“O QUE LEMOS E O QUE NOS LÊ”: A LEITURA DE UMA NOVA SEREIA EM CLARICE LISPECTOR


Ligia Maria Bremer
(Mestranda em Literatura– UFSC/CNPq)

“Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.” (LISPECTOR, 1998, p.144)

Uma criança em seus primeiros anos de vida, ainda inocente, com seu conhecimento de mundo ainda estéril, sem influências, ideologias ou dogmas pré-estabelecidos, uma virgindade e uma pureza em seu olhar, tudo é descoberta e formação. Seu conhecimento, a um primeiro momento, é tátil sem precisar “fechar os olhos para ver”, como nos sugere James Joyce em Ulisses. Ela olha, vê e sente, uma vez que não precisa fechar os olhos, pois não possui um arquivo[1] constituído (ele esta para ser construído a cada experiência). A criança diverge do “experiente”, no sentido de que este já possui um arcabouço de vivências, experiências, leituras, que formam seu arquivo e, inevitavelmente, influenciam na interpretação do que vê, lê, escuta e escreve. George Didi-Huberman em seu livro O que vemos e o que nos olha nos propõem uma experiência: “[...] fechar os olhos para ver quanto o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31). Para ele devemos olhar a obra sem deixar que nada escape por já possuirmos concepções pré-estabelecidas, sentir o vazio e preencher com a nova experiência, podendo, assim, quase a se igualar a uma criança em descoberta.
Didi-Huberman, na obra citada acima, busca demonstrar o dinâmico presente ao contemplarmos uma obra de arte, uma vez que há uma aproximação e um afastamento, existe algo que nos olha naquilo que vemos. Deste modo, ao contemplarmos um objeto, com o nosso olhar o capturamos e nesse mesmo momento o objeto nos captura. Há uma cisão do olhar que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seguindo o movimento proposto por Didi-Huberman pode-se pensar em outra dinâmica: “o que lemos e o que nos lê”. Italo Calvino nos faz refletir a esse respeito no prefácio da obra A trilha dos ninhos de aranha (1947): “[...] todo o livro novo que lemos é como um novo olho que se abre e modifica a visão dos outros”. Quando lemos não há como não trazer para essa nova leitura sensações e ensinamentos obtidos com obras anteriores. Ao vermos algo, algo nos olha, mas ao lemos algo, algo também nos olha, nos lê, nos remete a outros. O desafio é sair do reduto estático de uma só visão, de uma só leitura, tentar o vazio, o estéril. Dessa forma, pode-se sugerir duas dicotomias: ver x olhar / ler x olhar, buscando uma dimensão plural da discursividade.
Nesse momento é interessante trazer à discussão a figura de linguagem: paródia – importante para o desenvolvimento do trabalho. Apesar da palavra na maioria das vezes nos remeter a sátira, a burla, nos valeremos do sentido etimológico da palavra ressaltado por Haroldo de Campos. Etimologicamente a palavra é de origem grega: “pará” = junto, ao lado de; “-odé”=ode, canto, nos remetendo a definição de paródia como canto paralelo, diálogo de vozes, conforme explicita, em Introdução crítica a Oswald de Andrade – Trechos Escolhidos: “Paródia que não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação burlesca, mas inclusive na sua acepção etimológica de canto paralelo” (1967, p. 16).  Tal explicação feita pelo poeta e tradutor paulista também havia sido explorado anteriormente em outra introdução de outra obra de Oswald de Andrade: Memórias Sentimentais de João Miramar, de 1964. Naquela oportunidade, o prefácio intitulado “Miramar na Mira”, Haroldo de Campos destacava a paródia como um importante instrumento para compreender obras literárias irredutíveis a uma classificação quanto ao gênero (como exemplo Cervantes), como também para compreender obras modernas (Thomas Mann de Joyce). Aplicou igualmente o conceito a literatura brasileira:

A paródia programática á linguagem pretensiosa e falsa e à oca verbosidade permitiu-nos cotejar a prosa de Mário com a de Oswald e mostrar pontos de contato entre ambas. Isto, se em nada desmerece a primeira, pois os elementos oswaldianos foram aproveitados num sentido pessoal e perfeitamente integrado [...]. (CAMPOS, 2004, p. 32-33)

Observamos que em um texto paródico é preciso reconhecer o entrelaçamento do outro texto, identificar e afastar. Assim, verificamos que a paródia não é apenas um fato de escritura, mas também de leitura. A análise interna de um texto e sua descrição retórica não é suficiente para revelar seu caráter paródico. As condições de recepção das obras determinam, em cada grupo social, a sensibilidade do público. A eficácia paródica engaja a situação do texto como espaço de conivência entre sujeitos que participam de uma mesma cultura. (SÁ, 1993, p. 21). Claude Abastado em um ensaio de 1976, publicado em um número especial do Cahiers Du 20º siécle, intitulado Situation de la parodie, salienta a necessidade da participação do leitor na construção de sentido do texto paródico, sendo este mais complexo do que no caso da leitura comum. Para ele o ato do autor é incompleto sem um leitor competente. Aqui retornamos a proposta inicial: “o que lemos e o que nos lê”, trata-se de um diálogo, há uma pluralidade de discursos em que o leitor é a chave para o entendimento, é a partir dessa leitura que um novo olho será aberto.

O Mito da Sereia: Uma aprendizagem sobre si
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, romance escrito por Clarice Lispector em meados de 1969, baseia-se na história de Loreley cujo apelido é Lóri, professora primária que passa a viver no Rio de Janeiro após sair da casa de seus pais, em Campos. De família rica, com quatro irmãos homens, tinha suas regalias por ser a única filha mulher. No Rio de Janeiro, conhece Ulisses, professor de filosofia. O encontro se deu em uma noite em que esperava um táxi e ele lhe ofereceu carona. A partir daí, após ter tido outras experiências amorosas, para ela esta lhe parecia ser uma relação realmente verdadeira. Ela amava pela primeira vez e tinha que passar por este processo de aprendizagem desse novo sentimento, o qual ela tinha de aceitar. Este romance de Clarice, dentro de sua obra, pode ser considerado o mais lúdico e, possivelmente, o mais ousado em termos de caricaturização estilística a operar-se entre os gêneros masculinos e femininos.
Narrado em terceira pessoa, a obra nos fornece pistas de como vivenciar a ideia de amor. A escritora parte do discurso mítico amoroso mais banal para operar uma reestruturação. O caminho escolhido é o da paródia, como explica a professora Ana Luiza Andrade em um artigo dedicado a esta obra:
[...] Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres parodia os estilos escriturais masculino e feminino, mesclando, com a mesma técnica assimiladora, o sério ao cómico, o elegante ao pretensioso, a pompa ao trivial. [...] No romance de Clarice Lispector, a paródia consiste na mudança que se opera nos personagens enquanto caricaturas dos estilos masculino e feminino, num jogo de sedução escritural indicado no subtítulo – O Livro dos Prazeres. Sobretudo, a autora faz comentário sobre a condição feminina através da escritura. O título – Uma aprendizagem – diz respeito à aprendizagem feminina, ao seu próprio exercício escritural em relação à escritura masculina. (1988, p. 47)

Podemos inserir a discussão o conceito de escritura proposto por Jacques Derrida, em Gramatologia (1973), pois segundo ele a partir da escritura pode-se entender a linguagem, buscando os rastros daquilo que esta ausente.

Necessidade que mal se deixa perceber, tudo acontece como se – deixando de designar uma forma particular derivada, auxiliar da linguagem em geral (entendida como comunicação, relação, expressão, significação, constituição do sentido ou do pensamento etc),deixando de designar a película exterior, o inconsciente de um significante maior, o significante do significante – o conceito de escritura começava a ultrapassar a extensão da linguagem. Em todos os sentidos desta palavra, a escritura compreenderia a linguagem. (DERRIDA 1973, p. 8)

            É a distância entre o signo e o objeto que deixa os rastros. Os rastros que observamos no escrito de Clarice em O Livro dos Prazeres. Há um exercício escritural, que transborda de sentidos, vai além dos signos, sobrevindo ao conceito de linguagem apagando todos os seus limites. Clarice utiliza da linguagem para ir além da linguagem. Utiliza de significantes para ir além dele mesmo. A significação extrapola, a partir do fim é que vemos os rastros do sentido.
A personagem feminina Lóri é moldada pela transformação do discurso que, iniciado na intencional duplicação do lugar-comum, busca no decorrer da história alçar-se a outros sentidos. Sugere algumas possibilidades de viver uma relação amorosa. Ao longo da escrita, ocorre algo como uma limpeza, desviando de tudo aquilo que é o corriqueiro no se tratar de romance. O romance pode ser interpretado como uma farsa amorosa, um jogo romanesco onde uma das possibilidades de interpretação é a relação paródica com a leitura tradicional da Odisséia e a realidade burguesa atual.  A própria narrativa nos adverte, por meio de um diálogo, entre o mestre (Ulisses) e a aprendiz (Lori), que apesar de parecer óbvio que se possa utilizar da escritura para aprender, ela também pode fazer uso de máscaras narrativas, o que dificulta a aprendizagem: “[...] Porque na minha aprendizagem falta alguém que me diga o óbvio com um ar tão extraordinário. O óbvio, Lori, é a verdade mais difícil de se enxergar – e para não tornar  grave a conversa acrescentou sorrindo – já Sherlock Holmes sabia disso.” (LISPECTOR, 1982, p. 98). Existe um descompasso entre o aprendiz e o mestre, mesmo que não claro ao leitor. Este descompasso percorre todo um rígido comportamento já pré-estipulado aos papéis que o feminino e o masculino devem seguir através dos tempos. Esse condicionamento rígido corresponde ao nível das escrituras quando observamos o desajustamento entre textos tradicionais e a realidade do contemporâneo.
As personagens do romance, parodicamente, possuem papéis narrativos que de algum modo remetem a personagens onde a postura comportamental é revelada sutilmente na narrativa. Loreley, é inspirada em uma lenda alemã oriunda da Região do Reno, foi monumentalizada e imortalizada por alguns escritores e poetas como o alemão Clemens Bretano, em 1801, que, inspirado por Ovídio, compôs sua balada Zu Bacharach am Rheine , como parte de uma continuação fragmentária de seu romance Godwi oder Das steinerne Bild der Mutter . No poema, a bela Lore Lay é acusada de enfeitiçar os homens e causar a sua morte. No entanto, ao invés de ser condenada à morte ela vai para um convento. No caminho pede permissão para escalar o rochedo e ver o Reno, mais uma vez.  Quando o faz cai para a morte. 
Outro alemão que imortalizou Loreley em seus poemas foi Heinrich Heine que, em 1824, aproveitou e adaptou o tema de Brentano, em Die Lorelei . O poeta descreve a fêmea homônima como uma espécie de sirene (sereia) que se encontra sentada no penhasco acima do Reno penteando seus cabelos dourados e distraindo os homens navegadores com sua beleza e música, levando-os a bater nas rochas.

Foto 1 – Estátua de Lorelei por Hernest Herter: Heine memorial, Nova Iorque


Fonte: Internet (Wikipédia)

O nome da personagem feminina de Clarice Lispector é inspirado neste poema de Heine: “– Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar, já não me lembro mais de detalhes.” (LISPECTOR, 1982, p.106). Se vê no romance de Clarice uma perda da imagem que coincide com a inversão escritural, ora que de um lado há Loreley a sedutora dos homens, como no mito, que recobra a voz de Lori. Ora do outro lado encontramos outro ser lendário, Ulisses, que “perde a força inspirada no mito homérico em que, atado ao mastro, resiste ao chamado sedutor do canto fatal das sereias. Em Uma Aprendizagem, Ulisses torna-se humano.” (ANDRADE, 1988, p. 48), divergindo do Ulisses da Odisséia que, para Blanchot em seu texto O canto da sereia, é o encontro com a Sereia que o torna ficção, uma vez que a introdução desse episódio na narrativa faz com que o real se torne imaginário e/ou enigmático.
Na obra observamos uma inversão de papéis no jogo de sedução feminino e masculino. Quando no romance a personagem feminina é chamada por Lori ela é a seduzida por um Ulisses sedutor, porém quando a personagem passa a ser Loreley é ela quem o seduz, e ele passa a ser o seduzido. Há um desdobramento dos enredos feminino e masculino que se cruzam e se distanciam um do outro, resultando, como aponta Andrade, em uma “autodramatização da linguagem”.

A inversão de papéis se mostra no contraste entre o início e o fim do romance: a princípio, a escritura feminina oscila entre a mudez traduzida no discurso indirecto pelo narrador omnisciente e a palavra-modelo de Ulisses, que interrompe no final. (ANDRADE, 1988, p. 48)

Clarice Lispector nos propõe alguns aspectos de uma paródia burguesa do mito homérico. Ela difere ao reverter a tradicional aprendizagem de Ulisses na aprendizagem da sereia. É a ‘sereia’ Loreley que busca o tempo todo no romance, que possui a necessidade da solidão, de fugir de Ulisses: “[...] Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo” (LISPECTOR, 1982, p. 78). O romance contrapõe o tradicional, o cânone em que a Sereia é aquela que persegue, encanta e seduz trazendo uma releitura. A ‘sereia’ de Clarice se esconde no espaço doméstico, sendo este o seu mastro para não deixar-se “sucumbir à tentação de mirar-se e deixar-se dominar pelas raízes gregas de uma escritura” (ANDRADE, 1988, p. 50). Mas é no mar que a personagem deixa ser transformada: de seduzida a sedutora, de mulher burguesa a sereia. Ela aprende pelo ritual, aprende em si. Através do banho no oceano, por meio da transformação da sua personagem, ocorreu uma mudança, o oceano no qual se banha não é mais o homérico, mas um oceano moderno de novos sentidos e significados.
O banho no mar como um ritual de passagem não aparece somente em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, mas também em um conto de Lispector As águas do mundo.  No conto, assim como na obra citada, o banho no mar da mulher possui uma condição ritualística, representando a iniciação única da linguagem dramatizada. Esse ritual vai de encontro à tradição cultural masculina. O mar representaria a conquista masculina – uma vez que a conquista do novo mundo se deu através da navegação – e o banhar-se caracterizaria que a mulher possui os requisitos necessários para executar seu papel feminino, não só na escrita, mas na sociedade.

[...] o “mar é uma realização” e tem que ser respeitado como força conquistada pelos homens, mundo masculino que já é contestado por Clarice em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres: “Como explicar que mar era o berço materno mas que o cheiro era todo masculino?” (p.55) Em “As Águas do Mundo” a frieza do mar tem que ser enfrentada como ritual, estranhamento inicial que se cumpre para que seja tomado o reconhecimento da própria ignorância: a mulher se conhece menos do que conhece o mar. O autoconhecimento se desperta pelo cheiro: “O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonhos seculares”. (ANDRADE, 1994, p. 288, grifos nosso)

A mulher, o feminino, é despertada dos “seus mais adormecidos sonhos seculares”. A mulher retoma – ao nos remeter as sereias homéricas – a frente da sua vida, seduzindo, encantando, fazendo-se notar. Se são as sereias (o feminino) que enclausuram Ulisses (o masculino) na narrativa, com o banho do mar (masculino) a mulher (feminino) acorda e cristaliza seu poder de escrever, busca sua identidade e seu conhecimento. 

[...]
Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.
[...]
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. (LISPECTOR, 1998, p. 145-146)

Em As águas do mundo, um conto de Clarice Lispector inserido na obra Felicidade Clandestina (1971), a mulher é iniciada na escrita. Existe uma transformação do estado líquido no sólido no ato de produção que recorda a mulher de “proa”, como aponta o enxerto acima. Ela toma a frente na produção do texto, abrindo caminho entre as águas. Assim como, as sereias de Brennand são como carrancas que espantam o mal, a “mulher proa” e a mulher-sereia de Clarice, tomam a frente metaforicamente com a “coragem secreta” de abrir caminho no texto, de produzir-se e firmar-se dentro de uma tradição masculina, de conquistar enquanto são conquistadas, “do lembrar-se renovado de seu esquecimento no sono secular”, como ensina Andrade em um texto a Bizarra Coincidência: Clarice Lispector e Julio Cortázar (1994).
Clarice dramatiza a linguagem. Tem na imagem da “mulher-proa” ou da mulher burguesa, a retomada do papel de sedutora-sereia, como exemplos de processo de produção textual que atingem um nível poético que intensificam em mudanças bruscas de ritmo, a partir de confrontos de entrega e violência contrários, que se chocam e passam da estruturação à destruição da narrativa, equivalentes a línguas e/ou culturas diferentes, mundos que se estranham, estados que se formam do líquido ao sólido, em busca de sua identidade.
 Ao ler as obras devemos olhá-la sem deixar que nada escape por já possuirmos concepções pré-estabelecidas, sentir o vazio e preencher com a nova experiência, uma vez que o que nos é apresentado com as leituras é algo novo, sensível, diverso do “original”.

O leitor faz a obra; ele a cria; é o seu verdadeiro autor, é a consciência e a substância viva da coisa escrita; assim, o autor só tem uma meta, escrever para o leitor e se confundir com ele. Tentativa sem esperança. Pois o leitor não quer uma obra escrita por ele; quer justamente uma obra estrangeira em que descubra algo desconhecido, uma realidade diferente, um espírito separado que possa transformá-lo e que ele possa transformar em si. (BLANCHOT, 2011, p.317)

A ‘sereia’ de Clarice pertence a um mundo burguês que está aprendendo a seduzir, está encontrando-se dentro de si mesma. Encontrar a si, a paródia, o “canto paralelo” auxiliou nessa questão, um encontro com partida marcada para uma nova experiência. Vemos uma pluralidade de discursos em que o leitor é a chave para o entendimento, é a partir dessa leitura que um novo olho será aberto e percebemos a dinâmica “do que lemos e o que nos lê”.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Ana Luiza. O livro dos prazeres:A escritura e o travesti. Separata, Lisboa, n. 101, p.47-54, jan/fev, 1988.
___________________. Bizarra Coincidência: Clarice Lispector e Julio Cortázar. In: ANTELO, Raul (Org.). Identidades e Representações. Florianópolis: Pós Graduação em Letras/ Literatura Brasileira e Teoria Literária – UFSC, 1994, p. 283-305.
BLANCHOT, Maurice. O canto da sereia. In: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
__________________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
CALVINO, Italo. A trilha dos ninhos de aranha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CAMPOS, Haroldo. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo (SP): Globo, 2004.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
________________; FREUD, Sigmund. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
_________________. As águas do mundo. In: ___________. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993.





[1] Arquivo no sentido que nos propõe Derrida: a experiência da memória. Todo arquivo pressupõe inscrições, marcas, impressões, como também a sua decodificação, armazenando-as e as preservando.