FAÍSCAS DE UMA TEMPESTADE: A ESCRITA DO CORPO-MEMÓRIA

 Andrey Tamarozzi Lima[2]
(UFT)
Renata Ferreira da Silva[3]
(UFT- UFSC)
Resumo
Este escrito é uma passagem - em meio à chuva, por nossas próprias memórias. Partimos com “Funes, o memorioso”, passamos pelo devir memória-esquecimento e investigamos como o corpo, a memória e a escrita confluem no teatro,tomado como invenção de si. Encontramos importantes encenadores do século XX que tocaram no tema da memória. Provocamos processos pedagógicos com os gigantes da memória. Ao final, recolhemos o que restou: o tempo como ponto de convergência entre memória e invenção na fala de um autor - personagem.
Palavras-Chave:Teatro; Escrita; Memória.

1. SOBRE O ESQUECIMENTO OU DIÁLOGO COM FUNES

            Não lembro ao certo quando começou a chover. A água despenca do céu cinzento, que hora ou outra, é clareado por relâmpagos, trovoadas, estrondos luminosos em meio à tempestade. Entre cada batucada da chuva em minha janela, busco incessantemente por minhas próprias memórias caídas no esquecimento.
Questiono: seria possível deter o esquecimento e lembrar-se de todos os fatos? Viver o agora numa constante reconstrução de percepções que esvaíram pelo tempo? Não tenho a mínima possibilidade de alcançar este objetivo. Tampouco o quero, porque eu esqueço.
Às vezes esqueço-me que tenho que esquecer.
Às vezes lembro-me que tenho que lembrar.
Seria inútil para mim e para esta pesquisa que me esquecesse, pois não haveria o que dizer, a não serem fragmentos dispersos por folhas em branco. Tampouco que me lembrasse de tudo o que aconteceu ao longo do caminho, dos vividos com crianças em uma Escola Municipal, dos idosos que me possibilitaram experiências como ouvinte de suas grandiosas memórias e de como a minha perseguição pela memória reverberou em meu corpo.
Transito entre esses lugares: o lugar da memória e do esquecimento e sua relação com o teatro. Certa vez, o professor Lehmann me disse que O teatro pode significar lembrança de algo em suspenso, passado e futuro, memória e antecipação, ruptura com a presença sobrecarregada de informação, consumo e "consciência."” (2007, p. 319).
Em contextos da educação tradicional, a chama ‘escola’ opera justamente na contramão: na presença sobrecarregada de informação, tudo o que não significaria teatro. Penso que essa suspensão geradora de rupturas é exatamente onde quero inscrever minhas práticas. Esquecer aqui não é um desfalecimento da informação, mas um espaço pré-expressivo para a suspensão de reminiscências.
Por isso, para que este trabalho aconteça não posso me privar em nenhum momento de lembrar e de esquecer. Vem uma memória das palavras da professora Sánchez (2010, p. 81): “Entre dança-teatro, prática-teoria, razão-emoção, artista-pesquisadora insinua-se agora a memória, indissociável do esquecimento, e a tentativa de tornar consciente o que “se esqueceu”, mas permanece vivo.”. Assim, só nos damos conta de que esquecemos porque lembramos daquilo que estava esquecido.
Aparentemente, esquecer não é uma tarefa muito difícil nem para mim, e talvez nem para você, caro leitor. Era o que pensava antes de conhecer a história de Irineu Funes, que é narrada por Jorge Luis Borges (2007) em seu conto “Funes, o memorioso”.
Irineu Funes, personagem central do conto, é no mínimo intrigante. Tinha a capacidade extraordinária de saber as horas sem a orientação do relógio ou mesmo pela posição do sol. Sabia verdades claras e radiantes mesmo em dias nublados como hoje. É descrito por uma das personagens do conto como ‘precursor dos super-homens, “um Zaratustra xucro e vernáculo.” (BORGES, 2007, p. 103).
Um dia, Funes sofre um acidente, e acaba por ficar aleijado. A impossibilidade do movimento leva a personagem a encerrar-se dentro de um quarto escuro e húmido, do qual quase nunca saía - apenas se deslocava com a ajuda de sua família para a janela durante o entardecer. A nova condição de seu corpo, aprisionado pela impotência de mover-se sem dependência fez com que sua percepção e sua memória se desenvolvessem a uma potência extrema:

Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do dia trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. (BORGES, 2007 p. 107).

Nada do que passasse pela atenta percepção de Funes era esquecido. Suas capturas do momento presente eram dadas num simultâneo arquivamento e imediata categorização do que foi captado. Impossibilitado de mover-se, impossibilitado de esquecer-se. Talvez por isso fosse tão difícil para Funes dormir, pois isso significava “distrair-se do mundo” (BORGES, 2007, p. 108). Cada milésimo de segundo era recolhido de forma singular.
  Estas capturas e arquivamentos do momento presente tornavam mundo a sua volta irreproduzível, irrepetível, impar. Funes não era capaz de generalizar as coisas em conceitos gerais, como fazemos corriqueiramente em nosso dia-dia. Enxergava de forma admirável as mudanças do mundo entre um segundo e o outro:

Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). (BORGES, 2007 p. 108)

O fluxo de sua memória chegava a pontos tão derradeiros que, para reconstruir um dia vivido, levava exatamente o mesmo tempo: um dia inteiro. O narrador suspeita de Funes: “não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.” (BORGES, 2007, p. 108).
Eu esqueço diferenças, generalizo, abstraio. O contato com Funes, o memorioso, me leva a crer que eu penso, pois pormenores escapam-me a todo o momento. Pensar é algo que não posso abrir mão neste momento.
Será que me esqueci de falar algo importante?
Neste momento, o professor Lehmann alerta-me sobre os depósitos de memórias: “Em nosso contexto, "memória" não significa qualquer tipo de depósito de informações e "lembrança" não é um procedimento no qual este ou aquele dado acumulado no depósito-memória seja convocado ao bel-prazer.” (2007, p. 318).
- Nem o quero, professor!
Diferentemente de Funes, não sou capaz de dar conta de tantas memórias. Não me comprometo em oferecer informações acumuladas do passado, dadas pelas palavras e sentenças que vos escrevo.
Porém, cabe dizer que em algum momento, tive de desempenhar – mesmo que de maneira falha e insuficiente, o papel de Funes como arquivista de memórias: capturando os momentos vividos por meio da escrita, numa forma de deter, deveras parcialmente, o esquecimento. Escrevi relatos incompletos sobre o que passava aos meus sentidos.
Mas estes escritos não operam como memórias puras em um depósito como alertou o professor Lehmann (2007), que toma o acontecimento da memória como: quando algo não visto se torna quase visível entre imagem e imagem, quando algo não ouvido se torna quase audível entre som e som, quando algo o sentido se torna quase perceptível entre as sensações.” (LEHMANN, 2007, p. 138).
O registro da memória pela escrita apresenta-se nesta mesma perspectiva: imagens, sons e sensações que quase acontecem entre palavra e palavra, intervalos entre o clarão e o estrondo do relâmpago.
Mas esses registros não tem, de maneira alguma, a função de um objeto antigo a ser guardado na gaveta, jamais tocado novamente e fim da história.  Esses diários de bordo são tomados como possibilidades para o corpo: dramaturgias fragmentadas, disparadores da ação, possíveis ficções para um corpo em criação. Ou como disse uma vez o professor Ryngaert (2009): indutores de jogo, pontos de apoio para improvisações e mote da criação artística.
E da escrita surgem necessidades.
Dar corpo a essas dramaturgias, corpos que improvisem ao som do caleidoscópio que é olhar para sua própria memória. Corpos pulsantes. Corpos vivos. Corpos que também são memória. Corpos que flutuam para performar memórias. Sobre o corpo, nas palavras do professor Lehmann (2007, p. 332):

O corpo vivo é uma complexa rede de pulsões, intensidades, pontos de energia e fluxos, na qual processos sensório-motores coexistem com lembranças corporais acumuladas, codificações e choques. (...) A concepção cultural sobre o que é "o" corpo está sujeita a flutuações "dramáticas", e o teatro articula e reflete essas concepções. Ele representa corpos e ao mesmo tempo os tem como seu principal material de significação.

O teatro permite que a matéria prima corpo flutue, revire e rodopie em consonância com a proposta. Aqui não fazemos questão das supermarionetes de Craig, mas sim desse corpo vivo. O professor Lehmann (2007) me faz compreender que o corpo é algo intrínseco, e que, portanto, não haveria sentido em esquecê-lo.
A prática do ensino de teatro leva a crer que o corpo pode ser tomado não como meio de transmissão das ideias postas no texto dramático de determinado autor, mas como um fim em si. Assim como a escrita não é a materialização da memória pura, a escrita também não é uma ordenação precisa sobre a ação do corpo. Seguimos este raciocínio para as dramaturgias da memória aqui exploradas em minha prática artístico-pedagógica a partir da questão: como memória, escrita e corpo confluem na criação artística?
Podemos supor também que o corpo escreve para além do papel e da caneta. Escreve com seu movimento, gesto, enquanto se compõe uma dramaturgia a partir da sua experiência com o mundo: “Se essa memória tem grande influência na literatura, possivelmente terá influencia sobre o ator-dramaturgo que “escreve” com o “corpo” uma dramaturgia, recolocando suas vivências na cadeia “mito-história-escrita cênica.”” (SÁNCHEZ, 2010, p. 84). Escrever com o corpo significa o relampejar de dramaturgias que se formam em meio ao movimento. O guia do corpo aqui é estar no devir memória assim como no devir criação.
E por este caminho, algumas vozes vão se fazendo ouvido: são corpos, personagens, personas, talvez performers que possuem o desejo de versar sobre o corpo, a dramaturgia, a sala de aula e a criação autoral.
E então, vamos dando saltos entre lembrança e lembrança, palavra e palavra, corpo e corpo. Ao final, convido a você, caro leitor, a pensar em tudo que não foi dito por mim nessa tentativa de dançar com a memória, a escrita e o corpo.
Comecemos por organizar gavetas.

2. GAVETA DA ESQUERDA: MAPEAMENTO DA MEMÓRIA NO TEATRO

Vejo trovões ao longe que piscam lembranças de palavras que não me pertencem.A primeira gaveta despenca espalhando papeis por todo o chão. A madeira já começara a apodrecer junto como que restou de mim. Os papeis aparentam o mesmo estado de putrefação: ocres, mofadas, roídas pelo tempo. Não. Alguns parecem apenas encardidos e puídos. Não. Há folhas quase brancas com palavras que parecem desgastadas. Não. Há palavras que parecem ainda rejubilar a luz das horas claras. Não. Há quase não-folhas que de tão desgastadas, finas e delicadas, temo por chamá-las de papel. Estas não possuem letras em sua superfície, nem parecem interessadas em ser espaço para a escrita. Ou seria minha pele?
Uma necessidade descabida de mapeamento surge pela janela. Ordena-los segundo a lógica de decomposição: do ancião ao frescor.

2.1. Memória emotiva

Os primeiros papéis recolhidos são os mais desgastados. Parecem cartas, tão velhas que o remetente é ilegível. Passo rapidamente os olhos tentando identificar de quem são. As palavras enunciam profunda afetividade, relatos de ensaios, diálogos, narram experiências teatrais em... Moscou? De imediato percebo: são do mestre Stanislavski (2001).
Curiosamente, também um dos primeiros a tratar do tema da memória em relação ao teatro. Seu método - que sofreu alterações ao longo de suas vivências - parte da organicidade na interpretação do ator, distanciando-se de reproduções operadas a partir de estereótipos, lugares-comuns, clichês da interpretação teatral. Interessava a construção subjetiva da personagem, sua peculiaridades, seus sentimentos e emoções. A este ponto, entra em cena um conceito de suma importância para nossa investigação: a memória emotiva.
Como era mesmo esse conceito?
Os escritos reavivam em minha memória:

Esse tipo de memória, que faz com que você reviva as sensações que teve outrora, vendo Moskvin representar ou quando o seu amigo morreu, é que chamamos de memória das emoções ou memória afetiva. Do mesmo modo que sua memória visual pode reconstruir uma imagem interior de alguma coisa, pessoa ou lugar esquecido, assim também sua memória afetiva pode evocar sentimentos que você já experimentou. Podem parecer fora do alcance da evocação e eis que, de súbito, uma sugestão, um pensamento, um objeto familiar os traz de volta em plena força. (STANISLAVSKI, 2001, p. 207)

Podemos pensar então que as emoções são memorificáveis? Reavivamos sensações no ato de lembrar-se? Não sei se as emoções são passiveis de tal sistematização. Porém, podemos considerar o conceito de memória afetiva de Stanislavski (2001) como um ponto de partida na investigação entre teatro e memória, mesmo sabendo que este conceito fora reformulado por ele anos mais tarde.
Organizo suas cartas em uma pilha. Ainda há muito que arrumar.

2.2. Corpo-memória

Os próximos são papeis velhos, escritos com tinta fresca e fedorenta. Seu reflexo luminoso reflete a fantasmagoria do meu corpo. Seria meu aquele corpo? Não, são apenas espelhos. É uma carta pobre, fruto de um corpo pobre, descendente de um teatro mais pobre ainda.
Ah! São escritos de Grotowski! Exclamo em voz alta. Curioso como respirar poeira de gavetas velhas nos faz reavivar a memória.
Não consigo ler o que está escrito. A única coisa que me vem à mente é o tal do conceito de corpo-memória. Como era mesmo esse conceito... Ele sempre me falava sobre isso em nossas conversas. Ou ele escreveu sobre isso em um texto? Como ele se chama? Era alguma coisa... Uma carta... Um bilhete.Ou era uma conferência? Bom, lembro-me apenas que era endereçada como uma resposta a Stanislavski. Se não me falha a memória, ele dizia:

O ator apela para a própria vida, não procura no campo da “memória emotiva”, nem do “se”. Dirige-se ao corpo-memória, não à memória do corpo, mas justamente ao corpo memória. E ao corpo-vida. Então se dirige para as experiências que foram para ele verdadeiramente importantes ou para aquelas que ainda esperamos, que não vieram ainda. Às vezes a recordação de um instante, um único instante, ou um ciclo de recordações em que algo permanece imutável. (...) Estas recordações (do passado e do futuro) são reconhecidas ou descobertas por aquilo que é tangível na natureza do corpo e de todo o resto, ou seja, o corpo-vida. Ali está escrito tudo. (GROTOWSKI, 2001, p. 16)

Seria o corpo-memória o momento em que passado e futuro se tocam?
Digo-lhe, caro leitor, que Stanislavski (2001) acreditava que as emoções poderiam ser memorizadas e acessadas dentro do contêiner das memórias segundo o nosso desejo, necessidade ou vontade. Anos mais tarde, ele teria redesenhado seu método de encenação, dando maior força a um novo conceito: as ações físicas, onde as emoções e outras formas de abstratas deram lugar a ações físicas, concretas e experienciadas pelo corpo na criação de um personagem. Grotowski (2001) formou-se segundo o método stanislavskiano. Afirma em seus textos que nutria grande respeito por ele, além do que, o método grotowskiano é fortemente influenciado pelas ações físicas. Grotowski (2001) nos convida a dar uma resposta a Stanislavski, assim como seu discípulo Meyerhold[4]. Seus escritos apontam que as emoções não estão no domínio das vontades, acontecem de forma livre, desorientada, que nunca vem a propósito de algo.
Assim, o conceito de memória emotiva não é possível para este autor. Grotowski vai de encontro à outra perspectiva, de um corpo que é memória e de uma memória que é corpo: “Pensa-se que a memória seja algo independente do resto do corpo. Na verdade, ao menos para os atores, é um pouco diferente. O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é desbloquear o “corpo-memória”.” (GROTOWSKI, 2010, p. 173).
                A memória na concepção grotowskiana não está no domínio do abstrato, do imaterial, do incorpóreo. Pensar a memória como este grande aquário que carregamos nas costas seria recair ao velho paradigma dualista entre corpo e mente como sugere o conceito de memória emotiva da primeira fase de estudos em Stanislavski (2001).
            O aquário não estaria no corpo, seria o próprio corpo. O aquário é o espaço onde se enunciam as trovoadas.
A memória se dá a partir de nossas experiências no mundo. Por meio de percepções capturadas por todos os nossos sentidos, as memórias se aglutinam entre as falanges dos dedos, por baixo dos pelos das pernas, escondem-se atrás das orelhas para que, nos momentos mais inoportunos, murmurem nossos esquecimentos ao pé do ouvido. As ideias borbulhantes de Grotowski explodem meus olhos: “As recordações são sempre reações físicas. Foi a nossa pele que não esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar dentro de nós” (1992, p. 187).
O esvair da memória se dá no constante envelhecer do corpo. Se nós envelhecemos no passar do tempo, poderia o corpo não ser apenas memória, mas um corpo-esquecimento-memória.
Mais uma pilha. Sigo para a próxima.

2.3. Dramaturgia da memória

São folhas amareladas, porém com um cheiro agridoce que me faz coçar as narinas. As letras se repetem. Fazem torções, criam tensões entre si, ao mesmo tempo em que flutuam pelas bordas do papel e me provocam o riso. É uma carta-dança de Lícia Maria Morais Sánchez (2001). Em seus escritos, ela conta histórias sobre dramaturgias da memória no teatro-dança, suas vivências no dia-dia do WuppertalerTanztheater como bailarina, sendo dirigida por dois anos pela própria Pina Bausch.
Ela descreve que o processo de criação dos espetáculos de Bausch, além de incluírem treinamentos que vão do ballet clássico ao moderno, são concebidos dramaturgicamente a partir de suas famosas sessões de pergunta e resposta:

Estas sessões de pergunta e resposta eram os ensaios para a criação das peças, momentos nos quais trabalhávamos o tema que nos era transmitido em forma de perguntas, e as respostas eram as ações que realizávamos, expressando as nossas ideias sobre este tema. (SÁNCHEZ, 2001, p. 22)

Bausch propõe um método que beira a sinestesia, a metáfora, dizer sobre algo sem ser óbvio, caricato, mas sem trair a referência do estimulo dado, “procurando ver e sentir o mundo, eliminando a interpretação do óbvio, do imediato, do usual. É não falar de flores, se um tema trata de flores.” (SÁNCHEZ, 2001, p. 24). As respostas dadas por seus bailarinos vinham em forma de movimentos, palavras, ações muito simples, característica que Bausch apreciava.
Sánchez (2001)ao estipular os princípios do processo criativo bauschiano,- denota a importância de ser você mesmo, de não cair nas armadilhas da representação. Naquele contexto, o que interessava eram suas partilhas que tinham como principio o corpo. Este corpo é entendido como construído culturalmente, politicamente, eticamente, esteticamente, subjetivamente. Um corpo que é marcado por suas vivências, dotado de memórias que o tornam singular em relação aos demais. Logo, podemos crer que o/a bailarino/a para Bausch não é apenas um executor/a, mas sim como demandam as vanguardas da dança contemporânea, ele/a é criador/a, e neste caso, fornece materiais a partir de sua experiência singular do mundo, uma escrita autobiográfica do corpo no espaço. Sánchez ressalta:

Devemos esclarecer que o aporte desta cultura e sua ancestralidade não é o de nos dirigir de maneira proposital para este fim. A verdade é que ele acontece como uma consequência natural do processo que nos envolve como ser total, portanto, esta memória está implícita nas nossas ações. (2001, p. 57)

Após sua experiência no WuppertalerTanztheater, Sánchez retorna a Bahia, onde passou a desenvolver experimentos baseada no processo de Pina Bausch com bailarinas brasileiras. Ela relata sobre a emergência da memória em sua prática:

O processo de pergunta e resposta teve como finalidade despertar na memória das dançarinas – elas também mulheres e baianas, respostas ancestrais, quiçá inconscientes, traduzidas em gestos, movimentos e quadros relacionados com a temática da liberdade, da resistência à escravidão e da construção de identidades. Estas respostas encontravam-se guardadas na memória de cada um dos participantes, envolvidos pela magia e pelo clima que marca e relembra a presença de antepassados em cada canto da Bahia. (SÁNCHEZ, 2011, p. 61)

Como podemos ver, a memória é algo inexorável no processo criativo bauschiano dada a coautoria de seus/suas bailarinos/as em seus espetáculos por meio do processo de perguntas e respostas.
Nunca respondi nenhuma das cartas de Sánchez. Pelo menos não da maneira como ela escrevia. Precisava, assim como sugere Bausch, dar uma resposta em forma de ação, de movimento, de esticar corpos memoriosos e de criar ao som de suas dramaturgias da memória.
Os papeis estão organizados, empilhados, aguardando por serem bagunçados novamente. Agora, narro sobre outras experiências tendo em mente essas dramaturgias criadas por um corpo-memória.

3. DIÁRIO DE BORDO OU COMO ESCREVER UM TEXTO DRAMÁTICO

A chuva engrossa. Um raio beija o solo do meu quintal fazendo-me tomar um susto. O rugir dessa trovoada lança-me contra a parede. Ela se rompe, assim como as regras rígidas, as linhas duras a serem seguidas, e as palavras de ordem. O privilégio é dado ao acaso. O acaso de estar vivo e em movimento: improvisemos nesta casa de paredes disformes. Se pudesse, talvez, não escreveria apenas com a ponta dos dedos batendo em botões que pretendem dar conta do que preciso dizer. Ryngaert (2009) talvez soubesse disso, e por isso nunca me esqueci de seus ensinamentos. Aviso: ele duvida, pergunta, questiona principalmente no que se refere às narrativas engessadas no ensino de teatro. Dedico-me a versar sobre ele, jogar e representar sobre seus escritos.
O jogo para este autor é um disparador em potencial, apontando para a emergência de ficções que provoquem a profunda autorreflexão (RYNGAERT, 2009, pp. 23-24). O jogo habita uma zona fronteiriça entre ficção e realidade em relação aos jogadores, sonhar acordado (RYNGAERT, 2009, p. 39). Chama a atenção especialmente para a preparação da aula, como começar, sugerindo ritualizações dos encontros nas aulas de teatro.
Ele desenvolve sua teoria à medida que se distancia do texto centrismo, mas tendo em mente a banalização da improvisação nos anos 70 (RYNGAERT, 2009, p. 86). Assim, ele sugere formas de trabalhar a improvisação, sempre enfatizando a importância do ponto de apoio para que os exercícios acontecessem, além da importância da não racionalização das ações.
Copeau, á priori, instaura um caminho diverso ao que vinha sendo feito. Seuinteresse é pela eliminação dos bloqueios do ator/atriz, em “minimizar processos racionais como elemento analítico do trabalho do ator” (ICLE, 2006, p. 9). Há um interesse explícito por buscar uma neutralidade como condição para uma criação, por buscar um estado nas improvisações em que processos racionais desconectados de uma ação do corpo sejam minimizados ao máximo. Não premeditar, não entrar na improvisação com algo já determinado por uma suposta consciência a ser executada por um corpo que não pensa. Afinal, o corpo não pensa?
 A improvisação teatral, nesta proposição, configura-se como um método de criação teatral que já não parte necessariamente de um texto, ao contrário, o texto, a cena, são resultados de um processo. Um processo que, por sua vez, busca um vazio do pensamento, não a instauração de um caos e um descontrole, mas um estado de presença que seja capaz de eliminar os obstáculos cotidianos e impulsionar a criação fazendo nascer algo orgânico que poderia ser formalizado, repetido, de forma que “a palavra enunciada fosse o resultado de um pensamento experimentado pelo ator em todo o seu ser, e o desabrochar, ao mesmo tempo, de sua atitude interior e da expressão corporal que a traduz” (COPEAU, 1974, 114 apud GODINHO, Mariana e FALEIRO, José Ronaldo, 2004.).
Ryngaert (2009) revela os indutores de jogo: seriam textos, imagens, espaços, músicas. Estes indutores são utilizados como mote da improvisação. Pensava que poderia traduzir estes indutores ao meu modo como indutores da memória. A memória induzia a cena.


4. OBSERVAR GIGANTES OU ENCONTRO COM OS PERFORMERS DA MEMÓRIA

Era por volta de meio-dia. Sol ardente. A paisagem ao redor é tremula e árida.  R e eu nos protegemos em uma estreita sombra que grande muro branco projeta timidamente sobre o chão.
Conversamos. Nossos corpos aderem à escuridão como lagartixas esgueirando-se em uma parede.
Passamos até agora por memórias pequenas, memórias que ainda não tiveram tempo de ser e acontecer. O devir da criança está muito mais relacionado a uma personificação do presente do que um apego à um passado que sequer ainda existe.
R entrega-me um mapa e uma missão: siga por dentro da mata até chegar à praia. De lá, pegue uma jangada e reme em direção ao sul. Ao longe, avistará uma ilha, sozinha, tímida e empoeirada. Chegando lá, procure pelos gigantes das memórias. Eles dirão o que deve (ou não) fazer.
Sigo, em meio à chuva, ao seu encontro.
Os gigantes da memória são avistados em meio à poeira úmida. Trazem junto de si trovoadas constantes, escondidas em meio às negras nuvens do céu. Entendo que eles têm algo a dizer, algo a narrar. Mas não são palavras soltas em meio a gotas d’água, eles são suas próprias palavras. Se Grotowski (1992, 2001, 2010) propõe que o corpo é memória, a palavra também é memória. Logo, poderia eu dizer que a voz é memória? Seriam esses gigantes não atores, que representam uma memória na ação, mas sim performers da memória?
Lembro-me que Walter Benjamin (1985) em seus escritos sobre a figura do narrador, afirma que a tradição oral da narrativa está se diluindo a cada dia. Narrar é para ele nossa maneira de tornar a experiência intercambiável. A incapacidade de narrar se dá partindo do principio de que a nossa relação com a experiência está cada vez mais distante, massacrada pela guerra, pela literatura impressa, pela informação. Tampouco existem ouvintes para estas narrativas engolidas pelo modo de vida contemporâneo. Abro a janela para deixar suas memórias entrarem.

4.1. Descrição primeira: Objeto ou carta ao performer

O performer é L, de 76 anos, famoso pelas histórias de tempos longínquos que conta a qualquer ouvido disponível a sua volta. Algumas histórias são memórias, outras, poderíamos chamar de memórias inventadas, auto ficções. L costumava visitar minha casa pelo menos uma vez por semana, sempre de manhãzinha para tomar café ou no final da tarde. Nos dias em que coincidia de não nos encontrarmos, L deixava em meu criado mudo um bilhete escrito à caneta em um guardanapo. Sempre no guardanapo. Rejeitava qualquer possibilidade de escrever em outro tipo de papel. Seus escritos traziam coisas simples, em letras sinuosas, semelhantes aos convites de casamento escritos à mão dos tempos de outrora. Nos últimos anos, L foi silenciando, guardando suas histórias, que vez em quanto se mostram timidamente em conversas muito intimas. Sempre inicia suas narrativas com a palavra “então”, seguida da contextualização de suas histórias. Em grande parte delas, L manda alguém ir à merda. Pausas quase que ensaiadas enquanto seus olhos retomam as visões e as palavras de suas lembranças. Suas mãos quase sempre gesticulam de maneira forte e pontual. Olha nos olhos do ouvinte como se estivesse à frente do interlocutor de sua narrativa. Um dia, visitando L, fui convidado para a narrativa a mais silenciosa que já fizera.
Convida-me a adentrar em seu quarto. Um espaço pequeno, onde os pés descalços sentem a maciez e a sujeira do carpete. Dois armários antigos localizados em paredes opostas, uma estreita cama de solteiro, uma cadeira de escritório de couro preta, e uma grande escrivaninha antiga povoada por papeis, livros, imagem de um santo e canetas. A janela estava aberta, deixando a luz do dia se esgueirar pela cortina de renda que dançava ao som da brisa.
Sento-me confortavelmente em na cama, ao seu pedido. Ele senta-se em sua cadeira de couro, passa a mão duas vezes pelos poucos cabelos que ainda restam em sua cabeça, vira-se de costas para mim. Pigarros. Abre a primeira gaveta do lado esquerdo da escrivaninha, e remexendo, retira de lá quatro envelopes: três brancos e um azul. Parecem ser cartas. Coloca-as em seu colo, organiza-os cuidadosamente em uma ordem específica.
Entrega-me o primeiro envelope. Não há remetente, apenas a indicação do destinatário. Retiro o conteúdo do envelope. Um cartão, tendo em seu interior as palavras: “Segue um pedaço de história que também é sua”. Observo. Coloco o cartão ao meu lado. Retiro do primeiro envelope também uma folha de papel impresso com uma poesia, chamada Casal da Fazenda. Leio-a para mim mesmo. São palavras familiares que me tocam profundamente. L permanece com as outras cartas em suas mãos. Termino a leitura.
O ar parece fino e cortante.
Entrega-me o segundo envelope. Também não há remetente, apenas o destinatário. Retiro seu conteúdo. Uma fotografia de um filtro de água antigo feito de barro, e abaixo de seu bocal, uma caneca azul com a pintura um pouco gasta. Atrás, há as seguintes palavras: “A gente sai da fazenda, mas a fazenda não sai da gente...”. Coloco-a novamente ao meu lado. Além da fotografia é acompanhada novamente de uma folha de papel impresso que contém uma poesia, chamada Roseiral. Leio-a em voz alta. Meus olhos marejam. L se mantém em silêncio e cabisbaixo.
- De quem são essas cartas afinal? Questiono.
L sinaliza para que eu tenha calma, que logo saberei. A curiosidade sobre esse poeta anônimo cresce dentro de mim.
Entrega-me o terceiro envelope. Retiro de lá duas fotografias: a primeira contém a imagem de folhas, e ao fundo, meio desfocado, algo que parece ser uma goiaba meio roída pelo tempo, ainda pendurada na árvore. A segunda apresenta o teto de um casebre antigo com telhas desgastadas, e que como mágica, cresces flores amarelas de cabo comprido, como se quisessem chegar a qualquer custo ao céu. Atrás dessa segunda fotografia, vêm as palavras: “Quantas árvores cabem na sua lembrança?”. A imagem das flores amarelas prende minha atenção por alguns momentos, assim como as palavras no verso. Descanso as fotografias ao meu lado novamente, e retiro do envelope uma folha de papel impresso, com a poesia chamada Arvoradas. Leio-a novamente em voz alta. Vem-me a lembrança das primeiras poesias que li de Manoel de Barros. Deixo o papel novamente ao meu lado. Olho para L.
- Então, no mês de janeiro, eu comecei a receber estas cartas pelo correio. Não sabia de quem elas vinham, apenas que as poesias falavam sobre os meus pais. Diz L, entregando-me o envelope azul.
O ar parece pouco dentro daquele pequeno quarto.
Este possui remetente: era Angelinho, seu sobrinho-neto que lhe enviara as fotos e escritos de sua autoria. Abro o envelope. Retiro duas fotografias que se embaralham em minhas mãos. Na primeira, a imagem de uma estrada envolta por mato, e uma vaca negra caminhando por ela. Na segunda, a imagem de um riacho, também envolto pelo mato e iluminado pelo sol. Atrás da segunda fotografia, vêm as palavras: “Palavras soltas trilham caminhos tecem lembranças.”. Novamente retiro do envelope uma folha de papel impressa, com a poesia Terra Molhada. Leio-a. Afogo-me em qualquer possibilidade de dizer algo.
L observa-me. Também se mantém em silêncio. Trocamos algumas tentativas de dizer algo um para o outro. Guardamos as cartas, que voltam para a gaveta.
Fim da performance.

4.2. Descrição segunda: espaços transpostos

M é aposentada. Vive em algum lugar no interior de São Paulo, não recordo muito bem onde. Por um longo período de sua vida, morou em uma espaçosa casa na companhia de sua mãe, dona Ana, falecida no ano de 2006. Desde então, ela mora sozinha em um apartamento, próximo de onde há uma linha do trem.
M visita minha casa em Palmas pelo menos uma vez por ano. E eu, quando a visito em sua cidade , hospedo-me em sua casa pelo menos um final de semana. Seja qual for o espaço, sempre conversamos enquanto fumamos um cigarro em sua sacada ou em meu quintal. Trocamos palavras esfumaçadas.
Em sua ultima visita, M inicia sua performance.
Esta sentada no sofá da sala, usando um vestido roxo com estampa de flores rosadas. Sento-me a sua frente.
- Qual a memória você carrega da minha casa? Ela questiona.
- Do barulho do trem passando de manhazinha antes do sol nascer, respondo com certa facilidade.
Devolvo a pergunta a ela. M diz que seu espaço favorito em minha casa é o quintal, porque lembra sua antiga casa, onde morava com sua mãe. São espaços muito parecidos, de fato. O chão de concreto cercado por jardins com árvores que dão pequenas frutas durante os tempos de chuva, e oferecem sombras para os dias de sol.
- Não é atoa que eu gosto tanto de ficar lá fora, diz M.
O espaço que é frequentemente habitado por ela, seja para fumar seu cigarro, ou para fugir do calor, ou para socializar com os outros moradores de minha casa. Senta-se sempre na mesma cadeira, que, coincidentemente, um dia pertenceu a sua casa, e que após o falecimento de sua mãe, fora dada a minha família como lembrança.
Continuamos trocando palavras, falamos sobre novelas e sua dramaturgia, que na opinião de M, estão todas iguais. Não há ruptura.
M vai silenciando. Desloca-se ao quintal. Acende um cigarro. Dança entre cadeiras, arbustos, concretos, rodopia sobre a memória de um espaço que um dia também foi seu.
Fim da performance.

4.3. Descrição terceira: Gesto e afecção

Disseram-me que A vive em terras longínquas. Não é possível contabilizar sua idade. Viveu tanto, leu tanto, sentiu tanto, que hoje tudo isso fica recluso para dentro dela. Comunica-se com poucas palavras, sabendo que elas não dão conta de todas as memórias que carrega.
Não lembro ao certo quem foi que me contou, mas o fato é que A fazia teatro na infância. Seu pai, já falecido, costumava levar ela e as irmãs para o cinema quando as primeiras salas comerciais começaram a existir. O encantamento de A com a experiência do cinema era algo que não lhe cabia, desejava contar as mesmas histórias que via nas grandes telas. Dizem que improvisava com as irmãs em casa depois tudo que assistira.
Assim, inicia mais uma performance.
Vejo A ao longe, sentada em um banco em um cemitério. Cabeça baixa, suas mãos repousam em seu colo, segurando uma espiga de milho. Aproximo-me. Poucas coisas são legíveis a seus cansados olhos. Ela nem me reconhece. Sento-me ao seu lado, e a performance inicia.
- A senhora fazia teatro quando criança? Pergunto.
- Sim, com espigas de milho. Responde Após uma pausa.
Ela volta seu olhar para mim. Há um brilho em seu olhar como se estivesse segurando as ditas espigas de milho. Ela continua a narrar:
- Eu e minhas irmãs morávamos perto de um milharal. Como meu pai não tinha dinheiro para comprar brinquedos, bonecas e coisas do gênero para nós, roubávamos espigas da plantação e elas funcionavam como bonecos. Guardávamos todas embaixo da cama. Por vezes, nossas histórias precisavam de muitos personagens, então havia um bom número delas. Encenávamos as histórias que víamos nos filmes. Apenas eu e minas irmãs. Uma prima nossa queria brincar, mas ela era péssima atriz, então não deixávamos.
Ela ri. Coça as mãos salpicadas pelas manchas da velhice. Ela volta seu olhar para o horizonte, e silencia sua prosa, deixando-me seguir meu caminho.
- Espera! Diz A.
Aproximo-me novamente. Ela estica os frágeis braços e entrega em minhas mãos sua a espiga de milho. Faz um pedido enquanto entrega:
- Guarde com você. Se você quer mesmo fazer teatro, precisa aprender a manipular espigas de milho.
Concordo com a cabeça, dou as costas, e começo a caminhar.
Fim da performance.

5.RESQUICIOS DAS TROVOADAS OU COMO PARAR DE ESCREVER

Parou de chover. O céu enxuga suas ultimas lágrimas e os trovões e relâmpagos se aquietam entre as nuvens. Os olhos embaçados pelo véu de umidade custam a enxergar as poças d’água que, como fissuras da terra, são espelhos de uma imensidão silenciosa.
Assim também permaneço, em silêncio.
A inquietude de revirar minhas próprias memórias em meio aos emaranhados do esquecimento faz-me entender que: “O acontecimento é um relâmpago; o céu onde ele relampeja é a memória: “o céu lívido onde aflora a ventania”.” (LISSOVSKY, 2005, p. 136). Não foi a chuva que trouxe minhas memórias. Elas permaneciam ali, mesmo que cobertas por uma massa cinzenta. Os relâmpagos davam a oportunidade para que essas memórias acontecessem. Meu corpo poderia ser esse céu, lívido, fissurado, atravessado pelo tempo. Os restos, deixados no passado, são tomados não como acontecimentos de um tempo ido que é rememorado no presente, mas num sentido de reciprocidade:

Disto já decorre uma das características importantes da memória: ela não é unidirecional, não é um movimento que surge no presente e se volta para o passado (como nos sugere a ideia de rememoração), mas bidirecional, onde o passado visa, na mesma medida em que é visado, o futuro. O tempo onde esta reciprocidade tem lugar é o agora. (LISSOVSKY, 2005, p. 139)

O agora é o tempo da memória em meio a estes dois vetores (passado e futuro). Inscrevo minhas práticas nesse intervalo. Nele, reviro memórias em busca de narrativas. Das narrativas, escritos. Dos escritos, dramaturgias. Das dramaturgias, ações, poéticas, corpos disponíveis ao criar a partir dessas memórias. Longe dos moldes da representação, o fato de lembrar-se já é por si só, uma recriação do passado que vem à tona como algo novo. Tomo as experiências que habitam a carne como disparador da ação, mas não no sentido de representar memórias fielmente segundo sua narrativa, e sim girar em torno delas, deixar que levem o corpo. O ato de criação pertence ao tempo presente tanto quanto à memória.
Questiono: em que medida ainda existe o tempo de lembrar e esquecer?
- Quando lembro que me esqueci de fazer a tarefa de matemática! Sussurra uma memória da infância.
Um dia, Ryngaert (2009) me disse que a improvisação revela a autoria do ator no processo de experimentação. Faço-me de suas palavras para pensar a memória tomada como conceito indutor de jogo. Esta também revela autoria, multiplicidade, diferença. Em minha experiência com crianças e com os escritos de Ryngaert (2009), esbarramos em nossas memórias induzidos pela própria memória, permanecendo atento a lembranças involuntárias. Dar espaço a manifestações memoriosas é uma possibilidade de aprender. Da mesma maneira que o teatro é uma possibilidade de aprendizado por outra via: o corpo. Daí surge à necessidade da memória no território da educação, não para lembrar sobre uma tarefa que deveria ter sido cumprida, mas para outras formas de conhecer a si, ao outro, e ao mundo: o que é lembrar-se? O que podemos criar a partir disso?
O relampejar destas memórias é algo que se manifesta com força singular em idosos. Os indutores de jogo de Ryngaert (2009) podem ser lidos aqui como algo muito mais simples do que no trabalho com crianças: estar disponível a escuta. Poucos estímulos são necessários para que iniciem uma narrativa, que de tão pulsante, nos levama pensar que estas pessoas - que estão vivas há mais tempo que outras - seriam performers da memória. Uma materialização clara do corpo-memória de Grotowski (1992, 2001, 2010) que explode em uma intensidade diferente do ser que ainda viveu pouco para ter do que se lembrar.
Estas experiências memoriosas levam meu corpo ao inevitável: correr em meio a chuva, deixar pingar cada gota uma lembrança e (re)criá-las.
Tropeço pelo enlameado quintal de minha casa, onde Stanislavski (2001) acreditava residirem às memórias. Revisado ou não, dualista ou não, esta proposição de seu método opera como uma dramaturgia para ações físicas me levou ao encontro de tantas emoções e memórias que mal posso contabilizar. Nem o quero. O devir memória só se pode sentir na medida em que é experienciado. Isso é uma possibilidade de aprendizado para mim. Deixar ser atravessado por flechas do passado e do futuro e versar sobre coisas que não sabemos ainda.
Danço, remexo, flutuo pelo ar pegajoso de uma chuva recém-esquecida. Estas perdas, fragmentações, esquecimentos de si são uma possibilidade de aprendizado para mim. Esquecer é condição para a memória, assim como esquecer é condição de brotar de si mesmo. Dançar é perder-se de si mesmo, perder memórias, perder gestos, perder percepções, estilhaçando com tudo aquilo que se passou em um ido momento presente para habitar um novo agora.
Esquecer-se na terra húmida e deixar brotar dos poros sementes plantadas no passado. Crescem gérberas, orquídeas, tulipas. Irrigá-las ao sabor da narrativa e torná-las voz, texto, corpo, cenário, experiência. E novamente eu esqueço.
Permanecem em nossa memória as turbulências da experiência, enquanto ecoa o rugido da tempestade esquecida no tempo.
Do que eu estava falando mesmo?
(...)
Esqueci...


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, W. (1985). O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense.
BORGES, J. L. (2007). Ficções.Trad. Davi Arriguci Jr. São Paulo: Ed. Companhia das Letras.
GROTOWSKI, J. (1992). Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 4ª Edição.
GROTOWSKI, J. (2001). Resposta à Stanislavski. Tradução de Ricardo Gomes. In: Revista Folhetim, Rio de Janeiro.
GROTOWSKI, J. (2010). Exercícios. Tradução: Berenice Raulino. In: O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Ed. Fondazione Pontedera Teatro/Edições SESCSP/Perspectiva.
ICLE, Gilberto. O ator como Xamã. Configurações da consciência no sujeito extra - cotidiano. São Paulo, Perspectiva, 2010.
LEHMANN, H. T. (2007). Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosacnaify.
LISSOVSKY, M. (2005). A Memória e as condições poéticas do acontecimento. In: Jô Gondar; Vera Dodebei. (Org.). O que é memória social. 1ª ed.Rio de Janeiro Contracapa  PPG em Memória Social da UNIRIO, pp. 133-143.
RYNGAERT, J. P. (2009). Jogar, representar - práticas dramáticas e formação. São Paulo: Cosacnaify.
SÁNCHEZ, L. M. M. (2001). O processo Pina-bauschiano como provocação à dramaturgia da memória.Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Campinas. São Paulo, Campinas. Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000243470 (acesso em: 21/01/2014, às 15 hora e 30 minutos).
SÁNCHEZ, L. M. M. (2010). Dramaturgia da Memória no Teatro-Dança. São Paulo: Ed. Perspectiva.
STANISLAVSKI, C. (2001). A Preparação do Ator. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.

           




[1] Este artigo é parte da monografia de conclusão de curso de Andrey Tamarrozi Lima defendida em 2014 na Universidade Federal do Tocantins sob orientação da Mestre  Renata Ferreira da silva .
[2]Licenciado em teatro pela Universidade Federal do Tocantins.
[3]Professora Assistente do curso de licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins- UFT. Mestre e doutoranda em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
[4]Para Stanislavski, Meyerhold teria sido o único de seus discípulos a compreender verdadeiramente seu método. A partir dessa compreensão, Meyerhold rompe com os ensinamentos de seu mestre, e funda um novo método: a biomecânica, da qual divergia em diversos pontos com o a forma de criação stanislavskiana.