UM ESTUDO DAS PULSÕES DE VIDA E DE MORTE EM SÔNIA COUTINHO



Patricia Maria dos Santos Santana
(Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ;  Bolsista CAPES)


Resumo: Uma mulher presa ao casamento e ao lar; uma mulher com vontade de ser ela mesma, de se conhecer e conhecer o mundo: dentro de Sofia, os vigores de Eros e Thanatos pulsam tomando conta da história de vida da personagem. Sônia Coutinho nos mostra, em sua escrita ousada e feminista, a construção da trama em torno da personagem que anseia por conhecer o seu próprio eu, permitindo que a realidade não seja apenas aquilo que fora injetado em sua mente durante a vida inteira.
Palavras-chave: Eros. Thanatos. Conhecimento. Erotismo.


Abstract:  A woman stuck to marriage and home; a woman longing to be herself, longing to know herself and the world: inside Sofia, the zips of Eros and Thanatos pulse taking control of the character life history. Sônia Coutinho shows us the construction of the plot around the character who yearns to know herself, through her bold and feminist writing, allowing that reality is not only what is injected in one’s mind for a lifetime.
Key words: Eros. Thanatos. Knowledge. Eroticism.


E o que Sibila queria dos seus Amados,
explicava o Amigo Homossexual, era divisar
aquilo que existe por trás das aparências,
ah... muito por trás: as  Paisagens da Alma.  

                                                                                       (Sônia Coutinho, Os venenos de Lucrécia)


Introdução

A escritora baiana Sonia Coutinho morreu aos 74 anos, na noite de 24 de agosto de 2013, no Rio de Janeiro. Jornalista, contista e tradutora, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1968. Ela se destacou na ficção brasileira a partir dos anos 1960 (seu primeiro livro, O herói inútil, foi lançado em 1964).  Teve 11 livros publicados e traduziu outros 30. Recebeu o Prêmio Jabuti em duas ocasiões: em 1979, pelo Os venenos de Lucrécia, e em 1999, pelo livro Os seios de Pandora. Nascida em Itabuna, em 1939, Sonia era filha do poeta simbolista e político Nathan Coutinho e irmã do sociólogo Carlos Nelson Coutinho. Além do Jabuti, ela recebeu, em 2006, o Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, pelo livro de contos Ovelha negra e amiga loura. Outros livros de destaque de sua autoria são Uma certa felicidade, Mil olhos de uma rosa, O caso Alice e O jogo de Ifá.  Coutinho teve livros e contos lançados nos Estados Unidos, França e Alemanha. 
Em diversas sociedades encontramos a mulher numa posição de subalternidade diante dos homens. A eles são oferecidos todos os privilégios, desde o acesso à educação, a liberdade de ser, até a oportunidade de crescer intelectualmente. A elas se reservam apenas o espaço doméstico, a responsabilidade de cuidar dos filhos e a imposição à passividade, mantendo, assim, a supremacia falocêntrica. Vivendo debaixo das regras do patriarcalismo, este é que irá reger todas as espécies de relações interpessoais. Os relacionamentos interpessoais e, por consequência, a personalidade, também são marcados pela dominação e violência que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo (CASTELLS, 2001). Essas representações sociais, permeadas pelas construções simbólicas, colocam o homem como norma. Podemos dizer que foi através do feminismo que muitas autoras tiveram a oportunidade de se libertar como seres humanos. O feminismo é um movimento político transformador que contempla discursos das variáveis etnias, classes, raças, e o próprio sexo biológico na constituição do sujeito “mulher” (CARSON, 1995, p. 194).
Embora o conceito de gênero tenha adquirido força com o movimento feminista e destaque enquanto instrumento de análise das condições das mulheres, ele não deve ser utilizado como sinônimo de “mulher”. Ele deve ser apenas considerado para distinguir e descrever as categorias mulher e homem, para examinar as relações estabelecidas entre ambos; deve ser “um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana” (SCOTT, 1990, p. 16).
Para Pierre Bourdieu (2005), o corpo é o lugar no qual estão inscritas as disputas pelo poder. Nele está demarcado todo o capital cultural; é a primeira forma de identificação desde o nascimento. Por conseguinte, o sexo define a posição de dominado ou de dominador. O corpo é a materialização da dominação, o lugar do exercício do poder por excelência. A personagem Sofia, de Sônia Coutinho na obra Atire em Sofia, se apresenta predestinada a uma desarticulação de estereótipos (re)forçados pela sociedade que mantém o vínculo de dominação ligados a gênero e corpo. Buscar atrair caminhos e olhares do mundo.  Não se apresenta “apagada”. Procura o inatingível. Não se mostra submissa (BOURDIEU, 2005, p. 82).
Mudando a perspectiva sustentada pelas tecnologias de gênero patriarcais (DE LAURETIS, 1994, p. 228), a postura da personagem marca, principalmente, a apresentação da mulher como dona do próprio corpo e do próprio desejo. Assim, a mulher sai de uma posição inferior e desfaz a visão essencialista do feminino (MOI, 1989), abrindo-se para uma atuação totalmente transformadora da condição da mulher. Ela subverte os padrões sociais e morais de uma sociedade conservadora, reavaliando tipos de condutas ou estereótipos limitadores.
A origem do nome Sofia, que é dado à protagonista do livro que estudamos, vem do grego e significa ‘sabedoria’, ‘a sábia’. Nas inúmeras possibilidades de representações do nome é que Coutinho cria o universo da personagem que é mutável, inconformada, sempre parecendo procurar saciar uma fome de conhecimento latente dentro dela. Digamos que o conhecimento de si mesma é o elemento norteador da personagem.  Existe no livro uma espécie de permissão para Sofia experimentar todas as possibilidades de vida real que podem ser oferecidas à mulher contemporânea em sua busca por entendimento de vida.  As personagens feministas de Coutinho são capazes de nos apresentar e revelar novos modos de ver a vida. Atravessar o eu e suas barreiras de vida conduz a personagem a uma aventura de autoconhecimento, no intuito de encontrar respostas para a sua invisibilidade social.
De acordo com Salvatore Donofrio, o fator social mais importante no desenvolvimento desse tipo de narrativa foi a Revolução Industrial, que determinou a concentração da população em cidades. O fato de as histórias policiais se passarem em grandes centros é propício, uma vez que a “aglomeração é propícia ao aumento da criminalidade, pois é fácil ao assassino quer a realização do crime” (D’ONOFRIO, 1995, p. 168).
Contudo, em Atire em Sofia, isto não acontece. O assassinato da personagem principal ocorre justamente em seu retorno à pequena cidade onde nasceu e se criou, como se a autora quisesse nos mostrar que a pequenez humana está em todo lugar, a todo e qualquer tempo.  Coutinho, assim, também nos mostra que Sofia pagou com a própria vida pela escolha de ser livre. É espécie de punição. É espécie de compensação fatal de uma escolha, pois “Eros, nosso desejo supremo, não exalta nossos desejos senão para os sacrificar” (ROUGEMONT, 1988, p. 53).

1.      Eros e Thanatos na obra Atire em Sofia

Eros e Thanatos significam, entre os gregos, o  Amor  e a  Morte  personificados.  Freud utilizou-as para identificar duas categorias de pulsões humanas: instinto de vida (Eros) e instinto de morte (Thanatos). Estas duas pulsões geram entre si um conflito que dinamiza nosso psiquismo humano. Este conflito tem origem nos obstáculos que o indivíduo encontra na realização das pulsões e reflete a luta entre várias instâncias no psiquismo humano.
Podemos observar em Atire em Sofia uma construção cíclica entre Eros e Thanatos conduzindo as ações da personagem principal. Numa procura de entendimento do próprio eu, vemos na obra um primeiro momento da vida de Sofia voltado para Thanatos e relacionado à insatisfação de sua vida pessoal; depois temos uma busca de forças em Eros, no momento que a personagem decide deixar tudo e ter uma nova vida no Rio de Janeiro; o ciclo se fecha quando Sofia retorna à cidade natal, na Bahia, mais de vinte anos após a sua partida. No entanto, dá-se a retomada de Thanatos, como um terrível e cruel inquisidor de uma vida inteira; é sua derrocada para a morte real.
Eros nos ensina a amar, a cultivar amizades, a apreciar tudo de bom, belo e prazeroso que existe no mundo. “Eros é o desejo total, é a aspiração luminosa” (ROUGEMONT, 1988, p. 50). Dá-nos a energia necessária para nos deixar motivados, cheios de entusiasmo e alegria, para conduzir a vida com sentido, e contribuir com nossa parcela de talento para o progresso da humanidade. Por sua vez, Thanatos nos atrai para a morte. Ele extrai do nosso ser toda energia, toda vitalidade. Existimos sem propósito, sentimo-nos apáticos, carentes de motivação. Tudo é fastio, insatisfação, constrangimento. Experimentamos uma existência de ver os dias e as noites passarem, sentindo o final inevitável se aproximar. Eros nos convida à vida, à sensualidade. Thanatos nos induz à solidão e à tristeza.  Sofia experimenta esses dois lados na obra. Vive seu momento com intensidade no Rio de Janeiro para chegar à conclusão que a solidão lhe serve melhor. Estimula-se em Eros, mas aceita, posteriormente, a ótica de Thanatos. Fica impassível, esperando a chegada da morte, acomodada ao nada.
Também como parte da retomada em Thanatos, Sofia vê sua impossibilidade de viver em liberdade, ao retornar à sua cidade natal (na Bahia), cheia de preconceitos. Existe um jogo definido de ida e de volta, de descentramento e de retorno ao centro. O não lugar marcará essa insatisfação de Sofia no Rio de Janeiro, que apesar de lhe abrir um novo mundo, ela nunca será vista em seu local de direito, o centro onde foi parida e de onde surgiu para a vida: o Omphalós dos gregos, o umbigo do mundo. (COUTINHO, 1989, p. 183).
Assim, retornar às origens torna-se fundamental à Sofia em sua construção de total conhecimento. A história dela se apresenta a partir de um determinado locus marcado.  Da revolta contra este mundo e da infração aos códigos deste gênero fechado e marcadamente masculino, surgem mudanças em sua vida. Sofia precisava retornar à cidade. Precisava fechar o ciclo para reconhecer sua finitude:


Mas, de repente tranquila, neste fim de tarde em esparso cinza, então pensa que entende, afinal, a lição da cidade – a de que vai ter de morrer, a dádiva da cidade, o aprendizado da morte, sua sedução. (COUTINHO, 1989, p. 90)


No jogo de reunir simbolicamente ideias de desdobramentos e conhecimentos de si, Coutinho torna a procura de Sofia uma metáfora da própria mulher tentando se encontrar na sociedade patriarcal. Isto é algo bastante frequente na produção de autoria feminina e basilar para a crítica feminista, uma vez que seu sentido está relacionado diretamente à discussão sobre a identidade feminina, mostrando, através da reflexão de personagens, temas para se defrontarem com os outros, principalmente no que diz respeito ao violento e inadequado construto androcêntrico. A busca e a inércia, ou seja, o Eros e o Thanatos trabalhado simbolicamente na ação feminina contemporânea da personagem tornam-se a alma do processo de conhecimento de Sofia. É através disso que ela passa pela transformação necessária.

2. O desejo e o próprio corpo como elementos transgressores

O ato de amor para Sofia é uma expressão de liberdade. É expressão do vigor de Eros em sua vida. É se regozijar no delírio de ser possuída e de possuir ao mesmo tempo. Numa construção carnavalizada do ato de amar em nossa sociedade patriarcal, Coutinho inverte o jogo da sedução no ponto de vista da sociedade conservadora e posiciona sua personagem como também dona do ato carnal na hora de sua consumação. Não admite uma atitude submissa na construção do desejo da carne, uma vez que a construção da noção do desejo para a mulher na sociedade androcêntrica é reprimida. Em seu livro O Erotismo, Georges Bataille (1987) apresenta análises dos aspectos fundamentais da natureza humana, tecendo o limite entre o natural e o social, o humano e o não humano. O Erotismo é uma espécie de resistência do ser humano, pois a transgressão é um elemento inerente a sua compreensão. Sendo assim, ele se constitui como uma experiência interior, na medida em que seu sentido último está em conduzir o sujeito a um estado de interioridade plena (BATAILLE, 1987, p. 25).
O Erotismo vai, enquanto resistência do sujeito, além do comportamento sedutor, como algo instintivo e espontâneo que busca na sua existência interior superar os limites e, como jogo sedutor, quebrar leis e restrições, ao observarmos que existimos por dentro, não havendo limites para essa existência, na qual o existir corresponde a não haver limites para a interioridade.
Enquanto Sofia se busca e tenta se conhecer temos a representação da pulsão de Eros dentro dela. Contudo, sua mãe sempre foi para ela um parâmetro inverso, uma pulsão de morte, a representação de Thanatos, ou seja, era uma perigosa porta-voz do sistema e Sofia tinha de ter cuidado com qualquer um de seus conselhos (COUTINHO, 1989, p. 50).
Coutinho traz um discurso transgressor exatamente para mostrar as barreiras sociais das mulheres que são preparadas para o casamento, mesmo que este ocorra ou não, lembrando a fala de Simone de Beauvoir, no Segundo sexo: “O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento. Em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê-lo, ou sofrem por não o ser” (BEAUVOIR, 1980, p 198). Coutinho opta por desfazer essa cultura de submissão em sua escrita. Para isso teria de “matar o anjo do lar, a doce criatura (...) e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia e da desobediência” (TELLES, 2009, p. 408).
A professora e pesquisadora Luiza Lobo pontua que a literatura feminina necessita de temas relacionados à linha da “livre escolha” dentro do universo da mulher, ficando, pois, a temática da insubmissão erótica bastante aceitável para se reconstruir e questionar a identidade feminina na sociedade atual:


Do ponto de vista teórico, a literatura de autoria feminina precisa criar, politicamente, um espaço próprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a mulher expresse a sua sensibilidade a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação próprios, que sempre constituem um olhar da diferença. (LOBO, A literatura de autoria feminina na América Latina, 1997)



Considerações  finais

    As personagens femininas das histórias de Sônia Coutinho são envolvidas com enredos problematizadores de suas condições na sociedade. A personagem Sofia, de Atire em Sofia, não foge à citada regra.  O tema do livro recai na condição feminina em seus desafios e dilemas perante uma sociedade que ainda mantém muita resistência ao fato de ver mulheres que lutam pela conquista de seus espaços. O romance possui alguns temas que perpassam pela discussão da teoria feminista. Ele traz uma espécie de vazio no final da obra, uma espécie de pessimismo. Contudo, ele é essencial para provocar uma inquietação necessária naqueles que terminam a leitura de seu livro.
Referências  bibliográficas

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BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M, 1987.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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CARSON, Alejandro. “Entrelaçando consensos: reflexões sobre a dimensão social da identidade de gênero da mulher”. Cadernos Pagu, Campinas, 4: 187-218, 1995.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Trad. Klauss  Brandini  Gerhardt. v. 2. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

CHARTIER, Roger. Diferença entre os sexos e dominação simbólica. Cadernos Pagu, Campinas, n. 4, 1995.

COUTINHO, Sonia. Atire em Sofia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

COUTINHO, Sonia.  Os venenos de Lucrécia. São Paulo: Ática, 1978.

DE LAURETIS, Teresa.  A tecnologia do gênero. Trad. Susana B. Funck. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Tendências e impasses; o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeir:, Rocco, 1994. 

DONOFRIO, Salvatore. “O conto policial de Allan Poe”. In: __. Teoria do texto 1 – prolegômenos e teoria narrativa. São Paulo: Ática, 1995.

FREUD, Sigmund.  O mal-estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina. 1997. Disponível em: http://members.tripod.com/~lfilipe/llobo.html. Acesso em 01 de maio de 2012.

MOI, Toril. “Feminist, Female, feminine. In: --- et alii. The Feminist Reader. London: Macmillan, 1989. p. 117-132. PERROT, Michelle.  As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru. São Paulo: EDUSC, 2005.

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Trad. Paulo Brandi e Ethel Brandi Cachapuz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e realidade, Porto Alegre, 1990. p. 5-12.