SOBRE AS LUTAS POÉTICAS DE OLGA SAVARY E GIOCONDA BELLI: UM ESTUDO COMPARADO



Patricia Maria dos Santos Santana
(Doutoranda da UFRJ. Bolsista Capes)

Resumo: A produção artística de mulheres que criam em tempos de repressão podem apresentar fortes semelhanças. São os casos dos processos criativos das autoras latino-americanas Olga Savary e Gioconca Belli que, além de terem suas escritas marcadas pela força do feminismo latino em um momento específico, usam a temática erótica para atuarem nesse enfrentamento.
Palavras-chave: Feminismo. Erotismo. Olga Savary. Gioconda Belli.

Abstract: The artistic production of women who writes in repressive times can present strong similarities. These are the cases of the Latin American authoresses Olga Savary and Gioconda Belli that, beyond having their writings marked by the force of Latin feminism in a specific moment, they use the erotic theme to work in this confrontation.
Key Words: Feminism. Eroticism. Olga Savary. Gioconda Belli.


O movimento feminista organiza-se para lutar contra uma condição [...] dada historicamente pela desigualdade nas relações [...] em nível público e privado, da razão e do afeto, do trabalho e do prazer, da obrigação e do desejo. Nesta condição está a radicalidade do movimento, que tem como consequência uma desorganização profunda dos espaços de poder cotidiano.
 (Celi  Regina  Pinto)
Love, the poet has said, is woman’s whole existence.
(Virginia Woolf, Orlando)


Considerações  Iniciais

        Gioconda Belli nasceu na Nicarágua, no ano de 1948. É uma das poetas mais conhecidas dentro e fora de seu país. Foi militante política pela derrubada do governo ditatorial de Somoza. Transportou armas, viajou pela Europa e América recolhendo recursos e divulgando a luta sandinista. Com o triunfo da Revolução Nicaraguense, em 1979, ocupou vários cargos dentro do governo revolucionário. Com a posterior burocratização do partido no poder, Gioconda se afasta da FSLN e passa a criticar duramente seu “endireitamento”.  Escrevia suas poesias nesse meio inspirador. Por sua vez, Olga Savary é uma das grandes poetas brasileiras da atualidade. Com temática erótica e intimista, foi a primeira mulher a lançar um livro inteiro de poesias eróticas. Constrói uma obra cheia de ousadia, reflexo de sua inquietação, com o objetivo de polemizar. Nasceu em Belém do Pará, em 1933. Foi casada de 1955 a 1980 com o cartunista e militante político de esquerda Jaguar, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, bastante perseguido na época da ditadura brasileira.  De acordo com as visões dessas duas artistas, observaremos os processos de desconstrução do imaginário feminino em seus poemas.  
            Ambas as escritoras tiveram atuação forte em suas escritas em anos de repressão. Belli escreveu durante os anos da ditadura de Somoza e Savary, nos ‘Anos de Chumbo’ brasileiro, época de repressão que teve início com o golpe militar de 1964 e foi até meados dos anos oitenta. Devemos, pois, ressaltar o pensamento do historiador francês Michel de Certeau que nos conta que a definição histórica passa por um diálogo com o corpo pessoal e o corpo social. Perceber o “lugar de onde se fala” e a partir de qual imagem de corpo são estruturadas as premissas, apresenta-se como aspecto fundamental para a compreensão dos processos históricos:


A história se define inteiramente por uma relação da linguagem com o corpo (social), e, então também por sua relação com os limites colocados pelo corpo, seja sob a forma do lugar particular de onde se fala, seja sob a forma do objeto distinto (passado, morte) do qual se fala. (CERTEAU, 1979, p. 27)

Também não podemos nos esquecer de que a linguagem é um modo de produção que não é neutro, inocente ou natural, pois se engaja em uma intencionalidade e ocupa lugar privilegiado na manifestação de uma ideologia. Portanto, é imprescindível estarmos conscientes da relação da linguagem com o conhecimento e com a cultura. Apenas depois da fase de aquisição da linguagem é que a pessoa atinge a abstração. O pensamento conceitual torna-se inconcebível sem a linguagem que, enquanto ponto de partida social do pensamento individual, é a mediadora entre o que é social, imposto, ditatorial e o que é individual, criador, libertador. Do ponto de vista da literatura feminina, as poesias dessas autoras, que muitas vezes chegam ao leitor desavisado como meras expressões de mulheres indecentes, sugerem uma intencionalidade poética a fim de desfazer estereótipos e compor um desejo de mudança e luta. A concepção de uma identidade feminina limitada é o que a mulher sempre teve.  Diluir essa ideia era essencial às novas décadas para que as diferenças de gênero se tornassem mais visíveis. Desse modo, essas escritoras, como uma espécie de “tratamento de choque”, tentaram mudar a posição da mulher por meio de suas narrativas eróticas. Suas escritas femininas e feministas trazem à tona outra realidade, pois possuem um olhar sob um ângulo que as difere do instituído até então.  É como se o sentimento do individual se posicionasse para além da condição do nacional, encontrando, assim, a supremacia de sua condição de mulher e de sua condição de ser humano.  Seus textos fazem-nos ver que vale muito ir contra o conformismo social, agir de forma audaciosa e diferente para se conseguir o que se quer.  Acreditar em uma mudança e, principalmente, mudar cria os contornos necessários à luta, seja ela social, política, ideológica...

1.O Movimento Feminista e a nova mulher
          Como bem definiu Michele Perrot, “o feminismo, desde a origem, é tomada de palavra e vontade de representação das mulheres” (PERROT, 2005, p. 323) que veio do propósito de criar um espaço de manifestação feminina em uma sociedade em que a mulher nunca teve voz.  Luiza Lobo (1997) pontua que a literatura feminina necessita de temas relacionados à linha da “livre escolha” dentro do universo da mulher, ficando, pois, a temática erótica bastante aceitável para se reconstruir e questionar a identidade feminina na sociedade atual.
Com o passar dos anos, ou seja, desde a libertação feminista aos dias de hoje, a escrita feminina toma contornos próprios e se posiciona como uma forma de resgate ao que foi perdido.  A mulher vem se mostrando como sujeito social em nome de sua moral, moral esta que fora concebida pelos moldes masculinos e pelo pensamento da sociedade patriarcal.  Carol Gilligan (1997) define a moral feminina como aquela que altera uma perspectiva hierárquica dando lugar a uma visão de que o eu e os outros serão tratados como tendo o mesmo valor e que, apesar das diferenças na posse do poder, as coisas correrão com justiça e que todos obterão resposta e não serão excluídos. Desse modo, Gilligan procura afirmar que a moral das mulheres, não deixando de reconhecer a importância das diferenças de posição e poder dos diversos intervenientes nas relações sociais, não é exclusivista, mas uma moral inclusiva, onde todos podem ter vez e voz. E em relação à literatura, há uma declaração muito pertinente, feita por Rosario Castellanos, ao discorrer sobre o modo da mulher da América Latina escrever:

Quando a mulher latino-americana toma entre suas mãos a literatura, ela o faz com um gesto e uma intenção semelhantes àqueles que faz ao tomar o espelho para contemplar a própria imagem.  Elas parecem ter descoberto (...) que o universo é superfície.  E se é, devemos poli-la, para que percamos a vontade de procurar o que está mais além, por trás do pano de fundo.  O maravilhoso e o terrível não se refugiam no extraordinário, mas permanecem ocultos no imediato, aguardando um olhar atento que os descubra, uma palavra exata que os revele (CASTELLANOS apud MILLER, 1987, p. 13).

            E pela própria imagem, Gioconda Belli  e Olga Savary se revelam a nós.     

2.Sexualidade e Erotismo como formas de transgressão e luta
O erotismo se mostra diferente para cada um dos sexos e também se faz diferente para quem o sente e mostra, dependendo da sociedade em que vive, da cultura que segue, das crenças que tem, etc. A mulher que escreve, que se conhece bem e que deseja uma ruptura das tradições paternalistas faz do erotismo um modo de mudança social.  Rose Marie Muraro (1983) nos lembra que o desejo é sempre ponto de partida para uma crítica radical que vise às mudanças sociais. A criação e divulgação, pela mulher, de uma poesia que radicaliza os modos libertários de vivenciar o desejo mostram sua parcela de contribuição no necessário processo de transformação social, uma vez que os novos valores, explícitos ou implícitos nas imagens do corpo feminino livre para o prazer, abalam alicerces de resistentes estruturas de dominação masculina. O desejo se posiciona como linha emancipatória do pensamento machista.
A poesia erótica é mostrada por cada autora em formas específicas. Em sua poesia, Olga Savary vive o momento carnal (no ato e nas sensações físicas) de forma intensa.  Chama o amado de “macho” e celebra o lado mais animalesco do desejo. O crítico Gerson Valle (2006) salienta em artigo que toda a “selvageria” de Savary tem muito a ver com a sua identificação plena com a natureza brasileira:
                             
                                         (...) olho no olho o bicho que me espreita
ponho-me nua para ser domada
e o coração do magma eu atiro à fera.

                                              
Para Gioconda Belli, os contatos com a terra e com a natureza são essenciais na construção de sua poética intimista e erótica.  Belli cava seu desejo desde as raízes:

(...) mientras sentimos cada dia con más fuerza
la necesidad de vomitarnos,
de darnos completamente,
de morir para abonar la tierra
que de nuevo alimentará nuestras raíces.


 Em seu livro O Erotismo, Georges Bataille (1987) apresenta análises dos aspectos fundamentais da natureza humana, tecendo o limite entre o natural e o social, o humano e o não humano.  Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. Somos descontínuos, morremos isoladamente, mas trazemos em nós o que Bataille chama de “nostalgia da continuidade perdida”, sendo tal nostalgia a base do erotismo. A transgressão é, para Bataille, a desordem organizada, na medida em que introduz num mundo organizado algo que o ultrapassa. Belli e Savary criam, por intermédio do erotismo, formas de enfrentar a desordem social vista como modelo, como padrão.  Bataille diz que a essa transgressão é que dá os contornos de uma nova definição social:

Se a transgressão propriamente dita, opondo-se ao desconhecimento do interdito, não tivesse esse caráter limitado, ela seria uma volta à violência - à animalidade da violência. Mas não é isto, na realidade.   A transgressão organizada forma com o inderdito um conjunto  que define a vida social (BATAILLE, 1987, p. 61).


            Orlandi ressalta que “todo dizer é ideologicamente marcado. É na língua que a ideologia se materializa, nas palavras do sujeito” (ORLANDI, 2005, p. 38).  Adiante, a autora relata que não há discurso que não dialogue com outros discursos:

Em outras palavras, os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros.  Todo discurso é visto como um estágio de um processo discursivo mais amplo, contínuo.  Não há, desse modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso.  Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis (idem, p. 39).

            Para melhor compreendermos o discurso feminino de nossas autoras, eles definitivamente partem de ambientes de opressão (seja essa opressão uma opressão social no que tange uma época de luta ditatorial, seja essa opressão referente à vida reprimida que a mulher carrega desde nascer). Frisam que precisamos estar cientes da relação com a nossa verdadeira identidade, pois não podemos nos esquecer de que nos tornamos homens e mulheres através de uma educação forjada que recebemos dentro de um discurso patriarcal, já que a nossa identidade se constrói nesse momento. Nossas autoras também ressaltam tais lutas ideológicas.

3. As poesias de Olga Savary e Gioconda Belli
            O ato de amor para Olga Savary é uma expressão de delírio selvagem. É o delírio de ser possuída e de possuir ao mesmo tempo, de tocar e ser tocada, de amar e ser amada.  Em uma construção carnavalizada do ato de amar em nossa sociedade patriarcal, Savary inverte o jogo da sedução no ponto de vista da sociedade conservadora e se posiciona como a grande dona do ato carnal na hora de sua consumação. 
Dominando sem ser dominada, ordenando e não se deixando tomar ordens, Savary não admite uma atitude submissa na construção do desejo. Ela deixa de lado qualquer alusão a uma postura submissa da mulher e se assume como se estivesse no papel de controle, ou seja, no papel do homem, do macho ao dar as cartas para o ato de amor. Na selvageria marcada de sua poética, narra os prazeres carnais de maneira objetiva e com extrema sensualidade, como se do “seu macho” ela se aproveitasse até o último momento para poder chegar ao verdadeiro intuito da relação carnal, ou seja, o seu próprio prazer. A poética atrevida de Savary toma as rédeas da relação e, ao mesmo tempo em que julga o homem seu rei, também o nomeia seu vassalo.  Em “Sumidouro”, a figura do rei implica toda uma simbologia arquetípica do homem.  A coroação de um rei equivale a um elevado estágio de poder humano em sua relação de união com Deus.  O rei representava a imagem da união do céu com a terra. As civilizações antigas julgavam que todo rei era um escolhido divino.  Nele também está a ideia de pai e de herói.  Todavia, Savary carnavaliza a noção inicial e torna súdito o seu suserano, através do amor carnal:

Talhe da audácia
e da covardia, meu rei e vassalo,
engolir de pássaros,
golpe de asa
fartura de água
na árvore da vida,
na terra me tens
com os pés bem plantados.
Aqui nado, aqui vôo,
telúrica e alada.

                
           A poesia de Olga usa abundantemente a palavra “água”.  Muitos de seus poemas mostram o uso dela.  Sobre tal fato, a poeta responde a Clauder Arcanjo:
A água sempre me atraiu, porque foi lá que a vida no planeta Terra começou. Nascemos no líquido amniótico dentro da barriga da mãe pessoal, ou seja, dentro da água. O melhor parto é dentro da água.    Assim, sempre usei esse elemento em poemas e nos textos todos como origem de vida e como metáfora erótica. (SAVARY, entrevista, 2007)                         

Savary não citou na entrevista, mas a água representa também a umidade da mulher (e do órgão sexual masculino) no momento de prazer e desejo.  A água chega  como  um símbolo muito forte quando o assunto é sexo:
SENSORIAL
Íntima da água eu sou por força,
Mar, igarapé, rio ou açude,
Pela água meu amor incestuoso.

             Dentro da classificação do imaginário de Durand, a água, nesse caso, seria o signo concreto que evoca, por uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido. Por sua íntima relação com o sexo e com as partes pudentas, a água no poema “Ser” também representa o sentido secreto por trás do pensamento de desejo. Vejamos:

    SER
O sexo tão livre, natural, obsessivo
Como areia e seixos rolados:
Regresso à água.

    Em outro poema seu intitulado “Signo”, Savary mostra a junção do desejo do amor selvagem à vontade de saciar sua vontade e também à impossibilidade de essa sua vontade ser saciada.  Savary carnavaliza e brinca com a natureza humana, tornando o homem selvagem. Para entendermos a fundo o erotismo, como o fez Bataille (1987), isso não seria possível, uma vez que o animal segue seus instintos, mas não é um ser erótico.  Somente o homem é erótico. O erotismo do homem diverge da sexualidade animal porque, no homem, a exaltação erótica vem carregada de vivência interior.  A poeta, de forma brilhante, trabalha o lado selvagem e erótico do homem. Sua personagem humana é gente/homem (prazer com vivência interior) e bicho (puro instinto) ao mesmo tempo. Vejamos, pois, o poema abaixo:


A respiração de novembro e de sua véspera
(outubro) arde-me não no cérebro
nem no ombro
mas – anel de fogo – nas ancas
e nas entranhas.
Em ti eu amo os amores todos.
Eu não podia aceitar isto
mas aceito agora.  A vida
não cessa, é eterno continuar.
Por mais que se queira
o ávido sangue não será saciado.
A tarde é quem está bebendo este desejo
Conivente com a violência
da patada da fera amada.
E numa noite de novembro
é que fiquei pronta para a vida
ao ver o mar refletido no teu corpo
e ao meu rosto assomar todo o desastre.

           O homem desejado pelo eu lírico da poeta é animal, animalesco ao extremo. Um macho. Segue ao ponto de ser fera, de ser violento de tanto prazer com sua patada de bicho feroz cheio de desejo. Sobre essa particularidade de Olga Savary, Marleine Toledo nos mostra que

A paixão, conforme Savary, despe-se de seu caráter meramente humano para transformar seres amantes em macho e fêmea, cavalo e cavaleiro, e insere, repetidas vezes, elementos do mundo animal no insinuante jogo erótico representado pelas relações de contradição entre medo e desejo, doçura e aspereza ou sedução e intimidação (TOLEDO, 2009, p. 72).

           Podemos dizer que, apesar de toda essa selvageria, o amado não consegue saciar o desejo que surge das entranhas da poeta, pois este desejo é algo que nunca cessa; ele é como a própria vida que nunca para. Nesse poema, a água que surge vem com a representação do mar, uma metáfora com muito mais abundância e ferocidade nos movimentos. Por vez, a personagem feminina dos poemas de Savary desvincula-se “de seu papel passivo no processo sexual, inserindo-se merecidamente como coautora do evento erótico” (TOLEDO, 2009, p.66). A própria poeta, em entrevista, explica a audácia de suas mulheres:

Minhas mulheres – as mulheres que apresento nos poemas e contos – não são submissas; são as que determinam e norteiam sua própria vida.  Elas são para elas mesmas.  Algumas pessoas, principalmente homens, da geração mais jovem, adoram estas mulheres; Já os da minha geração estranham, às vezes não gostam, ficam incomodados.  Dia virá em que não estarão mais em estado de perplexidade, espero. Quanto a mim, faço minha parte, dou meu recado (id. ibid.).

          Em “O segredo” há uma insinuação erótica com o que o amado guarda no meio das pernas.  O eu lírico brinca e se apropria de metáforas fantásticas para descrever aquilo que lhe proporciona prazer. A “casa de água” surge significando a excitação enquanto a “rajada de pássaros” pode ser entendida como uma animalesca, uma violenta ação de amor:

Entre pernas guardas:
casa de água
e uma rajada de pássaros.


          Em uma relação direta com o imaginário social, o campo vai se abrindo para a criação de Savary, que se mostra cuidadosa em seu ato de escrever, para que a sua poesia não seja rotulada como uma mera expressão de uma mulher oprimida pela dominação masculina no seio social. A autora não chama a atenção dos seus leitores com literatura de baixo calão. De fato, em nenhum momento, a poeta faz isso.  Vejamos mais uma criação savariana:

É PERMITIDO JOGAR COMIDA AOS ANIMAIS
A sombra vindo da floresta
cobrindo-nos como um toldo,
os anéis de folhas e raízes
e os véus de areias e marés,
a água vindo em meio ao fogo aceso,
olho no olho o bicho que me espreita,
ponho-me nua para ser domada
e o coração do magma eu atiro à fera.

           O poema acima é repleto de erotismo e simbologia.  Água e Fogo se unem e não apagam o desejo.  A água representa o ser em estado total de excitação e o fogo alude ao próprio desejo.  Dentro da mata, ela se depara com o bicho que a vigia. Ela não recua e se põe pronta para ele.  Ela se entrega e “se serve” ao animal, como o título do poema sugere.  A voz poética da autora se entrega ao prazer e vira a “comida” de seu predador  no sentido erótico do termo. No sentido simbólico, podemos entender o poema como uma referência à questão de sexo e poder da “hipótese repressiva” levantada por Foucault em História da Sexualidade I. A Sociedade vive, desde o séc. XVIII, uma fase de repressão sexual e se maltrata cruelmente por conta disso. Nessa fase, o sexo se reduz à sua função reprodutora e o casal passa a ser o modelo. O que resta disso torna-se um mal social e é expulso, negado, reduzido ao silêncio. A hipótese repressiva não pode ser contestada, já que serve ainda à sociedade atual. Continuamos a formular, em termos de repressão, as relações de sexo e poder. Se o sexo é reprimido, o simples fato de falar do sexo ultrapassa todos os limites. Com a hipótese repressiva, podemos vincular revolução com prazer e tratar a liberação sexual. Foucault mostra que os mecanismos para disciplinar a sociedade se exercem através da formulação do saber sobre o corpo.  É na construção de um “corpo dócil” submetido às estratégias de dominação que se estabelecem bases em que essas estratégias são alicerçadas, garantindo, assim, sua continuidade e permanência. No investimento político do corpo, o filósofo investiga a questão do poder como estratégia de táticas.  Existe uma produção de “corpos dóceis” disciplinados a funcionarem de acordo com a norma social.  Quando a poeta diz “é permitido jogar comida aos animais”, de fato, está se posicionando contra os padrões criados pela sociedade reguladora. Assim, ela mostra que o “não” fora extinto e o corpo repreendido em suas vontades sexuais também fora.
        Em “Guerra Santa”, o eu lírico menciona que a fera de que tem medo é também quem ela mais deseja. Ela se contradiz no jogo da sedução: usa palavras doces para, depois, rebater tudo com palavras ásperas. Procura, assim, ficar igual aos bichos no seu modo de agir: domada e arredia.   No fundo, quer sexo, ou seja, quer ser dilacerada com as garras do bicho e ver a sua pontiaguda parte lhe tomar as entranhas:

Tenho um medo da fera que me pelo,
ao vê-la quase perco a fala
(embora seja a fera o que mais quero)
mas reagindo digo-lhe palavras doces
e palavras ásperas, torno
igual minha voz à voz dos bichos
para seduzi-la ou para intimidá-la,
para que pontiaguda me tome das entranhas
depois de dilacerar com as garras meu vestido.


           Também podemos entender a fera como o próprio homem, o ser dominante em uma sociedade patriarcal que sempre possui o controle da situação.  O poema retoma a ideologia da hipótese repressiva de Foucault de modo que medo e desejo se misturam.  A fera a faz perder a fala, mas é, ao mesmo tempo, tudo o que ela mais quer. Cansada de ser um “corpo dócil” definido socialmente, ela anseia por ir além e seduzir.
            O uso dos prazeres também proporciona um especial momento de busca da verdade. A sexualidade permeia essa ligação entre desejo e verdade.  Para conseguir  atenção a si próprio é necessário descobrir no desejo a verdade de si mesmo.  Para Foucault, buscar essa identidade pessoal gera poder, pois não há sujeito sem noção de poder. Prazer e poder reforçam-se mutuamente.  Com isso, aludimos ao pensamento de Bataille (1987) que diz que o ato erótico pertence a um processo de transgressão ao interdito, à proibição social.  Retornando a Foucault temos:

Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, a inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e da sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura (FOUCAULT, 1984, p. 12).  

          O poema a seguir mostra outra relação íntima com a poesia de Gioconda Belli além da questão da água erótica. Temos, agora, a terra, termo que a voz poética usa para se autodenominar. A terra também pode significar uma identificação da mulher com o local que habita. Vemos no poema a seguir as manhãs e sua atmosfera propícia ao sexo e o trajar da cor branca para designar pureza e divindade.  A poeta reconhece a força encontrada em sua voluta roxa (aqui, uma metáfora para a sua parte íntima), lugar de obsessão de seu amado. Compreende a sua vagina como instrumento de imperfeita perfeição e também instrumento de força, aludindo à questão da força da mulher em sua diferença corpórea em relação ao homem, no poema intitulado “Pele de terra, minha morada”:

Pele de terra, minha morada,
para ti portas abertas, abertas
as comportas do mar deflagrado
na manhã vendo-te vindo todo de branco.
Aqui o pio de pássaros e algumas árvores,
nossa imaginação, teus objetos,
fingem floresta para o selvagem e quase
sem ternura momento de naufrágio.
Minha voluta roxa e ascendente
ao labirinto-caracol, tua obsessão,
só agora te descubro, ah minha força,
instrumento contra meus excessos,
minha  imperfeita perfeição.


Olga Savary e Gioconda Belli tiveram a força de um tempo distinto que muito favoreceu suas criações artísticas, pois no fim do século XX fez surgir uma literatura do feminino juntamente com o movimento feminista em si.  O que se observa em relação à literatura, desde então, é que as mulheres estão mais livres para escrever o que sentem. A liberação do corpo, simultânea à libertação social vem despojando a linguagem, que já não necessita mascarar-se de masculino ou registrar o lamento diante da consciência do gozo reprimido. Aos poucos, as mulheres estão se emancipando dos tabus culturais e das restrições que a sociedade lhe impôs.  A literatura, antes submetida à censura árdua, bem como à opinião pública, da qual é expressão, acha-se livre e conquista cada vez mais liberdade. O problema sexual, devido à influência crescente da psicanálise, vem sendo tratado com uma objetividade cada vez maior. A opção da mulher escritora através da fala da liberação erótica, além de indicar um voltar-se para si mesma, cumpre um papel social, na medida em que traz à consciência (embora de modo ainda reduzido dado o pequeno número de leitores brasileiros) alterações já existentes no âmbito social.  Essa literatura feminina tem como proposta mudar o imaginário social imposto.
  Na poesia “Como tinaja”, Gioconda Belli apresenta o elemento água e a importância do corpo como instrumento de liberação, mostrando semelhanças com a obra savariana no uso das águas e também na posição da mulher como ser atuante no ato carnal de desejo. A “tinaja” abriga o próprio amor, o corpo do amado. Em uma cadência erótica, o poema anuncia a atividade de mulher como agente de sua paixão amorosa:

En los dias buenos,
de lluvia,
los dias en que nos quisimos
totalmente,
en que nos fuimos abriendo
el uno al otro
como cuevas secretas;
en estos dias, amor,
mi cuerpo como tinaja
recogió toda el água tierna
que derramaste sobre mi.
                                                                                  
                Assim como faz Olga Savary, Gioconda Belli nos mostra uma abundância de águas em seus poemas. A relação com os rios e a terra do país é de fundamental importância para o estabelecimento dos símbolos que predominam em sua criação. Observamos em diversos poemas a imagem da árvore que figura em sua poética com notável força simbólica, também imagem central no romance La mujer habitada. No poema “Metamorfosis”, o corpo em forma de árvore é habitado pela mulher, tornando-se apenas um só corpo:

La enredadera
se me está saliendo
por las orejas.
Mis ojos se han convertido
en pistilos móviles
y mi boca está repleta
de flores moradas.
                                                                                  
                A poeta busca imagens e construções líricas onde o erotismo, a sensualidade e a feminilidade negam a opressão social vigente. O processo de metamorfose da mulher em árvore aponta para uma identificação do ser feminino com o elemento natural, como força, de forma a se tornarem uma mesma existência, através do qual a mulher pode se reconhecer. Tais aspectos apontam para os elementos trabalhados por Gioconda Belli nessa primeira fase de sua trajetória, onde a ruptura com as estruturas patriarcais é de fundamental relevância:

Con mis dedos
me toco toda
re-conociéndome entre las hojas
y las ramitas
y las flores que llenan mi boca
y han teñido mis dientes.

                Em “Plenitud”, Belli retoma a imagem da árvore, que agora apresenta sinais do seu amadurecimento pessoal, político e literário. A mulher representada em sua poesia encontra a sua totalidade num íntimo processo de total fusão com o mundo natural.  Ao mencionar a importância de saber onde está, ela mostra também a importância de ser mulher atuante em seu país:

Hoy me siento como un árbol
que se supiera mujer:
Ya no quebradiza rama
sino rotunda intituición,
y la sólida certeza
de saber dónde es que estoy
                                                                                       
            A identificação da mulher com os elementos naturais é constante na poesia de Belli. Em “Huellas”, vemos o papel fundamental da terra natal e de seus contornos físicos e psicológicos como “alimento de rios interiores”. A água como aspecto de criação e renovação é também aqui explorada pela autora:

así quiero quedarme
viendo desde lo alto mi rebaño de volcanes azules
dejando que el paisaje me cresca por dentro
que el lago se me instale en los pulmones
que las nubes se expandan en mi sangre
que me nazcan volcanes en los ojos
que esta visión de mito y epopeya
alimente los rios interiores
con los que me sostendré
cuando abra la distancia su profunda frontera.

            Em “Yo soy”, Gioconda retoma os elementos simples e eróticos de uma mulher que se sabe parte dos elementos naturais. A celebração do feminino, do amor, da mulher como fértil receptáculo da semente criadora, estrutura-se na poesia sem nenhuma culpa:

Yo soy tu cama,
tu suelo,
soy tu guacal
en el que te derramás sin perderte
porque yo amo tu semilla
y la guardo

                Como nos mostra a pesquisadora e professora Angélica Soares (1999), a constância da escrita do corpo em interação com a Natureza, pela criação de imagens que decorrem de um processo de transformação, permuta e cumplicidade, leva-nos a uma leitura ecológica do desejo, que visa frisar o equilíbrio global onde imagens poéticas se relacionam diretamente para uma interação Homem/Natureza e relacionamentos interpessoais mais humanitários.
            Outra questão importante na poesia de Gioconda Belli é o amor e isto nos remete a bela epígrafe de Virginia Woolf no início deste trabalho. O amor é o elemento onipresente em sua escrita. Existe, de fato,

a onipresença do aspecto amoroso em todas as suas vertentes: amor panteísta, amor solidário, amor carnal; não em vão Álvaro Urtecho o qualifica como humanismo erótico, em referência direta à leitura de Eros como insurgência individual e social que  define esta poética, conforme se constata tanto em seus romances (...) como nos livros de poemas.  (MILLARES, 1997, p.303)

            Outro aspecto recorrente em sua poesia é o corpo feminino. Em alguns momentos é celebrado na intimidade, em outros, deixa de pertencer a um só ser e desfaz-se em múltiplos para poder abarcar a grandeza de pertencer a algo maior. Essa ocupação do corpo aparece muitas vezes como um ritual santo de renascimento para fecundar a terra e alimentar as origens, o passado histórico e  a memória.
            Em inúmeros poemas de Belli, elementos bíblicos são apresentados não somente como partes do imaginário cristão masculino, mas como possibilidades de transgressão e transformação. Na poesia “Bíblia”, vemos a Nicarágua como o lugar onde as folhas, que cobrem os amantes, têm a mesma cor daquelas que cobriram os primeiros seres expulsos do paraíso:

Sean mis manos como rios
entre tus cabellos.
Mis pechos como naranjas maduras.
Mi viente un comal cálido para tu hombría.
(...) en las tardes iguales de Nicarágua
con el olor a tierra naciendo,
urdiendo en sus entrañas
la vida verde del trópico lujurioso
como yo, como vos,
como las hojas en que nos envolvimos
cuando nos arrojaron del paraíso.

 
            Belli recria os mitos cristãos juntamente com a escritura do seu último romance El infinito en la palma de la mano. O poema “Mitos” estrutura-se num belo elogio à feminilidade.  Nele temos a imagem de Eva que nos aparece como um ser de iluminação, jamais encarnando a figura de mulher enganada pela serpente ou pecaminosa:

Lo que nadie nos dijo fue que cuando Eva,
avergonzada de su desnudez,
dejó atrás las puertas del paraíso
se encontró con un niño
que le ofreció un manojo de candelas romanas.

            A temática religiosa também é abordada por Olga Savary no poema “Venha a nós o Vosso reino”, onde ela trata o amor através de metáforas. O poema, especificamente, tenta diferenciar o amor-paixão. A começar pelo título que faz alusão direta ao “Pai Nosso”, a única oração que Cristo nos ensinou na terra, temos outros pontos relevantes neste poema que indicam um ato de profanação. O campo semântico do poema nos mostra o barro primitivo (símbolo da criação humana), um jardim ideal que pode ser subentendido como os jardins do Éden, o número sete que é bíblico. O amor é uma espécie de fome que é devorada por outra mais forte: a fome do desejo (da paixão).  O amor da voz poética se resume a uma volta inteira de relógio mais sete horas.  Após dezenove horas amando, o eu lírico retoma o fascinante desejo que sempre a invadiu e já não mais distingue o amor da paixão:

Cheios de imagens os olhos
e de silêncio os ouvidos.
Palavras: quase nada.

A cor do barro primitivo em tua pele,
terra-mãe, vinho de frutos, fogo, água,
em ti se nasce e em ti se morre.

Vais me recolhendo e recompondo
no labirinto-búzio-alto-das-coxas,
presságio de submerso jardim,

Um ideal jardim em que me apresso
e tardo retardar a troca de marés
quando para ti me evado.

O que é amor senão a fome rara,
o susto no coração exposto
que como a chama ou a água devora,

é devorada, que desdenha a mente
por uma outra fome, vago pasto,
água igual a fogo, fogo como lava?
Amor foi uma volta inteira de relógio mais 7 horas.
Amor, chega de gastar teu nome;
Agora arde.

            Ao tratarem questões religiosas, as autoras também estão afrontando o poder e toda forma que o represente. A religião ainda é uma grande espécie de doutrina que não se vê desvinculada de questões intrínsecas de poder. Ao se rebelarem ou falarem de religião, ainda uma espécie de tabu constante em nossa sociedade, elas estão pondo em prática o enfrentamento necessário à libertação totalitária.  Para conseguir a atenção para si é necessário descobrir no desejo a verdade de si mesmo.  Para Foucault, buscar essa identidade pessoal gera poder, pois não há nenhum sujeito sem noção de poder. Prazer e poder reforçam-se mutuamente.  No primeiro livro de História da Sexualidade, o autor define poder da seguinte forma:

(...) Dizendo poder, não quero significar o poder, como um conjunto de instituições e aparelhos que garantem a sujeição dos cidadãos num determinado estado. Também não entendo poder como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não entendo o poder como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma de lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas da sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1984, p. 88-89).


            As obras de Savary e Belli não se dividem em traços específicos entre prosa e poesia, mas estabelecem uma continuidade e um movimento permanentemente poético entre elas. Para as autoras não existe uma cisão entre suas obras. Sendo assim, as temáticas, imagens e símbolos que vemos nas crônicas de Savary ou nos romances de Belli podem ser encontrados na produção poética de ambas. Enquanto cronista da revista masculina “Ele & Ela”, na coluna com o sugestivo nome de “Página 69”, nos anos 90, Savary nos fala eroticamente de uma relação homem-bicho, temática forte e permanente em sua criação poética:
                                      Aquele olhar...
Conhecia o gosto da palavra medo, conhecia o cheiro da palavra medo, o  som   da palavra não tendo primazia sobre ela. Tinha a vocação dos abismos — e não sabia. Ainda não entendera ao certo se a possibilidade maior estava no primitivo, nas coisas primitivas, ou no requinte. Porque fundamental era o mistério, e mistério nos dois havia.  Ela estava na restinga, o capim chegava-lhe aos tornozelos como     poderia atrevidamente tocar-lhe o alto das coxas, o mar vinha na salsugem até seu corpo numa espécie de andar como o coleante andar das serpentes.  Nunca vira olhar mais sensual, mais direto, mais provocador e animal do que esse olhar úmido e duro a um só tempo, cheio de desejo dela, mas sem ternura alguma: sou teu inimigo, te matarei de prazer e não terei piedade.  O olhar dourado do abismo, o olhar cor-de-mel-da-paixão-puramente-animal-sem-a-menor-ternura, urgente, na restinga.
Homem algum a tinha olhado  assim antes, tão friamente, com essa frialdade de posse.  De imediato, esse olhar criou um elo quase arquetípico entre os dois, uma cumplicidade. Ninguém jamais a  tinha  olhado  assim   e   assim  penetrado esse ponto perdido de sua consciência de ser também, súbita e violentamente, um animal, com esse magma a rugir nas entranhas como um animal no cio.
Como teria ele entrado de seu inconsciente para a clareira de sua consciência? Depois de Gamiane?
Este olhar: a figuração de um sonho? Apanhada na armadilha, os pontos nevrálgicos da paixão em seu corpo — os pés em primeiro lugar, quase oriental que era, a nuca, o longo do dorso, a parte de fora das ancas, o interior das coxas, a vulva -  foram tomados como uma fortaleza de assalto  por  este  olhar.   Toda uma sarça ardente, sentia-se também um animal. Sua consciência se esvaía, estranha e febril, como uma rápida perda da memória. Nunca tivera sido tão fêmea como então, refletida nesse olhar. Feras agora, os músculos de ambos estavam retesados, possessos.  Sua sede?  Um castelo de águas? Só abrasamento e fúria essa atração. Bode, planto em ti um jardim de crinas e de espantos.
O olhar mais sexy que tinha visto. O olhar dourado do abismo. E era de um bode 10.
        
 Considerações Finais
           Ambas as poetas falam da alegria e da luta de serem mulheres, combatendo os estereótipos machistas da sociedade. Desfazendo o “ideal regulatório” definido por Foucault em sua “hipótese repressiva”, a mulher escapou das amarras do poder doutrinador masculino, demonstrando que também merece ser tratada com respeito. A democratização da vida sexual estabeleceu o aparecimento de um todo social mais harmônico e satisfatório. Somado a isso, podemos acrescentar alguns outros implementos, como o surgimento da pílula anticoncepcional, em plena década de setenta, que contribuiu para que o sexo não fosse encarado apenas como mais uma questão moral, mas também de bem-estar e de prazer. Por essas razões, o corpo da mulher tornou-se local do desejo, do mistério e da procriação que a faz gerar outro corpo e também abrigar seus desejos. Essa é uma questão importante para se tratar a visão do erotismo na escrita feminina. Há os que consideram a existência de uma criação feminina em total relação com o corpo, tornando essa escrita muito própria e peculiar. O corpo entra nesse contexto erótico como arma de combate, como forma de expressão da mulher que o habita e quer dispor dele integralmente.  O que ela escreve, portanto, é uma expressão de seu conhecimento e daquilo que vivencia, uma vez que devemos ter sempre muito clara a concepção de que a linguagem é um modo de produção que não é neutro, inocente ou natural. Ela se engaja em uma intencionalidade e ocupa lugar privilegiado na manifestação de uma ideologia, de modo que é imprescindível estarmos conscientes da relação da linguagem com o conhecimento e com a cultura. 
Olga Savary e Gioconda Belli foram as duas poetas analisadas em nosso trabalho no âmbito do erotismo. As poesias de ambas tiveram uma função bastante pragmática, fazendo cumprir certo caráter social da mulher que surgia na sociedade nos anos oitenta e no feminismo que voltava com força.  Vemos a mulher, que o eu lírico das poetas representam, sedentas de sexo e enlouquecidas por um desejo animal desenfreado. São mulheres livres. Elas saem de uma postura dominada para atuarem no sexo, assim como a mulher na sociedade sai de uma postura dominada para ir à busca de sua própria vida (e não mais de uma vida criada pelos homens para ela). “Liberdade” é a palavra que melhor define o momento social dessa mulher que busca pelo novo, mulher que começa a se descobrir como cidadã de respeito, dona de si mesma. 
Enfim, as duas escritoras encontram, cada uma a sua maneira, meios de desconstrução do imaginário feminino em suas sociedades.  Foram pioneiras no assunto, tiveram a iniciativa de mostrar que as mulheres possuem desejo e necessidades sexuais, numa época em que poucas artistas ousaram fazê-lo através de textos literários.  Essa desconstrução acompanhou a nova mulher que começava a se formar no seio social: uma mulher que passou a levantar a cabeça e ia à luta sempre que precisava. Com isso, fizeram do erotismo uma arma de combate eficaz contra a visão pura e casta que a sociedade atribuía à mulher.  Cientes de seu desejo, seus corpos não só se tornaram lugar desse desejo e dessa angústia, mas, também, um espaço mais apropriado para desencadear as mudanças ensejadas. O erotismo foi o passo necessário para inúmeras possibilidades que seus textos corroboram.

Referências  Bibliográficas
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