NARRATIVAS CLÁSSICAS INFANTIS: CONSTRUINDO UM LEITOR AUTÔNOMO

Izaura da Silva Cabral
CAPES/UFRGS


As narrativas estudadas Alice no país das maravilhas, O mágico de Oz, Narizinho Arrebitado e As aventuras de Tom Sawyer são narrativas que se tornaram clássicas, pois ultrapassaram os limites cronológicos do tempo e possuem traços comuns que contribuem para a construção de um possível leitor. Dessa forma, partimos do princípio de que o leitor faz parte da narrativa, e que ela somente se concretiza no ato de leitura. Eco pontua que numa história sempre há um leitor e que ele “é um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma história, com também da própria história.” (1994, p. 7). Mesmo que a narrativa reconstrua um mundo, ela pede ao leitor que preencha suas lacunas:

Qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas. Afinal, todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho (ECO, 1994, p. 9).

Deste modo, de acordo com Cury (2001, p. 43), todo texto tem seus vazios, aberturas a serem preenchidas pelo leitor com variadas significações. E quem nós estamos chamando de possível leitor, Umberto Eco (1994, p. 15) denomina de leitor modelo, e afirma que todo texto de alguma maneira prevê esse leitor, ou seja, todo texto, no seu processo gerativo, espera certo leitor: “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (Ibidem, p. 15).

A partir dessa integração texto-possível leitor, poderemos supor aspectos da trama textual que desafiam o leitor no processo de construção de sentido, e que, por conseqüência, poderão contribuir para o seu crescimento ou desenvolvimento enquanto ser em formação. Conforme Mendonça (2005), a literatura tem um papel significativo no nosso cotidiano. Para o possível leitor infantil, esse universo imaginário é um portal para o sonho, para a fantasia, tão essencial para o homem. A respeito da narrativa, ela pontua que é a reinvenção dos fatos da vida.

2 O leitor e o narrador solidário

O leitor configurado nessas narrativas aprecia a surpresa, a novidade. O narrador, distante dos fatos narrados, não se interpõe entre o leitor e o texto, pelo contrário, propõe um distanciamento, e o leitor obriga-se a compreender a história, a partir das poucas indicações dadas.

Apesar desse distanciamento, o leitor tem seu posicionamento orientado pelo narrador, que transmite e interpreta a visão de mundo das personagens, enquanto mostra as ações. Em Alice no país das maravilhas, o narrador descreve sensações e sentimentos, penetra no íntimo das personagens e o leitor atua como acompanhante das ações: “Os pássaros grandes queixavam-se amargamente de que as balas eram tão miúdas que não davam nem para sentir o gosto. Os pequenos engasgavam-se e era preciso dar-lhes tapas nas costas para desengasgarem” (CARROLL, 2005, p. 30). O trecho mostra o que esses animais pensam, guiando a compreensão do leitor.

Os narradores assumem postura democrática ou, por não se darem conta da complexidade de algumas personagens, cedem-lhes a voz e elas assumem a narração. Quem vive a ação pode ser o porta-voz dos fatos, propiciando mais veracidade ao relato, e ainda priorizando a liberdade. A apresentação de diferentes perspectivas de um mesmo fato pode ser entendida como um ato de solidariedade ao leitor. Além disso, quando outras personagens contam suas histórias, podemos dizer que o leitor encontra brechas que lhe permitem sair da trama da narrativa. Em Alice no país das maravilhas, o narrador cede a palavra, por exemplo, a Tartaruga Falsa, que conta a sua história; em As aventuras de Tom Sawyer, Huck relata a Tom o que está acontecendo com ele, a partir do momento em que a viúva decide transformá-lo em uma criança bem educada; em O mágico de Oz, o Homem de Lata é uma das personagens que assume o discurso para descrever sua história; em Narizinho Arrebitado, Dona Aranha, através do diálogo com Narizinho, conta-nos a sua vida.

Em Narizinho Arrebitado, o leitor necessita de orientação do narrador para que conheça e pense sobre a vida de uma senhora idosa que vive em um Sítio: “Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto...” (LOBATO, 2005, p. 7). No entanto, o narrador, que conhece o interior das personagens, além de orientar, surpreende o leitor: “Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas” (Ibidem, p. 7). Esses aspectos demonstram a visão que os narradores têm do que se passa com as personagens, monitorando a concepção que será formada por quem lê.

O narrador supõe que, a partir do momento em que as personagens são apresentadas detalhadamente, o leitor reconhece alguém muito parecido com ele, que sofre as mesmas inquietudes, e, a partir dessa identificação, apreende melhor o sentido do relato. O leitor mirim poderá encontrar personagens que não seguem padrões de bom comportamento, representados por seres do mundo fantástico, ou personagens intermediárias como Emília, que, por ser uma boneca, está livre das obrigações sociais impostas à criança. Esse tipo de personagem poderá representar os impulsos reprimidos que crianças como Alice podem trazer, uma vez que podem estar muito apegadas ao normativo.

Assim, ao se deparar com estas narrativas, o leitor encontra algo que lhe é útil. Lembramos que, de acordo com Benjamim (1987, p. 200), a narrativa tem em si uma dimensão utilitária, que pode aparecer de uma forma latente. Essa utilidade pode consistir num preceito moral, numa sugestão prática, num provérbio ou num princípio de vida, e o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Ao encontrar esses conselhos, o leitor infantil pode adquirir valores que constituirão um padrão de comportamento assentado na generosidade, na tolerância, no respeito, na solidariedade. A partir desses valores, o leitor poderá apresentar virtudes que se erguem contra a intransigência e a opressão.

Mesmo assim, esse dar conselhos parece ao leitor algo inadequado, já que as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Portanto, o leitor se depara com um narrador que verbaliza a comunicação narrativa de uma forma que ele se encontra nela e assim alcança a sabedoria que lhe será útil. Dessa forma, aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão ao leitor sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, o narrador necessita saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). Narrador e leitor interagem, são cúmplices, e o conselho tecido na substância viva da existência passa a ter um nome: sabedoria (Ibidem, p. 200). 

Em relação a esse aspecto, uma das narrativas diferencia-se das demais, pois a personagem protagonista, em As aventuras de Tom Sawyer, discorda dos moralismos apresentados pelo seu narrador. O leitor dessa narrativa é, assim como a personagem Tom Sawyer, consciente do artificialismo das convenções, e pode lutar contra elas. Ou seja, a presença de posicionamentos díspares e intrigas desafiam o leitor.

O leitor, muitas vezes, não precisa refletir, já que encontra personagens e situações que se revelam diretamente a ele sem a intervenção do narrador, mas deixa que os fatos atuem sobre a sua sensibilidade, através do discurso direto, privilegiado pelas narrativas, com sua capacidade de comunicação em reproduzir as palavras das personagens sem subordiná-las às do narrador. Assim, a utilização progressiva desse recurso aproxima-se da estrutura dialogada. Esse modo de expressão lingüística acentua a situação vital de cada uma das protagonistas, que são descritas em uma linguagem mais próxima da vida real e que se entregam ao leitor em um jogo afetivo.

Possivelmente há uma simpatia do leitor em relação às personagens, devido à perspectiva eleita pelo narrador para apresentá-las. Em um determinado momento do relato de Alice, já no País das Maravilhas, depois que todos os animais se recolhem, e a menina fica só, sente-se desanimada e começa a chorar. O narrador mostra-se sensível ao sofrimento da personagem, ativando a simpatia do leitor.

Dessa maneira quem lê é interlocutor dos narradores dos clássicos estudados. Várias vezes, os narradores fazem referências explícitas a ele, buscando sua cumplicidade, através do tom coloquial, que pode contribuir para o entendimento do texto. De acordo com Ana Maria Machado, esse coloquialismo funciona muito bem, pois:

o tom narrativo incorpora a segunda pessoa de forma muito clara, alterando-a com a terceira, o que acentua a elaboração de um coloquialismo que funciona muito bem, já que a todo momento o narrador se dirige ao leitor como a um ouvinte (um você que ouve a história do que acontece com eles, mas também toma parte nesses acontecimentos) (2002, p. 118).

Em Alice no país das maravilhas, o leitor é agregado ao texto, e é o narrador que faz a sua inserção, conversa com ele e o aproxima da história, chamando-o de “vocês”. Além disso, a criança questiona sobre o futuro da personagem, como se o próprio narrador já estivesse perturbado com a indefinição: “cada vez caindo mais... cada vez mais fundo... essa queda não pararia nunca?” (CARROLL, 2005, p. 10).

A presença do interlocutor também aparece em O mágico de Oz: “Vocês devem estar lembrados de que não havia estrada e nem mesmo uma vereda que fosse do castelo da Bruxa Malvada até a cidade de Esmeralda.” (BAUN, 2002, p. 97, grifos nossos). Ele insere a figura dos leitores através do vocábulo “vocês”, deixando claro que quem lê também faz parte do ato narrativo. A menina e seus companheiros são tratados pelo narrador, como “nossos amigos”, agregando o leitor ao texto.

Por vezes, os leitores são referidos na primeira pessoa do plural (nós), contribuindo para que tome parte dos acontecimentos. Narrador e leitor são cúmplices, parecem decidir, opinar, questionar sobre o destino das personagens. Dessa forma, o leitor também é partícipe da história em As aventuras de Tom Sawyer, pois há um narrador que partilha com ele uma história, aproximando-o. Quem narra faz pausas no relato para conversar com o seu interlocutor e colocá-lo como parceiro que está construindo uma obra, com poder de conduzir as aventuras das personagens. Para isso, emprega o verbo na primeira pessoal do plural e propõe ao leitor uma cumplicidade: “Vamos deixá-los fumando, e conversando, e contando vantagem, já que não temos mais nada para fazer com ele por ora” (p. 114, grifos nossos).

O texto propõe liberdade para imaginar o final ou para propor outra continuação às histórias, quando o narrador se cala. O leitor pergunta e “depois, o que aconteceu”? Nessas narrativas há sempre a possibilidade de um “depois”, pois as personagens estão aptas para continuarem agindo, já que o leitor conhece seus comportamentos e suas relações e a imaginação tende a persistir em movimento. Além disso, no final dos relatos o narrador sugere ao leitor problemas ou situações a serem resolvidas.

Em razão do que vimos, podemos afirmar que a atuação do narrador em Alice no país das maravilhas, As aventuras de Tom Sawyer e O mágico de Oz traz um diálogo explícito com o possível leitor. Somente em Narizinho arrebitado esse fato não ocorre. O narrador em todos os textos busca a cumplicidade do leitor e media a construção de imagens sugeridas pelo relato.

3 O leitor e a indefinição espaço-temporal

Os narradores das obras mostram-se indecisos em relação aos dados espaciais e temporais. A indefinição temporal das histórias dá mais flexibilidade ao leitor no processo de compreensão do texto. Não há uma limitação da época em que as ações ocorrem e dos espaços. Essa indefinição propõe a atemporalidade das histórias. Mas, apesar disso, aparecem marcas cronológicas que fazem alusão a horas, dias, turnos. Essas marcas sugerem que o leitor seja capaz de relacionar o tempo dos relatos com o tempo da vida real, concebendo-o como verossímel. Há ainda o tempo do sonho das personagens, que para Alice, Dorothy e Narizinho, provoca o deslocamento das protagonistas para outro espaço. A indefinição temporal aproxima o texto do leitor.

O leitor é levado a perseguir brechas das narrativas para completá-las e responde às interrogações propostas, sendo facilmente envolvido pelos relatos, como por exemplo, quando os narradores das obras, por vezes, valem-se de procedimentos que rompem com a cronologia das histórias. Ou seja, o tempo do discurso altera a ordem temporal dos acontecimentos da história. Esses recursos abarcam o leitor e o conduzem à busca por respostas frente aos questionamentos trazidos pelos relatos. O leitor responde aos desafios de um mundo ficcional mais complexo e movimenta-se na temporalidade proposta percebendo o sentido da narrativa. 

Outro elemento temporal presente nas narrativas de Alice no País das Maravilhas, O Mágico de Oz e Narizinho Arrebitado é o princípio da moldura, ou seja, uma história aparece dentro da outra. O leitor percebe essas duas partes através de associações, mas a busca da significação depende da capacidade de percepção e de associação.

O leitor percebe que as aventuras longe de casa são possíveis, que a fantasia é um mundo próximo e ao mesmo tempo distante. A percepção ocorre a partir do momento em que a ausência de marcação temporal não impede que a narração apresente um início - correspondente às vivências familiares que toda personagem possui, que são abandonadas, e o que se seguirá à partida pode despertar uma relativa atenção sobre a personagem que começa a revelar-se através de sua atuação no desconhecido. A apresentação da realidade familiar, para depois deslocar as protagonistas ao reino de fantasia, mimetiza as vivências da criança.

Essa proposta narrativa traz um leitor que se deixa conduzir pelo narrador e é capaz de perceber que o jogo entre espaços familiares versus ambientes desconhecidos nasce da moldura entre as narrativas. Além disso, esse tipo de aventura traz diversão garantida para o leitor. Ana Maria Machado (2002, p. 102) pontua que “todas essas aventuras sempre empolgaram os leitores com a possibilidade de transportá-los a terras exóticas e situações mirabolantes, em que a diversão era garantida”. Desse modo, a moldura funcionaria, no processo de construção de sentido da narrativa pelo possível leitor, como uma ponte entre o universo realista e o fantasioso.

Já em As aventuras de Tom Sawyer, surge um leitor que pode ser mais velho que o das outras narrativas, pois o seu universo não depende mais basicamente da fantasia. Os espaços em que as aventuras desse relato ocorrem são mais próximos da lógica do mundo real, e são reconhecíveis por esse leitor: ruas, casas abandonadas, cemitérios, o rio, a ilha, a caverna. Essa obra mostra também para o leitor, assim como no texto de Lobato, em que a menina divertia-se alimentando os peixinhos, que a criança pode se aventurar, se divertir em espaços familiares.

Esse aspecto mostra que o leitor tem necessidade de ser lembrado de que as experiências que dão intensidade à vida não precisam necessariamente passar longe de casa e que cada pessoa vive uma situação complexa, cada família guarda um drama, cada cidade tem tragédias sociais, cada rua é atravessada por gente que vive dores e alegrias, medos e sonhos. Gente como o leitor. Ou seja, o cotidiano esconde grandes aventuras.

Os aspectos descritivos trazidos pelas narrativas constroem um leitor cuja imaginação é impulsionada, que desenvolve a capacidade de surpreender-se e ampliar sua criatividade através dos estímulos trazidos pela descrição, que alargam a dimensão afetiva da personalidade. A descrição possui uma intensificação semântica pela possibilidade que oferece para representar ações iterativas (que são reiteradas, repetidas) ou incoativas (começo de ação ou estado) que contrastam com a pontualidade das narrações. Predomina o uso do pretérito imperfeito que desde a iteração temporal, procede a fim de suspender o dinamismo da narrativa.

As narrativas trazem um leitor que, ao se distanciar de seu espaço familiar, assim como as personagens, necessita ter um lugar para voltar. Esses textos apontam um leitor que tem a sua habitação, ou a família, como um refúgio, uma segurança. Assim, a presença da casa no início e final dos relatos sugere que ela é o ponto de agregação, um centro de harmonia; a habitação igualmente é um apontador espacial fixo. Também surge um leitor com o mesmo sentimento em relação à terra natal (como no caso de Dorothy que a todo o momento luta para voltar para o Kansas). A sensação de desenraizamento leva o interlocutor à observação de alguns aspectos relativos à sua identidade individual, e o torna capaz de conhecer-se a si mesmo. Por isso, a sensação de completude advém da volta à cidade, à casa de origem, como Alice, Dorothy e Narizinho, que retornam renovadas para os espaços do início do relato.

Nessas obras, o leitor é livre do tempo cronológico que rege o mundo e da limitação dos espaços. A escassez de dados temporais e espaciais promove a liberdade e representa as múltiplas facetas que constituem o mundo da criança.


4 O leitor e as personagens

Se, por um lado, a indefinição quanto ao espaço e ao tempo traz ao leitor infantil maior flexibilidade, por outro, há restrição quanto às personagens, já que elas são descritas minuciosamente. Essa descrição sinaliza a previsão de um leitor iniciante que precisa visualizar as personagens em seus mínimos detalhes e concebê-las como verossímeis para compreender a sua atuação. Porém, somente encontramos a descrição física da protagonista, em Narizinho Arrebitado. Nessa obra, o leitor apenas caracterizaria a personagem psicologicamente.

Em Alice no país das maravilhas, As aventuras de Tom Sawyer e O mágico de Oz, o leitor é capaz de se identificar ou repudiar comportamentos, pois nessas obras, o destaque, quanto à caracterização das personagens, recai sobre suas personalidades, ações e o modo como se comportam. Dessa forma, o leitor percebe traços que contribuem para a concepção das personagens enquanto seres ficcionais que agem em um determinado universo e estabelecem relações parecidas com as que ele vive ou, mesmo que sejam distintas, são relações que ele gostaria ou não de estabelecer.

Do mesmo modo, quem lê faz opções, como no exemplo em que a personagem Tom é apresentada como contraditória. O leitor entra em contradição, ou toma partido com as atitudes da personagem ou se identifica com os padrões morais, que, como em qualquer época, a sociedade impõe, principalmente, à criança. Além disso, essa personagem pode ser percebida como uma criança que, aparentemente, vive longe dos pais e sobrevive em um universo em que a aparência e os falsos moralismos ditam as regras.

As quatro obras trazem protagonistas crianças: um menino e três meninas. Dessa forma, as possíveis leitoras sonham com mundos utópicos, já que suas fantasias as levam a lugares distantes. E os possíveis leitores meninos parecem mais realistas, acostumados ao mais provável, já que os espaços onde ocorrem as suas aventuras são conhecidos do infante (As aventuras de Tom Sawyer). Nas outras obras, os espaços onde as meninas agem é desconhecido, longe de casa (Alice no país das maravilhas, O Mágico de Oz, Narizinho Arrebitado), e o conflito dessas protagonistas é ligado ao sonho. Assim, sonhar contribui para o crescimento da imaginação, que aumenta a visão de realidades. Além disso, para conhecer-se, é preciso experimentar-se, o que pode ser feito por meio da imaginação, por isso os sonhos, mesmo que pareçam impossíveis, são exercícios indispensáveis.

A presença de animais nos relatos prevê um leitor que aprecia a fantasia, que vê amizade nos animais, como Alice e Dorothy. O leitor estabelece relações com esses animais, que se tornam relevantes para ele a partir do momento que se libertam pela fantasia. Os animais comunicam-se com as crianças e também assumem comportamentos humanos, o que pode gerar um processo de identificação do leitor. Em Alice no País das Maravilhas, temos o Coelho Branco, a Lebre, A Tartaruga, etc. Em O Mágico de Oz, temos o Leão, os ratos silvestres, os macacos alados. Em Narizinho Arrebitado, o Besouro, o príncipe Escamado, o doutor Caramujo, Dona Carochinha, a baratinha mais famosa do mundo, Dona Aranha, a costureira, o sapo mais conhecido como Major Agarra.

Assim, as narrativas humanizam animais e objetos, como as cartas de um baralho, bonecos de porcelana, aranhas, e aproximam-se do modo como o leitor dispõe fantasticamente das coisas: um faz-de-conta, onde ele não é obrigado a respeitar a propriedade dos objetos. Ele concebe a oposição real-imaginário, o que é verdadeiro do que é brincadeira, que vai permitir a ele fundar a realidade. O animismo ou o artificialismo podem ser usados como fonte de invenção.

A relação entre adultos e crianças é coerente com o leitor. As personagens adultas aparecem de forma indefinida, mas o leitor sabe que elas existem, como no exemplo de Alice, que, enquanto cai na toca do coelho e não sabe quando conseguirá voltar para sua casa, torce para que “lembrem” de alimentar sua gata. O emprego do verbo na terceira pessoa do plural marca a indefinição dos seres que realizam a ação. Dessa forma, podemos supor que ela não vive sozinha com a irmã.

As outras protagonistas vivem ou estão longe dos pais, são cuidadas por tios, no caso de Tom e de Dorothy, e pela avó, Narizinho. Esse aspecto das narrativas se torna relevante para o leitor, a partir do momento em que a ficção propõe um universo equilibrado, através de representações peculiares de família.

Das estruturas narrativas, surge um leitor que vive harmonicamente em mundo independente. Capaz de perceber que, como os conflitos apresentados são resolvidos na ficção, ele também pode resolvê-los na vida real. As quatro narrativas sugerem que seus leitores se insiram nos conflitos de modo crítico e transgressor, com bom senso e inteligência, e que tenham capacidade de apreender que, com soluções aparentemente simples, conseguem resolver problemas. Podemos dizer que essas narrativas trazem o otimismo, e o possível leitor pode liberar-se do pessimismo.

As personagens assim como o leitor das narrativas têm necessidades básicas de um ser humano, como a busca da identidade, expressada em Alice no país das maravilhas, da racionalidade, como o Espantalho, em O mágico de Oz, da sensibilidade, demonstrada pelos sentimentos do Homem de Lata, da aventura, em As aventuras de Tom Sawyer. A presença da diversidade de anseios humanos veiculados na criação literária é tão complexa, fascinante, misteriosa e essencial, quanto a própria condição humana. Essas narrativas constroem um leitor que não aceita o acaso, conforme observamos pelo comportamento das crianças protagonistas, que questionam sobre elas mesmas e o sobre o mundo que as rodeia. Em razão disso, essas indagações agradam ao leitor, uma vez que simulam a sua condição humana, na busca por conhecer a si, aos outros e ao universo em que está inserido.

O leitor tem necessidade de ordenar o mundo, por isso, as narrativas trazem aventuras em que as crianças protagonistas encontram muitos opositores. Alice tem como grande inimiga a Duquesa; Tom Sawyer enfrenta meninos bem comportados e alguns bandidos com quem se envolve; Dorothy encontra bruxas, seres estranhos que buscam impedir a sua caminhada; Narizinho tem como principal oponente Dona Carochinha, que não simpatiza com a menina. Os opositores surgem ao leitor mirim como uma representação dos obstáculos que eles encontram. Dessa forma, a convivência com os oponentes promove o exercício da tolerância, facilita a convivência entre os humanos, constituindo uma possibilidade de amainar sentimentos de raiva e de agressão. As oposições são aceitas pelo leitor como expressões em simetria e complementaridade na vida real. Algumas são aceitas como necessárias, já que dizem respeito à diferença entre a lógica das relações pragmáticas e a dos vínculos afetivos.

É necessário que o leitor realize associações, pois, ao se deparar com personagens infantis de As aventuras de Tom Sawyer, as quais adotam caracterizações e comportamentos tipicamente adultos, como o vagabundo, o bêbado, o pirata, o detetive, o político, ele agrega o que conhece da conduta adulta com a imitação feita pelas personagens crianças compreendendo que as ações das personagens não passam de uma brincadeira de faz-de-conta.

Assim, podemos dizer que há a inserção da voz infantil nas obras. Porém, transformar a criança no centro da ficção, não isenta a narrativa literária infantil de continuar alvo de indagação a respeito do seu papel enquanto transmissora ou questionadora de normas. A resposta vai depender, sobretudo, da maneira como os recursos da linguagem serão manuseados na organização do texto, do poder do narrador sobre a voz da personagem, da valorização de determinada variação lingüística e da influência do emissor do relato sobre o sujeito da ação. Enfim, os recursos literários empreendidos na narrativa infantil serão utilizados conforme o tipo de relação estabelecida entre narrador e leitor, evidenciando, assim, um processo autoritário ou emancipatório.

5 O leitor e a necessidade da arte

A linguagem literária das narrativas propõe um leitor emocionado com a arte. Assim, a narrativa, entendida como arte, torna-se necessária para o homem. Ernest Fischer (1983, p. 12-3), quando discorre sobre necessidade da arte, argumenta que o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo, quer ser um homem total. Além da parcialidade de sua vida individual, almeja uma plenitude que busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação. Por isso quer relacionar-se com algo mais do que o “Eu” que, sendo exterior a ele mesmo, não deixa de ser-lhe essencial. O homem anseia por absorver o meio que o cerca, integrá-lo a si mesmo. Dessa forma, o leitor poderá buscar nesses textos situações, seres, relações que podem ser semelhantes às que vive, mas que, ao mesmo tempo, são distintas, para que possa assimilar o novo. O interlocutor deseja unir através da arte o seu “Eu” limitado com uma existência humana coletiva, tornando mais social a sua individualidade, assim:

o desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude ao se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo como um todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e idéias (p. 13).


Na arte, como as narrativas estudadas, “os laços da vida são temporariamente desfeitos, pois a arte cativa de modo diferente da realidade, e este agradável e passageiro cativar artístico constitui precisamente a natureza do divertimento, a natureza daquele prazer que encontramos até nos trabalhos trágicos.”(Ibidem, p. 14). Em razão disso, em seu contato com essas obras, o leitor poderá se divertir e sentir prazer ao mesmo tempo.

Ernest Fischer (1983, p. 16) aponta uma das razões de as narrativas clássicas, sendo comparadas a uma obra de arte, continuarem vivas: para ele, “há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente”. A construção da identidade, a racionalização, a necessidade de “sentir” os outros, o encontro com valores como a amizade, o companheirismo, o medo são temas da arte. Além disso, outra razão de sua vivacidade é que trazem o momento cultural de uma determinada época, exercendo um encanto em seus possíveis leitores mostrando um tempo que jamais voltará (Ibidem, p. 16).

Se a arte pode ser entendida como representação de uma época que jamais voltará, podemos dizer que o tempo a condiciona e ela traz um momento histórico além de criar um momento de humanidade:

toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa  a humanidade em consonância com as idéias e as aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento (Ibidem, p. 17).


A arte também surge como um auxílio para a conquista do real, ou seja, pode exercer um papel de mediação: “a arte em sua origem foi magia, foi um auxílio mágico à dominação de um mundo real inexplorado” (Ibidem, p. 19) e ainda esclarece e incita à ação (Ibidem, p.20). Em razão disso, ela é necessária “para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” (Ibidem, p. 20). E, dessa forma, o leitor, ao ler as narrativas clássicas, encontra nelas algo que sozinho não pode apreender ou buscar em forma de esclarecimentos, através de situações vividas pelas personagens, e pode, através desse auxílio, conhecer melhor o mundo e, a partir disso transformá-lo.

 6 O leitor e a estética do estilo 

Os recursos estilísticos de uma narrativa direcionam-na a determinado público. O leitor, como receptor que emerge das narrativas, possui um repertório de signos comum ao emissor. Em razão disso, para que a comunicação literária se concretize, e, como aponta Reis (1995, p. 135), se desenvolva de forma harmoniosa, é necessário que se processe a transmissão de uma mensagem mais ou menos complexa, estruturada a partir de um repertório de signos que sejam, pelo menos, parcialmente comuns ao emissor e ao receptor. No ponto de vista da literatura para crianças e da capacidade que esse leitor tem para assumir os significados, convém ter em conta o dinamismo que o significado traz e os componentes que integram ao significado como conteúdo semântico.

Nas obras enfocadas, o leitor diverte-se com o humor e emociona-se com os relatos. Dessa forma, a leitura convida ao gozo, ao abandono. André Compte-Sponville (2000, p. 229) aponta o humor como uma virtude, já que para ele toda seriedade é condenável. O humor é uma proteção contra a seriedade e, além do prazer que sentimos com ele, traz uma grande estima em relação ao elemento que o produz. Dessa forma, podemos dizer que o humor nessas narrativas contribui para uma relação afetuosa entre texto e leitor, em que a diversão é garantida.

Nessas narrativas, o estilo humorístico é gerado pela linguagem simbólica que exercita a atividade de pensar, e, a partir deste pensar, a criança leitora tem capacidade para categorizar os símbolos que funcionam como referência e se adentram na compreensão do texto. Ao compreender o texto, o leitor realiza processos de denotação e de conotação válidos e toma posse de elementos mínimos, realizando uma incursão no sentido da obra a partir dos signos fundamentais do relato.

Além disso, o leitor encontra as palavras que são usadas como se fossem brinquedos ou ele percebe que às vezes errando se inventa, como em Narizinho Arrebitado, quando Emília cria, por exemplo, a palavra “liscabão”; ou ainda acrescentado também se inventa, como quando o narrador dessa mesma obra traz a palavra faminteza. O texto sinaliza ao leitor que brincar é bom, e que se pode brincar com as palavras. Ou seja, que elas podem ser utilizadas com liberdade e, principalmente, com criatividade. As narrativas que apresentam esses procedimentos de linguagem prevêem um leitor capaz de se surpreender com o novo, mas que também é capaz de associar o processo de construção das novas palavras com o surgimento de um novo significado assumido por elas a partir das invenções propostas pelos textos.

Aliás, esse leitor crê na fantasia, dessa forma, outro recurso estilístico é a presença do non-sense, de modo que o absurdo contribui para a identificação do leitor, a partir do momento em que o contra-senso traz situações anômalas. Este recurso faz parte da fantasia, quando tudo se torna possível. Os fatos estranhos ocorridos com Alice são aceitos pelo leitor, pois, na fantasia, é possível ser grande e continuar pequeno, conversar com animais e com seres estranhos, viajar por mundos diferentes.

Também o leitor possui liberdade de expressão, a partir do instante em que os textos literários não trazem um modelo fechado, propõem a subversão através da ironia, já que ela permite ao leitor uma série infindável de interpretações que podem levá-lo a vários significados. Além disso, muitos dados trazidos pela linguagem das obras ficam omitidos e o leitor imagina-os. Por exemplo, quando Alice compara algumas situações que vive com histórias lidas, mas não as cita. Tendo a oportunidade de imaginar que tipo de livro a menina gostaria de ler.

A intertextualidade presente nas obras prevê um leitor que percebe a utilização do diálogo entre os textos, mesmo que eles sejam apresentados de uma maneira diferente, sob outro ponto de vista. Nem sempre essas relações intertextuais acontecem da mesma maneira. Em As Aventuras de Tom Sawyer, há várias referências a outros livros, inclusive à Bíblia; muitas das aventuras das crianças dessa obra são inspiradas em suas personagens prediletas. Em O mágico de Oz, não encontramos referências intertextuais. Mas já em Narizinho Arrebitado, a protagonista em sua viagem pelo fundo do oceano encontra figuras como Pinóquio, Dona Carochinha, além de o narrador empregar a mesma proposta estrutural de narrativa de moldura presente em Alice no país das maravilhas e O mágico de Oz. Esses textos exigem que o leitor seja capaz de estabelecer relações, com o auxílio da sua experiência na leitura, a fim de compreender o sentido do relato.

A atividade intelectual trazida por essas narrativas não é puramente teórica, porém coexiste com outras realidades, gerando a reflexão, o conhecimento científico e técnico, a incidência afetiva, entre outras. Tudo isso em uma dimensão cultural que possibilita a organização de dados, o deleite da linguagem, a compreensão da mensagem e o acúmulo de elementos que servem de engrenagem positiva para uma percepção equilibrada da tarefa intelectual e criativa.

6 O Leitor entre a fantasia e a realidade

Para Zilberman (2005), os livros Alice no país das maravilhas e Narizinho Arrebitado e, nós acrescentamos, O mágico de Oz, mostram mundos bem distintos, pois há aquele em que a personagem, via de regra, uma criança como o leitor, vive no início do relato uma rotina sem graça, dominada pelos adultos; e o da fantasia, em que a protagonista se desloca para o desconhecido, vive grandes aventuras, descobre-se como ser humano e volta para casa renovada. As duas realidades  a dominada pela fantasia, de um lado, e a rotineira, de outro  comunicam-se, proporcionando à personagem e ao leitor um trânsito livre entre elas.

Muitas vezes, nesse contraponto entre os dois mundos, o da fantasia torna-se mais atraente para o leitor infantil, pois tem aventuras, embora mais perigoso, uma vez que nele há seres encantados, bruxas malvadas, que procuram a todo o momento interromper quem passa pelo seu caminho. Nesse universo fantástico, porém, a criança revela-se um herói, defende valores positivos, vivencia a amizade e o amor. Então, a criança que lê percebe que a fantasia soluciona problemas, é superior ao contexto cinzento da rotina e da experiência doméstica (Ibidem).

O mundo do leitor é o da experiência doméstica, e a leitura dessas narrativas o conduz a outros universos, mais apetecíveis. Percebemos que as protagonistas, valendo-se da fantasia e da imaginação, resolvem seus problemas e, ainda por cima, colaboram com a felicidade dos outros (Ibidem). Nas narrativas clássicas infantis, a imaginação não tem limite.

Já que a imaginação não tem limites nessas obras, o aspecto lúdico delas propõe um gozo estético ao mesmo tempo em que sugere uma atividade livre e gratuita em que a criança se diverte com o livro, mediante uma combinação entre elementos que configuram a criação literária. É possível que, dessa forma, o leitor construa o sentido de evasão, de distração, de brincadeira, de gozo, mediante a qual poderá liberar suas agressividades, superar situações rotineiras. As narrativas atuam sobre a personalidade da criança, fazendo com que ela avance para um nível superior de desenvolvimento, ou seja, que supere a zona de desenvolvimento real.

A fantasia é um alargamento do real e, conseqüentemente, da zona de desenvolvimento proximal, ou seja, os clássicos infanto-juvenis podem contribuir para a construção de seus possíveis leitores. As obras desafiam o leitor a criar, pois a fantasia torna-se um adjuvante do qual a personagem, assim como as possíveis crianças leitoras, não depende existencialmente, mas que a auxiliam a vencer as dificuldades. A situação ficcional proposta desencadeia a imaginação e amplia as vivências do leitor.
                                                                            
A fantasia presente nessas narrativas desempenha um papel mediador, a partir do momento em que o leitor é capaz de entrar na realidade de uma maneira mais divertida, e, portanto, mais saudável. Também, essas narrativas trazem personagens e situações fantásticas que revelam um leitor assombrado, estimulado a brincar de faz-de-conta e, com isso, melhor desenvolvido. Os relatos reúnem, materializam, traduzem o mundo amplo dos leitores que desejam algo, como tornar-se invisível, trocar de tamanho, estabelecer comunicação com animais e seres inanimados, dominar as leis da natureza. Quer dizer que o leitor pode transformar o universo e transformar-se a si mesmo, segundo sua vontade.

Podemos dizer que o faz-de-conta das narrativas não é uma simples recordação de impressões vividas, mas uma reelaboração criativa. Esse aspecto constrói um leitor capaz de combinar dados da experiência, a fim de construir uma nova realidade, correspondente a suas curiosidades e necessidades. O leitor, através da fantasia, nutre sua imaginação e a aplica em ações que lhe reforçam as estruturas e alongam os horizontes para crescer, através do contato com um ambiente rico, trazido pela ficção literária. E isso ocorre, justamente, porque a fantasia trabalha com dados da realidade.

Para Coelho (1991, p. 227), o sucesso da obra de Lobato, entre os pequenos leitores, decorre, sem dúvida, de um fator decisivo:

eles se sentiam identificados com as situações narradas; sentiam-se a vontade dentro de uma situação familiar e afetiva, que era subitamente penetrada pelo maravilhoso ou pelo mágico, com a mais absoluta naturalidade. Tal como Lewis Carroll fizera com Alice no país das maravilhas, na Inglaterra de cinqüenta anos antes, Monteiro Lobato o fazia no Brasil dos anos 20: fundia o Real e o Maravilhoso em uma única realidade.


Essa fusão cria um leitor que não estranha a presença de personagens com poderes mágicos e nem mesmo suas ações são compreendidas por esse leitor. A magia está presente no mundo da figuras ficcionais como se fosse normal e natural. Os seres munidos de poderes mágicos podem ser bons ou maus, devendo-se a diferença ao modo como se comportam ante a protagonista da história. Além disso, outras figuras desempenham o papel do malvado e a magia raramente é manejada pela protagonista, mas, sim por suas antagonistas. A personagem principal é uma pessoa comum, o que revela que o leitor é desprovido de qualquer poder, como a menina Alice, Tom, Dorothy e Narizinho. Por essa razão, identifica-se com elas, vivenciando perigos por que passam e almejando uma solução para os problemas que enfrentam.

                  As narrativas acionam o imaginário do leitor, em virtude de que privilegiam a fantasia, que é o cenário no qual a protagonista resolve seus dilemas sociais ou pessoais. Não é o afastamento de seu mundo real que coloca a protagonista perante o mundo, mas o seu retorno. O movimento inicial leva a protagonista ao encontro de si, que é a sua grande aventura, a qual lhe permitirá enfrentar o contexto circundante, confiando em si.

A fantasia é condição do gênero em três das obras estudadas, impõe uma estrutura narrativa que se desenvolve à proporção que a protagonista abandona o familiar e ingressa em horizontes sobrenaturais, voltando à posição primeira, mais experiente e mais sábio. Além disso, desafia o possível leitor, pois pela ativação do imaginário dá-se sua aceitação ou deciframento da proposta ficcional. Somente em As aventuras de Tom Sawyer as peripécias do protagonista se desenvolvem em um cenário sempre familiar, o que permite a fácil identificação do leitor com os ambientes.


7 Considerações Finais

A estrutura dessas narrativas supõe uma atividade do leitor em duas direções: de um lado, rumo à auto-afirmação, enquanto confiança em si mesmo e reconhecimento do grupo, como o que se passa com as crianças Alice, Dorothy, e Narizinho e, de outro, rumo à insatisfação das regras impostas do mundo adulto, de desobediência e inconformismo com sua condição existencial; é o caso de Tom. As protagonistas dessas obras saem de seu ambiente real, de uma maneira voluntária, como Narizinho, sofrem um acidente como Alice ou como Dorothy, que é levada pelo ciclone. Ou, ainda, simplesmente, como em As aventuras de Tom Sawyer, a criança se distancia de casa para apreciar aventuras do cotidiano, fugindo para uma ilha com os amigos. A saída desencadeia a consolidação da personalidade. Essas narrativas apresentam uma experiência corriqueira da protagonista: a passagem da realidade à fantasia e posterior retorno, através de uma viagem (Alice no país das maravilhas, O mágico de Oz, Narizinho Arrebitado).

A partir da perspectiva apresentada, podemos dizer que temos a análise de elementos que confirmam as contribuições das narrativas a fim de construir um leitor autônomo, tanto do ponto de vista da leitura, como da vida cidadã, em que o ser humano é desafiado a todo instante, encontra perigos, sofre, se distancia dos ambientes conhecidos, mas precisa reagir frente às dificuldades. Quanto ao caráter emancipatório das obras, podemos dizer que elas também contribuem para essa autonomia do leitor, no momento em que ele é levado a questionar os fatos apresentados pelo narrador, dialogar com o texto, ao ver-se representado na narrativa, através da identificação com personagens autônomas e com traços característicos dessas quatro obras analisadas.


REFERÊNCIAS

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