Flavia Pala Falavina
(Mestranda UFSC e bolsista CAPES)
“Óia a muié”,
“cumê mé di abêia”, “tô cum dô nu zóio”, “cantá e sofrê”, “nóis vai fazê o
que?” Ao lermos essas sentenças facilmente identificamos com a linguagem oral
caipira. Não é incomum o uso de sentenças semelhantes para exemplificar também
a língua portuguesa inculta. Se for uma forma inculta de expressão, devemos
corrigi-la? Segundo João Ribeiro “Falar diferente, não é falar errado”
(RIBEIRO, 1933, p.8), portanto tolher, corrigir ou mesmo identificar este modo
de falar do caipira como uma maneira inculta de expressar-se é consequentemente
não valorizar as riquíssimas variedades culturais brasileiras e paralelamente
vivificar e legitimar uma dominação cultural, econômica ou social. A língua é
expressão da cultura, e devemos olhar para ela sem discriminação, sem
menosprezá-la, diminuí-la ou excluí-la. Mas por que o dialeto regional caipira
está tão próximo à imagem de língua inculta? De onde vem o estereótipo
pejorativo do caipira? Qual é este estereótipo e a que está vinculado?
O objetivo deste
artigo é analisar quais são os fatores que levaram ao preconceito
sociolinguístico em relação ao dialeto caipira e colaborar para a mudança desta
imagem negativa ressaltando a riqueza histórica, folclórica e cultural que
circunda o ser caipira e seu modo de falar.
Idioma
e dialeto – um esclarecimento
Primeiramente, é
importante que delimitemos a expressão que será usada no artigo para nos referirmos ao tipo de linguagem usada pelo
caipira como expressão oral. A diferença entre idioma e dialeto é muitas vezes
confusa e optamos aqui por uma abordagem mais política que propriamente
linguística. “É verdade que não faltou quem tivesse a coragem de afirmar que a
verdadeira distinção entre língua e dialeto se acha menos num fato linguístico
do que num fato político” (DUARTE, 1982, p.7).
Há uma distinção, além
dessas, também do sotaque. Entendemos por sotaque a maneira de se pronunciar as
palavras, uma forma foneticamente ou fonologicamente diferenciada e que,
portanto, nos faz concluir que cada indivíduo tem a sua maneira específica de
pronúncia (MANÉ, 2012, p.4).
Já em relação ao
dialeto, além de uma distinção fonológica, gramatical e muitas vezes lexical da
língua oficial, ele não tem o mesmo status
social e extensão geográfica que a língua, que por sua vez tem também um valor
institucional. O dialeto, segundo Djiby
Mané:
(...) é usado
para descrever uma variedade da língua, e possui uma grande carga de
preconceito. Dialeto, muitas vezes, sugere a fala informal, a fala de grupos de
classe baixa ou oriundos de área rural, como é o caso de dialeto rural do
Brasil. (MANÉ, 2012)
Há
também uma famosa frase de Max Weinreich “a língua é um dialeto com um exército
e uma marinha” (1945, p. 13). Partindo disso, compreendemos que a distinção
entre os três termos é de cunho social e político. Tendo em vista esta
observação, constata-se também que o caipira e a região à qual pertence não tem
um status, uma autonomia política e
nem uma identidade completamente desvinculada a outras regiões do Brasil, mas
tem características culturais regionais próprias que identifica a região do
interior de São Paulo e as pessoas que ali vivem, além, obviamente de um modo
de falar próprio, com léxicos específicos e marcas gramaticais também únicas. É
a partir disso que optamos por adotar a palavra dialeto para nos referirmos ao modo de falar do caipira.
O
caipira
Neste trabalho, o caipira
designará o tipo que habita e/ou habitou o interior do estado de São Paulo e
que tem resquícios culturais e linguísticos característicos dessa região.
Apesar da zona caipira ser uma expansão da Capitania de São Vicente e abranger
São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, parte de Goiás, norte do Paraná e algumas
áreas rurais do Rio de Janeiro e Espírito Santo (SANT’ANNA, 2009, p.67), aqui
nos restringiremos ao caipira paulista por ser este o abordado por Antonio
Candido e Amadeu Amaral.
Para
compreendermos os fatores que influenciaram no estereótipo do caipira e o
consequente preconceito em relação ao seu dialeto, abordaremos:
a) A história do caipira e formação do seu
dialeto
b) O caipira depois do século XVIII
A
história do caipira e formação do seu dialeto
A
palavra caipira vem do tupi e significa “cortador de mato”, é aquele que
capina. Daqui já podemos observar a relação do caipira com o indígena e o
aspecto da ruralidade. A história do caipira começa com o adentrar dos
bandeirantes na capitania de São Vicente em busca de mão de obra escrava
indígena com objetivo de tentar recuperar a economia do litoral que se mostrava
decadente. Este percurso pelo interior paulista proporcionou a descoberta de
ouro na região o que acendeu o interesse dos europeus pela mineração. É através
dessa corrida pelo ouro que se inicia a fixação de bandeirantes na região.
Deste
contato dos bandeirantes com os índios é que surge a Língua Brasílica ou Língua
Geral: o nheengatu - palavra que tem
por referência o tupinambá e significa “língua bonita” (nheem + gatu). Como um
modo de se adaptar ao meio físico e à população indígena, os invasores, na
tentativa de comunicação com os nativos, passaram a usar essa língua mestiça. O
nheengatu foi usado também com o objetivo de unificar as várias línguas faladas
pelas diferentes tribos na capitania e pelos jesuítas para fazer suas
pregações.
Nheengatu é a
língua tupi normatizada pela gramática da língua portuguesa, com léxicos do
tupi, do português e também do castelhano. A normatização da língua iniciada
pelo padre Anchieta em Gramática e o
ensino oficial da língua para os nativos serviu como forma de fazer o índio penetrar
a cultura do colonizador questionando e desestruturando a sua própria. Mesmo
que os colonizadores não tenham agido consciente e premeditadamente, essa
inserção cultural causou perdas permanentes à cultura nativa (SOUZA, 1991,
p.66).
Fato é que a Língua
Brasílica se disseminou e grande parte das pessoas a usavam correntemente:
(...) até o fim
do século XVII, a língua geral foi por assim dizer a única que se falou de São
Paulo para baixo até o Rio Grande do Sul, e durante todo o século XVIII
falava-se duas vezes mais o guarani do que o português. (DUARTE, 1982, p.13)
O
nheengatu era tão extensamente usado que, por medo da adulteração rápida que
vinha ocorrendo no idioma português, uma provisão do reino proibiu o uso da
língua geral entre os colonos no Brasil em 1734, segundo Romildo Sant’Anna, sob
pena de prisões e acoites. A língua encontra-se resistente até hoje, não da
mesma maneira, mas podemos perceber suas reminiscências no dialeto caipira.
Havia, por exemplo, alguns fonemas como o “r”
e o “l”, que os índios encontravam
dificuldades na pronúncia, podemos observar isso em palavras como dor ou mel, que são pronunciadas por alguns caipiras “dô” e “mé”. Podemos
encontrar tantos outros exemplos na obra de Amadeu Amaral, O dialeto caipira.
A
sociedade caipira que se formou do século XVI ao XVIII tinha traços de
nomadismo advinda da fusão da herança do português explorador e dos antigos
habitantes da região, os índios. Tal herança definiu a economia seminômade do
caipira. Em função disso e do conhecimento dos recursos naturais e sua
exploração sistemática, segundo Antonio Candido, a dieta desse grupo foi
permeada pelo mínimo vital, ou seja, havia ali uma economia de subsistência baseada
na caça, na pesca, na coleta e na agricultura itinerante. Essa instabilidade,
por sua vez, também colaborou para a mobilidade.
Junto
aos fatores já citados, foi observado também pelo sociólogo, que o paulista
rústico vivia em grupos fechados, com base na família e em vilas ou povoados
esparsos que foram surgindo conforme a queda da mineração e o incentivo do
governo em povoar o local. Esses “apovoados” são chamados também bairros
rurais. Candido cita a frase de um caipira para expressar o sentimento de
localidade que havia nesses grupos fechados: “Bairro é uma naçãozinha.” As
atividades do caipira têm como base quase que unicamente a família e, como
consequência disso, viviam praticamente isolados, com o mínimo de intercâmbio
com o mundo exterior e sem integrar-se a outra estrutura mais ampla (CANDIDO,
2003, p.85), portanto fica explícito com a frase do caipira que o bairro supre
todas as necessidades dos habitantes e que o caipira se basta ali.
O
caipira depois do século XVIII
Do
século XVI ao século XVIII se deram os ciclos bandeirantes. Até esse momento a
cultura estava baseada em formas de sociabilidade fechada e uma economia de
subsistência, que se apoiava em soluções mínimas para manter a sobrevivência
dos indivíduos e dos bairros. Esses ciclos se quebram no século XVIII.
Rompendo este
estado de coisas, superando o nível de tais mínimos, surgiam as vilas e as
fazendas abastadas, que desde logo se erigiram em núcleos de melhor
alimentação, melhor equipamento material, relações econômicas e espirituais
mais intensas – quebrando o círculo da economia fechada, ou criando novas
formas de ajuste ao meio, em nível de cultura mais alto. (CANDIDO, 2003, p.103)
Surgiram
assim duas categorias de habitantes da região: aqueles que começaram a
estabelecer a troca e o comércio, que eram proprietários de fazendas de cana,
gado ou café, e que consequentemente eram ligados ao mercado – esses participavam
de um grau de rusticidade, da fala e costumes, mas não eram integrantes da
cultura caipira; e a segunda categoria era formada por sitiantes, posseiros e
agregados, que continuaram viver, enquanto foi possível, dos bairros rurais e
da economia de subsistência. A situação desses caipiras perdurou devido à
expansão da economia paulista que passou a exigir requisitos legais de direitos
de propriedade, o que precarizou ainda mais a situação do lavrador, que, sem
instrução ou meios para legalizar suas pequenas terras, foi tirado de sua
morada e obrigado a perambular em busca de novos e instáveis lares. O caráter
da mobilidade continuou para esse caipira.
Podemos
agregar ainda a presença do negro, que se estabeleceu e miscigenou depois de
três séculos de escravidão, e dos colonos estrangeiros, que chegaram para
trabalhar nas fazendas e por não se identificarem ou almejarem a estrutura de
vida do caipira abandonaram o sistema de cooperação no qual esses viviam,
alterando assim a organização dos bairros. A chegada de outros povos, além de
influenciar social e economicamente a vida do paulista, também interferiu em
sua linguagem. Paulo Duarte, na introdução ao livro de Amadeu Amaral O dialeto caipira discorre sobre a
miscigenação do português com o índio e com o negro – o preconceito existente
na época nunca foi um fator de interferência à interpenetração étnica – e
agrega:
Essa intimidade
quase permanente provocou, como era fatal, o cruzamento da língua. Mais tarde,
intrometeram-se também o francês, o italiano, o alemão, os eslavos, os sírios,
homens e mulheres de todos os povos e de todas as nações. (DUARTE, 82, p.15-16)
A
chegada desses novos habitantes do interior de São Paulo, o novo momento
econômico do estado com novos meios de produção que penetraram os latifúndios e
as vias de comunicação que se estenderam intensificando o comércio e abrindo a
província para o contato permanente com a civilização exterior, trouxeram
consigo uma mudança significativa e decisiva para a região. Novas necessidades
surgiram. Na agricultura as técnicas avançaram bem como o ritmo de trabalho se
intensificou. O aumento das horas de trabalho levou a população à dependência
de adquirir através do comércio o que antes se produzia no âmbito familiar.
Cresceu também a necessidade pelos bens de consumo, facilitadores da vida
doméstica. Os posseiros, roceiros, genuínos
caipiras fechados em seus sistemas, grande parte analfabetos ou com pouca
instrução, começaram a serem postos de banda e ficaram à margem da vida
coletiva. Houve uma “(...) crise nos
meios de subsistência, nas formas de organização e nas concepções do mundo”
(CANDIDO, 2001, p.204). Isso condicionou e alterou os padrões tradicionais de
vida de grande parte dos caipiras, resistindo com menos intensidade aos antigos
padrões em alguns poucos lugares. Muitos permaneceram no campo adaptando-se ou
não à nova realidade econômica, outros foram para as cidades que iam se
formando no interior do estado e outros tantos para a capital. Devido à
simplicidade e à falta de instrução, aqueles que migraram para os centros
urbanos e que antes trabalhavam com a agricultura, passaram a exercer novas
funções como operário em indústrias, pedreiro, comerciário, tintureiro,
mecânico, motorista, comerciante, etc.
Assim como mudou
o sistema de vida do caipira, mudou também sua linguagem. Novos imigrantes,
aumento da densidade demográfica e surgimento de centros urbanos, alfabetização
e futuramente muitos outros fatores como o rádio, a televisão, a indústria,
dentre inúmeros, colaboraram para tais mudanças. Mas ainda hoje é possível
identificar nos modos e na língua do caipira um modo particular de expressar-se
com as reminiscências do antigo rústico caipira paulista.
O
estereótipo e o preconceito
Não nos cabe
discorrer sobre os tempos mais modernos no que tange à história do caipira,
visto que a parte que nos interessa para o presente artigo é relativa aos
fatores que nos levaram ao estereótipo atual para então analisar os porquês do
preconceito existente desde os primórdios da história do caipira.
Devemos, para
tanto, primeiramente compreender a profunda relação entre língua e cultura. A
língua não só é parte, como também resultado, meio de operar e condição para
subsistir da cultura. É na língua que se projetam os comportamentos, as
crenças, os hábitos, as instituições, e os valores materiais e espirituais que
caracterizam um grupo e que são transmitidos coletivamente (BRANDÃO, 1991,
p.5-6).
Ao falar, um
indivíduo transmite, além da mensagem contida em seu discurso, uma série de
dados que permite a um interlocutor atento não só depreender seu estilo pessoal
– idioleto – ,mas também filiá-lo a um determinado grupo. (BRANDÃO, 1991,
p.183)
Visto que a
língua e a cultura são indissociáveis, ao tratarmos o preconceito em relação ao
dialeto caipira, estamos também tratando o preconceito em relação à sua cultura
e vice-versa. Por isso, quando vemos a discriminação em relação ao modo de
falar caipira, ela existe também em relação à sua cultura.
Veremos alguns
elementos que colaboraram para o estereótipo do caipira e o decorrente
preconceito cultural e sociolinguístico:
a) Miscigenação
com o índio;
b) Rusticidade,
ruralidade e “atraso”;
c) Falar
caipira e simplicidade.
Miscigenação
com o índio
Como
vimos anteriormente, o caipira, sua língua e cultura advêm primeiramente do
contato do bandeirante com o índio nativo da região. Desde que houve o contato
do branco com o índio no Brasil, sabemos que este segundo foi visto com
inferioridade cultural. Os índios, para o colonizador, dentre alguns outros
adjetivos pejorativos, eram selvagens, não civilizados, primitivos e
preguiçosos. Pelo fato de o povo paulista vir dessa miscigenação e ter traços
fortes e significativos da cultura indígena, o preconceito para com ele também
existe desde muito cedo. Candido, citando o olhar de Saint-Hilaire a respeito
do paulista, escreve:
Saint-Hilaire,
(...), apresenta o paulista rústico – o caipira – um quadro pouco ameno. Acha-o
primitivo e brutal, macambúzio e desprovido de civilidade, em comparação com o
mineiro. E como nas Minas encontrou em abundância mulatos amáveis, concluiu que
a mistura de branco e índio, dominante no paulista, é fator de inferioridade,
dando produtos muito piores que os de branco e negro. (CANDIDO,2001, p.55)
Candido,
novamente mostrando a discriminação em relação ao paulista agora sob o olhar de
um historiador vicentino: “homens modelados pelas usanças dos índios, de uma
significação dura e ríspida, de hábitos selváticos e repelentes” (CANDIDO,
2001, p.54). Esta imagem está vinculada não só ao índio, mas à vida nômade,
rude e sem comunicação social.
O
sociólogo explica:
É certo que
dessa vida fragosa dos paulistas nos tempos primitivos originara-se a
discriminação que desde remotas era se fez da sua índole característica, mas
também é certo que dos seus maiores não puderam derivar trato ameno, moralidade
e costumes inculcados à raça, que os não pusessem na mesma linha dos selvagens.
(CANDIDO, 2001, p.54)
Essa
visão de inferioridade para com o índio e o paulista não poderia não ter se
estendido também para a língua. Para os jesuítas, por exemplo, a língua nativa
do Brasil no período colonial era “língua dos pagãos” e mesmo tendo atingido
certa importância pelo seu uso corrente, logo proibiram seu uso através de um
ato legal em 1934, com medo do tupi penetrar definitivamente na língua
portuguesa. É evidente que a língua nativa era vista como inferior e errada,
enquanto que a língua colonizadora era superior, culta e se tornou a oficial.
Naturalmente
o indígena ao tentar se expressar na língua do colonizador não conseguia falar
com a estrutura e sotaque de um português, tinha dificuldade em pronunciar
certos fonemas da língua portuguesa, e isso foi encarado com jocosidade, falta
de tratos ou visto como maneira inculta de falar não usando convenientemente a
língua (SOUZA, 1990, p.67). Usamos até hoje uma palavra que expressava esse
desdém do falar errado do índio: nhenhenhém (que significa “falar falar falar
de índio). Também não seria estranho exemplificarmos a forma inculta de falar o
português utilizando-nos da língua regional derivada do falar do índio como em
“mim vai”.
Os
paulistas tanto tinham fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios
vícios de linguagem que quando o Senado do Império tratou de abrir cursos
jurídicos em São Paulo houve quem fosse contra, alegando que o linguajar dos
naturais (resquícios da língua nheengatu) contaminaria os futuros bacharéis.
(AMARAL, 1982, p.41)
Rusticidade,
ruralidade e “atraso”
A
ruralidade proporcionou ao paulista quase nenhuma sociabilidade e contato com
outras regiões durante o período colonial. Pela pouca densidade demográfica,
pelo difícil acesso aos bairros rurais para quem rumasse do litoral para o
interior e pela própria opção de isolamento do caboclo, este ficou muito tempo
isolado da civilização urbana. Sendo assim, aquele caipira descendente de
bandeirantes e índios, não poderia viver de outra forma que não utilizando dos
meios naturais, da caça, da pesca e da agricultura para sobreviver.
Não
seria estranho, portanto, que esse “paulista rústico” não tivesse modos amenos,
moralidade e costumes como das zonas urbanas. Os hábitos diferenciados dos
caipiras em comparação com os hábitos daqueles que moravam nas zonas urbanas
foram vistos, por um tempo, de forma pejorativa por remeter ao vínculo com os
costumes indígenas. Os homens “modelados pelas usanças dos índios” (CANDIDO,
2001) eram vistos com hábitos semelhantes aos selvagens. Mais tarde é estabelecida a dicotomia entre rural e
urbano, um passou a ser visto como oposto ao outro.
O
avanço tecnológico levou à urbanização da indústria, que por sua vez fez acelerar
e crescer a própria urbanização. A partir desse momento, à cidade passou a ser
vinculado o dinamismo, o movimento, o desenvolvimento, as indústrias e o avanço.
A cidade e a indústria eram o motor da economia e poderiam proporcionar maiores
rendas que aquelas advindas do campo.
Em
contrapartida, depois do processo de industrialização, o campo passa a ser visto
como o lugar da estagnação. O ambiente rural era economicamente ligado às
atividades primárias, enquanto que os setores secundários e terciários estavam
localizados nas zonas urbanas. A relação com a terra e a não intensidade de
industrialização trouxe para o campo a imagem do atraso e do
conservadorismo.
O
apego do caipira ao seu modo de vida fechado, rural, sem intercambio e com a
economia baseada em mínimos vitais trouxe a marginalização de sua cultura que, com
a industrialização, sofreu vários impactos.
Tendo conseguido
elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas
como expressão da sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e
sociabilidade. Daí o atraso que referiu a atenção de Saint-Hilaire e criou
tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e
caricatural, já no século XX, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato. (CANDIDO, 2001,
p. 107)[1]
O
estereótipo do Jeca Tatu é um exemplo que perdura até hoje como símbolo de
trabalhador do campo. A imagem depreciativa do caboclo brasileiro figura no
Jeca Tatu o atraso e a miséria do meio rural. Jeca Tatu vive à margem da
civilização e a ela mão se adapta. Jeca é homem rústico e sem tratos que não
sabe se comportar como aqueles que tem costumes da cidade. “Coitado, é Jeca,
não sabe se portar” é expressão comum para denominar o homem do campo sem modos
de cidade grande. “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no
romance e feio na realidade!” (LOBATO, 1971, p.148)
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgubres.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.
Não compõe sua canção, como o felá do Egito.
No meio da natureza
brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços
no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro,
abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras,
sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o
sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não
canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio da tanta vida, não vive… (LOBATO,1971, p.155)
Falar
caipira e simplicidade
O
dialeto caipira, reminiscente do nheengatu, foi por muito tempo visto como um
modo de falar feio, errado e inferior, se comparado à língua portuguesa culta.
Isso se deu pela proximidade das origens indígenas e pela simplicidade e falta
de instrução que o meio rural trouxe ao caboclo.
O
isolamento vivido pelo caipira até a industrialização culminou na precariedade
de trocas de informação e ao analfabetismo. Mais tarde, ainda que a
industrialização tenha levado o caipira à cidade e colaborado para o aumento da
densidade demográfica no interior, e que esses tenham sido fatores que
aumentaram a alfabetização, por muito tempo o Brasil teve altas taxas de
analfabetismo – e essas taxas eram mais agravadas em regiões rurais. Somando-se
isto ao fato de que a imagem do caipira sempre esteve vinculada ao campo, consequentemente
seu estereótipo de pessoa pouco instruída também perdurou fortemente por muito
tempo. Isso foi agravado pela oralidade de caboclos (alfabetizados ou não) que
não seguiam a risca as normas cultas da gramática da língua portuguesa.
Perceptível e
estigmatizada como “errada”, a fala caipira pouca importância dedica às regras
sintáticas de concordância, talvez pela percepção da redundância da regra
normativa e, em muitos casos, pela pouca diferença fonética entre singular e
plural, sem nenhuma implicação que turve o sentido lógico e poético do
vernáculo. (SANT’ANNA, 2009, p.67)
Há
sempre uma valorização da língua falada pelas classes mais altas, e são essas
que se tornam a língua padrão e a forma correta de expressão. Ocorre que o
caipira é vinculado à classe baixa, pela situação financeira que por muito
tempo foi inferior a daqueles que viviam nas cidades e pelos modos rústicos
ligados ao campo.
Na América do
Norte, por exemplo, o chamado “bad English” é considerado um dialeto da classe
baixa. Automaticamente, a linguagem falada pelas classes mais altas é vista
como a forma correta de expressão. Nesses termos, o dialeto passa a ser uma
linguagem excluída de uma sociedade de hábitos linguísticos ditos “polidos”.
(MANÉ,2012, p.43)
Antonio
Candido, ao falar sobre os desajustes que a esfera urbana trouxe ao caipira,
afirma que houve uma mudança também em tocante aos mínimos, que se antes eram estabelecidos com referência às
condições históricas, depois passou a ser definido em comparação com os níveis,
normas e padrões impostos pela vida urbana. (2001, p.271)
Se
antes o caipira se bastava no equilíbrio do bairro e das relações econômicas
baseadas na família, na subsistência e na troca, esse novo sistema que penetrou
o interior o faz sentir-se desajustado ao equiparar-se com o morador da cidade,
o qual possui condições em adquirir bens de consumo e equipamento material que
penetraram na vida da região.
Os velhos
utensílios e instrumentos são desprezados – mas os novos não se tornam
acessíveis. Os grupos e os indivíduos vão-se desprendendo da absorção do meio
imediato – mas não têm elementos para promover de maneira adequada o reajuste a
novos meios. A caça e a pesca se reduzem a quase nada como recurso de
abastecimento – mas não podem ser substituídas pela alimentação cárnea do
comércio. (CANDIDO, 2001, p.274)
Assim,
ao caipira foi aderida a imagem do atraso e da simplicidade, das origens pagãs
e da fala torta, do campo e da rusticidade. Percebemos que no decorrer da
história há momentos de retorno e valorização da cultura brasileira – como
ocorreu no movimento literário do Romantismo no qual houve uma tentativa de
iluminar o tupi como língua nacional. Recentemente, vemos movimentos voltados
ao direito dos índios, à valorização do folclore brasileiro e inclusive ao
orgulho caipira, dentre tantos outros, mas os mesmos movimentos também nos
apontam a necessidade de um olhar mais atento em relação à ausência de valor e
à discriminação.
O predomínio
político e a concentração da riqueza entre as classes e camadas sociais
dominantes urbanas dos grandes centros, produziu o desprezo e a rejeição dos
moradores urbanos falantes da língua dominante, principalmente por parte das
camadas sociais formadas por trabalhadores intelectuais, em relação ao
trabalhadores braçais rurais e suas formas de expressão, como atesta o
tratamento depreciativo à linguagem caipira que sobrevive entre os moradores do
campo de algumas regiões do Brasil e seus descendentes. (PRAXADES, 2007)
Não
devemos ser complacentes com as línguas e culturas dominantes, devemos nos
atentar para as variedades linguísticas (línguas, dialetos e sotaques) como
expressões de um país multicultural. Tendo em vista as origens e os porquês do
preconceito com o caipira, podemos reelaborar, reconstruir e reeducar nossos
olhares e voltá-los não à tolerância, mas à riqueza da nossa história, aos
encantos do folclore e à diversidade.
O
caipirês, ou dialeto caipira, é uma linguagem oral e regional que não segue os
padrões de norma culta das gramáticas da Língua Portuguesa, mas que tem, como
qualquer outra língua, identidade, expressa um povo, conta sua história e expõe
a cultura.
Referências
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