1968, p. 118). Outros elementos míticos do reino vegetal amazônico são o cipó-titica e o cipó-ambé.
Em E Deus chorou sobre o rio, o protagonista Marmud diz que

conheceu um caboclo do Arara que curava tajá-cobra e tajá-onça e deixava a planta tomando conta da tapera quando ia fazer roçado no centro da mata. Nenhum bicho encostava no lugar. Podia até deixar criança e mulher sem munição que bicho não aparecia, nem açoitava (AZIZE, 2006, p. 148).

Nessa história contada pelo árabe a erva tajá é usada para guarda e proteção dás residências e comércios. Outros são usados para fazer de um homem um bom caçador ou pescador, e outros ainda para torná-lo invisível. Como um verdadeiro fenício, aventureiro e navegador, Marmud precisa de “broteção” — como ele diria. Longe de casa, sempre entrega sua família às bênçãos de Allah. Mas na Amazônia, no inferno verde, proteção adicional sempre é bem-vinda. Mesmo vindo de uma erva ou de um cipó.

            Considerações Finais
O mito é uma realidade viva e essencial ao ser humano. Na Amazônia, em especial, ele pode até ser intercambiado com a realidade, estando presente nos fatos mais corriqueiros da vida. O homem árabe, na região chegando, aquerenciou a mitologia existente e incorporou, ao seu modo monoteísta de pensar e de ver o mundo, elementos fragmentários garimpados diretamente na realidade do homem amazônico. Tornando-se um bricoleur, ele formou uma reflexão mítica heteróclita, um composto das cosmovisões médio-oriental e amazônica.
Alguns mitos, em virtude de rivalizar fortemente com o seu modo árabe de ser e de pensar, ele teve dificuldades para congregar. O do boto, por exemplo, que ele jamais poderia aceitar a função social que tem o cetáceo na vida isolada da Amazônia, uma vez que é tão viva nele a ideologia do papel fertilizador do homem. O seu pensamento viril não acolhe esse apagamento da função masculina no âmbito da procriação. Já outros mitos, como o da mãe-d’água, o da rasga-mortalha e o da cobra-grande ele se apropriou como um autêntico autóctone.
Na Amazônia, o árabe se caboclizou. Veio trazer a sua força, a sua fé e a sua teimosia. Uniu o oriente Médio e a hinterlândia amazônica, sendo a ponte e o elo entre as duas mitologias e culturas. A sua força e a sua teimosia transformaram a mitologia de impedimento, responsável, em grande parte, pelos óbices enfrentados pelo homem amazônico. O boto não o enganou; a mãe-d’água não o arrastou para o fundo do rio e a rasga-mortalha não lhe trouxe doença ou morte. Ele criou um novo topos para a Amazônia ─ o topos do Persista, Não Desita, Lute até o Fim. Fez jus à teimosia genética dos ismaelitas.

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[i] Lat. “Naquele tempo”... Eliade (1972, p. 13), por exemplo, diz que o homem “é mortal porque algo aconteceu in illo tempore”. Ou seja, naquele tempo...
[ii] Superlativo grego traduzido como “o poeta mais trágico de todos”, como Aristóteles chama a Eurípedes na obra Arte Poética (CARPEAUX, 2011, p. 176).
[iii] Eclesiastes capítulo 3, verso 11: “Ele fez tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade: mesmo assim este não consegue ver inteiramente o que Deus fez”.