O SUICÍDIO AUTOBIOGRÁFICO DE SYLVIA PLATH


Éder Corrêa
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

RESUMO
Sylvia Plath foi uma das poetisas de língua inglesa mais importantes do século XX. Sua obra ganhou destaque após sua morte trágica: seu suicídio aos 31 anos. Com fama póstuma, não faltaram aqueles que procuraram ver na vida da autora traços biográficos em seus textos. Todavia, algumas análises acabaram reduzindo a imagem de Sylvia em apenas uma mulher com problemas emotivos. A intenção deste trabalho, em dissonância com grande parte da crítica biográfica, é mostrar as manifestações autorais e temáticas, com base em teorias como de Lejeune e Biezma, que reconstroem a imagem da escritora Sylvia Plath, mais do que da mulher Sylvia Plath.

Palavras-Chaves: Sylvia Plath. Espaço Autobiográfico. Autoria.

Introdução

Publicado em 14 de janeiro de 1963, 27 dias antes do suicídio da autora, A redoma de vidro, único romance de Sylvia Plath[1] – embora a autora tenha uma vasta produção em poemas –, é considerado, pela maioria de seus grandes estudiosos – há especialistas em Sylvia Plath -, como uma obra autobiográfica. Não há dúvidas de que Esther Greenwood é o alter ego da escritora, e a trama nada mais é do que as vivências da juventude de Sylvia, que alcançou fama postumamente. O suicídio de Plath trouxe interesse dos leitores para sua obra; até mesmo as editoras que recusaram publicá-la quando estava viva, agora disputavam seus manuscritos e textos inéditos.
Acreditava-se que a leitura dos seus textos ajudaria a compreender a vida da mulher brilhante, solitária e suicida que se tornou célebre do dia para noite, da mesma forma que ceifou a vida. Ler os últimos escritos de Sylvia era uma tentativa de compreender a depressão que a dominava. Muitos viram, na obra da poetisa, a sua vida reescrita em forma artística: nascia ali o culto à personalidade de Sylvia Plath: sua lápide foi alvo de vândalos várias vezes, principalmente apagando o nome do marido e o poema que ele escreveu como epitáfio para a ex-mulher. Os textos mostravam a dificuldade que a autora tinha no casamento; logo, seu marido era culpado de tudo. Soube-se dos casos extraconjugais do ex-marido, das noites insones que a escritora passou, creditadas à infelicidade no casamento. A crítica, depois da morte da poetisa, resolveu ler Plath de acordo com a vida que viveu.
Entretanto, em oposição ao que se fez por muito tempo, reduzir a produção da poetisa ao mero biografismo seria, no mínimo, ingenuidade, uma vez que esse tipo de análise não dá primazia à literatura e privilegia apenas os aspectos não-literários de obras artísticas. Todavia, é fato que a ligação ao movimento estético a que Sylvia estava vinculada, o qual tinha por excelência a exposição das vivências do autor na obra, deixa-nos tentados a analisar sua obra sob o ponto de vista somente biográfico, alimentando nossa curiosidade pela vida pessoal dos outros.  
Sylvia fez parte do movimento artístico chamado “poesia confessional”. Como o próprio nome já diz, o confessionalismo era a forma de o poeta falar sobre si dentro do poema, no qual eu-lírico apresentava-se sempre em primeira pessoa. Beach (2003) elucida de maneira bastante simples o que era o confessionalismo – ou a poesia confessional – que surgiu na década de 50 nos Estados Unidos:

[…] one of the chief characteristics of confessional poetry was its investigation of the pressures on the family as an institution regulating middle-class life; more specifically, confessional poems focused on such issues as divorce, sexual infidelity, childhood neglect, and the mental disorders that follow from the deep emotional wound received in early life.[2]

Neste sentido, notam-se todos os elementos presentes na obra de Sylvia: a morte do pai aos sete anos – que marcou profundamente sua vida –, as tentativas de suicídio, a dificuldade de ser escritora em uma sociedade que ainda exigia da mulher o exercício de “dona do lar”, as infidelidades do marido[3], os ciúmes, o divórcio e o problema de ser mãe. Tudo está na produção de Plath, seja em seus poemas, seus contos, seu romance seja em seus diários: é a temática de sua obra e de sua vida.

Por uma abordagem além da biográfica e da psicanalítica
           
            A fortuna crítica de Sylvia Plath é vasta, principalmente no campo do biografismo e da psicanálise. Não foram poucos os estudos que se debruçaram sobre sua obra para examinar o inconsciente da autora, diagnosticando-a como bipolar, maníaco-depressiva, histérica entre outras doenças psíquicas.
No entanto, para situar claramente a intenção deste trabalho e do espaço autobiográfico da escritora, é necessário falar rapidamente da obra de Sylvia. Inicia-se em 1960, com a publicação de The colossus and the other poems, lançado na Inglaterra, local onde morava com o marido, que era inglês – Sylvia era norte-americana, mas se mudou para a Inglaterra ao ganhar uma bolsa FulBright para lecionar inglês; na época em que lecionava, conheceu Ted Hughes.
Com exceção dessa obra, Sylvia teve alguns poemas publicados em revistas e suplementos literários; no entanto, a maior parte de sua obra é póstuma. Mesmo o que publicou em vida, ganhou visibilidade apenas depois de seu suicídio.
Após sua morte, cresceram os estudos sobre sua produção literária. Professores britânicos e norte-americanos procuravam manuscritos e pequenos resquícios de obras inéditas[4]. Pesquisas das mais diversas áreas das humanidades usaram Plath. A psiquiatria nomeou um distúrbio com o seu nome: efeito Sylvia Plath, que acomete pessoas excessivamente inteligentes, principalmente mulheres criativas.
A psicanálise não deixou de ver na figura angustiada de Plath uma amostra da melhor espécie para seus estudos. Se sua poesia era confessional, e os temas de sua produção eram seus sofrimentos psicológicos, os seguidores de Freud e Lacan viram ali a imagem perfeita para os estudos que relacionam psicanálise e literatura. Sua obra poética, a partir de então, era o reflexo do seu inconsciente perturbado: seus poemas eram longas cartas suicidas, odes à depressão, pedidos de ajuda e, principalmente, sua vida íntima exposta. Sylvia transitou entre as categorias de gênio artístico a mulher ciumenta histérica; de poetisa singular a sexualmente reprimida; de escritora brilhante ao melhor exemplo da má resolução edípica feminina.
Diante disso, uma abordagem de linha psicanalítica, no atual momento teórico, serviria apenas para ratificar as posições adotadas anteriormente, reduzindo Sylvia, mais uma vez, a uma doente mental. Apreciam-se os estudos atuais da psicanálise, principalmente aqueles que auxiliam nas questões autobiográficas, entre eles, cita-se Castilla del Pino (2003), com sua Teoria dos sentimentos, que fala das múltiplas manifestações do eu; no entanto, basta folhear seu texto para encontrar entre os capítulos os conceitos de anormal e patológico.
Embora se reconheça a evolução teórica da psicanálise, não será abordada aqui nenhuma teoria que esteja epistemologicamente comprometida com esse campo de estudos: a escrita feminina já “sofreu” o suficiente com os conceitos psicanalíticos, para que se retorne novamente a eles.
Mesmo que revistas e reatualizadas, todo compromisso com uma teoria traz seu universo conceitual junto com ela, de maneira que assumir a posição de Castilla del Pino é corroborar com o que ele se compromete anteriormente e atualmente, o qual ainda postula conceitos de sentimentos de anormalidade e patologia. Legitimar a anormalidade e a patologia significa legitimar sua oposição: o normal e o saudável.
Como não é a intenção deste texto discutir isso – mas ao mesmo tempo não irá concordar-se com tais dicotomias simplistas –, será reconhecida a existência do autor, de seu trabalho e seu mérito ao trazer os estudos da neurologia para o campo da psicanálise e os subsídios que possibilitam as contribuições dela para os estudos sobre o espaço autobiográfico. Todavia, para este texto, em especial, seu conceito de “eu” será deixado de lado e adotar-se-á o “eu” de Benveniste, conceituado nos Problemas de linguística geral (1991).
Para Benveniste (1991), toda enunciação é subjetiva e todo enunciado pressupõe um eu-enunciador, logo, não há a não-subjetividade no enunciador[5]. Dessa forma, na literatura, como na linguagem oral, todo discurso é proferido por um eu-subjetivo, uma vez que, para o linguista, a subjetividade é “a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’” (p.288). Dessa forma, a língua é o meio de o sujeito marcar sua subjetividade, de maneira que essa só pode ser compreendida e analisada na manifestação do enunciado. Uma vez que todo enunciado é único e não pode ser repetido – já que o contexto sempre se altera –, o eu-enunciador manifesta-se sempre de maneira diferente, quando enuncia. Ora, isso é semelhante com a teoria do Del Pino, que afirma que assumimos muitos eus, com a diferença de que aqui não se manifesta o caráter normativo e regulador da psicanálise.
Para a abordagem do espaço autobiográfico, Biezma (1993) afirma que existem diversos níveis de emergências do eu, de acordo com a produção, sendo o mais direto o diário e as correspondências e o menos direto a produção literária em terceira pessoa, no entanto, Biezma, Castillo e Picazo assumem que o EU manifesta-se em qualquer tipo de produção, a presença de um ‘eu’, neste sentido, é medida por gradação da proximidade da produção. Textos que são diretamente ligados ao autor, como dito antes, diários, correspondências e confissões estariam em um primeiro nível de emergência; textos narrados em primeira pessoa seriam de segundo nível de emergência; textos que possuem um distanciamento formal, como narrativas em terceira pessoa, em que o narrador assume a posição de observador de certos fatos, estariam na terceira emergência do eu.  
Em nosso objeto de análise, os diários de Sylvia apontam para a primeira emergência do eu; contudo, sua narrativa em primeira pessoa, A redoma de vidro (1991), e seus poemas encaixam-se na segunda emergência do eu, chamada por Biezma (1993) de “emergência disfarçada”. É importante salientarmos aqui que o autor não fala especificamente sobre produções de poetas; no entanto, no caso de Plath – uma confessionalista –, podemos incluir seus textos em poemas também na segunda emergência, já que possuem os elementos necessários para a classificação nesta categoria: o eu-lírico está na primeira pessoa, os poemas estão diretamente ligados com a vida da autora, alguns inclusive têm títulos bastante sugestivos – Daddy (Pai) é um bom exemplo – e seus poemas constituem pequenas narrativas, já que contam histórias íntimas da autora.
No entanto, Biezma et al (1994: 234) afirmam que:

Para nosotros, como para Philippe Lejeune, lo esencial de una autobiografia  es que, además de que el objeto del discurso sea fundamentalmente el individuo, exista un proyeto básico del autor, que se intente captar la personalidad en su totalidad, en un movimiento capitulativo de síntesis del yo, haciendo hincapié especialmente en su génesis, como elemento profundo y determinante del ser, y que el autor, desde luego, intente plasmar la unidad profunda de esa existencia, su posible sentido,obedeciendo a las exigencias a menudo contradictorias de la fidelidad y de la coherencia.

Nota-se que os teóricos corroboram o pensamento de Lejeune (2008), ao afirmar que autobiografias diferem de outros textos memorialísticos, uma vez que autobiografias procuram dar o todo da vida do autor; no entanto, mesmo Lejeune afirma que autobiografia pode ser “qualquer texto em que o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, quaisquer que sejam a forma do texto e o contrato proposto por ele” (p. 53). Diante disso, pode-se afirmar que certos romances em primeira pessoa podem ser autobiográficos, embora não sejam, necessariamente, autobiografias no sentido stricto sensu do termo.
Neste sentido, modificando as formas de abordagem mais comuns da obra de Sylvia Plath, desvinculando-se do simples biografismo e das análises puramente psicanalistas, que diagnosticaram a autora dentro dos manuais de psicopatologias, procuram-se outras teorias de compreensão do fenômeno autobiográfico, buscando ampliar as formas de entendimento do texto literário da poetisa, excluindo conceitos já pré-estabelecidos, na tentativa de falar algo diferente ou, pelo menos, de outro lugar de análise.

O espaço autobiográfico de Sylvia Plath: depressão, suicídio e literatura

Sylvia Plath alcançou fama póstuma devido ao seu fim trágico. Na literatura contemporânea, tal fato aconteceu raríssimas vezes. Mesmo com um pequeno reconhecimento enquanto viva, apenas após sua morte que seus textos interessaram o grande público e o universo acadêmico literário. A polêmica do caráter autobiográfico de seus textos mostrou as mais inesperadas posições críticas nos Estados Unidos e na Inglaterra na época, mas, independentemente da forma como se aborde uma análise sobre a obra de Plath, o suicídio e a depressão estarão presentes. Obviamente que nem todo escritor suicida carrega embutido em sua obra esse elemento explícito, basta pensar em Ernest Hemingway, Pedro Nava, Stephan Zweig entre outros: não se pode dizer o mesmo sobre Sylvia Plath.
Em uma produção literária em que a vida da autora está intimamente ligada à sua obra, é interessante notar o quão dificultoso era para a escritora essa transformação de matéria vivida em arte. Em seus diários, Sylvia afirmava que “precisava sair de si” [6](p. 473), ou seja, o solipsismo da autora lhe causava incômodo, era como se o tempo todo estivesse refletindo sobre sua condição, anotava em seu diário “vou perecer se não conseguir escrever sobre ninguém a não ser eu mesma” (p. 621). A verdade é que Sylvia jamais pensou que sua vida fosse interessante para matéria literária, ela afirmava que sua existência não serviria nem para um conto de 20 páginas (KUKIL, 2003).
No entanto, ao analisarmos a obra A redoma de vidro (1991), percebemos que Sylvia romanceou sua juventude, sua primeira tentativa de suicídio, seu primeiro amor, a relação complicada com a mãe, o sonho de ser escritora e sua internação. Hoje não há dúvidas de que Sylvia transformou em romance tudo o que viveu quando jovem, antes de formar-se em inglês.
O próprio texto nos dá uma pista sobre isso:

Resolvi que passaria o verão escrevendo um romance [...] pus a primeira folha virgem na minha máquina de escrever portátil e rodei o rolo para cima. [...] Uma ternura encheu meu coração. A heroína será eu mesma, disfarçada. Ia se chamar Elaine. Elaine. Contei as letras nos dedos. Seis letras, como Esther. Parecia um bom começo. (PLATH, 1991: 113)

Esther é o nome da narradora-personagem cujo nome possui seis letras, como Sylvia. Percebe-se que não é inocente esta fala. Sylvia, de algum modo, queria dizer aos seus leitores que era ela a heroína disfarçada. Ela era a escritora que, quando jovem, teve depressão e tentou suicidar-se aos dezenove anos, que passou por tratamentos psiquiátricos, que de aluna brilhante tornou-se profundamente triste e insatisfeita com a vida.
Lejeune (2008) afirma que nomes ficcionais de narrativas autobiográficas permitem que o leitor desconfie se o narrado não é também o vivido pelo autor. No entanto, no caso de A redoma de vidro (1991), temos um acontecimento interessante. O livro foi publicado em janeiro de 1963, poucos dias antes do suicídio da autora, com o pseudônimo de Victoria Lucas. Até então ninguém conhecia Sylvia Plath; entretanto, com a publicação do livro nos Estados Unidos, em 1971, com o nome verdadeiro da autora, a recepção da narrativa mudou drasticamente: o que antes serias apenas um texto ficcional aconteceu de ser visto como autobiográfico e A redoma de vidro passou de romance ficcional para romance autobiográfico – nem mesmo Lejeune conseguiria dar conta de tal fenômeno.
Não irá aqui se discutir o caráter de verdade e ficcionalidade da obra, pois toda obra literária é ficcional, de maneira que sabemos que nem tudo que a autora colocou em seu texto narrativo ocorreu da maneira descrita, e nem todos os personagens existentes no universo ficcional tem um correspondente no mundo real. Todavia, a obra causou bastante impacto quando lançada nos Estados Unidos, até mesmo a mãe de Sylvia Plath disse que a filha tinha tendência para modificar as coisas, provando que muitas coisas ali poderiam ser lidas como reais e, ao mesmo tempo, ficcionais: se modifica, significa que ficcionaliza, nada mais perfeito para um escritor.
Esther Greenwood, narradora-personagem de A redoma de vidro, narra sua vida como bolsista em uma revista de moda em Nova York e a futilidade das mulheres e homens da cidade grande, durante os trinta dias que fica como bolsista da revista Lady’s day. Oriunda do interior, Boston, Esther sonha ser escritora e inscreve-se para um curso de escrita, após o término de seus dias na revista de moda, pleiteando uma bolsa. Por não conseguir a bolsa, passa as férias de verão em casa, com a mãe, e decide escrever um romance. É neste período que aparecem as primeiras manifestações depressivas, as consultas psiquiátricas, a tentativa de suicídio, a internação em um hospital psiquiátrico, a terapia de eletrochoque e a dificuldade de ser mulher nos anos 60, quando os sonhos de uma mulher inquieta não são compatíveis com o que a sociedade espera de uma jovem de 19 anos.
Tal como Esther, Sylvia também tentou o suicídio aos dezenove anos. A descrição dada pelo livro é semelhante com o que ocorreu com Plath:

Abri a torneira e enchi um grande copo d’água. Peguei a água e o frasco de pílulas e fui para o porão. [...] Atrás do aquecedor a óleo havia um vão escuro na parede, à altura do meu ombro, que se transformava em um respiradouro coberto, entre a casa e a garagem, a perder de vista. [...] Levei um bom tempo para me enfiar nele. Por fim, depois de muitas tentativas, consegui e rastejei para dentro da escuridão como um duende. [...] Enrolei-me em minha capa preta como se fosse minha própria sombra, abri o frasco de pílulas e comecei a engoli-las depressa, entre goles de água, uma, depois outra, depois outra... [...] (p. 155)

Aos dezenove anos, Sylvia fez o mesmo e, por pouco, não morreu. No trecho acima, muitos estudiosos de Plath veem a descrição da tentativa de suicídio da autora na juventude.
A dificuldade em ser mulher e não querer adaptar-se aos padrões socialmente instituídos também aparece várias vezes, como na recusa da personagem por não querer casar, além de seu incômodo com a valorização da virgindade da mulher, coisa que não ocorria com os homens, elemento que incomodava profundamente a narradora. Além disso, a personagem detesta a ideia de um dia poder a vir ser mãe.
Sylvia Plath tinha a intenção de colocar isso em uma obra para livrar-se de seu passado, conforme seus diários. Essa incidência temática, no entanto, não aparece apenas em A redoma de vidro, mas também em seus poemas.
Ao lermos a coletânea de poemas Ariel (2007), de Plath, encontramos os mesmo elementos temáticos que compõem a narrativa A redoma de vidro (1991). A ausência do pai, a depressão, a temática do suicídio e os problemas amorosos. Constrói-se, neste sentido, o que Lejeune (2008) chamaria de espaço autobiográfico, ou seja, vários textos que compõem a imagem do autor e vida do autor. Dentre os poemas mais interessantes, destaca-se aqui “Lady Lazarus” (p. 86), um dos mais famosos poemas da autora:

I have done it again.[7]
One year in every ten
I manage it —

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

"A miracle!"
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.
And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.

No poema citado, encontram-se elementos partilhados na obra narrativa e que estão evidentes no poema. Lady Lazarus nos fala das três tentativas de suicídio do eu-lírico, a primeira, aos dez anos, a segunda, aos vinte – fato que ocorreu aos dezenove –, em que o eu-lírico diz que se fechou como uma concha – na realidade, escondeu-se no porão – e que quase morreu. A terceira tentativa não é descrita, uma vez que Plath recém tinha trinta anos, quando escreveu; morreu aos 30. Além disso, nota-se que, ao falar, expõe-se para a multidão, fala dos médicos que a trataram, em hospitais, em que sofreu tratamento de eletrochoque, não é à toa que a palavra charge, em inglês, tem o significado de “carga elétrica” também.
Evocando seus médicos, seus inimigos, o eu-lírico afirma que renasce e devora homens. Homens representam, na época de Plath, o poder, a dominação contra a qual ela luta para afirmar-se como escritora. Ao falar que o que sobra de sua carne queimada é o anel de casamento, uma barra de sabão, ou uma obturação de ouro, percebe-se a rede semântica de coisas do dia a dia de uma mulher casada com um homem bem sucedido.
Desta forma, o espaço autobiográfico construído por Sylvia Plath é, marcadamente, construído pela depressão, o suicídio e a luta contra o machismo que imperava também no mundo das letras, na época de publicação. Não é à toa que, em sua narrativa e em seus diversos poemas, a poetisa coloque o embate entre o homem e a mulher. Como em seu poema, Sylvia retornou como uma fênix, e sua obra é a maior prova disso: o legado que a deixou imortal.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Paul. Rough magic: a biography of Sylvia Plath. New York: Da Capo Press, 1991.

BEACH, Cristopher. The Cambridge introduction to twentieth-century american poetry. United Kingdom: University Cambridge Press, 2003.

BENVENISTE, Emile. O homem na língua. In: Problemas de linguística geral I. São Paulo: Pontes, 1991.

BENVENISTE, Emile. O homem na língua. In: Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989.

BIEZMA, Javier del Prado et al. Autobiografia y modernidad literária. Ediciones de la Universidad de Castilla-La mancha, 1994.

BRIGGS, Asa.  Who's who in the twentieth century. London: Oxford Press, 1999.

DEL PINO, Castillo. Teoria dos sentimentos. Lisboa: Fim de século, 2003.

KUKIL, Karen V. Os diários de Sylvia Plath 1950 -1962. São Paulo: Globo, 2004

LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

PLATH, Sylvia. Ariel. Campinas: Verus, 2007.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo: Globo, 1991.



           
           
           




[1] Sylvia Plath nasceu em outubro de 1932 e faleceu em fevereiro de 1963, aos 31 anos. Seu suicídio foi o gatilho que a tornou famosa: a autora vedou a cozinha e o quarto em que os filhos dormiam, deixou a janela do quarto deles aberta, com o café da manhã pronto, ao lado de suas camas, e colocou a cabeça dentro do forno, com o gás aberto. Morreu por intoxicação. Hoje, seus poemas são lidos e estudados nas universidades anglo-saxãs e cursos de letras de língua inglesa. É considerada uma das mais importantes representantes do movimento norte-americano chamado de “poesia confessional”. Ganhou o prêmio Pulitzer em 1982, 19 anos após sua morte, com a coletânea de poemas, intitulada The Collected Poems, organizada pelo seu ex-marido, Ted Hughes. BRIGGS, Asa.  Who's who in the twentieth century. London: Oxford Press, 1999.
[2] Uma das principais características da poesia confessional era a investigação das pressões da [instituição] familiar, esta sendo vista como uma instituição reguladora da vida da classe média; mais especificamente, poemas confessionais focavam questões como o divórcio, a infidelidade sexual, a negligência infantil e os transtornos mentais adquiridos na infância e ainda presentes. [tradução minha]. BEACH, Cristopher. The Cambridge introduction to twentieth-century american poetry. United Kingdom: University Cambridge Press, 2003.
[3][3] O ex-marido de Sylvia, Ted Hughes, foi um dos poetas britânicos mais importantes do século XX. Muitos atribuem responsabilidade do suicídio da autora a Ted, devido aos casos extraconjugais, à negligência afetiva e às duras críticas feitas ao trabalho da jovem esposa, que enfraqueceram ainda mais o frágil equilíbrio psicológico da poetisa. Após o suicídio de Sylvia, Ted Hughes eliminou partes do diário dela, queimou cartas e extraviou outros documentos da autora, justificando que era para que “seus filhos não vissem”; no entanto, testemunhos de conhecidos do casal apontam que ambos tinham uma relação difícil. Supostamente, o divórcio com Ted, após anos perdoando as relações extraconjugais do marido – Ted largou-a para ficar com a amante, amiga da escritora -, serviu como mote para a última tentativa de suicídio – desta vez bem sucedida – de Sylvia.  ALEXANDER, Paul. Rough magic: a biography of Sylvia Plath. New York: Da Capo Press, 1991.
[4] ALEXANDER, Paul. Rough magic: a biography of Sylvia Plath. New York: Da Capo Press, 1991.
[5] Benveniste, na sua teoria, não foca o falante real, empírico, no mundo, mas o sujeito enunciador, este sendo visto como aquele que quando profere um enunciado torna-se um sujeito de enunciação. É o sujeito de enunciação que interessa ao linguista. Embora existam trabalhos importantes que associem a teoria de Benveniste com o homem falante, em seus textos, não há incidência de uma preocupação com o homem real falante e vazio de enunciado.
[6]  KUKIL, Karen V. Os diários de Sylvia Plath 1950 -1962. São Paulo: Globo, 2004.
[7] Eu fiz de novo/ Um ano em cada dez/ Eu ajeito/ Um tipo de milagre ambulante, minha pele/Brilha como abajur nazista/ Meu pé direito/ Um peso de papel/ minha inexpressividade fina/ Linho judeu/ Derrube o tecido/ Oh, meu inimigo/ Eu assusto?/ Este nariz, a cova dos olhos, os dentes todos?/ O hálito amargo/ Um dia irá/ logo, logo a carne/ e o túmulo estará em mim/ em casa comigo/ E eu sou uma mulher sorridente/ Tenho apenas trinta/ E como o gato nove vidas para morrer/ Esta é a número três/ Que lixo/ Aniquilar-se a cada década/ Que milhões de filamentos/ Os amendoins sendo mastigados pela multidão/ Que querem ver/ Então desenfaixam as mãos e os pés/ O grande strip-tease/ Senhores, senhoras/ Estas são minhas mãos/ Meus joelhos/ Eu posso ser pele e osso/ Nada menos, eu sou a mesma e idêntica mulher/ A primeira vez que aconteceu eu tinha dez/ Foi um acidente/ Na segunda/ Eu quis perder tudo e não voltar mais/ eu me encavernei/ Como uma concha/ Eles chamaram, chamaram/ E tiraram vermes de mim como pérolas/ Morrer/ É uma arte como tudo o mais/ Eu faço excepcionalmente bem/ Eu faço como o inferno/ Eu faço como se fosse real/ Eu acho que você pode dizer que tenho um chamado/ É fácil fazer isso em uma cela/ É fácil fazer o suficiente e ficar nela/ É teatral/ Volto no início do dia/ ao mesmo rosto/ ao mesmo bruto/ aflito grito:/ Milagre! /Que me derruba/ Há um peso/ Para ver minhas cicatrizes/ há um peso/ Para ouvir meu coração/ Realmente tem/ Um peso grande/ Por uma palavra ou toque/ Ou um pouco de sangue/ Ou um pedaço dos meus cabelos na minha roupa/ Então, senhor Doutor/ Então, senhor Inimigo/ Sou sua obra/ Sou valiosa/ O bebê de ouro puro/ Que se mistura a um grito/ Eu viro e queimo/ Cinzas, Cinzas/ Você toca e mexe/ Carne, osso, não há nada lá/ Uma barra de sabão/ Um anel de casamento/ Uma obturação de ouro/ Senhor Deus, Senhor Lúcifer/ Cuidado, Cuidado/ Eu renasço do meu cabelo vermelho/ E devoro homens como ar. [tradução minha]