(UFT)
Renata Ferreira da
Silva[3]
(UFT- UFSC)
Resumo
Este
escrito é uma passagem - em meio à chuva, por nossas próprias memórias.
Partimos com “Funes, o memorioso”, passamos pelo devir memória-esquecimento e investigamos
como o corpo, a memória e a escrita confluem no teatro,tomado como invenção de
si. Encontramos importantes encenadores do século XX que tocaram no tema da
memória. Provocamos processos pedagógicos com os gigantes da memória. Ao final,
recolhemos o que restou: o tempo como ponto de convergência entre memória e invenção
na fala de um autor - personagem.
Palavras-Chave:Teatro; Escrita; Memória.
1. SOBRE O ESQUECIMENTO OU DIÁLOGO COM FUNES
Não lembro ao certo quando começou a chover. A água
despenca do céu cinzento, que hora ou outra, é clareado por relâmpagos,
trovoadas, estrondos luminosos em meio à tempestade. Entre cada batucada da
chuva em minha janela, busco incessantemente por minhas próprias memórias
caídas no esquecimento.
Questiono:
seria possível deter o esquecimento e lembrar-se de todos os fatos? Viver o
agora numa constante reconstrução de percepções que esvaíram pelo tempo? Não
tenho a mínima possibilidade de alcançar este objetivo. Tampouco o quero,
porque eu esqueço.
Às vezes
esqueço-me que tenho que esquecer.
Às vezes
lembro-me que tenho que lembrar.
Seria
inútil para mim e para esta pesquisa que me esquecesse, pois não haveria o que
dizer, a não serem fragmentos dispersos por folhas em branco. Tampouco que me
lembrasse de tudo o que aconteceu ao longo do caminho, dos vividos com crianças
em uma Escola Municipal, dos idosos que me possibilitaram experiências como
ouvinte de suas grandiosas memórias e de como a minha perseguição pela memória
reverberou em meu corpo.
Transito entre esses lugares: o lugar da
memória e do esquecimento e sua relação com o teatro. Certa vez, o professor
Lehmann me disse que “O teatro pode significar lembrança de algo em suspenso, passado e futuro, memória e antecipação, ruptura com a presença sobrecarregada de informação, consumo e "consciência."” (2007, p. 319).
Em contextos da educação
tradicional, a chama ‘escola’ opera justamente na contramão: na presença
sobrecarregada de informação, tudo o que não significaria teatro. Penso que
essa suspensão geradora de rupturas é exatamente onde quero inscrever minhas
práticas. Esquecer aqui não é um desfalecimento da informação, mas um espaço
pré-expressivo para a suspensão de reminiscências.
Por isso, para que este trabalho aconteça não
posso me privar em nenhum momento de lembrar e de esquecer. Vem uma memória das
palavras da professora Sánchez (2010, p. 81): “Entre dança-teatro, prática-teoria, razão-emoção, artista-pesquisadora
insinua-se agora a memória, indissociável do esquecimento, e a tentativa de
tornar consciente o que “se esqueceu”, mas permanece vivo.”. Assim, só nos
damos conta de que esquecemos porque lembramos daquilo que estava esquecido.
Aparentemente, esquecer não é uma tarefa
muito difícil nem para mim, e talvez nem para você, caro leitor. Era o que
pensava antes de conhecer a história de Irineu Funes, que é narrada por Jorge
Luis Borges (2007) em seu conto “Funes, o memorioso”.
Irineu
Funes, personagem central do conto, é no mínimo intrigante. Tinha a capacidade
extraordinária de saber as horas sem a orientação do relógio ou mesmo pela
posição do sol. Sabia verdades claras e radiantes mesmo em dias nublados como
hoje. É descrito por uma das personagens do conto como ‘precursor dos
super-homens, “um Zaratustra xucro e
vernáculo.” (BORGES, 2007, p. 103).
Um dia, Funes sofre um acidente, e acaba por
ficar aleijado. A impossibilidade do movimento leva a personagem a encerrar-se
dentro de um quarto escuro e húmido, do qual quase nunca saía - apenas se
deslocava com a ajuda de sua família para a janela durante o entardecer. A nova
condição de seu corpo, aprisionado pela impotência de mover-se sem dependência
fez com que sua percepção e sua memória se desenvolvessem a uma potência extrema:
Sabia as formas das nuvens
austrais do amanhecer do dia trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois
e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que
vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na
véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem
visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. (BORGES, 2007 p.
107).
Nada do que passasse pela atenta percepção de
Funes era esquecido. Suas capturas do momento presente eram dadas num
simultâneo arquivamento e imediata categorização do que foi captado.
Impossibilitado de mover-se, impossibilitado de esquecer-se. Talvez por isso
fosse tão difícil para Funes dormir, pois isso significava “distrair-se do mundo” (BORGES, 2007, p. 108). Cada milésimo de
segundo era recolhido de forma singular.
Estas
capturas e arquivamentos do momento presente tornavam mundo a sua volta
irreproduzível, irrepetível, impar. Funes não era capaz de generalizar as coisas
em conceitos gerais, como fazemos corriqueiramente em nosso dia-dia. Enxergava
de forma admirável as mudanças do mundo entre um segundo e o outro:
Não só lhe custava
compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de
diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze
(visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de
frente). (BORGES, 2007 p. 108)
O fluxo de sua memória chegava a pontos tão
derradeiros que, para reconstruir um dia vivido, levava exatamente o mesmo
tempo: um dia inteiro. O narrador suspeita de Funes: “não era muito capaz de
pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado
mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.” (BORGES, 2007, p.
108).
Eu esqueço diferenças, generalizo, abstraio.
O contato com Funes, o memorioso, me leva a crer que eu penso, pois pormenores
escapam-me a todo o momento. Pensar é algo que não posso abrir mão neste
momento.
Será que me esqueci de falar algo importante?
Neste momento, o professor Lehmann alerta-me
sobre os depósitos de memórias: “Em nosso
contexto, "memória" não significa qualquer
tipo de depósito de informações e "lembrança" não é um procedimento
no qual este ou aquele dado acumulado no depósito-memória seja convocado ao
bel-prazer.” (2007, p. 318).
- Nem o quero, professor!
Diferentemente de Funes, não sou capaz de dar
conta de tantas memórias. Não me comprometo em oferecer informações acumuladas
do passado, dadas pelas palavras e sentenças que vos escrevo.
Porém, cabe dizer que em
algum momento, tive de desempenhar – mesmo que de maneira falha e insuficiente,
o papel de Funes como arquivista de memórias: capturando os momentos vividos
por meio da escrita, numa forma de deter, deveras parcialmente, o esquecimento.
Escrevi relatos incompletos sobre o que passava aos meus sentidos.
Mas estes escritos não
operam como memórias puras em um depósito como alertou o professor Lehmann
(2007), que toma o acontecimento da memória como: “quando algo não visto se torna quase visível entre imagem e imagem, quando algo não ouvido se torna quase audível entre som e som, quando
algo não sentido se torna quase perceptível
entre as sensações.” (LEHMANN, 2007, p. 138).
O registro da memória pela
escrita apresenta-se nesta mesma perspectiva: imagens, sons e sensações que
quase acontecem entre palavra e palavra, intervalos entre o clarão e o estrondo
do relâmpago.
Mas esses registros não tem, de maneira alguma, a função de um objeto antigo
a ser guardado na gaveta, jamais tocado novamente e fim da história. Esses diários de bordo são tomados como
possibilidades para o corpo: dramaturgias fragmentadas, disparadores da ação,
possíveis ficções para um corpo em criação. Ou como disse uma vez o professor
Ryngaert (2009): indutores de jogo, pontos de apoio para improvisações e mote
da criação artística.
E da escrita surgem necessidades.
Dar corpo a essas dramaturgias, corpos que
improvisem ao som do caleidoscópio que é olhar para sua própria memória. Corpos
pulsantes. Corpos vivos. Corpos que também são memória. Corpos que flutuam para
performar memórias. Sobre o corpo, nas palavras do professor Lehmann (2007, p.
332):
O corpo vivo é uma complexa rede de pulsões, intensidades, pontos de energia e fluxos, na qual processos sensório-motores coexistem com lembranças corporais acumuladas, codificações e choques. (...) A concepção cultural sobre o que é "o" corpo está sujeita a flutuações "dramáticas", e o teatro articula e reflete
essas concepções. Ele representa corpos e ao mesmo tempo os tem como seu principal material de significação.
O teatro permite que a matéria prima corpo flutue, revire e rodopie em
consonância com a proposta. Aqui não fazemos questão das supermarionetes de
Craig, mas sim desse corpo vivo. O professor Lehmann (2007) me faz compreender
que o corpo é algo intrínseco, e que, portanto, não haveria sentido em esquecê-lo.
A prática do ensino de teatro leva a crer que
o corpo pode ser tomado não como meio de transmissão das ideias postas no texto
dramático de determinado autor, mas como um fim em si. Assim como a escrita não
é a materialização da memória pura, a escrita também não é uma ordenação
precisa sobre a ação do corpo. Seguimos este raciocínio para as dramaturgias da
memória aqui exploradas em minha prática artístico-pedagógica a partir da
questão: como memória, escrita e corpo confluem na criação artística?
Podemos supor também que o
corpo escreve para além do papel e da caneta. Escreve com seu movimento, gesto,
enquanto se compõe uma dramaturgia a partir da sua experiência com o mundo: “Se essa memória tem grande influência na
literatura, possivelmente terá influencia sobre o ator-dramaturgo que “escreve”
com o “corpo” uma dramaturgia, recolocando suas vivências na cadeia
“mito-história-escrita cênica.”” (SÁNCHEZ, 2010, p. 84). Escrever com o
corpo significa o relampejar de dramaturgias que se formam em meio ao
movimento. O guia do corpo aqui é estar no devir memória assim como no devir
criação.
E por este caminho, algumas vozes vão se
fazendo ouvido: são corpos, personagens, personas, talvez performers que
possuem o desejo de versar sobre o corpo, a dramaturgia, a sala de aula e a
criação autoral.
E então, vamos dando saltos entre lembrança e
lembrança, palavra e palavra, corpo e corpo. Ao final, convido a você, caro
leitor, a pensar em tudo que não foi dito por mim nessa tentativa de dançar com
a memória, a escrita e o corpo.
Comecemos por organizar gavetas.
2. GAVETA DA ESQUERDA: MAPEAMENTO DA MEMÓRIA NO TEATRO
Vejo
trovões ao longe que piscam lembranças de palavras que não me pertencem.A
primeira gaveta despenca espalhando papeis por todo o chão. A madeira já
começara a apodrecer junto como que restou de mim. Os papeis aparentam o mesmo
estado de putrefação: ocres, mofadas, roídas pelo tempo. Não. Alguns parecem
apenas encardidos e puídos. Não. Há folhas quase brancas com palavras que
parecem desgastadas. Não. Há palavras que parecem ainda rejubilar a luz das
horas claras. Não. Há quase não-folhas que de tão desgastadas, finas e
delicadas, temo por chamá-las de papel. Estas não possuem letras em sua
superfície, nem parecem interessadas em ser espaço para a escrita. Ou seria
minha pele?
Uma
necessidade descabida de mapeamento surge pela janela. Ordena-los segundo a
lógica de decomposição: do ancião ao frescor.
2.1. Memória emotiva
Os
primeiros papéis recolhidos são os mais desgastados. Parecem cartas, tão velhas
que o remetente é ilegível. Passo rapidamente os olhos tentando identificar de
quem são. As palavras enunciam profunda afetividade, relatos de ensaios,
diálogos, narram experiências teatrais em... Moscou? De imediato percebo: são
do mestre Stanislavski (2001).
Curiosamente,
também um dos primeiros a tratar do tema da memória em relação ao teatro. Seu
método - que sofreu alterações ao longo de suas vivências - parte da
organicidade na interpretação do ator, distanciando-se de reproduções operadas
a partir de estereótipos, lugares-comuns, clichês da interpretação teatral.
Interessava a construção subjetiva da personagem, sua peculiaridades, seus
sentimentos e emoções. A este ponto, entra em cena um conceito de suma
importância para nossa investigação: a memória emotiva.
Como era
mesmo esse conceito?
Os
escritos reavivam em minha memória:
Esse tipo
de memória, que faz com que você reviva as sensações que teve outrora, vendo
Moskvin representar ou quando o seu amigo morreu, é que chamamos de memória das
emoções ou memória afetiva. Do mesmo modo que sua memória visual pode
reconstruir uma imagem interior de alguma coisa, pessoa ou lugar esquecido,
assim também sua memória afetiva pode evocar sentimentos que você já
experimentou. Podem parecer fora do alcance da evocação e eis que, de súbito,
uma sugestão, um pensamento, um objeto familiar os traz de volta em plena
força. (STANISLAVSKI, 2001, p. 207)
Podemos
pensar então que as emoções são memorificáveis? Reavivamos sensações no ato de
lembrar-se? Não sei se as emoções são passiveis de tal sistematização. Porém,
podemos considerar o conceito de memória afetiva de Stanislavski (2001) como um
ponto de partida na investigação entre teatro e memória, mesmo sabendo que este
conceito fora reformulado por ele anos mais tarde.
Organizo
suas cartas em uma pilha. Ainda há muito que arrumar.
2.2. Corpo-memória
Os
próximos são papeis velhos, escritos com tinta fresca e fedorenta. Seu reflexo
luminoso reflete a fantasmagoria do meu corpo. Seria meu aquele corpo? Não, são
apenas espelhos. É uma carta pobre, fruto de um corpo pobre, descendente de um
teatro mais pobre ainda.
Ah! São
escritos de Grotowski! Exclamo em voz alta. Curioso como respirar poeira de
gavetas velhas nos faz reavivar a memória.
Não
consigo ler o que está escrito. A única coisa que me vem à mente é o tal do
conceito de corpo-memória. Como era mesmo esse conceito... Ele sempre me falava
sobre isso em nossas conversas. Ou ele escreveu sobre isso em um texto? Como
ele se chama? Era alguma coisa... Uma carta... Um bilhete.Ou era uma
conferência? Bom, lembro-me apenas que era endereçada como uma resposta a
Stanislavski. Se não me falha a memória, ele dizia:
O ator
apela para a própria vida, não procura no campo da “memória emotiva”, nem do
“se”. Dirige-se ao corpo-memória, não à memória do corpo, mas justamente ao
corpo memória. E ao corpo-vida. Então se dirige para as experiências que foram
para ele verdadeiramente importantes ou para aquelas que ainda esperamos, que
não vieram ainda. Às vezes a recordação de um instante, um único instante, ou
um ciclo de recordações em que algo permanece imutável. (...) Estas recordações
(do passado e do futuro) são reconhecidas ou descobertas por aquilo que é
tangível na natureza do corpo e de todo o resto, ou seja, o corpo-vida. Ali
está escrito tudo. (GROTOWSKI, 2001, p. 16)
Seria o
corpo-memória o momento em que passado e futuro se tocam?
Digo-lhe,
caro leitor, que Stanislavski (2001) acreditava que as emoções poderiam ser
memorizadas e acessadas dentro do contêiner das memórias segundo o nosso
desejo, necessidade ou vontade. Anos mais tarde, ele teria redesenhado seu
método de encenação, dando maior força a um novo conceito: as ações físicas,
onde as emoções e outras formas de abstratas deram lugar a ações físicas,
concretas e experienciadas pelo corpo na criação de um personagem. Grotowski
(2001) formou-se segundo o método stanislavskiano. Afirma em seus textos que
nutria grande respeito por ele, além do que, o método grotowskiano é fortemente
influenciado pelas ações físicas. Grotowski (2001) nos convida a dar uma
resposta a Stanislavski, assim como seu discípulo Meyerhold[4].
Seus escritos apontam que as emoções não estão no domínio das vontades,
acontecem de forma livre, desorientada, que nunca vem a propósito de algo.
Assim, o
conceito de memória emotiva não é possível para este autor. Grotowski vai de
encontro à outra perspectiva, de um corpo que é memória e de uma memória que é
corpo: “Pensa-se que a memória seja algo
independente do resto do corpo. Na verdade, ao menos para os atores, é um pouco
diferente. O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é
desbloquear o “corpo-memória”.” (GROTOWSKI, 2010, p. 173).
A memória na concepção
grotowskiana não está no domínio do abstrato, do imaterial, do incorpóreo.
Pensar a memória como este grande aquário que carregamos nas costas seria
recair ao velho paradigma dualista entre corpo e mente como sugere o conceito
de memória emotiva da primeira fase de estudos em Stanislavski (2001).
O aquário não estaria no corpo, seria o próprio corpo. O
aquário é o espaço onde se enunciam as trovoadas.
A memória
se dá a partir de nossas experiências no mundo. Por meio de percepções
capturadas por todos os nossos sentidos, as memórias se aglutinam entre as
falanges dos dedos, por baixo dos pelos das pernas, escondem-se atrás das
orelhas para que, nos momentos mais inoportunos, murmurem nossos esquecimentos
ao pé do ouvido. As ideias borbulhantes de Grotowski explodem meus olhos: “As recordações são sempre reações físicas.
Foi a nossa pele que não esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que
escutamos pode ainda ressoar dentro de nós” (1992, p. 187).
O esvair
da memória se dá no constante envelhecer do corpo. Se nós envelhecemos no
passar do tempo, poderia o corpo não ser apenas memória, mas um
corpo-esquecimento-memória.
Mais uma
pilha. Sigo para a próxima.
2.3. Dramaturgia da memória
São
folhas amareladas, porém com um cheiro agridoce que me faz coçar as narinas. As
letras se repetem. Fazem torções, criam tensões entre si, ao mesmo tempo em que
flutuam pelas bordas do papel e me provocam o riso. É uma carta-dança de Lícia
Maria Morais Sánchez (2001). Em seus escritos, ela conta histórias sobre
dramaturgias da memória no teatro-dança, suas vivências no dia-dia do WuppertalerTanztheater como bailarina,
sendo dirigida por dois anos pela própria Pina Bausch.
Ela
descreve que o processo de criação dos espetáculos de Bausch, além de incluírem
treinamentos que vão do ballet
clássico ao moderno, são concebidos dramaturgicamente a partir de suas famosas
sessões de pergunta e resposta:
Estas
sessões de pergunta e resposta eram os ensaios para a criação das peças,
momentos nos quais trabalhávamos o tema que nos era transmitido em forma de
perguntas, e as respostas eram as ações que realizávamos, expressando as nossas
ideias sobre este tema. (SÁNCHEZ, 2001, p. 22)
Bausch
propõe um método que beira a sinestesia, a metáfora, dizer sobre algo sem ser
óbvio, caricato, mas sem trair a referência do estimulo dado, “procurando ver e sentir o mundo, eliminando
a interpretação do óbvio, do imediato, do usual. É não falar de flores, se um
tema trata de flores.” (SÁNCHEZ, 2001, p. 24). As respostas dadas por seus
bailarinos vinham em forma de movimentos, palavras, ações muito simples,
característica que Bausch apreciava.
Sánchez
(2001)ao estipular os princípios do processo criativo bauschiano,- denota a
importância de ser você mesmo, de não cair nas armadilhas da representação.
Naquele contexto, o que interessava eram suas partilhas que tinham como
principio o corpo. Este corpo é entendido como construído culturalmente, politicamente,
eticamente, esteticamente, subjetivamente. Um corpo que é marcado por suas
vivências, dotado de memórias que o tornam singular em relação aos demais.
Logo, podemos crer que o/a bailarino/a para Bausch não é apenas um executor/a,
mas sim como demandam as vanguardas da dança contemporânea, ele/a é criador/a,
e neste caso, fornece materiais a partir de sua experiência singular do mundo,
uma escrita autobiográfica do corpo no espaço. Sánchez ressalta:
Devemos
esclarecer que o aporte desta cultura e sua ancestralidade não é o de nos
dirigir de maneira proposital para este fim. A verdade é que ele acontece como
uma consequência natural do processo que nos envolve como ser total, portanto,
esta memória está implícita nas nossas ações. (2001, p. 57)
Após sua
experiência no WuppertalerTanztheater,
Sánchez retorna a Bahia, onde passou a desenvolver experimentos baseada no
processo de Pina Bausch com bailarinas brasileiras. Ela relata sobre a
emergência da memória em sua prática:
O
processo de pergunta e resposta teve como finalidade despertar na memória das
dançarinas – elas também mulheres e baianas, respostas ancestrais, quiçá
inconscientes, traduzidas em gestos, movimentos e quadros relacionados com a
temática da liberdade, da resistência à escravidão e da construção de
identidades. Estas respostas encontravam-se guardadas na memória de cada um dos
participantes, envolvidos pela magia e pelo clima que marca e relembra a
presença de antepassados em cada canto da Bahia. (SÁNCHEZ, 2011, p. 61)
Como podemos
ver, a memória é algo inexorável no processo criativo bauschiano dada a
coautoria de seus/suas bailarinos/as em seus espetáculos por meio do processo
de perguntas e respostas.
Nunca
respondi nenhuma das cartas de Sánchez. Pelo menos não da maneira como ela
escrevia. Precisava, assim como sugere Bausch, dar uma resposta em forma de
ação, de movimento, de esticar corpos memoriosos e de criar ao som de suas
dramaturgias da memória.
Os papeis
estão organizados, empilhados, aguardando por serem bagunçados novamente.
Agora, narro sobre outras experiências tendo em mente essas dramaturgias
criadas por um corpo-memória.
3. DIÁRIO DE BORDO OU COMO ESCREVER UM TEXTO DRAMÁTICO
A chuva
engrossa. Um raio beija o solo do meu quintal fazendo-me tomar um susto. O rugir
dessa trovoada lança-me contra a parede. Ela se rompe, assim como as regras
rígidas, as linhas duras a serem seguidas, e as palavras de ordem. O privilégio
é dado ao acaso. O acaso de estar vivo e em movimento: improvisemos nesta casa
de paredes disformes. Se pudesse, talvez, não escreveria apenas com a ponta dos
dedos batendo em botões que pretendem dar conta do que preciso dizer. Ryngaert
(2009) talvez soubesse disso, e por isso nunca me esqueci de seus ensinamentos.
Aviso: ele duvida, pergunta, questiona principalmente no que se refere às
narrativas engessadas no ensino de teatro. Dedico-me a versar sobre ele, jogar
e representar sobre seus escritos.
O jogo
para este autor é um disparador em potencial, apontando para a emergência de
ficções que provoquem a profunda autorreflexão (RYNGAERT, 2009, pp. 23-24). O
jogo habita uma zona fronteiriça entre ficção e realidade em relação aos
jogadores, sonhar acordado (RYNGAERT, 2009, p. 39). Chama a atenção
especialmente para a preparação da aula, como começar, sugerindo ritualizações
dos encontros nas aulas de teatro.
Ele
desenvolve sua teoria à medida que se distancia do texto centrismo, mas tendo
em mente a banalização da improvisação nos anos 70 (RYNGAERT, 2009, p. 86).
Assim, ele sugere formas de trabalhar a improvisação, sempre enfatizando a
importância do ponto de apoio para que os exercícios acontecessem, além da
importância da não racionalização das ações.
Copeau, á
priori, instaura um caminho diverso ao que vinha sendo feito. Seuinteresse é
pela eliminação dos bloqueios do ator/atriz, em “minimizar processos racionais
como elemento analítico do trabalho do ator” (ICLE, 2006, p. 9). Há um
interesse explícito por buscar uma neutralidade como condição para uma criação,
por buscar um estado nas improvisações em que processos racionais desconectados
de uma ação do corpo sejam minimizados ao máximo. Não premeditar, não entrar na
improvisação com algo já determinado por uma suposta consciência a ser
executada por um corpo que não pensa. Afinal, o corpo não pensa?
A improvisação teatral, nesta proposição,
configura-se como um método de criação teatral que já não parte necessariamente
de um texto, ao contrário, o texto, a cena, são resultados de um processo. Um
processo que, por sua vez, busca um vazio do pensamento, não a instauração de
um caos e um descontrole, mas um estado de presença que seja capaz de eliminar
os obstáculos cotidianos e impulsionar a criação fazendo nascer algo orgânico
que poderia ser formalizado, repetido, de forma que “a palavra enunciada fosse
o resultado de um pensamento experimentado pelo ator em todo o seu ser, e o
desabrochar, ao mesmo tempo, de sua atitude interior e da expressão corporal
que a traduz” (COPEAU, 1974, 114 apud GODINHO, Mariana e FALEIRO, José Ronaldo,
2004.).
Ryngaert
(2009) revela os indutores de jogo: seriam textos, imagens, espaços, músicas.
Estes indutores são utilizados como mote da improvisação. Pensava que poderia
traduzir estes indutores ao meu modo como indutores da memória. A memória
induzia a cena.
4. OBSERVAR GIGANTES OU ENCONTRO COM OS PERFORMERS DA MEMÓRIA
Era por
volta de meio-dia. Sol ardente. A paisagem ao redor é tremula e árida. R e eu nos protegemos em uma estreita sombra
que grande muro branco projeta timidamente sobre o chão.
Conversamos.
Nossos corpos aderem à escuridão como lagartixas esgueirando-se em uma parede.
Passamos
até agora por memórias pequenas, memórias que ainda não tiveram tempo de ser e
acontecer. O devir da criança está muito mais relacionado a uma personificação
do presente do que um apego à um passado que sequer ainda existe.
R
entrega-me um mapa e uma missão: siga por dentro da mata até chegar à praia. De
lá, pegue uma jangada e reme em direção ao sul. Ao longe, avistará uma ilha,
sozinha, tímida e empoeirada. Chegando lá, procure pelos gigantes das memórias.
Eles dirão o que deve (ou não) fazer.
Sigo, em
meio à chuva, ao seu encontro.
Os
gigantes da memória são avistados em meio à poeira úmida. Trazem junto de si
trovoadas constantes, escondidas em meio às negras nuvens do céu. Entendo que
eles têm algo a dizer, algo a narrar. Mas não são palavras soltas em meio a
gotas d’água, eles são suas próprias palavras. Se Grotowski (1992, 2001, 2010)
propõe que o corpo é memória, a palavra também é memória. Logo, poderia eu dizer
que a voz é memória? Seriam esses gigantes não atores, que representam uma
memória na ação, mas sim performers da memória?
Lembro-me
que Walter Benjamin (1985) em seus escritos sobre a figura do narrador, afirma
que a tradição oral da narrativa está se diluindo a cada dia. Narrar é para ele
nossa maneira de tornar a experiência intercambiável. A incapacidade de narrar
se dá partindo do principio de que a nossa relação com a experiência está cada
vez mais distante, massacrada pela guerra, pela literatura impressa, pela
informação. Tampouco existem ouvintes para estas narrativas engolidas pelo modo
de vida contemporâneo. Abro a janela para deixar suas memórias entrarem.
4.1. Descrição primeira: Objeto ou carta ao performer
O
performer é L, de 76 anos, famoso pelas histórias de tempos longínquos que
conta a qualquer ouvido disponível a sua volta. Algumas histórias são memórias,
outras, poderíamos chamar de memórias inventadas, auto ficções. L costumava
visitar minha casa pelo menos uma vez por semana, sempre de manhãzinha para
tomar café ou no final da tarde. Nos dias em que coincidia de não nos
encontrarmos, L deixava em meu criado mudo um bilhete escrito à caneta em um
guardanapo. Sempre no guardanapo. Rejeitava qualquer possibilidade de escrever
em outro tipo de papel. Seus escritos traziam coisas simples, em letras
sinuosas, semelhantes aos convites de casamento escritos à mão dos tempos de
outrora. Nos últimos anos, L foi silenciando, guardando suas histórias, que vez
em quanto se mostram timidamente em conversas muito intimas. Sempre inicia suas
narrativas com a palavra “então”, seguida da contextualização de suas
histórias. Em grande parte delas, L manda alguém ir à merda. Pausas quase que
ensaiadas enquanto seus olhos retomam as visões e as palavras de suas
lembranças. Suas mãos quase sempre gesticulam de maneira forte e pontual. Olha
nos olhos do ouvinte como se estivesse à frente do interlocutor de sua
narrativa. Um dia, visitando L, fui convidado para a narrativa a mais
silenciosa que já fizera.
Convida-me
a adentrar em seu quarto. Um espaço pequeno, onde os pés descalços sentem a
maciez e a sujeira do carpete. Dois armários antigos localizados em paredes
opostas, uma estreita cama de solteiro, uma cadeira de escritório de couro
preta, e uma grande escrivaninha antiga povoada por papeis, livros, imagem de
um santo e canetas. A janela estava aberta, deixando a luz do dia se esgueirar
pela cortina de renda que dançava ao som da brisa.
Sento-me
confortavelmente em na cama, ao seu pedido. Ele senta-se em sua cadeira de
couro, passa a mão duas vezes pelos poucos cabelos que ainda restam em sua
cabeça, vira-se de costas para mim. Pigarros. Abre a primeira gaveta do lado
esquerdo da escrivaninha, e remexendo, retira de lá quatro envelopes: três
brancos e um azul. Parecem ser cartas. Coloca-as em seu colo, organiza-os
cuidadosamente em uma ordem específica.
Entrega-me
o primeiro envelope. Não há remetente, apenas a indicação do destinatário.
Retiro o conteúdo do envelope. Um cartão, tendo em seu interior as palavras:
“Segue um pedaço de história que também é sua”. Observo. Coloco o cartão ao meu
lado. Retiro do primeiro envelope também uma folha de papel impresso com uma
poesia, chamada Casal da Fazenda. Leio-a para mim mesmo. São palavras
familiares que me tocam profundamente. L permanece com as outras cartas em suas
mãos. Termino a leitura.
O ar parece fino e cortante.
Entrega-me
o segundo envelope. Também não há remetente, apenas o destinatário. Retiro seu
conteúdo. Uma fotografia de um filtro de água antigo feito de barro, e abaixo
de seu bocal, uma caneca azul com a pintura um pouco gasta. Atrás, há as
seguintes palavras: “A gente sai da fazenda, mas a fazenda não sai da
gente...”. Coloco-a novamente ao meu lado. Além da fotografia é acompanhada
novamente de uma folha de papel impresso que contém uma poesia, chamada
Roseiral. Leio-a em voz alta. Meus olhos marejam. L se mantém em silêncio e
cabisbaixo.
- De quem
são essas cartas afinal? Questiono.
L
sinaliza para que eu tenha calma, que logo saberei. A curiosidade sobre esse
poeta anônimo cresce dentro de mim.
Entrega-me
o terceiro envelope. Retiro de lá duas fotografias: a primeira contém a imagem
de folhas, e ao fundo, meio desfocado, algo que parece ser uma goiaba meio
roída pelo tempo, ainda pendurada na árvore. A segunda apresenta o teto de um
casebre antigo com telhas desgastadas, e que como mágica, cresces flores
amarelas de cabo comprido, como se quisessem chegar a qualquer custo ao céu.
Atrás dessa segunda fotografia, vêm as palavras: “Quantas árvores cabem na sua
lembrança?”. A imagem das flores amarelas prende minha atenção por alguns
momentos, assim como as palavras no verso. Descanso as fotografias ao meu lado
novamente, e retiro do envelope uma folha de papel impresso, com a poesia
chamada Arvoradas. Leio-a novamente em voz alta. Vem-me a lembrança das
primeiras poesias que li de Manoel de Barros. Deixo o papel novamente ao meu
lado. Olho para L.
- Então,
no mês de janeiro, eu comecei a receber estas cartas pelo correio. Não sabia de
quem elas vinham, apenas que as poesias falavam sobre os meus pais. Diz L,
entregando-me o envelope azul.
O ar
parece pouco dentro daquele pequeno quarto.
Este
possui remetente: era Angelinho, seu sobrinho-neto que lhe enviara as fotos e
escritos de sua autoria. Abro o envelope. Retiro duas fotografias que se
embaralham em minhas mãos. Na primeira, a imagem de uma estrada envolta por
mato, e uma vaca negra caminhando por ela. Na segunda, a imagem de um riacho,
também envolto pelo mato e iluminado pelo sol. Atrás da segunda fotografia, vêm
as palavras: “Palavras soltas trilham caminhos tecem lembranças.”. Novamente
retiro do envelope uma folha de papel impressa, com a poesia Terra Molhada.
Leio-a. Afogo-me em qualquer possibilidade de dizer algo.
L
observa-me. Também se mantém em silêncio. Trocamos algumas tentativas de dizer
algo um para o outro. Guardamos as cartas, que voltam para a gaveta.
Fim da
performance.
4.2. Descrição segunda: espaços transpostos
M é
aposentada. Vive em algum lugar no interior de São Paulo, não recordo muito bem
onde. Por um longo período de sua vida, morou em uma espaçosa casa na companhia
de sua mãe, dona Ana, falecida no ano de 2006. Desde então, ela mora sozinha em
um apartamento, próximo de onde há uma linha do trem.
M visita
minha casa em Palmas pelo menos uma vez por ano. E eu, quando a visito em sua
cidade , hospedo-me em sua casa pelo menos um final de semana. Seja qual for o
espaço, sempre conversamos enquanto fumamos um cigarro em sua sacada ou em meu
quintal. Trocamos palavras esfumaçadas.
Em sua
ultima visita, M inicia sua performance.
Esta
sentada no sofá da sala, usando um vestido roxo com estampa de flores rosadas.
Sento-me a sua frente.
- Qual a
memória você carrega da minha casa? Ela questiona.
- Do
barulho do trem passando de manhazinha antes do sol nascer, respondo com certa
facilidade.
Devolvo a
pergunta a ela. M diz que seu espaço favorito em minha casa é o quintal, porque
lembra sua antiga casa, onde morava com sua mãe. São espaços muito parecidos,
de fato. O chão de concreto cercado por jardins com árvores que dão pequenas
frutas durante os tempos de chuva, e oferecem sombras para os dias de sol.
- Não é
atoa que eu gosto tanto de ficar lá fora, diz M.
O espaço
que é frequentemente habitado por ela, seja para fumar seu cigarro, ou para
fugir do calor, ou para socializar com os outros moradores de minha casa.
Senta-se sempre na mesma cadeira, que, coincidentemente, um dia pertenceu a sua
casa, e que após o falecimento de sua mãe, fora dada a minha família como
lembrança.
Continuamos
trocando palavras, falamos sobre novelas e sua dramaturgia, que na opinião de
M, estão todas iguais. Não há ruptura.
M vai
silenciando. Desloca-se ao quintal. Acende um cigarro. Dança entre cadeiras,
arbustos, concretos, rodopia sobre a memória de um espaço que um dia também foi
seu.
Fim da
performance.
4.3. Descrição terceira: Gesto e afecção
Disseram-me
que A vive em terras longínquas. Não é possível contabilizar sua idade. Viveu
tanto, leu tanto, sentiu tanto, que hoje tudo isso fica recluso para dentro
dela. Comunica-se com poucas palavras, sabendo que elas não dão conta de todas
as memórias que carrega.
Não
lembro ao certo quem foi que me contou, mas o fato é que A fazia teatro na
infância. Seu pai, já falecido, costumava levar ela e as irmãs para o cinema
quando as primeiras salas comerciais começaram a existir. O encantamento de A
com a experiência do cinema era algo que não lhe cabia, desejava contar as
mesmas histórias que via nas grandes telas. Dizem que improvisava com as irmãs
em casa depois tudo que assistira.
Assim,
inicia mais uma performance.
Vejo A ao
longe, sentada em um banco em um cemitério. Cabeça baixa, suas mãos repousam em
seu colo, segurando uma espiga de milho. Aproximo-me. Poucas coisas são
legíveis a seus cansados olhos. Ela nem me reconhece. Sento-me ao seu lado, e a
performance inicia.
- A
senhora fazia teatro quando criança? Pergunto.
- Sim,
com espigas de milho. Responde Após uma pausa.
Ela volta
seu olhar para mim. Há um brilho em seu olhar como se estivesse segurando as
ditas espigas de milho. Ela continua a narrar:
- Eu e
minhas irmãs morávamos perto de um milharal. Como meu pai não tinha dinheiro
para comprar brinquedos, bonecas e coisas do gênero para nós, roubávamos
espigas da plantação e elas funcionavam como bonecos. Guardávamos todas embaixo
da cama. Por vezes, nossas histórias precisavam de muitos personagens, então
havia um bom número delas. Encenávamos as histórias que víamos nos filmes.
Apenas eu e minas irmãs. Uma prima nossa queria brincar, mas ela era péssima
atriz, então não deixávamos.
Ela ri.
Coça as mãos salpicadas pelas manchas da velhice. Ela volta seu olhar para o
horizonte, e silencia sua prosa, deixando-me seguir meu caminho.
- Espera!
Diz A.
Aproximo-me
novamente. Ela estica os frágeis braços e entrega em minhas mãos sua a espiga
de milho. Faz um pedido enquanto entrega:
- Guarde
com você. Se você quer mesmo fazer teatro, precisa aprender a manipular espigas
de milho.
Concordo
com a cabeça, dou as costas, e começo a caminhar.
Fim da performance.
5.RESQUICIOS
DAS TROVOADAS OU COMO PARAR DE ESCREVER
Parou de
chover. O céu enxuga suas ultimas lágrimas e os trovões e relâmpagos se
aquietam entre as nuvens. Os olhos embaçados pelo véu de umidade custam a
enxergar as poças d’água que, como fissuras da terra, são espelhos de uma
imensidão silenciosa.
Assim
também permaneço, em silêncio.
A
inquietude de revirar minhas próprias memórias em meio aos emaranhados do
esquecimento faz-me entender que: “O
acontecimento é um relâmpago; o céu onde ele relampeja é a memória: “o céu
lívido onde aflora a ventania”.” (LISSOVSKY, 2005, p. 136). Não foi a chuva
que trouxe minhas memórias. Elas permaneciam ali, mesmo que cobertas por uma
massa cinzenta. Os relâmpagos davam a oportunidade para que essas memórias
acontecessem. Meu corpo poderia ser esse céu, lívido, fissurado, atravessado
pelo tempo. Os restos, deixados no passado, são tomados não como acontecimentos
de um tempo ido que é rememorado no presente, mas num sentido de reciprocidade:
Disto já
decorre uma das características importantes da memória: ela não é
unidirecional, não é um movimento que surge no presente e se volta para o
passado (como nos sugere a ideia de rememoração), mas bidirecional, onde o
passado visa, na mesma medida em que é visado, o futuro. O tempo onde esta
reciprocidade tem lugar é o agora. (LISSOVSKY, 2005, p. 139)
O agora é
o tempo da memória em meio a estes dois vetores (passado e futuro). Inscrevo
minhas práticas nesse intervalo. Nele, reviro memórias em busca de narrativas.
Das narrativas, escritos. Dos escritos, dramaturgias. Das dramaturgias, ações,
poéticas, corpos disponíveis ao criar a partir dessas memórias. Longe dos
moldes da representação, o fato de lembrar-se já é por si só, uma recriação do
passado que vem à tona como algo novo. Tomo as experiências que habitam a carne
como disparador da ação, mas não no sentido de representar memórias fielmente
segundo sua narrativa, e sim girar em torno delas, deixar que levem o corpo. O
ato de criação pertence ao tempo presente tanto quanto à memória.
Questiono:
em que medida ainda existe o tempo de lembrar e esquecer?
- Quando
lembro que me esqueci de fazer a tarefa de matemática! Sussurra uma memória da
infância.
Um dia,
Ryngaert (2009) me disse que a improvisação revela a autoria do ator no
processo de experimentação. Faço-me de suas palavras para pensar a memória
tomada como conceito indutor de jogo. Esta também revela autoria,
multiplicidade, diferença. Em minha experiência com crianças e com os escritos
de Ryngaert (2009), esbarramos em nossas memórias induzidos pela própria
memória, permanecendo atento a lembranças involuntárias. Dar espaço a manifestações
memoriosas é uma possibilidade de aprender. Da mesma maneira que o teatro é uma
possibilidade de aprendizado por outra via: o corpo. Daí surge à necessidade da
memória no território da educação, não para lembrar sobre uma tarefa que
deveria ter sido cumprida, mas para outras formas de conhecer a si, ao outro, e
ao mundo: o que é lembrar-se? O que podemos criar a partir disso?
O
relampejar destas memórias é algo que se manifesta com força singular em
idosos. Os indutores de jogo de Ryngaert (2009) podem ser lidos aqui como algo
muito mais simples do que no trabalho com crianças: estar disponível a escuta.
Poucos estímulos são necessários para que iniciem uma narrativa, que de tão
pulsante, nos levama pensar que estas pessoas - que estão vivas há mais tempo
que outras - seriam performers da memória. Uma materialização clara do
corpo-memória de Grotowski (1992, 2001, 2010) que explode em uma intensidade
diferente do ser que ainda viveu pouco para ter do que se lembrar.
Estas
experiências memoriosas levam meu corpo ao inevitável: correr em meio a chuva,
deixar pingar cada gota uma lembrança e (re)criá-las.
Tropeço
pelo enlameado quintal de minha casa, onde Stanislavski (2001) acreditava
residirem às memórias. Revisado ou não, dualista ou não, esta proposição de seu
método opera como uma dramaturgia para ações físicas me levou ao encontro de
tantas emoções e memórias que mal posso contabilizar. Nem o quero. O devir
memória só se pode sentir na medida em que é experienciado. Isso é uma
possibilidade de aprendizado para mim. Deixar ser atravessado por flechas do
passado e do futuro e versar sobre coisas que não sabemos ainda.
Danço,
remexo, flutuo pelo ar pegajoso de uma chuva recém-esquecida. Estas perdas,
fragmentações, esquecimentos de si são uma possibilidade de aprendizado para
mim. Esquecer é condição para a memória, assim como esquecer é condição de
brotar de si mesmo. Dançar é perder-se de si mesmo, perder memórias, perder
gestos, perder percepções, estilhaçando com tudo aquilo que se passou em um ido
momento presente para habitar um novo agora.
Esquecer-se
na terra húmida e deixar brotar dos poros sementes plantadas no passado.
Crescem gérberas, orquídeas, tulipas. Irrigá-las ao sabor da narrativa e
torná-las voz, texto, corpo, cenário, experiência. E novamente eu esqueço.
Permanecem
em nossa memória as turbulências da experiência, enquanto ecoa o rugido da
tempestade esquecida no tempo.
Do que eu
estava falando mesmo?
(...)
Esqueci...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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W. (1985). O Narrador - considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia
e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense.
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Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 4ª Edição.
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J. (2001). Resposta à Stanislavski.
Tradução de Ricardo Gomes. In: Revista Folhetim, Rio de Janeiro.
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consciência no sujeito extra - cotidiano. São Paulo, Perspectiva, 2010.
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L. M. M. (2001). O processo Pina-bauschiano como provocação à dramaturgia da memória.Dissertação
de Mestrado, Universidade Federal de Campinas. São Paulo, Campinas. Disponível
em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000243470 (acesso em:
21/01/2014, às 15 hora e 30 minutos).
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L. M. M. (2010). Dramaturgia da Memória
no Teatro-Dança. São Paulo: Ed. Perspectiva.
STANISLAVSKI, C. (2001). A Preparação do Ator. Rio de Janeiro,
Ed. Civilização Brasileira.
[1]
Este artigo é parte da monografia de conclusão de curso de Andrey Tamarrozi
Lima defendida em 2014 na Universidade Federal do Tocantins sob orientação da
Mestre Renata Ferreira da silva .
[2]Licenciado
em teatro pela Universidade Federal do Tocantins.
[3]Professora
Assistente do curso de licenciatura em Teatro da Universidade Federal do
Tocantins- UFT. Mestre e doutoranda em educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC.
[4]Para
Stanislavski, Meyerhold teria sido o único de seus discípulos a compreender
verdadeiramente seu método. A partir dessa compreensão, Meyerhold rompe com os
ensinamentos de seu mestre, e funda um novo método: a biomecânica, da qual
divergia em diversos pontos com o a forma de criação stanislavskiana.