Carlos Antônio Magalhães Guedelha
(Doutor em Linguística – UFAM)
RESUMO
Neste artigo, realizo um
levantamento bibliográfico e desenvolvo considerações em torno de textos sobre
a Amazônia até o início do século XX, enfatizando especialmente a Amazônia
brasileira. Por necessidade de delimitação, atenho-me aos textos mais
consagrados e mais representativos dos viajantes, desde o relato do frei Gaspar
de Carvajal, escrivão da expedição pioneira de Francisco Orellana (século XVI),
até os viajantes que circularam pela região no século XIX e sobre ela
escreveram. Tomo por base, especialmente, os recortes feitos por Souza (2009),
Pinto (2006), Garcia (2005), Ugarte (2003), Reis (1998), Gondim (1994) e
Tocantins (1982).
Introdução
Os dois primeiros europeus que puseram os pés na Amazônia foram os
espanhóis Vicente Yáñez Pinzón e Diego de Lepe, ambos no ano de 1500, quando
Cabral ainda nem pisara nas terras que futuramente viriam a ser chamadas de
brasileiras. Pinzón batizou o rio “com o nome de Santa Maria de la Mar Dulce, embora seus companheiros o
denominassem de Marañón” (UGARTE, 2003, p. 5). Nesse gesto duplo de contactar e
nomear, ele inaugurou “na história da Amazônia, uma cadeia de encontros –
seguidos imediatamente de confrontos – com os nativos, já que o primeiro
contato resultou na captura de 36 indígenas, embarcados nos navios espanhóis”
(UGARTE, 2003, p. 5).
Pinzón introduziu a região no intrincado traçado de conquistas e
colonização da Espanha. E apenas alguns dias depois, seria a vez de Diego de
Lepe chegar ao mesmo ponto onde estivera a expedição de Pinzón. Os indígenas,
movidos pela amarga lembrança dos parentes aprisionados e assombrados ante a
possibilidade de serem escravizados, ofereceram-lhe uma acirrada resistência, e
do confronto mortal resultaram grande baixas dos dois lados.
Apesar de essas duas expedições
apenas terem chegado ao rio Amazonas, sem, contudo, navegá-lo por inteiro,
Ugarte (2003, p. 6), entende que elas inauguraram “a percepção europeia sobre o
mundo amazônico, em duas vertentes:
a) O encanto pelo imediatamente visível e positivo – as águas doces e a
fertilidade da terra;
b) A expectativa, igualmente positiva, da existência de diversas
riquezas.
Desde então, a Amazônia passou a ser significada e re-significada em
textos e discursos, desde o século XVI, quando foram lavrados os primeiros
escritos a respeito desse território por parte dos cronistas das expedições
pioneiras.
Pinto (2006, p. 181), estudioso da formação do pensamento social na
Amazônia, adverte que para compreender o presente é necessário compreender
antes o passado: “a Amazônia se tornou um tema universal desde muito cedo e
povoa o imaginário do mundo inteiro graças, sobretudo, à revelação que dela
fizeram seus exploradores, seus viajantes, cronistas e cientistas de diferentes
épocas.”
Esse pensamento é assumido também por Gondim (1994, p. 9), que
desenvolveu um estudo respeitável a respeito da “invenção” da Amazônia por meio
dos discursos que a representam: “[...] a Amazônia não foi descoberta, sequer
foi construída; na realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da
construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato
dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes”.
Bueno (2008, p. 78) também partilha dessa ideia quando afirma que a
“invenção da Amazônia” resulta dos muitos discursos que sobre ela foram sendo
articulados na linha do tempo:
A
região amazônica vem sendo construída desde a chegada do colonizador europeu ao
novo mundo. Crônicas, relatos de viagens, relatórios de expedições, contos,
romances e reportagens, além da cartografia, da iconografia e mesmo da
filmografia, têm contribuído para a formação de uma visão sobre a Amazônia.
Embora caracterizada distintamente por grupos sociais diferentes e apesar das
características preponderantemente associadas à região terem se transformado
bastante no decorrer dos séculos – a Amazônia tem sido definida como “terra da
canela e do ouro”, “paraíso terrestre”, “inferno verde”, “vazio demográfico”,
“pulmão do mundo” – alguns elementos permanecem em todas essas representações,
mesmo sendo por vezes ressemantizados.
Mais do que isso, Bueno (2008, p. 3) considera que os discursos, ao invés
de serem pano de fundo dessa invenção, na verdade ocupam o primeiro plano da
cena: eles mesmos são a tessitura e a motivação da representação da região:
Há uma
representação da Amazônia construída através de discursos. Os discursos sobre a
Amazônia não são construídos sobre a realidade, mas sobre outros discursos
sobre a Amazônia, sobre a América, sobre o Novo Mundo e, até mesmo, sobre as
Índias. [...] Algumas das expressões que estiveram ligadas ao Novo Mundo, permanecem
ainda associadas à Amazônia. Denominações como ‘El dorado’ e ‘paraíso’ foram
ressemantizadas, mas ainda remetem a essa porção do território.
Obviamente, os textos fundadores da
Amazônia estabelecem diálogos parafrásticos com outros textos que nasceram no
calor das grandes navegações, por meio das quais Portugal, Espanha e outros
países da Europa lançaram seus tentáculos para além dos limites marítimos
conhecidos. Retomam temas que, anteriormente, estiveram na pauta de Cristóvão
Colombo, Américo Vespúcio, Pero Vaz de Caminha e tantos outros desbravadores do
Novo Mundo, enquanto estes, por sua vez, fazem eco à voz de Marco Polo (GONDIM,
1994; PINTO, 2006; BUENO, 2008).
Entre os assuntos da predileção
desses exploradores e aventureiros estão a busca incansável de ouro e outras
riquezas cobiçadas das terras desconhecidas, o sonho de encontrar o paraíso
terrestre - o novo Éden, a curiosidade ante os exotismos das terras e das
gentes, a mediação da expansão política e religiosa dos reinos. Figueiredo (2010, p. 65) explica que, nessa
época de desbravamento e conquista, a figura que mais se destaca é a do
aventureiro, pois
Todas essas atividades constituíam uma
autêntica aventura nos trópicos: aventureiros, evidentemente, os piratas e
corsários que disputam o comércio do pau-brasil; aventureiros, também os
capitães e as tripulações portuguesas (estes, muitas vezes, aventureiros
forçados) das naus que tentavam impedir e expulsar os “estrangeiros”,
reservando para os lusos a exclusividade da exploração e o domínio da terra;
aventureiros, enfim, os missionários que se enterravam por esses confins, para
empreender a “conversão do gentio”. Dominação política, exploração econômica,
missionação, as três vertentes da colonização.
Uma coisa é certa: o conhecimento do chamado Novo Mundo de forma alguma
pôde prescindir da atuação dos cronistas e relatores das mais variadas
expedições. A quase totalidade desses autores eram realmente aventureiros. Escreviam a partir do contato com a terra e
com a gente de que falavam. “Participaram de momentos importantes nas nações e
locais inexplorados ou desconhecidos dos europeus” (FIGUEIREDO, 2010, p. 64).
Estando em terra estranha, ajudaram a mostrar a Amazônia para o mundo,
iniciando uma tradição de transplante do imaginário do Novo Mundo para esta
parte da América.
Ugarte (2003, p. 3) comenta que a região amazônica tornou-se, no processo
da conquista colonial, uma das “margens” do Novo Mundo. “Porém, uma ‘margem’
que ao contrário do que ocorreu com o Vale Mexicano ou com Andes Centrais –
‘margens’ que se tornariam ‘centros’ do mundo colonial - continuou nessa
condição, vindo até os nossos dias”. Ao
discursarem sobre a Amazônia, os europeus “não somente revelaram a si mesmos
essas ‘margens’ – limites – do mundo, mas também, e principalmente,
transformaram tais ‘margens’ em periferia – cultural, econômica e política – de
seu universo social” (UGARTE, 2003, p. 3).
Aos
poucos a Amazônia foi se tornando alimento para a imaginação coletiva. À medida
que a empresa colonial dava seus primeiros passos nessa terra longínqua, uma
gama de simbolismos ia sendo forjada na mentalidade europeia. E assim,
“a partir dos conceitos, juízos, símbolos,
mitos e valores de sua civilização, os conquistadores, através de suas
narrativas – escritas e orais –, transmitiam aos leitores e ouvintes
determinadas imagens mentais, que tornavam menos estranhas as novidades dos
territórios desbravados” (UGARTE, 2003, p. 4).
Os
instrumentos utilizados para a elaboração de tais imagens mentais foram
primordialmente a literatura dos cronistas e demais viajantes, a iconografia, a
cartografia e os posteriores relatórios à viva voz. “Foi graças a esses meios que a Amazônia,
juntamente com outras regiões do continente americano, foi sendo introduzida no
imaginário europeu ocidental” (UGARTE, 2003, p. 4).
Para Ugarte (2003, p. 4)
O universo mental do europeu sobre o Novo
Mundo em geral, e sobre a Amazônia em particular, não separava a realidade
material da realidade imaginada. Alguns mitos europeus ganhavam novas
expressões com o desbravamento das terras americanas, e alguns deles tiveram
lugar no seio da Amazônia.
Ou seja, uma tradição de transplante cultural.
Referentemente aos textos inaugurais, eles vieram à luz em prol da
“construção de uma nova identidade para os povos amazônicos segundo a lógica do
colonialismo europeu” (FREIRE, 1991, p. 71). Portanto, eles devem ser lidos e
entendidos
como textos vivos, portadores de um projeto
político que, consciente ou inconscientemente, colaboram na construção de um
modelo de relacionamento entre a realidade indígena da Amazônia e o chamado
Velho Mundo. Isto é, ao informarem ao ‘mundo civilizado’ sobre as maravilhas que
viram e ouviram nos sertões das amazonas, estavam criando as condições
subjetivas necessárias ao avanço das forças colonialistas em espaços amazônicos
(FREIRE, 1991, p. 71).
Com base nessas considerações, é possível concluir que a retomada dos
autores que representaram a região no passado contribui decisivamente para
enriquecer o exercício de olhar sobre o que veio depois dessa representação,
formando elos articulados a essa grande cadeia discursiva. Assim sendo, busquei
as chaves de acesso à Amazônia nesses textos que vieram à luz nos séculos XVI,
XVII, XVIII e XIX, avançando quando necessário até o século XX. Revisito a
tradição dos apontamentos de viajantes sobre o vale amazônico, que teve início
com os cronistas das expedições de conquista e reconhecimento, tomou impulso
com as expedições científicas oficiais e ganhou curso com aventureiros,
arrivistas e profissionais liberais que se movimentaram pelo vale amazônico,
seja vasculhando, inventariando, pesquisando, interpretando ou rapinando. Em
conjunto, esses apontamentos formam um painel impressionante sobre a terra e a
gente da região.
1 Amazônia – a origem do nome
Reis
(1998) relata que, em meados do século XVI, o Peru era governado por Francisco
Pizarro, soldado da fortuna que conquistara aquelas terras na sua faina de
aventureiro em busca de ouro. Por volta de 1539, ele tomou conhecimento sobre o
País da Canela e o lendário el Dorado que, segundo as informações que
circulavam, situavam-se fora do mundo inca, a leste da cidade de Quito, numa
terra distante e praticamente inexplorada, mas pertencente ainda à zona sob seu
governo. Localizar e explorar o País da Canela e o fabuloso el Dorado passou a
ser uma obsessão para o governador aventureiro, tendo em vista que a canela era
uma das especiarias mais ambicionadas na Europa, e o ouro era motivo de desejos
inconfessáveis. Com esse intuito, encarregou o seu irmão Gonçalo Pizarro de
organizar uma expedição e com ela partir em busca daquela cobiçada terra.
Da
expedição de Pizarro desmembrou-se uma outra, a partir do rio Coca, cujo
comando foi confiado ao capitão Francisco Orellana. E essa expedição de
Orellana, na verdade, foi a primeira a percorrer toda a planície que, tempos
depois, passaria a ser conhecida como planície amazônica (REIS, 1998). Coube ao
religioso dominicano Frei Gaspar de Carvajal o papel de escrivão da expedição
de Orellana, estando ao seu encargo, portanto, a tarefa de relatar os
acontecimentos da viagem. Consta do relato[1] de
Carvajal, entre outros fatos pitorescos, o violento combate que os navegantes
travaram, no dia 22 de junho de 1541, nas proximidades da foz do rio Nhamundá,
um dos afluentes do Amazonas que banha os atuais estados do Amazonas e Pará,
com uma tropa de mulheres guerreiras, as quais o capitão e o seu cronista
tomaram como sendo as lendárias amazonas da mitologia grega, mulheres
guerreiras sem homens cuja existência incendiou a imaginação de praticamente
todos os desbravadores de terras desconhecidas, que invariavelmente alimentavam
o sonho de encontrá-las, em qualquer que fosse o continente. Esse foi o caso de
Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Pedro Álvares Cabral, que julgam tê-las
visto em suas viagens (GONDIM, 1994; GARCIA, 2005; SOUZA, 2009).
Grimal (1989) afirma que as amazonas eram um povo de mulheres que
descendiam do deus da Guerra, Ares (Marte), e da ninfa Harmonia. O seu reino
era localizado ao Norte, quer sobre as cordilheiras do Cáucaso, quer na Trácia,
quer na Cítia Meridional (nas planícies da margem esquerda do Danúbio). Elas
governavam-se a si próprias, independentemente de homens, cuja aproximação nem
suportavam, sendo comandadas por uma rainha. Segundo a lenda, elas só se
aproximavam dos homens quando sentiam necessidade de procriar, para perpetuar a
raça. Mas matavam os filhos do sexo masculino
e só conservavam vivas as crianças do sexo feminino, que eram adestradas para a
guerra.
Com quem, na verdade, a expedição de Orellana se confrontou nesse ponto
da viagem? É possível que as pretensas amazonas fossem, na verdade, uma tribo
em fase de matriarcado ou até mesmo um grupo de
mulheres indígenas nas atividades de caça e pesca, costume comum em
algumas tribos da região. Alguns índios já haviam advertido Orellana sobre o
perigo de se envolverem em conflito com as mulheres guerreiras. Um deles, que
havia sido aprisionado em um combate anterior, foi interpelado por Orellana a
respeito daquelas mulheres, quem eram elas, quais os seus hábitos etc. E o
índio passou a repetir uma história que, com ligeiras adaptações às
circunstâncias locais, vinha sendo contado pelos mais variados cronistas em
praticamente todos os continentes. Souza
(2009, p. 76) comenta, a esse respeito, que
A história narrada pelo índio é a mesma que
seria contada para sir Walter Raleigh e repetida 200 anos depois ao cientista Charles
Marie de la Condamine, bem como para Spruce, 300 anos mais tarde. Mulheres
guerreiras comandadas por uma matriarca é um mito comum aos povos do rio Negro,
médio Amazonas e Orenoco. Daí talvez a presença constante da história ao longo
dos séculos, com uma força capaz de convencer la Condamine, Spruce e o
historiador Southey, sem falar da ambiguidade de Humboldt a respeito do
assunto.
Carvajal, valendo-se do índio “entrevistado” por Orellana, um velho de
nome Apária, transplantou a lenda grega para o vale amazônico, e seu relato se
tornou motivo de polêmicas para a posteridade. Assim Carvajal descreve as “amazonas”,
contra as quais a expedição travou uma duríssima batalha:
Estas mulheres são mui alvas e altas, com o
cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e
andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas
mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas
mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um
pouco menos de modo que os nossos bergantins pareciam porco-espinho (CARVAJAL,
1941, p. 60-61).
À parte o lado mitológico
ou o aspecto fantasioso dessa passagem do texto de Carvajal, foi devido a ela
que o grande rio, que fora anteriormente batizado de Rio de Orellana, passou a
se chamar Rio das Amazonas. Reis (1998, p. 45) atesta que Orellana
até aquele
instante dera àquela massa d’água doce o nome de rio Orellana. Impressionado
com as guerreiras, homem de seu século, amante de aventuras, galanteador,
mudou-o então para Rio das Amazonas. Prestava-lhes a homenagem de seu respeito
pela valentia demonstrada.
E no decurso do tempo, o
rio passaria a ser denominado simplesmente de Rio Amazonas, derivando daí
também o nome “Amazônia” para a região onde se situa o rio, e “Amazonas” para
um dos Estados dessa região. É o que afirma Souza (2009, p. 21):
O nome
Amazonas foi dado inicialmente ao poderoso rio que corta a planície, o maior e
mais caudaloso do planeta, senhor de uma fantástica bacia hidrográfica que, de
certa forma, dita o destino de todo o subcontinente. Tantas são as
peculiaridades, diferenças e semelhanças entre as diversas conformações
regionais, que o vale banhado pelo rio mar acabou recebendo o nome de Amazônia,
território multinacional e pluricultural [...]
E Bueno
(2008, p. 79) acrescenta que esse território
já
foi nomeado bacia do Rio Amazonas, País das Amazonas, região amazônica,
passando a ser chamado “Amazônia” apenas no final do século XIX. A região ganha
existência a partir dos olhares lançados sobre ela. Diversos indivíduos e
grupos expressaram suas opiniões e, neste processo, a região foi se
constituindo. As mudanças ocorridas nas avaliações sobre a região promoveram
transformações nas representações da Amazônia bem como na própria região.
Orellana
deu nome também ao rio Negro, extasiado que ficou com o negrume de suas águas,
“cor de tinta”, em contraposição à amarelidão das águas do Amazonas,
especialmente quando a tripulação atingiu o encontro das águas dos dois rios
(GONDIM, 1994; REIS, 1998; SOUZA, 2009).
3 Os primeiros
cronistas
A
primeira expedição a descer o rio Amazonas, como dito anteriormente, foi a do
capitão espanhol Francisco Orellana, desmembrada da expedição de Gonçalo
Pizarro, iniciada em 1539. Além de contribuir decisivamente para a origem do
nome da região, essa expedição, segundo atestam os pesquisadores, teve o mérito
de ser a pioneira das “grandes navegações” de exploração do grande rio. Reis
(1998, p. 48) refere-se entusiasticamente ao fato, quando afirma que Orellana
pode “figurar na galeria dos criadores do Novo Mundo, como dos mais bravos
pioneiros da civilização ocidental nas selvas amazônicas”, porque “cabe-lhe a
glória de ter desvendado a maior artéria fluvial do globo”. É certo que esse
grande feito do capitão espanhol, tão logo se tornou conhecido na América e na
Europa, provocou “desejos ardentes” de exploração e colonização das terras que
ele visitara. Foram organizadas várias expedições em Portugal e no Peru no
embalo desse sonho colonial, mas, segundo Reis (1998), todas essas tentativas
fracassaram.
Motivavam
também esse sonho de conquistas os mitos do El Dorado e do País da Canela, que
Orellana não encontrara, mas, com certeza (para a mentalidade da época), abrira o caminho em sua direção. Se ele
conseguira a proeza de encontrar as tão procuradas amazonas, certamente um
pouco de esforço a mais, e quem tivesse coragem e espírito de conquista encontraria
o País da Canela e o el Dorado, que ficavam na mesma zona do reinado das
mulheres guerreiras, a leste de Quito, conforme se acreditava. El Dorado,
segundo as informações de que se dispunha, era um rei “cujas riquezas não era
possível medir. Os templos, os palácios, a pavimentação das ruas da cidade de
Manoa, onde vivia, tudo nessa região encantada se construíra em ouro, ouro
puro, só ouro. O monarca, pelas manhãs, banhava-se num lago de águas perfumadas,
sobre as quais lançavam ouro em pó” (REIS, 1998, p. 49).
Havia
também a lenda do País dos Omáguas, que se confundia com a do el Dorado.
Tratava-se de uma nação desejável em que havia uma cidade que
resplandecia
pela magnificência dos seus edifícios suntuosos, de seus templos edificantes,
onde os ídolos eram de ouro maciço, nação de muitos milhares de indivíduos,
governada pelo poderoso cacique Guarica. Um luxo de pormenores, imaginados,
arranjados com habilidade pelo ameríndio, dava crescimento à ambição dos
conquistadores (REIS, 1998, p. 49).
Todas essas lendas potencializavam a
imaginação e a sede de aventuras e de fortuna dos conquistadores, o que foi
acentuado pelas notícias das proezas de Orellana. Reis (1998, p. 50) informa
que “a jornada ao Dorado e aos Omáguas entrou a preocupar todos os espíritos.
Projetaram empreendê-la. Projetaram apenas, porque as autoridades régias não
consentiram na realização”.
Somente
em fevereiro de 1560 partiria de Quito uma segunda expedição, comandada pelo
capitão Pedro de Ursúa, em busca do el Dorado e do País dos Omáguas. Essa
viagem foi narrada por três participantes da expedição: Francisco Vasques,
Pedrarias de Almesto e Capitão Altamirano (FREIRE, 1991, p. 9). Era uma
expedição que tinha tudo para não dar certo, a despeito do “currículo”
invejável do seu comandante, como soldado aguerrido e vitorioso que se mostrara
em muitas batalhas. As embarcações eram mal equipadas, ao ponto de apodrecerem
sob o efeito da chuva, a tripulação foi escolhida sem critério, assim como todo
o pessoal de bordo. Para completar, Ursúa levava consigo uma linda viúva de
nome Ignéz Atienza, uma mestiça que despertava paixões e desejos desenfreados
entre todos os tripulantes, que a acusavam de influenciar as decisões de Ursúa
como comandante da expedição. A presença da mestiça na expedição e sua
ascendência sobre o comandante acabou se tornando o estopim de um espetáculo
sangrento que assinalou o começo de uma série de tragédias em que se
converteria aquela desastrosa viagem:
Descontentes
e enamorados, unindo-se para satisfação de seus ímpetos, conspiraram para
desfazer-se de Ursúa. A soldadesca, habituada à indisciplina que nos últimos
tempos dominava o Peru, facilmente se deixou levar pelas propostas dos
conjurados. Chefiava o conluio o vasco Lope d’Aguirre, indivíduo de precedentes
sujos, useiro e vezeiro em motins, conhecido, pelas misérias que praticava,
pela alcunha de o Louco (REIS, 1998, p. 51).
Lope
de Aguirre, diz Garcia (2005, p. 21),
“alimentava um desejo ainda não confessado: tomar o Peru e as enormes
extensões de terras banhadas pelo rio Amazonas”. Ele assassinou Pedro de Ursúa
e mais um sem-número de navegantes, inclusive sua própria filha Elvira, que o
acompanhava. Depois de uma rota de viagem banhada a sangue e pontuada de
rebeliões, acabou sendo assassinado, e sua memória foi declarada infame. Essa
segunda expedição poderia ter dado uma melhor contribuição para ampliar o
conhecimento que se tinha então sobre a região, se não fosse o fato de
praticamente se reduzir a uma série atos sanguinários de um homem desvairado, o
Lope de Aguirre.[2]
Ugarte
(2003, p. 27) comenta que, depois da expedição de Ursúa-Aguirre, no último
quartel do século XVI,
os
espanhóis não singraram mais todo o rio Amazonas nem tentaram colonizar o
imenso vale, deixando um vazio de poder colonial na região. Tal fato ocasionou
que novos ensaios de conquista fossem tentados, agora, por inimigos dos
hispânicos, mormente ingleses e holandeses. O mito do El Dorado continuava
muito vivo nesse período, tornando a região setentrional da América do Sul,
incluindo a Amazônia, suscetível de novas expedições à sua procura, descoberta
e conquista, pois, embora se acumulassem frustrações e malogros para a sua descoberta
e conquista, desde que os espanhóis se lançaram à sua procura na década de
1530, El Dorado continuará a exercer fascínio sobre os europeus.
É correto o raciocínio de Ugarte
(2003, p. 31) quando argumenta que
na
história da Amazônia, o século XVI marca sua entrada no cenário da conquista
europeia. Porém, antes da efetiva conquista militar e da implantação colonial,
que se deu apenas a partir do século XVII, a região amazônica foi conquistada
pelo imaginário colonialista, uma vez que os conquistadores não dispuseram das
condições materiais pra realizar de fato o seu intento. Desse modo, no século
XVI, à Amazônia – “margem” da “margem do mundo” que era a América – foi
atribuído o caráter de palco, onde algumas das fantasias europeias foram
encenadas.
Um
estudo desenvolvido por Krüger (1982) aponta que o início da colonização
europeia no mundo amazônico foi obra dos espanhóis e não dos portugueses. E os
relatos dos cronistas do século XVI comprovam isso. Enquanto os espanhóis
empreendiam suas primeiras penetrações pelo vale amazônico, Portugal voltava
suas preocupações para o litoral. Somente no limiar do século XVII a Amazônia
iria conhecer a presença dos portugueses, que a partir daí buscaram consolidar
o seu domínio na foz do rio Amazonas.
Souza
(2009, p. 127) divide a evolução da colonização portuguesa na Amazônia, que
politicamente vai de 1600 a 1823, em 4 períodos distintos:
a)
de
1600 a 1700, expulsão dos outros europeus e ocupação colonial;
b)
de
1700 a 1755, estabelecimento do sistema de missões religiosas e organização
política da colônia;
c)
de
1757 a 1798, criação do sistema de Diretoria de Índios e esforço para alcançar
o avanço do capitalismo internacional;
d)
de
1800 a 1823, crise e estagnação do sistema colonial.
Krüger
(1982) refere-se à admirável estratégia militar dos portugueses na Amazônia,
que consistiu no competente fechamento da Amazônia à penetração estrangeira. Um
marco decisivo dessa estratégia foi a fundação do Forte do Presépio por
Francisco Caldeira Castelo Branco, em 1616. O forte se transformaria
posteriormente na cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará (Belém). Krüger
(1982) assinala a importância desse forte na foz do rio Amazonas, ponto
nevrálgico para a blindagem do território contra a invasão das nações
concorrentes. O forte impedia a passagem de barcos estrangeiros (principalmente
holandeses e espanhóis) e praticamente impossibilitava o acesso a toda a
região. Tratava-se, segundo ele, da projeção de uma concepção que cimentou a
construção de novos fortes, que igualmente se transformariam em novas cidades,
como é o caso de Manaus, cuja raiz foi o Forte de São José do Rio Negro,
levantado em 1669 pelo capitão Francisco da Mota Falcão para garantir a
soberania portuguesa naquelas paragens do rio Negro, vedando o acesso dos
estrangeiros. Mas as estratégias portuguesas não se reduziram às operações
militares:
Além do
estabelecimento de postos militares, foram espalhando feitorias e missões. Cada
governador de Belém cuidou de organizar bem equipadas expedições de
reconhecimento e ocupação, mandou tropas de resgate, moveu guerras justas e
incentivou o descimento de índios para os centros coloniais (SOUZA, 2009, p.
129).
Aproximadamente
um século depois da tragédia de Ursúa, já em outubro de 1637, foi a vez de o
explorador português Pedro Teixeira realizar a primeira expedição de caráter
oficial a percorrer o rio Amazonas, em sentido contrário à de Orellana, ou
seja, subindo o rio da cidade de Cametá, no Pará, até o Equador. Viajava em
nome do governo português numa missão de reconhecimento da terra. Dessa
expedição vieram à luz dois relatos, um escrito pelo jesuíta Alonso de Rojas e
outro pelo frei Cristóbal de Acuña (FREIRE, 1991).
Rojas
deu ao seu texto o título de Descobrimento
do Rio das Amazonas. No entendimento de Gondim (1994, p. 87) ele contém “ao
lado de observações político-estratégicas, a herança bíblica e medieval da
busca do Paraíso Terrestre”, mas chama a atenção no texto a “precisão dos dados
técnicos sobre a largura, profundidade e comprimento do grande rio”. Rojas
encarece a necessidade de se aproveitar as margens do rio para o cultivo de
plantações diversas e para a construção de benfeitorias, assim como o
estabelecimento de fortificações em pontos estratégicos ao longo do vale.
Gondim (1994, p. 87) considera que estas e outras sugestões dadas pelo cronista
assemelham-se
mais ao político de visão que propriamente ao padre preocupado com a salvação
de tão grande rebanho [...] As possibilidades comerciais e o lucro
correspondente à exploração das madeiras-de-lei são alguns dos tópicos anotados
no diário de viagem que sintetiza as visões mercantilista e catequista.
Em
tom de absoluto entusiasmo com a grandeza do rio, o texto de Rojas contém
comparações entre os grandes rios citados na Bíblia e o Amazonas. Nessas
comparações, o Amazonas sempre se sobressai como o mais nobre, o mais abençoado
e o mais cristão, por banhar as terras de um reino católico. É o rio que banha
o Paraíso Terrestre, suas margens são as mais férteis e sob o seu leito dormem
as mais expressivas riquezas minerais. “A crônica enfatiza a densidade
populacional às margens do grande rio e tributários, informa sobre a
diversidade linguística, habitações asseadas, alimentação farta, feiticeiros
temidos e a inexistência de templos, ritos e cerimônias” (GONDIM, 1994, p. 90).
O texto de Rojas é um evidente convite à exploração da terra em nome da Igreja
e do Estado. Apresenta uma terra rica em ouro e outros minérios, terra de
delícias, obra de Deus à espera da conquista.
Quanto
ao relato de Cristóbal de Acuña, não se pode negar que ele tem, assim como o de
Gaspar de Carvajal, um caráter bastante pitoresco e imaginoso, como nas
referências que faz à existência de um rio de ouro na Amazônia, mas traz importantes
detalhes sobre o homem e a terra. Reis (1998, p. 61) dá conta de que Acuña,
“recolhendo, pacientemente, todos os informes que catava, ia organizando os
materiais de que se serviria para, num livro famoso, dizer à Europa daquele
paraíso”. O referido livro recebeu o nome de Novo Descobrimento do grande Rio das Amazonas, e foi editado em
Madri no ano de 1641 (REIS, 1998).
Pinto (2006, p. 130) entende que esses textos inaugurais tinham duas
preocupações básicas: inventariar o vale amazônico, revelando os tesouros que
poderiam ser explorados pela Europa, e pensar em meios adequados para se
explorar esse tesouro. Para ele, Acuña intitula seu texto como “novo”
descobrimento porque “considerava que os primeiros testemunhos produzidos sobre
o vale amazônico deixaram de fora as revelações principais, e que na verdade
não correspondiam à grandeza e ao significado do tesouro”. Na verdade, o relato
apresenta “inúmeras informações geográficas, econômicas e etnográficas de
primeira mão, que servirão para inspirar a visão de outros notáveis autores do
tempo futuro” (p. 132). Ele apresenta um mundo, tanto natural quanto humano,
que era mal conhecido e que, dessa forma,
possuía o valor de verdadeira fonte de revelação. E talvez por este motivo
tenha sido recebido com receio pela corte espanhola, que temia pela divulgação
de tão preciosas informações, sobretudo que fossem parar nas mãos daqueles que
possuíam interesses coincidentes em relação a essa parte não revelada da
América (PINTO, 2006, p. 130).
Obtendo testemunho privilegiado de nativos da própria região, com quem
mantivera contato, Acuña dá conta da existência de ouro em diversos pontos do
território, e isso era suficiente para deixar os espanhóis de olhos arregalados
e boca fechada. Portugal vivia à época sob o domínio espanhol, no entanto a
divulgação descuidadosa de uma terra tão valiosa poderia alimentar um espírito
de rebelião. De resto, a expedição de Pedro Teixeira pode ser considerada o
primeiro passo para o alargamento da posse portuguesa na região, pelo fato de
ele ter lutado contra holandeses e ingleses que tentavam dominar a extensão do
rio-mar.
De qualquer forma, após a expedição de Pedro Teixeira, a administração
colonial portuguesa se efetiva na Amazônia, a partir de 1657, com a fundação da
missão dos jesuítas no rio Negro, segundo informa Souza (2009, p. 115), e esse
processo de ocupação baseado no trabalho das ordens religiosas “segue intenso
até 1750, culminando com a assinatura do Tratado de Madri e a ascensão ao poder
do Marquês de Pombal”.
O
século XVII receberia ainda um outro relatório de viagem pela Amazônia. O padre
jesuíta Samuel Fritz, missionário sabidamente predisposto ao martírio e aos
perigos, viveu 37 anos na região, a partir de 1689, em trabalho de catequese, e
registrou parte de sua atuação no livro Diário
de viagem. Pinto (2006) informa que esse jesuíta alemão, como ávido
defensor dos espanhóis, considerava a presença portuguesa altamente nociva aos
indígenas, porque os lusos sustentavam seu trabalho na atuação violenta e na
escravização dos nativos.
Graças
à presença incansável como fundador de vários estabelecimentos missionários na
região do Alto Amazonas/Marañon, espaço de fronteira entre os reinos de Espanha
e Portugal, se transformou gradativamente em símbolo vivo do movimento de
expansão da fé cristã e dos interesses espanhóis em direção às terras pretendidamente
sob o domínio luso (Pinto, 2006, p. 135).
Sua
permanência na região foi muito atribulada, devido à malária e outras doenças
de que foi severamente acometido quando tentava organizar as missões no rio
Solimões. Além disso, teve que enfrentar a desconfiança, as tramas e intrigas
dos administradores e colonos portugueses que o julgavam um espião espanhol.
Chegou, inclusive, a ser preso em Belém quando ali esteve se tratando da doença
com os jesuítas (REIS, 1998; SOUZA, 2009). Mas no tempo em que lhe foi possível
trabalhar, lidou de perto com os nativos de diversos povoamentos. Elaborou uma
carta geográfica do rio em toda a sua extensão conhecida, que o consagrou como
grande conhecedor do vale amazônico. “Tomando apontamento dos trechos que visitava,
colhendo informações com os outros missionários que corriam paragens fora de
sua ação, fora reunido o material com que a organizou” (REIS, 1998, p. 92). Com
esse mapa, “realizou um trabalho pioneiro e inovador da técnica cartográfica,
que viria a servir de base para as cartas posteriores, entre as quais as de La
Condamine” (PINTO, 2006, p. 135). Seus apontamentos, acrescidos de observações
posteriores de La Condamine, segundo Pinto (2006), ficou para a posteridade
como um dos documentos fundadores da etnografia e da história natural do vale
do Amazonas.
4 Viagens, aventura
e ciência
O século XVIII assistirá a uma nova
fase de representação da Amazônia, diferente dos séculos anteriores em um
aspecto básico: aos poucos, a linguagem do relato mítico-religioso passa a dar
lugar à linguagem do inventário científico.
Souza (2003) identifica essa fase como um segundo momento colonial. O
primeiro foi o tempo da fixação e da conquista. Deixou atrás de si um rastro de
fábulas encantadoras construídas por homens ora deslumbrados ora atormentados
ante o mundo desconhecido, a respeito do qual, segundo Holanda (2010), os
espanhóis desenvolveram uma verdadeira geografia fantástica, por julgarem ter
encontrado o paraíso bíblico perdido. Atitude semelhante havia sido demonstrada
pelos portugueses, antes da América portuguesa, ao descreveram o continente
africano, com seus grandes rios e recursos naturais, como o que mais se
aproximava ao paraíso edênico.
No imenso fabulário sobre a Amazônia, há raros lampejos de genialidade,
incrustados aqui e ali como que para salvar esses escritos da total ingenuidade
e da repetitividade. No limiar desse segundo momento, “por toda parte se desenham as fábulas da região, mas
agora sabe-se que são fábulas; é o tempo da necessidade de louvar a própria
força e tentar a compreensão da ciência [...] Enfim, é a necessária
racionalidade que requer da velha similitude o papel de revelar e também
ordenar a Amazônia (SOUZA, 2003, p. 71).
Foi com essa perspectiva que Jean Marie de La Condamine chegou à
Amazônia. Ele saiu de seu país em nome da Academia de Ciências de Paris,
acompanhado de uma comitiva de cientistas, em direção ao Equador, com a tarefa
de testar a teoria newtoniana de que a Terra é achatada nos polos, enquanto
outra comitiva faria o mesmo trabalho na Lapônia. Seria uma grande contribuição
para as diversas ciências que se viam às voltas com a grande controvérsia em
torno da redondeza da Terra. Cumprida essa missão, depois de muitas intrigas e
mortes no Peru, parte da comitiva voltou para Paris, enquanto La Condamine
seguiu em direção ao rio Amazonas, uma rota de viagem alternativa, com vistas a
fugir de uma possível emboscada que os desafetos poderiam lhe armar.
Nessa rota alternativa, aproveitou o ensejo para realizar uma viagem de
reconhecimento do Amazonas, do Peru até a sua foz. A respeito dessa viagem,
escreveu o Relato abreviado de uma viagem
feita ao interior da América Meridional 1734 – 1745, obra que contém
anotações sobre a fauna, a flora e a gente da região (TOCANTINS, 1982). Sua
obra é considerada um momento decisivo da história da ciência do século XVIII,
um dos capítulos fundadores da ciência moderna. Orientada pelo espírito
iluminista, sua mentalidade é etnocêntrica e eurocêntrica. Descreve que as
margens do rio, descritas por Acuña como densamente povoadas de indígenas, um
século antes, encontram-se quase vazias, ocupadas aleatoriamente por
benfeitorias portuguesas. Evidentemente, ele serviu-se dos relatos dos
viajantes anteriores (Carvajal, Rojas, Acuña). E a partir dessas leituras e das
observações feitas, “La Condamine
realiza o primeiro grande empreendimento científico na Amazônia através de suas
viagens de exploração e estudos na região” (PINTO, 2006, p. 182).
Assim, vale dizer que ele inaugura as expedições científicas na Amazônia.
Trouxe
o racionalismo e a ciência para este lado da América, averiguou a veracidade de
muitos pontos dos relatos anteriores considerados inverossímeis, como um rio de
ouro existente na região. A respeito das amazonas citadas pelos cronistas, fez
uma investigação acurada a respeito da possibilidade de sua existência,
comprovando que era inconsistente. Em suas andanças pela região, anotava
meticulosamente tudo que achava interessante para a investigação científica.
Teve o mérito de ser o primeiro cientista a descrever as propriedades da
seringueira, um produto oriundo da selva que os índios Omáguas utilizavam para
fabricar utensílios da vida diária, como sapatos, bolas, vasilhas etc. A partir
dessa descrição, a borracha passou a ser explorada fora do mundo indígena,
inicialmente de modo artesanal, uma vez que a demanda era pequena. Mas com o
tempo o interesse pelo produto iria aumentar até chegar a uma altíssima escala
industrial, gerando um grande ciclo na Amazônia (SOUSA, 2009; PINTO, 2006;
TOCANTINS, 2000; LOUREIRO, 1985; REIS, 1998).
A partir da segunda metade do século XIX, a Amazônia começou a viver sob
o ciclo da borracha. Contribuíram decisivamente para esse fato as investigações
iniciais por Charles Goodyear (TOCANTINS, 1982).
O
padre João Daniel (1722 – 1776) foi outro pesquisador que deu grande
contribuição para a formação do pensamento social na Amazônia. No livro Tesouro
descoberto no máximo rio Amazonas, Aliou de forma admirável a ciência e a
imaginação. O real e o imaginário convivem harmoniosamente em seus textos, e
isso, no entendimento de Pinto (2006, p. 148) não compromete seu valor como
grande inventário das riquezas da Amazônia e
como um dos projetos políticos mais avançados que se registraram no pensamento
social produzido sobre a região, envolvendo uma reforma de padrões culturais,
uma reforma agrária, uma reforma urbana e redefinição das relações entre Estado
e sociedade, a partir da transição gradual do trabalho escravo para o trabalho
livre e da modernização técnica da navegação, da construção das cidades com
planejamento e do desenvolvimento da base agroindustrial existente.
João Daniel concebeu, segundo Pinto (2006), três ciclos no
desenvolvimento regional. O primeiro foi o ciclo das drogas do sertão, baseado
no extrativismo e que tinha base escravocrata. O segundo, foi o ciclo da
expansão da industrialização de
matérias-primas regionais ou adaptadas à região, apoiadas em amplo projeto de
reformas, que resultaria na definição de uma esfera pública, a partir sobretudo
do projeto de urbanização que consistia na implantação de cidades com uma
estrutura demográfica bem distribuída espacialmente. Essas cidades teriam
espaços para feiras, mercado, oferta de serviços profissionais básicos, vale
dizer, todos esses fatores combinados propiciariam a emergência e
desenvolvimento de um espaço urbano capaz de assegurar o exercício da cidadania
e do estabelecimento de uma cultura urbana moderna e próspera (PINTO, 2006, p.
149).
João
Daniel entendia que, mantida a escravidão indígena, seria impossível
estabelecer na Amazônia uma sociedade moderna e democrática. Aliás, advogava
que a construção de uma sociedade desejável demandava a execução de uma reforma
agrária que inibisse a formação de latifúndios e estimulasse o trabalho
criativo, produtivo e assalariado; o fomento de um mercado regional pela
criação de vilas e cidades; a modernização da navegação (PINTO, 2006). É de se
notar que esse alvissareiro segundo ciclo foi derrotado pelo terceiro, o ciclo
da política pombalina, que fatalmente o atropelou, com a camisa-de-força da
obstrução das mudanças pela violência política.
Alexandre
Rodrigues Ferreira inegavelmente é outro nome de vulto no século XVIII.
Naturalista baiano de formação portuguesa, percorreu o Amazonas no período de
1783 a 1792 a serviço da coroa portuguesa. De suas viagens pela região resultou
o livro Viagem filosófica pelas
capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, que é “uma
tradução iluminista dos saberes locais, desde o conhecimento indígena até o dos
representantes do poder colonial português e brasileiro” (PINTO, 2006, p. 169).
Fez levantamento por quase dez anos na região, coletou testemunhos de
indígenas, utilizando os métodos das ciências naturais. Seguindo a tradição
etnocêntrica, apresenta o indígena mais como um elemento da zoologia que da
humanidade, um desdobramento do capítulo dos mamíferos. Trabalhou
incansavelmente em três frentes principais: reconhecer e avaliar o potencial
econômico das terras que margeavam os grandes rios, descrever a situação dos
aldeamentos indígenas (documentando seus usos e costumes) e inventariar
meticulosamente a fauna e a flora.
Alexandre Ferreira não apenas
descrevia minuciosamente tudo que julgava interessante. Além disso, desenhava
objetos, árvores, animais, peixes e índios. Era a iconografia começando a
ocupar também o cenário das observações dos naturalistas. Para Souza (2003, p.
82), depois de Alexandre Rodrigues Ferreira,
A Amazônia não será mais uma paisagem sem
nome, ela será agora um complexo a serviço das deduções empíricas. Mas o que
será classificar e promover deduções se um complexo? Será, evidentemente,
aventurar-se nele, encontrar-se no meio de seus mistérios, atravessá-lo para
reconhecer gentes e objetos que se tornarão familiares. Mas o cientista saberá
que essa familiaridade será sempre aparente. Ferreira, por exemplo, nunca tinha
visto aqueles índios, aquelas plantas, aqueles costumes, e as coisas
descobertas naquele mundo novo deviam tornar-se peças, converterem-se em dados.
Olhando
por esse ângulo, Souza (2003, p. 83) afirma que Alexandre Rodrigues Ferreira
foi o “cientista do colonialismo” na Amazônia, cuja missão era adequar aquele mundo novo às necessidades do mercantilismo,
ou seja, catalogá-lo, pois “um mundo catalogado, classificado, fixo e
predeterminado deixa de assustar e provocar alucinações”. Foi assim que
transportou para Portugal um verdadeiro arsenal de amostras da biodiversidade
amazônica e deixou para a posteridade uma obra monumental sobre a região. Mas
“esse precioso e monumental trabalho sofreria muitos imprevistos adversos”,
como informa Souza (2009, p 184), como a destruição de boa parte do material
por ocasião da invasão do país pelas tropas napoleônicas e a pilhagem feita
pelo naturalista Saint-Hilaire, que usurpou outra parte considerável do
inventário do brasileiro, apossando-se dela (SOUZA, 2009).
No
século XIX nasce um novo ramo da ciência, um conjunto de saberes batizado com o
nome geral de História Natural. Inclui Geografia e Astronomia, Botânica e
Zoologia, Geologia e Mineralogia. A natureza, em seu conjunto, vai ser
transformada em objeto de pesquisa. A investigação científica, que teve seus
primeiros e ousados lances no século XVIII, sob a inspiração do Iluminismo, no
século XIX passa a avançar em passos largos rumo a um verdadeiro surto de
cientificismo. Nesse contexto, as terras
brasileiras, assim como as de outras partes do mundo, são transformadas em
laboratório, etapa empírica das pesquisas científicas (FIGUEIREDO, 2010). E a
região continua sendo visitada também por aventureiros de todas as partes do
mundo. Entre esses, Souza (2003) destaca os nomes de:
a) Robert Avé-Lallemant,
médico de origem alemã que empreendeu diversas viagens pelo sul e o norte do
Brasil. Dessas viagens resultou o livro No
Rio Amazonas (1859).
b) Louis e Elizabeth
Agassiz, casal que realizou uma expedição na Amazônia em 1865-1866, e
escreveram o livro Viagem ao Brasil.
c) Alfred Russel Wallace, zoólogo inglês, viajou para a Amazônia em 1848,
junto com o amigo Henry Walter Bates, entomologista. Passou quatro anos na
região, realizando pesquisas e coletando espécies, como animais, insetos e
pássaros, para enviar à Inglaterra. Com base nas pesquisas que realizou,
desenvolveu a teoria da evolução pela seleção natural, juntamente com Charles
Darwin. Em 1853, escreveu Viagens pelos
rios Amazonas e Negro;
d) Spix e Martius,
naturalistas alemães, estiveram na Amazônia entre 1817 e 1820, às voltas com a
tarefa de coletar materiais para desenvolver estudos zoológicos, botânicos e
etnólogos. Publicaram Viagem pelo Brasil
(1817 – 1820).
5 Seringueiro, o “sísifo” amazônico – limiar do século XX
Estudando
o chamado ciclo da borracha, Loureiro (1985) cria a expressão “período da
exclusividade da borracha natural silvestre” para se referir à faixa de tempo
que se estende do século XVIII (quando
se descobriu o uso da borracha entre os índios omáguas) até 1907 (quando a
borracha extraída dos seringais do Oriente passou a competir pesadamente com a
borracha da Amazônia). Com essa expressão, Loureiro (1985, p. 14) pretende
mostrar que, do século XVIII até os primeiros anos do século XX, a região
amazônica detinha a exclusividade no que diz respeito à produção da borracha
natural silvestre, extraída do látex das seringueiras nativas da região. Ele
divide esse longo período em três fases:
a) Fase das utilidades: compreende o
período do século XVII até a descoberta do telefone, em 1876, e da transmissão
da eletricidade (1873/1882). Essa fase corresponde ao uso da goma elástica na
fabricação de utensílios como sondas, brinquedos, capas, galochas, borrachas de
apagar, sacolas, entre outros. Foi impulsionada com a descoberta da
vulcanização (1840) e a utilização do barco a vapor;
b)
Fase dos fios condutores: estende-se
do ano de 1876 a 1888, quando Dunlop redescobriu o pneumático para bicicletas.
Além de continuar sendo utilizada para a fabricação de utensílios diversos, a
goma elástica passou a ser usada no isolamento e cabeamento dos fios destinados
à corrente elétrica e aos cabos telegráficos e telefônicos. Essas invenções
ocasionaram um grande aumento no consumo de borracha, bem como o consequente
estímulo à produção. Foi nessa fase que a região virou alvo do tráfico
internacional e das grandes migrações nordestinas;
c)
Fase dos pneumáticos: iniciada com a
utilização da borracha para a fabricação de pneus de bicicleta, e que teve um
impulso ainda maior a partir de 1895, quando passou a ser utilizada também na
indústria automobilística pelos irmãos Michelin. Houve uma migração em massa de
populações nordestinas para o interior do Amazonas e principalmente do Acre,
fugindo da seca fustigante e se embrenhando na selva em busca da extração do
látex.
Segundo
Loureiro (1985, p. 14), nesta terceira fase
Situa-se o verdadeiro tempo áureo da borracha
amazônica, sem concorrentes e com uma escassez constante, determinada pelo
grande consumo de utilidades, fios e pneus, em que a borracha atingiu preços
elevadíssimos, talvez mais altos que os de 1910, se considerarmos o poder
aquisitivo da moeda. Os estados amazônicos, enriquecidos, puderam proceder o
embelezamento de suas capitais e dotá-las de uma infraestrutura urbana
invejável, em nada inferior às congêneres europeias.
A
fase da exclusividade amazônica na produção de borracha chegaria ao seu fim no
ano de 1907, “mas a fase dos pneus continuaria a expandir-se, agora com a
participação crescente da borracha natural plantada, oriunda de seringais
racionalmente planejados, no Oriente, com mudas obtidas na Amazônia, a partir
de 1875, predominantemente, definitivamente, após 1912” (LOUREIRO, 1985, p. 14).
A
competição dos seringais asiáticos decretaria aos arrivistas da Amazônia a
amargura de sucessivas crises que conduziriam a região à irreversível decadência,
quando, a partir de 1913, a produção asiática suplantou de vez a brasileira.
Nesse
período de apogeu (duas últimas décadas do século XIX e primeira década do
século XX, aproximadamente), as cidades de Manaus e Belém sofreram um processo
de “embelezamento” sem precedentes. Loureiro (1985, p. 14) lembra que “Manaus e
Belém, muito cedo, tiveram luz e bondes elétricos, água encanada, esgotos,
portos organizados, comércio florescente, centros de diversões, prédios
públicos suntuosos, colocando-se na dianteira das cidades mais desenvolvidas do
país”. Lima (2008, p. 25) lembra que o "ciclo da borracha" seria
responsável pela montagem do “espetáculo amazônico”:
O surgimento de bancos e novas representações
consulares; a criação da Capitania do Porto; a fundação de um cemitério
particular para a colônia inglesa (registro da presença marcante do comércio
britânico na área); a inauguração da colônia portuguesa em torno da Sociedade
Beneficente; substituição do azeite de andiroba pelo de gás líquido
(1854/1864), seguida da substituição do sistema de iluminação antigo pelo gás
carbônico (1864/1896), etc. demonstravam a posição de Belém como centro
econômico e financeiro da Amazônia. A demanda internacional pela goma elástica
despertou o espírito cosmopolita da cidade, cujo estilo de vida cada vez mais
demandava construções imponentes, importação cultural, vida boêmia, um espírito
frenético, consumidor de novidades passageiras, numa palavra: luxo.
Tocantins (1982, p. 122) afirma que,
no limiar do século XX, Manaus e Belém “já eram duas cidades dignas de figurar
ao lado das melhores do Brasil, sem temer confrontos”. Eram cidades
espantosamente fulgurantes e cosmopolitas. “Os estrangeiros que desembarcavam
nos portos da Baía do Guajará e do rio Negro não regatearam palavras de louvor
ao progresso dos mesmos, pela atividade febricitante de seu povo, pela beleza
de seus edifícios e arte nos arranjos de suas praças e jardins”. Sentiam-se
como se estivessem em cidades europeias, estando em plena selva amazônica.
Belém, como descreve Tocantins
(1982), foi uma cidade que se transformou como num passe de mágica, tornando-se
uma cidade próspera, onde se tinha o prazer de passear em ruas largas e limpas,
apreciar passeios públicos bem projetados e admirar os prédios de requintados
traços arquitetônicos.
Em relação a Manaus, Tocantins
(1982) comenta que, apesar de ser menos populosa que Belém, era também uma
cidade altamente cosmopolita. Contava com ruas espaçosas e bem alinhadas,
fervilhantes de transeuntes vindos de vários pontos do mundo. Os edifícios, a
exemplo do suntuoso e imponente Teatro Amazonas, eram elegantes e de rara
beleza. Era resultado do sonho do seu jovem governador, Eduardo Ribeiro, em
transformar a cidade em uma espécie de “Paris dos Trópicos”.
Mas esse decantado fausto alimentado
pela borracha não passou, na verdade, de uma ilusão (DIAS, 1999). As
cidades-sensação de Manaus e Belém foram cenários improvisados para o
espetáculo do arrivismo europeu. Eram cidades cenário para as quais foram
transplantadas miniaturas de cidades europeias, reproduzindo espaços, usos e
costumes do Velho Mundo nos trópicos para o maior conforto de seus
representantes endinheirados que circulavam pela região. Tanto que, em chegando
o auge da crise, o espetáculo teve os seus lances finais e o cenário foi
praticamente desmontado, restando para a posteridade apenas alguns estigmas do
período.
Falando
especificamente sobre a Manaus daqueles idos, Hatoum (1999, p. 11) comenta que conviviam no mesmo espaço duas
cidades diferentes: uma era a Manaus das fotografias e dos cartões-postais,
muito comentada e elogiada pelo seu embelezamento: “suas praças, seus
monumentos, seus edifícios suntuosos, dotados de estilos superpostos,
importados da Europa”; a outra era uma cidade que subsistia numa zona de
sombra, “soterrada” pela grandiosidade do urbanismo: “trata-se da outra face da
urbs. Uma face nada edificante da
mesma fisionomia urbana: a Manaus dos excluídos. Ou seja, a dos pobres,
miseráveis, imigrantes, enfermos, loucos”. É sobre essa dicotomia entre a
Manaus Paris dos Trópicos e a Manaus-quase-aldeia (ou Manaus-porto-de-lenha)
dividindo o espaço de uma mesma cidade que se pronuncia o rico estudo
desenvolvido por Dias (1999), no sentido de mostrar que, para a expressiva
maioria dos amazonenses, o alardeado fausto da borracha não passou de uma
ilusão.
Enquanto
o cais do porto, em seu esplendor, fervilhava de passantes e de embarcações em
Manaus e Belém; enquanto as reuniões sociais, os encontros lítero-musicais, os
cafés e os bailes se multiplicavam em clubes e eventos similares; enquanto as
companhias líricas lotavam os esfuziantes teatros, no interior da floresta o
silêncio envolvia os seringais, de onde saía o látex que sustentava aquele
sistema extremamente perverso de expoliação humana. Forjava-se ali um
verdadeiro submundo de estupidez, violências extremadas e tragédias humanas. Um
sistema de escravização dos nordestinos que, após serem empurrados pela seca
invencível em direção à Amazônia e arrastados pelos agenciadores inescrupulosos
dos seringais, eram transformados em seringueiros, para sangrar pelo resto da
vida enquanto sangravam as seringueiras. A esses seringueiros, isolados e
solitários em suas estradas de seringueiras, cortando, colhendo e defumando o
látex, coubera a tarefa de carregar nas costas aquele mundo de ostentação, sem
participar em nada dos seus fulgores.
Alberto Rangel, no seu antológico livro de contos (ou seria um romance?) Inferno Verde (1917), usa a interessante
imagem de Sísifo para representar a faina dos sertanejos nos seringais. Sísifo,
na mitologia grega, era o mais astuto de todos os mortais, que enganou até
mesmo a morte e, por causa de suas ofensas aos deuses,
recebeu como castigo a condenação de, por toda a eternidade, empurrar sem
descanso um grande rochedo de mármore
com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava
quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, até o ponto
de partida por meio de uma força irresistível. Dessa forma, sua tarefa inglória
consistia em subir e descer a vida inteira, empurrando a grande pedra, para
nada. Por esse motivo, tarefas que envolvem esforços inúteis passaram a ser
chamadas de "trabalhos de Sísifo", ou seja, trabalho inútil e sem
esperança. Rangel vê o seringueiro como o “Sísifo amazônico”, às voltas com o
seu sacrifício, que nada tem a ver com rochedo ou montanha, mas com
seringueiras e látex, que materializavam a perpetuação de sua vida de
escravidão e penúria.
Mas
essa realidade era cuidadosamente silenciada pela crônica de então, ocupada com
os cantares do fausto. Euclides, chegando à região, iria contribuir
decisivamente para a quebra desse silêncio.
Euclides aportou em Manaus com uma
missão: realizar o levantamento cartográfico das cabeceiras do rio Purus, numa
região de acirrados conflitos de fronteira, envolvendo caucheiros peruanos e
seringueiros brasileiros. Tomou conhecimento, in loco, do que acontecia nos seringais, e, não se contendo com os
flagrantes de injustiça e perversidade que testemunhou, jogou tudo isso no ar.
Evidentemente, a Euclides não interessaram apenas as questões ligadas aos
conflitos envolvendo limites na Amazônia. À semelhança do que fez em Os Sertões, ele olhou com muita atenção
para a terra, para o homem e para a luta do homem com a terra e do homem com o
homem (enfrentamentos de fronteira e conflitos de trabalho).
Em
seu preparo para imergir no mundo amazônico, Euclides havia consultado os
escritos dos cronistas, dos aventureiros, dos cientistas (numa palavra, dos viajantes – na grande maioria
estrangeiros) a respeito da região. Tomara contato com textos marcados pelo assombro (infernismo), pelo deslumbramento (edenismo) e pela
geografia do exótico.[3]
Essa visão de um mundo fantástico e maravilhoso instalado na região
permeava até os textos pretensamente científicos que pretenderam decifrar o
espaço amazônico.
Baseando-se
nas informações levantadas por esses textos fundadores de invenção da Amazônia
(GONDIM, 1994), Euclides produz a sua própria visão da região, colocando o
homem no centro de tudo e fugindo, assim, do mero geografismo repetidamente
cultivado em textos anteriores. Pode-se dizer que ele lançou as luzes da
metáfora sobre as “zonas de sombra” que impediam o olhar de captar a Amazônia
em imagens mais próximas da realidade (a despeito de ele também, muitas vezes,
afastar-se sensivelmente da realidade).
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[1] O
relato da expedição de Francisco Orellana por Gaspar de Carvajal tem como título “Relacion del nuevo
descubrimiento de famoso Rio Grande que descubrió por muy gran ventura el
capitán Francisco Orellana desde su nascimiento hasta subir á La mar” (REIS,
1998)
[2] A
história da famigerada expedição Ursúa-Aguirre foi recriada, com algumas licenças
poéticas, pelo alemão Werner Herzog no filme “Aguirre, a cólera dos deuses”
(1972).
[3]
Os termos “edenismo” e “infernismo” foram cunhados pelo pesquisador Mário
Ypiranga Monteiro, no livro Fatos da
Literatura amazonense (1976), para descrever uma longa tendência ao
geografismo nos escritos sobre a região. A enormidade da floresta e dos rios
deixa o homem alienígena (e até mesmo os amazônidas, em certa medida) ora
assombrado com os mistérios e horrores ora deslumbrado com a exuberância e
beleza da paisagem. O assombro dava vazão à postura infernista; o
deslumbramento licenciava o edenismo.