DA LITERATURA E DAS DELICADEZAS DA LEITURA

RESENHA:
Minhas Tardes com Margueritte (La tête en friche, 2010 / França). Direção: Jean Becker. /Roteiro: Jean Becker e Jean-Loup Dabadie; Elenco: Gérard Depardieu, Gisèle Casadesus, Maurane. Duração: 82 min.

DA LITERATURA E DAS DELICADEZAS DA LEITURA
Rodrigo da Costa Araujo [i]




“ [...] A escrita vem como o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida”.

[Marguerite Duras Escrever. Ed. Rocco, p. 47. 1993]

“[...]  escrever é de certa forma fraturar o mundo (o livro) e refazê-lo”.

[BARTHES, Roland. Critique et  vérité. Paris. Seuil. 1966. p.76].






            Uma tarde, uma praça, alguns pombos, dois sujeitos completamente distintos e vários encontros mediados pela leitura que mudarão completamente a vida de duas pessoas. Este é o resumo de Minhas Tardes com Margueritte (2010), filme de Jean Becker. A mãe insensata, a infância infeliz de Germain, os amigos no bar que o chamam de idiota, sua namorada apaixonada ou mesmo os sobrinhos de Margueritte são apenas pretextos para o que realmente importa nessa trama. O amor, a cumplicidade, a amizade ou a leitura que surgem entre os dois, a partir de conversas triviais e leituras de romances conhecidos como A Peste, de Albert Camus instigam reflexões maiores.
            Gérard Depardieu é Germain Chazes um homem de coração imenso que chega a ser ingênuo, mas alguma dificuldade intelectual visível. Nunca completou o ensino básico, lê com muita dificuldade e sem fluência e não tem a capacidade de perceber as entrelinhas das relações humanas. É considerado por todos um idiota completo e só consegue carinho de Annette, sua namorada, que vê nele algo mais do que a aparente confusão. Uma tarde, ele encontra em um banco de praça a senhora Margueritte, vivida por Gisèle Casadesus. Frágil, doce e com uma paciência imensa, a simpática senhora passa a trocar ideias com aquele homem enorme, ensinando-lhe e lendo para ele romances que lhe apetecem. Desses encontros surge uma amizade indissolúvel que ajuda Germain a encarar a vida, e ele mesmo, com outros olhos.
            Baseado no livro de Marie-Sabine Roger, o roteiro do próprio Jean Becker, com Jean-Loup Dabadie constroi bem esses momentos, mesclando a rotina de Germain em casa, com os amigos, com a noiva, ou com a mãe descompensada, em flashbacks de sua infância, sempre em um tom acima do natural, divertido, para construir com leveza uma memória de vida desprezada, mas feliz. Mas, quando ele está com Margueritte na praça, o ritmo da trama muda, fica mais agradável, com menos piadas, com toques de delicadeza. As descobertas e risadas surgem da imaginação de Germain para as histórias que ela conta. Essa imaginação é construída com imagens em preto e branco, o que instaura sentidos de uma sensação irreal, até porque essas recordações literárias do personagem exageram as palavras que ouve.
            Nesse filme, mais uma vez, o ato de ler não corresponde unicamente ao entendimento do mundo do texto, seja este escrito ou não. A leitura - e todos os desmembramentos da literatura, nesse caso -, exige mobilizar o universo de conhecimento do outro – o leitor – para atualizar o do texto e fazer sentido à vida neste mundo, que é o lugar onde realmente este leitor está.
            Para que ler? Para fazer prova? Para passar em algum concurso? Nessa narrativa, extremamente sensível, o leitor/espectador vai perceber que não. Nela serão problematizados aspectos como: ler a vida, deixar-se ler pela literatura. Ler para ampliar as perspectivas, para associar ideias, para reinventar o mundo a partir da condição pessoal e das relações com as pessoas - independentemente, das idades delas.
            Quem lê, - reforça o filme-, observa desde o conteúdo veiculado, as delicadezas que passam despercebidas, as mensagens sublinhares, até os possíveis interlocutores, as vozes presentes na enunciação e o papel social que os personagens representam, as ideologias postas, os argumentos, as intertextualidades latentes ou explícitas, as escolhas das palavras e seus efeitos no discurso. Enfim, ler não é improviso.
            O filme também reforça que, o papel da memória na constituição de uma (inter)subjetividade, da recepção e seus efeitos, do exercício interativo que dá sustentação ao jogo da intertextualidade - provoca uma fruição que passa, inclusive, pela descoberta de intertextualidades - e de ética da leitura/literatura. Ele, de certa forma, além de falar da memória afetiva e das relações do afeto com a literatura, instiga pensar a leitura ou a literatura de outra forma, na formação cultural e ética das pessoas.
            Definitivamente, a leitura, muito mais que mero processo de decodificação, é como afirma o crítico francês Roland Barthes:

“Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar o obra fora de qualquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário que um puro leitor, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque (como indica o exemplo de Proust, amante de leituras e de decalques). Passar da leitura à crítica é mudar de desejo : é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Mas, pelo mesmo acto, é também remeter a obra para o desejo da escrita, que a gerou. Assim, gira a fala em torno do livro : ler, escrever, de um desejo para o outro caminha a leitura. Quantos escritores não escreveram por terem lido ? Quantos críticos não leram para escrever ? Aproximaram os dois bordos do livro, as duas faces do signo, para que daí saísse uma só fala. A crítica é apenas um momento dessa história em que entramos e que nos conduz à unidade - à verdade da escrita " (BARTHES, 1966, pp. 78-79).

            Minhas Tardes com Margueritte é um encontro de sujeitos em distintas fases da vida com a literatura. Uma trama amorosa, como ressalta o poema final. Uma história delicada com a leitura e tudo que ela proporciona. Por isso, definitivamente, esse filme é um elogio à literatura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARTHES, Roland. Critique et  vérité. Paris. Seuil. 1966.

DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro. Rocco. 1994.

YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba. Aymará. 2009.





[i] Rodrigo da Costa Araujo é Doutorando em Literatura Comparada pela UFF, Mestre em Ciência da Arte, também, pela UFF, professor de Teoria da Literatura, Literatura infantojuvenil e Arte Educação dos cursos de Letras e Pedagogia da FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Coautor das coletâneas Literatura e Interfaces e Leituras em Educação lançadas recentemente pela Editora Opção. E-mail: rodricoara@uol.com.br