Maria da Luz Duarte Leite Silva
Ananias Agostinho da Silva
(UFRN)
Resumo: Clarice Lispector é considerada como um dos principais
nomes da geração de 45 e uma das mais significativas expressões da ficção
literária brasileira. Sua obra nos permite refletir sobre as relações entre o
“eu” e o “outro”, a condição social da mulher, o esvaziamento das relações
familiares, o preconceito da mulher velha, e, sobretudo a própria linguagem. Neste
ensaio, realizamos uma leitura do conto “Ruídos de Passos”, integrante da
coletânea A Via Crucis do Corpo (1998), com o propósito de destacar o drama de
D. Cândida no que se refere ao desejo sexual. O arcabouço teórico deste
trabalho pauta-se em: Hall (2006), Bauman (2005) Focault (2010-2011), Picazio
(1998), Giddens (1993) Zinani (2006), dentre outros que tratam sobre a
constituição da identidade, do erotismo e assuntos relacionados à temática em
estudo.
Palavras-chave: Identidade, mulher, erotismo, Clarice Lispector.
Introdução
O surgimento de Clarice Lispector (1920-77) no cenário literário
brasileiro nos anos quarenta representou um verdadeiro choque para críticos e
leitores da época “[...] mitificada ou rejeitada” ao longo de mais de 30 anos
de proibição literária – passando por romances, contos, crônicas e livros
infantis -, a mulher e escritora Clarice Lispector resiste a todas tentativas
de enquadramentos, classificações ou definições. (ROSENBAUM, 2002, p.8-9).
Mesmo tendo evitado expor sua intimidade ao público, Lispector fez de
seus textos um vasto itinerário de uma identidade inquieta e turbulenta,
inadaptável às expectativas sociais, obsessiva na captura de si mesma e do
outro, desmascarando, sob o verniz do cotidiano, um mundo de desejos e
fantasias inconfessáveis Diz a autora: “Meus livros, infelizmente para mim, não
são superlotados de fatos e sim de repercussão dos fatos nos indivíduos.”
(ROSENBAUM, 2002, p.8-9)
É, pois, seguindo essa linha de raciocínio que se toma como objeto de
análise o conto, “Ruídos de Passos”, integrante de A Via Crucis (1998) por se observar nessa narrativa que valores
como essência e aparência constituem a vida de D. Cândida, personagem central
da história narrada. No conto, durante a descoberta da sua efervescente
sexualidade, materializa-se a hipocrisia dos indivíduos no que se refere ao
preconceito com as mulheres mais velhas, a mulher nesse conto é apresentada
como vítima dos percalços do dia-a-dia e do sentido do ser mulher.
Nesse estudo, se pretende analisar a construção da identidade da
protagonista, uma senhora de oitenta e um anos em “Ruídos de Passos”, de
Lispector, destacando traços da representação erótica nessa construção,
sobretudo, a dualidade essência e aparência, observada no conteúdo narrado.
Esta autora é considerada como um dos principais nomes da geração de 45, e uma
das mais significativas expressões da ficção brasileira de todos os tempos,
talvez por isso suas obras retratam uma grande variedade de temas, como: o
homoerotismo, a hipocrisia do homem, a
mulher submissa ao lar, a velhice dentre outros.
Nesta perspectiva, para uma leitura do conto “Ruídos de Passos”, se toma
como base, alguns postulados teóricos que tratam da temática estudada, se
utilizam alguns procedimentos, tais como a realização de uma leitura teórico
analítica do conto em questão, com o intuito de identificar o modo de
representação erótica na constituição do si mesmo da protagonista da história
narrada.
1. Sobre “Ruído de passos”
No conto “Ruído de Passos”, deparamos com a Srª Cândida Raposo de 81 anos
a procura de médico por ainda padecer do “desejo de prazer”- sexual. É narrado
em terceira pessoa. O narrador retrata a vida angustiante dessa senhora, como
se conhecesse o seu interior e exterior. Toda narrativa se dá entre o tempo
cronológico e o psicológico. Ou seja, cronologicamente, se verifica a mesmice
da vida de dona Cândida que impera em todo o conto. Quanto ao espaço,
percebemos que o espaço externo aparece subitamente, para que as personagens mergulhe
no verdadeiro espaço que Lispector se
apropria como destaque em suas obras que é o psicológico, quando as
protagonistas são capazes de compreender o si mesma.
Percebe-se nessa narrativa que a protagonista se encontra dispersa,
mutilada; a sua linguagem apresenta um vazio do sujeito à procura da própria
imagem de totalidade perdida no mundo em que vive. Dona Cândida ao descobrir
que não era diferente das mulheres mais novas sente-se descentrada, pois ao
procurar um ginecologista ver-se num labirinto, não sabe como resolver o seu
problema – o desejo sexual. O que confirma a presença do erotismo.
O exemplo do que ocorre com a senhora do conto nos remete a ideia do
preconceito que as mulheres mais velhas sofrem na sociedade. O que nos faz
lembrar a fala de Picazio (1998, p.47). “Todos desejam ser respeitados e
aceitos pelo mundo”. Isso não é o que verificamos nesse conto, visto que a
protagonista sente-se esvaziada, esfacelada, rejeitada, descentrada conforme
afiram Baumam (2005): “- E se eu pagasse? - Não ia adiantar de nada. A senhora
tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade?” Esse fragmento
representa também a desvalorização com as pessoas mais velhas. Aqui se pode
perceber o desprezo, a solidão, o preconceito que os indivíduos sofrem quando
chegam à velhice. O que nos remete aos postulados de Picazio ao afirmar: “O
preconceito é forte e temos a sensação de que estamos condenados a esconder
esse desejo, de nós e dos outros, para o resto da vida.” (PICAZIO, 1998, p.57).
Aqui se observa que o envelhecimento do corpo, principalmente o feminino, passa
a ser visto como um entrave na sexualidade da mulher velha que é geralmente
vista como inexistente ou inadequada.
2. O erotismo em “Ruído de passos”
“Ruídos de Passos” retrata a
história de D. Cândida, uma senhora idosa que descobre que mesmo com a idade
que tem sente desejo sexual. É essa descoberta que ocasiona o descentramento da
protagonista, visto que: “Essa senhora tinha vertigem de viver. A vertigem se
acentuava quando ia passar dias numa fazenda: (LISPECTOR, 1998, p.55). Ou seja,
esse desânimo de viver da protagonista sugestivamente se dar devido perceber
que não conseguiria vivenciar o erotismo como as pessoas mais novas, visto que
o preconceito, ou melhor, dizendo, a discriminação para com os mais velhos
imperava, principalmente nas mulheres, pois muitos acreditam que com certa
idade as mulheres não fazem o que as mocinhas fazem. Tudo isso nos faz lembrar
o que diz Xavier (1991, p. 12), quanto ao sexo masculino: “[...] O privilégio do
homem reside no fato de que a sua vocação de ser humano não contraria seu
destino de macho; a sociedade não cobra dele uma opção.” O que observamos nos
postulados da autora é que para a mulher, a feminilidade está condicionada ‘ao
destino de mulher’. O que reforça o poder de discriminação porque passa a
mulher idosa.
Observa-se nesse conto que o culto
da beleza é apresentado na narrativa pelo narrador quando diz que D. Cândida
“Fora linda na juventude”. (LISPECTOR, 1998, p.55). Nesse trecho se observa o
discurso do culto ao corpo apresentado por Foucault, pois o narrador leva-nos a
entender que quando essa senhora era jovem podia ter o homem que queria, visto
que era uma mulher bela. Já dizia Simone de Beauvoir (apud XAVIER, 1991, p.14),
“Ninguém nasce mulher; torna-se mulher, o que faz da sociedade a determinante
da condição feminina”. Ou seja, a sociedade é quem determina o papel da mulher.
Esse fato talvez deve-se ao pensamento patriarcal que tinha a mulher como um
ser que deveria manter-se em seu estado de domesticidade.
Assim sendo, se acredita que as narrativas de Lispector apresentam em sua
grande maioria a condição da mulher numa sociedade arraigada ao sistema
patriarcal e preconceituoso, pois a figura feminina é vítima de coerção e
repressão. Conforme Zinani (2006, p.38) “[...] a desconstrução do modelo
patriarcal tem na análise crítica uma valiosa ferramenta, uma vez que vai
possibilitar á mulher tornar-se sujeito e atuar na sociedade.” Isso,
sugestivamente, ocorre devido às relações de poder que são impostas pela
ideologia dominante. Entendemos que a pretensão da autora é retratar as
relações sociais dentro da linguagem literária, desnudando o cotidiano dos
sujeitos e suas relações instáveis, com os outros e com a sociedade.
Quando a protagonista pergunta ao
ginecologista á respeito de uma solução para o seu desejo e ele diz que não há
remédio, essa senhora se entristece. E logo diz: “E se eu pagasse? Não ia
adiantar de nada.” (LISPECTOR, 1998, p.56). Se ver nitidamente presente nesse trecho
o sentimento de inferioridade da personagem, levando-nos a acreditar que o
discurso do culto ao corpo é uma maneira que Lispector subsidia nesta narrativa
para mostrar que o não dito, ou melhor, que o discurso silenciado de D.
Cândida, transforma-a em uma pessoa que não diz por que age de maneira
silenciosa e angustiada. “Nessa mesma noite deu um jeito e solitária
satisfez-se: “Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha.” (LISPECTOR,1998,p.56). Esse trecho deixa
evidente que a constituição da identidade dessa senhora se deu de forma
penosa.Chega a considerar a vida um
inferno ao descobrir que o desejo sexual não passa com a idade:
Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa
nunca.
- Olhou-o espantada.
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno! (LISPECTOR, 1998, p. 55-56).
O esfacelamento da protagonista é percebido, também por meio do silêncio,
tipo de discurso que se usa por não podermos dizer coisa que é contrária às
regras sociais. Para Foucault (1998, p. 169), “nem tudo pode ser dito, e o que
ameaça a ordem social deve ser proibido”. Observa-se que o silenciamento da
protagonista em relação à crueldade das pessoas para com as mulheres mais
vividas é tão grande que procura no seu silêncio encontrar a solução para
aquele prazer ardente, masturbando-se: “Daí em diante usaria o mesmo processo.
Sempre triste.” (Lispector, 1998, p.56). Esse fragmento destaca que a
protagonista era uma pessoa triste, apesar de por um momento ter satisfeito o
seu desejo, coisa que alivia e traz prazer consigo e com a vida, ela demonstra
tristeza, envergonhada. “Tinha vergonha”. (LISPECTOR, 1998, p.56).
Nesse conto, Clarice Lispector trata da sexualidade e expõe uma face da
velhice que não costuma ser discutida, especialmente quando se trata do desejo
feminino. A apresentação do drama sexual da mulher velha através da literatura
nos permite refletir sobre o erotismo visto com preconceito pela sociedade, e
observar sua forma de representação na constituição do sujeito feminino. A
mulher velha é tida como alguém que não é capaz de realizar-se sexualmente com
um parceiro, assim como é de praxe com o sujeito jovem. Isso é apresentado pelo
narrador: “– Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.[...] E se eu
pagasse? – Não ia adiantar de nada. A senhora que se lembrar que tem oitenta e um ano de
idade”. ( LISPECTOR,1998,p.55-56).
O que se observa é que na sociedade moderna os indivíduos se centram na
beleza do que é jovem, principalmente no que diz respeito à mulher. Há uma
forte estigmação em relação à mulher mais velha, levando muitas vezes a vida
sexual da mulher mais velha como alvo de chacotas, comentários, preconceitos, especialmente
quando se trata de um relacionamento com homem mais jovem. Talvez por isso
Lispector apresenta dona Cândida como uma mulher que mesmo não tendo como
satisfazer seu desejo sexual com um outro,
se satisfaz sozinha. “Nessa mesma noite deu um jeito e solitária
satisfez-se.” (LISPECTOR, 1998, p.56).
3. Considerações finais
Este artigo apresenta um estudo do conto “Ruídos de Passos” de Clarice
Lispector, tendo em vista a questão do erotismo na construção da identidade de
D. Cândida. Para tanto, se atenta para a essência e aparência na vida dessa
senhora. Percebe-se que o narrador mesmo
estando em terceira pessoa subsidia de recursos estéticos inovadores,
características da literatura de lispectoriana, talvez para evidenciar as
variadas temáticas presentes em suas obras.
Observa-se que o mundo oferece muitas possibilidades para as pessoas
jovens. No que se refere à sexualidade, pode estar nos mais variados espaços e
apresentar modos diferentes de se
satisfazer sexualmente. Em se tratando, da masturbação para D. Cândida era uma
vergonha, já para uma pessoa jovem é um fato normal e necessário. Para o corpo
de uma pessoa velha, tudo é restrito, inclusive o prazer sexual. Daí ser
oportuno o sujeito satisfazer-se com as suas memórias. Estas assumem caráter
fundamental na vida dos idosos, que têm muito o que lembrar resgatando suas vidas pela lembrança de um
tempo em que eram o que a sociedade valoriza, recuperando, por instantes, sua importância neste mundo. Após satisfazer o
seu erotismo D. Cândida relembra o seu esposo: “Pareceu-lhe ouvir ruídos de
passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo”. (LISPECTOR, 1998, p.56).
É interessante apresentar o que nos diz Csordas (1999), quando apresenta
que o corpo pode ser constituído como fonte de representação e como fundamento
do estar-no-mundo. O corpo da protagonista desta narrativa a deixava no mundo
esfacelada, pois nem o dinheiro facilitava a sua realização de forma humana. “E
se eu pagasse? [...] A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de
idade.” (LISPECTOR, 1998, p.56). Esse trecho é bastante significativo nessa
análise, visto que mostra a hipocrisia humana, a discriminação sexual na
velhice, o discurso do culto ao corpo, enfim uma maneira desumana de ver a
sexualidade de pessoas mais velhas.
Dessa forma, se compreende que a busca da identidade da
protagonista de “Ruídos de Passos”, se dá durante toda a narrativa, através da
busca do erótico, ou melhor, da relação entre o eu, o prazer e o poder.
Foucault (2004, p. 160) mostra que o poder deve ser visto como algo não
localizável, como espaço onde encontramos o saber e o poder, ao afirmar que “o
poder não é mais localizável, mas multidirecional, espalhado como micro-poderes
- grãos de poderes na mesa social”. Assim sendo, se percebe que esta narrativa
é construída com base no real, revelando uma ruptura do poder externo para o
interno, possibilitando entendermos que o preconceito é um poder que perpassa
toda essa narrativa, bem como a relação entre essência e aparência, vivida pela
protagonista. Isso é evidente em Lispector, (1998, p.55).
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista.
E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer,
disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa
nunca.
Olhou-o espantada.
Logo, uma das principais questões destacadas por Lispector, no dilema
apresentado por suas personagens femininas, inclusive a do conto em questão é a
procura da resposta do “Quem sou eu”? É na resposta a esta pergunta que
possibilita se analisar a identidade feminina nas suas narrativas. Nesse conto
a constituição identidade de dona Cândida pode ser observada a partir da
interação dessa senhora, consigo e com o outro, pois se entende que a identidade do sujeito se organiza por meio
de um sistema de representações, daí sua relação com o simbólico, pois assim
como a realidade, a identidade conforme postula Zinani ( 2006), “é uma
construção simbólica”.
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