Aline de Almeida Braz
(Universidade Presbiteriana
Mackenzie)
RESUMO
A obra de Pepetela, o Planalto e a Estepe, tem como plano de fundo um país colonizado
por Portugal, que, por sua vez, vivia um momento ditatorial e extremamente
opressor. Angola na contemporaneidade é o espaço desse romance, é a nação
oprimida em busca da libertação que teve início em 1960. A obra não se restringe à visão
literária, ela está repleta de denúncias sociais, e Pepetela apresenta a forma
como direitos, a cultura e a memória de uma nação foram discriminados numa
tentativa de imposição de uma cultura supostamente superior, ferindo a identidade
de um povo. É nesse panorama que o presente artigo se insere, numa tentativa de
mostrar os principais pontos da obra que norteiam essa imposição cultural e de
identidade.
PALAVRAS-CHAVE
Planalto
e a Estepe, Cultura, Identidade social.
O contexto histórico e
social plano de fundo do romance é determinante na trama da obra, que é marcada
por um período no qual, assim como afirma Harvey (2000, p. 46) “os pontos de
interrogação dizem tudo”, e remete as perguntas chaves no conflito atual do
pós-moderno: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual é a nossa
identidade?
Assim como afirma Mata
(apud Pereira, 2013, p. 92) “não apenas o historiador, mas também o ficcionista
(romancista, novelista ou contista) têm a tarefa de olhar o passado como ‘tempo
informe’ que carece de ordenação e de sentido”, ou seja, os fatos históricos estão sempre presentes como
uma forma de situar o leitor do contexto que conduziu toda essa história de
amor.
Já no início da
narrativa é possível observar que com o inocente olhar de Júlio, o
narrador-personagem, quando criança diante do fato de não identificar a
separação social e racial quando, para ele, o que mensura a igualdade das
pessoas é o calor da pele do ser humano e essa, de certa forma, ideologia é
preservada ao longo de sua vida.
No decorrer da obra,
pode-se observar o ponto de referência usado pelo autor para nos guiar
constantemente e transmitir da melhor forma o sentimento patriótico e de
identidade do personagem, mesmo após viajar por diversas partes do mundo e ter
contato com ideologias opostas as suas. “O Planalto do título é, assim, o seu
espaço de referência, com o qual se identifica sempre, mesmo quando está longe”
(PEREIRA, 2013, p. 93), portanto, o planalto junto à Serra da Chela, em Angola,
é o espaço de referência com o qual Júlio se guia e compara com os outros
lugares por onde ele precisou passar: “Prefiro o Planalto, a partir da Chela,
as rochas de muitas cores, as falésias e suas cascatas, o verde dos prados, o
campo das estátuas, o milho ondulando, as árvores retorcidas pelo vento.”
(PEPETELA, 2009, p. 190).
Por sua vez, a estepe
refere-se a Mongólia, local em que Júlio passou brevemente diante de situações
muito delicadas em sua vida, sempre marcada por imposições e dilemas de cunho
ideológicos, sociais e raciais.
Quando Júlio atinge a
juventude, e depois de finalmente perceber o racismo entre os negros, brancos e
a grande diferença entre “colonos” e “colonistas”, o personagem inicia a sua
primeira mudança de espaço, o que tornará evidente o contraste entre a cultura
portuguesa e a cultura angolana, pois agora Júlio parte para Coimbra
"(...) Foi rápida a percepção de estar no curso errado. (...) A medieval
capa e batina dos estudantes, além de incómoda, não chegava para o frio que
fazia." (PEPETELA, 2009, p.28). Nesse momento, Júlio está imerso na
cultura do colonizador, mas ainda assim leva consigo as marcas da sua origem
quando num trecho ele diz:
“Os feiticeiros do Congo eram fortes e meu amigo
devia ser um deles. Adivinhou o meu destino claro. Hoje sei de qualquer forma
não foi este gesto infantil que forçou o meu destino, ele há muito estava
escrito, esse destino adivinhado por qualquer feiticeiro do Congo.” (PEPETELA,
2009, p.88)
No trecho acima, é
nítida a referência à religião dos ancestrais angolanos, transitando entre os
dois mundos: o imposto por Portugal e o das origens de seu povo. Embora criado
aos moldes “salazaristas”, o personagem carrega nitidamente a herança do homem
pós-moderno, principalmente por viver em um país cujo a sua cultura foi
“arrancada” e, por isso, sofreu grande impacto para as gerações futuras.
A busca de identidade,
inclusive religiosa, é marca na narrativa e segue na mesma linha de defesa de
Harvey (2000, p. 47) “O projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade de
Deus sem abandonar os poderes da razão.”
Júlio identificava-se
com as ideias socialistas vinda da URSS, portanto foi muito esperançoso para
ele se tornar “bolseiro” em uma universidade Russa após um período árduo de
estudos, que não foram bem sucedidos, em Coimbra e assim ter a oportunidade de
lutar pela independência de seu povo em uma “cidade gelada, com neve por todo o
lado” (PEPETELA, 2009, p. 35). Portanto, Júlio “fugiu” para a África, e de lá
partiu para Rússia, onde conheceu Sarangerel.
O
ateísmo faz parte dos ideais marxistas, então para Júlio foi natural ao longo
dos anos incorporar esse princípio para si, porém são nítidas as influências do
catolicismo que seu povo absorveu devido à colonização, a mistura entre as
religiões locais, e tudo isso refletindo no personagem, e nesse momento também
com um acréscimo do materialismo dialético de Marx: "Se Deus se manifestou
em alguma vez na minha vida, foi dessa vez." (PEPETELA,
2009, p. 29).
Ao
longo da trama, Júlio passa por diversos lugares, convive com pessoas vindas de
diversas culturas, e ainda que bem distante das terras de suas origens, a
Angola do personagem parece estar sempre presente em suas referências,
comparações e saudades na forma como descreve o sul de seu país como “meu sul”,
enquanto que, ao mencionar os locais de origem de outras pessoas, Júlio
refere-se como “outros” espaços, o que remete à comparação de identidades.
Outro
ponto, de certa forma patriótico, é no momento em que Júlio depara-se com o
marido, mongol, de Sarangerel e como narrador personagem declara "Eu nem
político já era, estava livre de relatar o que pensava, mas sempre segui uma
máxima, só falo mal do meu país entre os meus." (PEPETELA,
2009, p. 165)
O Planalto e a Estepe é como uma grande
metáfora do encontro entre duas culturas distintas, e que de alguma forma se
atraem ainda que com uma incompatibilidade alheia aos sentimentos dos
personagens principais, o que é reafirmado pelo colega de Júlio, Jean-Michel:
“Já viste um cavalo mongol a dançar ao som do batuque africano?” (PEPETELA,
2009, p. 73).
O
título revela a incompatibilidade e diferenças geográficas, culturais e sociais
entre a Angola e a Mongólia, apresentando um outro conflito de ideais sociais: a
crítica ao regime socialista, que supostamente prega a igualdade dos povos, mas
que, na prática, estabelece uma barreira cultural, social, nacional e, ainda,
racial quando o chefe de Estado da Mongólia, “país amigo”, e pai de Sarangerel
proíbe a realização do amor entre Júlio e a filha alegando motivos controversos
ao que a ideologia socialista supostamente pregava. Após a gravidez inesperada
que acabaria por levar a uma separação do casal, quase que definitiva, fora
determinada por razões racistas e políticas: “por um ter olhos castanhos e o
outro azuis” (PEPETELA, 2009, p. 157).
Júlio
reconhece que não é só entre dois continentes que existe a discriminação
racial, e que a ideia de lutar pelo mesmo cunho ideológico não anulava a
diferença racial inclusive na África. O personagem sente esse peso em diversos
momentos na narrativa, como em Rabat ao perceber que por ser branco não era
considerado suficientemente angolano para lutar pela independência.
Mais
tarde na Argélia, enxerga a situação de uma outra maneira:
“(...) Continuavam a existir as conhecidas ‘dificuldades
subjetivas’ para fazer os angolanos brancos participarem diretamente na guerra
contra os colonialistas, pois as populações oprimidas durante séculos por
brancos ou por outros a mando dos brancos não compreendiam poder existir gente
da nossa cor disposta a lutar desinteressadamente pela independência. […] Dava
para compreender, apesar de injusto. Naquele tempo de definições primordiais!
Por isso eu aceitava as relutâncias e não insistia demasiado, mais cedo ou mais
tarde haveria um consenso sobre as nossas razões (...)." (PEPETELA, 2009,
p. 109)
Retomando
ao aspecto das crenças africanas, Júlio depara-se em Cabinda para chefiar um
grupo de homens em guerra contra o colonizador, e não recebe a credibilidade de
seus homens, por ser um branco angolano que não passou pelo ritual de
blindagem. Nesse ponto, observa-se o olhar do oprimido, aquele que não fora
aceito por suas crenças ancestrais, mas que aqui comete o mesmo preconceito com
Júlio, que é aqui, aquele que não faz parte da cultura ancestral africana.
“(...) Os homens tinham passado por cerimónias rituais para
blindarem o corpo às balas inimigas. No entanto se seu comandante não estivesse
blindado, de pouco lhes valeriam as suas proteções, ficavam contaminados pela
fraqueza do chefe. (...). “(PEPETELA, 2009, p. 123-124)
Apesar
de viver tantos momentos conflituosos na forma que os outros o vê, em momento
algum Júlio corrompe os seus ideais, identidade e o seu patriotismo com relação
à sua cultura e povo. Júlio pareceu estar aberto e compreensivo à todos os
povos “diferentes” que passaram por sua vida, mesmo que consigo não o tenham
tratado da mesma forma.
No
final, mesmo com a união de Sarangerel a outro ser igual a ela (Estepe), anos
mais tarde Júlio (Planalto) a encontra e finalmente o Planalto e a Estepe se
unem podendo viver o amor proibido pelas diferenças sociais. Infelizmente, em
pouco tempo, Júlio adoece por um câncer, finalizando com sua morte um amor de
uma vida, revelando a ideia de que pode-se amar outra cultura sem renegar a sua
própria identidade.
Bibliografia:
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, Ed. 9ª, 2000.
PEREIRA, Conceição. Identidade e diferença em O Planalto e a
estepe de Pepetela. Lisboa: Ensaio para Universidade de Lisboa, 2013.
PEPETELA. O Planalto e a Estepe. São Paulo: Leya,
2009.