O PRECONCEITO À LINGUAGEM CAIPIRA: UM FALAR REGIONAL OU INCULTO?


Flavia Pala Falavina
(Mestranda UFSC e bolsista CAPES)

            “Óia a muié”, “cumê mé di abêia”, “tô cum dô nu zóio”, “cantá e sofrê”, “nóis vai fazê o que?” Ao lermos essas sentenças facilmente identificamos com a linguagem oral caipira. Não é incomum o uso de sentenças semelhantes para exemplificar também a língua portuguesa inculta. Se for uma forma inculta de expressão, devemos corrigi-la? Segundo João Ribeiro “Falar diferente, não é falar errado” (RIBEIRO, 1933, p.8), portanto tolher, corrigir ou mesmo identificar este modo de falar do caipira como uma maneira inculta de expressar-se é consequentemente não valorizar as riquíssimas variedades culturais brasileiras e paralelamente vivificar e legitimar uma dominação cultural, econômica ou social. A língua é expressão da cultura, e devemos olhar para ela sem discriminação, sem menosprezá-la, diminuí-la ou excluí-la. Mas por que o dialeto regional caipira está tão próximo à imagem de língua inculta? De onde vem o estereótipo pejorativo do caipira? Qual é este estereótipo e a que está vinculado?
O objetivo deste artigo é analisar quais são os fatores que levaram ao preconceito sociolinguístico em relação ao dialeto caipira e colaborar para a mudança desta imagem negativa ressaltando a riqueza histórica, folclórica e cultural que circunda o ser caipira e seu modo de falar.

Idioma e dialeto – um esclarecimento
Primeiramente, é importante que delimitemos a expressão que será usada no artigo para nos referirmos ao tipo de linguagem usada pelo caipira como expressão oral. A diferença entre idioma e dialeto é muitas vezes confusa e optamos aqui por uma abordagem mais política que propriamente linguística. “É verdade que não faltou quem tivesse a coragem de afirmar que a verdadeira distinção entre língua e dialeto se acha menos num fato linguístico do que num fato político” (DUARTE, 1982, p.7).
      Há uma distinção, além dessas, também do sotaque. Entendemos por sotaque a maneira de se pronunciar as palavras, uma forma foneticamente ou fonologicamente diferenciada e que, portanto, nos faz concluir que cada indivíduo tem a sua maneira específica de pronúncia (MANÉ, 2012, p.4).
Já em relação ao dialeto, além de uma distinção fonológica, gramatical e muitas vezes lexical da língua oficial, ele não tem o mesmo status social e extensão geográfica que a língua, que por sua vez tem também um valor institucional.  O dialeto, segundo Djiby Mané:

(...) é usado para descrever uma variedade da língua, e possui uma grande carga de preconceito. Dialeto, muitas vezes, sugere a fala informal, a fala de grupos de classe baixa ou oriundos de área rural, como é o caso de dialeto rural do Brasil. (MANÉ, 2012)

Há também uma famosa frase de Max Weinreich “a língua é um dialeto com um exército e uma marinha” (1945, p. 13). Partindo disso, compreendemos que a distinção entre os três termos é de cunho social e político. Tendo em vista esta observação, constata-se também que o caipira e a região à qual pertence não tem um status, uma autonomia política e nem uma identidade completamente desvinculada a outras regiões do Brasil, mas tem características culturais regionais próprias que identifica a região do interior de São Paulo e as pessoas que ali vivem, além, obviamente de um modo de falar próprio, com léxicos específicos e marcas gramaticais também únicas. É a partir disso que optamos por adotar a palavra dialeto para nos referirmos ao modo de falar do caipira.

O caipira
            Neste trabalho, o caipira designará o tipo que habita e/ou habitou o interior do estado de São Paulo e que tem resquícios culturais e linguísticos característicos dessa região. Apesar da zona caipira ser uma expansão da Capitania de São Vicente e abranger São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, parte de Goiás, norte do Paraná e algumas áreas rurais do Rio de Janeiro e Espírito Santo (SANT’ANNA, 2009, p.67), aqui nos restringiremos ao caipira paulista por ser este o abordado por Antonio Candido e Amadeu Amaral.
            Para compreendermos os fatores que influenciaram no estereótipo do caipira e o consequente preconceito em relação ao seu dialeto, abordaremos:
a) A história do caipira e formação do seu dialeto
b) O caipira depois do século XVIII

A história do caipira e formação do seu dialeto
            A palavra caipira vem do tupi e significa “cortador de mato”, é aquele que capina. Daqui já podemos observar a relação do caipira com o indígena e o aspecto da ruralidade. A história do caipira começa com o adentrar dos bandeirantes na capitania de São Vicente em busca de mão de obra escrava indígena com objetivo de tentar recuperar a economia do litoral que se mostrava decadente. Este percurso pelo interior paulista proporcionou a descoberta de ouro na região o que acendeu o interesse dos europeus pela mineração. É através dessa corrida pelo ouro que se inicia a fixação de bandeirantes na região.
            Deste contato dos bandeirantes com os índios é que surge a Língua Brasílica ou Língua Geral: o nheengatu - palavra que tem por referência o tupinambá e significa “língua bonita” (nheem + gatu). Como um modo de se adaptar ao meio físico e à população indígena, os invasores, na tentativa de comunicação com os nativos, passaram a usar essa língua mestiça. O nheengatu foi usado também com o objetivo de unificar as várias línguas faladas pelas diferentes tribos na capitania e pelos jesuítas para fazer suas pregações.
Nheengatu é a língua tupi normatizada pela gramática da língua portuguesa, com léxicos do tupi, do português e também do castelhano. A normatização da língua iniciada pelo padre Anchieta em Gramática e o ensino oficial da língua para os nativos serviu como forma de fazer o índio penetrar a cultura do colonizador questionando e desestruturando a sua própria. Mesmo que os colonizadores não tenham agido consciente e premeditadamente, essa inserção cultural causou perdas permanentes à cultura nativa (SOUZA, 1991, p.66).
Fato é que a Língua Brasílica se disseminou e grande parte das pessoas a usavam correntemente:

(...) até o fim do século XVII, a língua geral foi por assim dizer a única que se falou de São Paulo para baixo até o Rio Grande do Sul, e durante todo o século XVIII falava-se duas vezes mais o guarani do que o português. (DUARTE, 1982, p.13)
       
O nheengatu era tão extensamente usado que, por medo da adulteração rápida que vinha ocorrendo no idioma português, uma provisão do reino proibiu o uso da língua geral entre os colonos no Brasil em 1734, segundo Romildo Sant’Anna, sob pena de prisões e acoites. A língua encontra-se resistente até hoje, não da mesma maneira, mas podemos perceber suas reminiscências no dialeto caipira. Havia, por exemplo, alguns fonemas como o “r” e o “l”, que os índios encontravam dificuldades na pronúncia, podemos observar isso em palavras como dor ou mel, que são pronunciadas por alguns caipiras “” e “”. Podemos encontrar tantos outros exemplos na obra de Amadeu Amaral, O dialeto caipira.  
            A sociedade caipira que se formou do século XVI ao XVIII tinha traços de nomadismo advinda da fusão da herança do português explorador e dos antigos habitantes da região, os índios. Tal herança definiu a economia seminômade do caipira. Em função disso e do conhecimento dos recursos naturais e sua exploração sistemática, segundo Antonio Candido, a dieta desse grupo foi permeada pelo mínimo vital, ou seja, havia ali uma economia de subsistência baseada na caça, na pesca, na coleta e na agricultura itinerante. Essa instabilidade, por sua vez, também colaborou para a mobilidade.
            Junto aos fatores já citados, foi observado também pelo sociólogo, que o paulista rústico vivia em grupos fechados, com base na família e em vilas ou povoados esparsos que foram surgindo conforme a queda da mineração e o incentivo do governo em povoar o local. Esses “apovoados” são chamados também bairros rurais. Candido cita a frase de um caipira para expressar o sentimento de localidade que havia nesses grupos fechados: “Bairro é uma naçãozinha.” As atividades do caipira têm como base quase que unicamente a família e, como consequência disso, viviam praticamente isolados, com o mínimo de intercâmbio com o mundo exterior e sem integrar-se a outra estrutura mais ampla (CANDIDO, 2003, p.85), portanto fica explícito com a frase do caipira que o bairro supre todas as necessidades dos habitantes e que o caipira se basta ali.

O caipira depois do século XVIII
            Do século XVI ao século XVIII se deram os ciclos bandeirantes. Até esse momento a cultura estava baseada em formas de sociabilidade fechada e uma economia de subsistência, que se apoiava em soluções mínimas para manter a sobrevivência dos indivíduos e dos bairros. Esses ciclos se quebram no século XVIII.

Rompendo este estado de coisas, superando o nível de tais mínimos, surgiam as vilas e as fazendas abastadas, que desde logo se erigiram em núcleos de melhor alimentação, melhor equipamento material, relações econômicas e espirituais mais intensas – quebrando o círculo da economia fechada, ou criando novas formas de ajuste ao meio, em nível de cultura mais alto. (CANDIDO, 2003, p.103)

            Surgiram assim duas categorias de habitantes da região: aqueles que começaram a estabelecer a troca e o comércio, que eram proprietários de fazendas de cana, gado ou café, e que consequentemente eram ligados ao mercado – esses participavam de um grau de rusticidade, da fala e costumes, mas não eram integrantes da cultura caipira; e a segunda categoria era formada por sitiantes, posseiros e agregados, que continuaram viver, enquanto foi possível, dos bairros rurais e da economia de subsistência. A situação desses caipiras perdurou devido à expansão da economia paulista que passou a exigir requisitos legais de direitos de propriedade, o que precarizou ainda mais a situação do lavrador, que, sem instrução ou meios para legalizar suas pequenas terras, foi tirado de sua morada e obrigado a perambular em busca de novos e instáveis lares. O caráter da mobilidade continuou para esse caipira.
            Podemos agregar ainda a presença do negro, que se estabeleceu e miscigenou depois de três séculos de escravidão, e dos colonos estrangeiros, que chegaram para trabalhar nas fazendas e por não se identificarem ou almejarem a estrutura de vida do caipira abandonaram o sistema de cooperação no qual esses viviam, alterando assim a organização dos bairros. A chegada de outros povos, além de influenciar social e economicamente a vida do paulista, também interferiu em sua linguagem. Paulo Duarte, na introdução ao livro de Amadeu Amaral O dialeto caipira discorre sobre a miscigenação do português com o índio e com o negro – o preconceito existente na época nunca foi um fator de interferência à interpenetração étnica – e agrega:

Essa intimidade quase permanente provocou, como era fatal, o cruzamento da língua. Mais tarde, intrometeram-se também o francês, o italiano, o alemão, os eslavos, os sírios, homens e mulheres de todos os povos e de todas as nações. (DUARTE, 82, p.15-16)

            A chegada desses novos habitantes do interior de São Paulo, o novo momento econômico do estado com novos meios de produção que penetraram os latifúndios e as vias de comunicação que se estenderam intensificando o comércio e abrindo a província para o contato permanente com a civilização exterior, trouxeram consigo uma mudança significativa e decisiva para a região. Novas necessidades surgiram. Na agricultura as técnicas avançaram bem como o ritmo de trabalho se intensificou. O aumento das horas de trabalho levou a população à dependência de adquirir através do comércio o que antes se produzia no âmbito familiar. Cresceu também a necessidade pelos bens de consumo, facilitadores da vida doméstica.  Os posseiros, roceiros, genuínos caipiras fechados em seus sistemas, grande parte analfabetos ou com pouca instrução, começaram a serem postos de banda e ficaram à margem da vida coletiva.  Houve uma “(...) crise nos meios de subsistência, nas formas de organização e nas concepções do mundo” (CANDIDO, 2001, p.204). Isso condicionou e alterou os padrões tradicionais de vida de grande parte dos caipiras, resistindo com menos intensidade aos antigos padrões em alguns poucos lugares. Muitos permaneceram no campo adaptando-se ou não à nova realidade econômica, outros foram para as cidades que iam se formando no interior do estado e outros tantos para a capital. Devido à simplicidade e à falta de instrução, aqueles que migraram para os centros urbanos e que antes trabalhavam com a agricultura, passaram a exercer novas funções como operário em indústrias, pedreiro, comerciário, tintureiro, mecânico, motorista, comerciante, etc.
Assim como mudou o sistema de vida do caipira, mudou também sua linguagem. Novos imigrantes, aumento da densidade demográfica e surgimento de centros urbanos, alfabetização e futuramente muitos outros fatores como o rádio, a televisão, a indústria, dentre inúmeros, colaboraram para tais mudanças. Mas ainda hoje é possível identificar nos modos e na língua do caipira um modo particular de expressar-se com as reminiscências do antigo rústico caipira paulista.

O estereótipo e o preconceito
Não nos cabe discorrer sobre os tempos mais modernos no que tange à história do caipira, visto que a parte que nos interessa para o presente artigo é relativa aos fatores que nos levaram ao estereótipo atual para então analisar os porquês do preconceito existente desde os primórdios da história do caipira.
Devemos, para tanto, primeiramente compreender a profunda relação entre língua e cultura. A língua não só é parte, como também resultado, meio de operar e condição para subsistir da cultura. É na língua que se projetam os comportamentos, as crenças, os hábitos, as instituições, e os valores materiais e espirituais que caracterizam um grupo e que são transmitidos coletivamente (BRANDÃO, 1991, p.5-6).

Ao falar, um indivíduo transmite, além da mensagem contida em seu discurso, uma série de dados que permite a um interlocutor atento não só depreender seu estilo pessoal – idioleto – ,mas também filiá-lo a um determinado grupo. (BRANDÃO, 1991, p.183)

Visto que a língua e a cultura são indissociáveis, ao tratarmos o preconceito em relação ao dialeto caipira, estamos também tratando o preconceito em relação à sua cultura e vice-versa. Por isso, quando vemos a discriminação em relação ao modo de falar caipira, ela existe também em relação à sua cultura.
Veremos alguns elementos que colaboraram para o estereótipo do caipira e o decorrente preconceito cultural e sociolinguístico:
a)      Miscigenação com o índio;
b)      Rusticidade, ruralidade e “atraso”;
c)      Falar caipira e simplicidade.

Miscigenação com o índio
            Como vimos anteriormente, o caipira, sua língua e cultura advêm primeiramente do contato do bandeirante com o índio nativo da região. Desde que houve o contato do branco com o índio no Brasil, sabemos que este segundo foi visto com inferioridade cultural. Os índios, para o colonizador, dentre alguns outros adjetivos pejorativos, eram selvagens, não civilizados, primitivos e preguiçosos. Pelo fato de o povo paulista vir dessa miscigenação e ter traços fortes e significativos da cultura indígena, o preconceito para com ele também existe desde muito cedo. Candido, citando o olhar de Saint-Hilaire a respeito do paulista, escreve:

Saint-Hilaire, (...), apresenta o paulista rústico – o caipira – um quadro pouco ameno. Acha-o primitivo e brutal, macambúzio e desprovido de civilidade, em comparação com o mineiro. E como nas Minas encontrou em abundância mulatos amáveis, concluiu que a mistura de branco e índio, dominante no paulista, é fator de inferioridade, dando produtos muito piores que os de branco e negro. (CANDIDO,2001, p.55)

            Candido, novamente mostrando a discriminação em relação ao paulista agora sob o olhar de um historiador vicentino: “homens modelados pelas usanças dos índios, de uma significação dura e ríspida, de hábitos selváticos e repelentes” (CANDIDO, 2001, p.54). Esta imagem está vinculada não só ao índio, mas à vida nômade, rude e sem comunicação social.
            O sociólogo explica:

É certo que dessa vida fragosa dos paulistas nos tempos primitivos originara-se a discriminação que desde remotas era se fez da sua índole característica, mas também é certo que dos seus maiores não puderam derivar trato ameno, moralidade e costumes inculcados à raça, que os não pusessem na mesma linha dos selvagens. (CANDIDO, 2001, p.54)

            Essa visão de inferioridade para com o índio e o paulista não poderia não ter se estendido também para a língua. Para os jesuítas, por exemplo, a língua nativa do Brasil no período colonial era “língua dos pagãos” e mesmo tendo atingido certa importância pelo seu uso corrente, logo proibiram seu uso através de um ato legal em 1934, com medo do tupi penetrar definitivamente na língua portuguesa. É evidente que a língua nativa era vista como inferior e errada, enquanto que a língua colonizadora era superior, culta e se tornou a oficial.
            Naturalmente o indígena ao tentar se expressar na língua do colonizador não conseguia falar com a estrutura e sotaque de um português, tinha dificuldade em pronunciar certos fonemas da língua portuguesa, e isso foi encarado com jocosidade, falta de tratos ou visto como maneira inculta de falar não usando convenientemente a língua (SOUZA, 1990, p.67). Usamos até hoje uma palavra que expressava esse desdém do falar errado do índio: nhenhenhém (que significa “falar falar falar de índio). Também não seria estranho exemplificarmos a forma inculta de falar o português utilizando-nos da língua regional derivada do falar do índio como em “mim vai”.
            Os paulistas tanto tinham fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de linguagem que quando o Senado do Império tratou de abrir cursos jurídicos em São Paulo houve quem fosse contra, alegando que o linguajar dos naturais (resquícios da língua nheengatu) contaminaria os futuros bacharéis. (AMARAL, 1982, p.41)

Rusticidade, ruralidade e “atraso”
            A ruralidade proporcionou ao paulista quase nenhuma sociabilidade e contato com outras regiões durante o período colonial. Pela pouca densidade demográfica, pelo difícil acesso aos bairros rurais para quem rumasse do litoral para o interior e pela própria opção de isolamento do caboclo, este ficou muito tempo isolado da civilização urbana. Sendo assim, aquele caipira descendente de bandeirantes e índios, não poderia viver de outra forma que não utilizando dos meios naturais, da caça, da pesca e da agricultura para sobreviver.
            Não seria estranho, portanto, que esse “paulista rústico” não tivesse modos amenos, moralidade e costumes como das zonas urbanas. Os hábitos diferenciados dos caipiras em comparação com os hábitos daqueles que moravam nas zonas urbanas foram vistos, por um tempo, de forma pejorativa por remeter ao vínculo com os costumes indígenas. Os homens “modelados pelas usanças dos índios” (CANDIDO, 2001) eram vistos com hábitos semelhantes aos selvagens. Mais tarde é estabelecida a dicotomia entre rural e urbano, um passou a ser visto como oposto ao outro.
            O avanço tecnológico levou à urbanização da indústria, que por sua vez fez acelerar e crescer a própria urbanização. A partir desse momento, à cidade passou a ser vinculado o dinamismo, o movimento, o desenvolvimento, as indústrias e o avanço. A cidade e a indústria eram o motor da economia e poderiam proporcionar maiores rendas que aquelas advindas do campo.
            Em contrapartida, depois do processo de industrialização, o campo passa a ser visto como o lugar da estagnação. O ambiente rural era economicamente ligado às atividades primárias, enquanto que os setores secundários e terciários estavam localizados nas zonas urbanas. A relação com a terra e a não intensidade de industrialização trouxe para o campo a imagem do atraso e do conservadorismo. 
            O apego do caipira ao seu modo de vida fechado, rural, sem intercambio e com a economia baseada em mínimos vitais trouxe a marginalização de sua cultura que, com a industrialização, sofreu vários impactos.

Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas como expressão da sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. Daí o atraso que referiu a atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e caricatural, já no século XX, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato. (CANDIDO, 2001, p. 107)[1]

            O estereótipo do Jeca Tatu é um exemplo que perdura até hoje como símbolo de trabalhador do campo. A imagem depreciativa do caboclo brasileiro figura no Jeca Tatu o atraso e a miséria do meio rural. Jeca Tatu vive à margem da civilização e a ela mão se adapta. Jeca é homem rústico e sem tratos que não sabe se comportar como aqueles que tem costumes da cidade. “Coitado, é Jeca, não sabe se portar” é expressão comum para denominar o homem do campo sem modos de cidade grande. “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” (LOBATO, 1971, p.148)

O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgubres.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.
Não compõe sua canção, como o felá do Egito.
No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio da tanta vida, não vive… (LOBATO,1971, p.155)

Falar caipira e simplicidade           
            O dialeto caipira, reminiscente do nheengatu, foi por muito tempo visto como um modo de falar feio, errado e inferior, se comparado à língua portuguesa culta. Isso se deu pela proximidade das origens indígenas e pela simplicidade e falta de instrução que o meio rural trouxe ao caboclo.
            O isolamento vivido pelo caipira até a industrialização culminou na precariedade de trocas de informação e ao analfabetismo. Mais tarde, ainda que a industrialização tenha levado o caipira à cidade e colaborado para o aumento da densidade demográfica no interior, e que esses tenham sido fatores que aumentaram a alfabetização, por muito tempo o Brasil teve altas taxas de analfabetismo – e essas taxas eram mais agravadas em regiões rurais. Somando-se isto ao fato de que a imagem do caipira sempre esteve vinculada ao campo, consequentemente seu estereótipo de pessoa pouco instruída também perdurou fortemente por muito tempo. Isso foi agravado pela oralidade de caboclos (alfabetizados ou não) que não seguiam a risca as normas cultas da gramática da língua portuguesa.

Perceptível e estigmatizada como “errada”, a fala caipira pouca importância dedica às regras sintáticas de concordância, talvez pela percepção da redundância da regra normativa e, em muitos casos, pela pouca diferença fonética entre singular e plural, sem nenhuma implicação que turve o sentido lógico e poético do vernáculo. (SANT’ANNA, 2009, p.67)

           Há sempre uma valorização da língua falada pelas classes mais altas, e são essas que se tornam a língua padrão e a forma correta de expressão. Ocorre que o caipira é vinculado à classe baixa, pela situação financeira que por muito tempo foi inferior a daqueles que viviam nas cidades e pelos modos rústicos ligados ao campo.

Na América do Norte, por exemplo, o chamado “bad English” é considerado um dialeto da classe baixa. Automaticamente, a linguagem falada pelas classes mais altas é vista como a forma correta de expressão. Nesses termos, o dialeto passa a ser uma linguagem excluída de uma sociedade de hábitos linguísticos ditos “polidos”. (MANÉ,2012, p.43)

           Antonio Candido, ao falar sobre os desajustes que a esfera urbana trouxe ao caipira, afirma que houve uma mudança também em tocante aos mínimos, que se antes eram estabelecidos com referência às condições históricas, depois passou a ser definido em comparação com os níveis, normas e padrões impostos pela vida urbana. (2001, p.271)
            Se antes o caipira se bastava no equilíbrio do bairro e das relações econômicas baseadas na família, na subsistência e na troca, esse novo sistema que penetrou o interior o faz sentir-se desajustado ao equiparar-se com o morador da cidade, o qual possui condições em adquirir bens de consumo e equipamento material que penetraram na vida da região.

Os velhos utensílios e instrumentos são desprezados – mas os novos não se tornam acessíveis. Os grupos e os indivíduos vão-se desprendendo da absorção do meio imediato – mas não têm elementos para promover de maneira adequada o reajuste a novos meios. A caça e a pesca se reduzem a quase nada como recurso de abastecimento – mas não podem ser substituídas pela alimentação cárnea do comércio. (CANDIDO, 2001, p.274)

           Assim, ao caipira foi aderida a imagem do atraso e da simplicidade, das origens pagãs e da fala torta, do campo e da rusticidade. Percebemos que no decorrer da história há momentos de retorno e valorização da cultura brasileira – como ocorreu no movimento literário do Romantismo no qual houve uma tentativa de iluminar o tupi como língua nacional. Recentemente, vemos movimentos voltados ao direito dos índios, à valorização do folclore brasileiro e inclusive ao orgulho caipira, dentre tantos outros, mas os mesmos movimentos também nos apontam a necessidade de um olhar mais atento em relação à ausência de valor e à discriminação.

O predomínio político e a concentração da riqueza entre as classes e camadas sociais dominantes urbanas dos grandes centros, produziu o desprezo e a rejeição dos moradores urbanos falantes da língua dominante, principalmente por parte das camadas sociais formadas por trabalhadores intelectuais, em relação ao trabalhadores braçais rurais e suas formas de expressão, como atesta o tratamento depreciativo à linguagem caipira que sobrevive entre os moradores do campo de algumas regiões do Brasil e seus descendentes. (PRAXADES, 2007)

            Não devemos ser complacentes com as línguas e culturas dominantes, devemos nos atentar para as variedades linguísticas (línguas, dialetos e sotaques) como expressões de um país multicultural. Tendo em vista as origens e os porquês do preconceito com o caipira, podemos reelaborar, reconstruir e reeducar nossos olhares e voltá-los não à tolerância, mas à riqueza da nossa história, aos encantos do folclore e à diversidade.
            O caipirês, ou dialeto caipira, é uma linguagem oral e regional que não segue os padrões de norma culta das gramáticas da Língua Portuguesa, mas que tem, como qualquer outra língua, identidade, expressa um povo, conta sua história e expõe a cultura.

Referências bibliográficas
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BRANDÃO, Silvia. A geografia linguística no Brasil. São Paulo: Ática, 1991
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LEOPOLDINO, Everton. A fala dos tiroleses de Piracicaba: Um perfil linguístico dos bairros Santana e Santa Olímpia. [on-line]. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 2009. Disponível em: <http://www.usp.br/gmhp/publ/LeoD.pdf>. Acesso em: 25 ago 2013.
LOBATO, Monteiro. Urupês. In: Obras completas de Monteiro Lobato. São Paulo: Brasiliense, 1971.
MARTINS, José. Língua brasileiras: dialeto caipira. Disponível em: http://www.sosaci,org/balaio2.htm. Acesso em: 21 ago. 2013
MANÉ, Djiby. As concepções de língua e dialeto e o preconceito sociolinguístico. Via Litterae. [on-line] v.4 n.1 p. 39-51 jan./jun. 2012. Disponível em: <http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae/assets/files/volume_revista/vol_4_num_1/Via_Litterae_4-1_2012_3-DJIBY_MANE_Lingua_dialeto_e_preconceito.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2013.
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RIBEIRO, João. Lingua Nacional. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1933
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SOUZA, Álvaro. Geografia Linguística: Dominação e liberdade. São Paulo: Contexto, 1991.

Ilustrações

Imagem I






[1] Imagem I ao final do artigo.