Éder Corrêa
Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RESUMO
Sylvia Plath foi uma das poetisas de
língua inglesa mais importantes do século XX. Sua obra ganhou destaque após sua
morte trágica: seu suicídio aos 31 anos. Com fama póstuma, não faltaram aqueles
que procuraram ver na vida da autora traços biográficos em seus textos.
Todavia, algumas análises acabaram reduzindo a imagem de Sylvia em apenas uma
mulher com problemas emotivos. A intenção deste trabalho, em dissonância com
grande parte da crítica biográfica, é mostrar as manifestações autorais e
temáticas, com base em teorias como de Lejeune e Biezma, que reconstroem a
imagem da escritora Sylvia Plath, mais do que da mulher Sylvia Plath.
Palavras-Chaves: Sylvia Plath. Espaço
Autobiográfico. Autoria.
Introdução
Publicado em 14 de
janeiro de 1963, 27 dias antes do suicídio da autora, A redoma de vidro, único romance de Sylvia Plath[1] –
embora a autora tenha uma vasta produção em poemas –, é considerado, pela
maioria de seus grandes estudiosos – há especialistas em Sylvia Plath -, como
uma obra autobiográfica. Não há dúvidas de que Esther Greenwood é o alter ego da escritora, e a trama nada
mais é do que as vivências da juventude de Sylvia, que alcançou fama
postumamente. O suicídio de Plath trouxe interesse dos leitores para sua obra;
até mesmo as editoras que recusaram publicá-la quando estava viva, agora
disputavam seus manuscritos e textos inéditos.
Acreditava-se que a
leitura dos seus textos ajudaria a compreender a vida da mulher brilhante,
solitária e suicida que se tornou célebre do dia para noite, da mesma forma que
ceifou a vida. Ler os últimos escritos de Sylvia era uma tentativa de compreender
a depressão que a dominava. Muitos viram, na obra da poetisa, a sua vida
reescrita em forma artística: nascia ali o culto à personalidade de Sylvia
Plath: sua lápide foi alvo de vândalos várias vezes, principalmente apagando o
nome do marido e o poema que ele escreveu como epitáfio para a ex-mulher. Os
textos mostravam a dificuldade que a autora tinha no casamento; logo, seu
marido era culpado de tudo. Soube-se dos casos extraconjugais do ex-marido, das
noites insones que a escritora passou, creditadas à infelicidade no casamento.
A crítica, depois da morte da poetisa, resolveu ler Plath de acordo com a vida
que viveu.
Entretanto, em oposição
ao que se fez por muito tempo, reduzir a produção da poetisa ao mero
biografismo seria, no mínimo, ingenuidade, uma vez que esse tipo de análise não
dá primazia à literatura e privilegia apenas os aspectos não-literários de
obras artísticas. Todavia, é fato que a ligação ao movimento estético a que
Sylvia estava vinculada, o qual tinha por excelência a exposição das vivências
do autor na obra, deixa-nos tentados a analisar sua obra sob o ponto de vista
somente biográfico, alimentando nossa curiosidade pela vida pessoal dos outros.
Sylvia fez parte do
movimento artístico chamado “poesia confessional”. Como o próprio nome já diz,
o confessionalismo era a forma de o poeta falar sobre si dentro do poema, no
qual eu-lírico apresentava-se sempre
em primeira pessoa. Beach (2003) elucida de maneira bastante simples o que era
o confessionalismo – ou a poesia confessional – que surgiu na década de 50 nos
Estados Unidos:
[…]
one of the chief characteristics of confessional poetry was its investigation
of the pressures on the family as an institution regulating middle-class life;
more specifically, confessional poems focused on such issues as divorce, sexual
infidelity, childhood neglect, and the mental disorders that follow from the
deep emotional wound received in early life.[2]
Neste sentido, notam-se
todos os elementos presentes na obra de Sylvia: a morte do pai aos sete anos –
que marcou profundamente sua vida –, as tentativas de suicídio, a dificuldade
de ser escritora em uma sociedade que ainda exigia da mulher o exercício de
“dona do lar”, as infidelidades do marido[3],
os ciúmes, o divórcio e o problema de ser mãe. Tudo está na produção de Plath,
seja em seus poemas, seus contos, seu romance seja em seus diários: é a
temática de sua obra e de sua vida.
Por
uma abordagem além da biográfica e da psicanalítica
A fortuna
crítica de Sylvia Plath é vasta, principalmente no campo do biografismo e da
psicanálise. Não foram poucos os estudos que se debruçaram sobre sua obra para
examinar o inconsciente da autora, diagnosticando-a como bipolar,
maníaco-depressiva, histérica entre outras doenças psíquicas.
No entanto, para situar
claramente a intenção deste trabalho e do espaço autobiográfico da escritora, é
necessário falar rapidamente da obra de Sylvia. Inicia-se em 1960, com a
publicação de The colossus and the other
poems, lançado na Inglaterra, local onde morava com o marido, que era
inglês – Sylvia era norte-americana, mas se mudou para a Inglaterra ao ganhar
uma bolsa FulBright para lecionar inglês; na época em que lecionava, conheceu
Ted Hughes.
Com exceção dessa obra,
Sylvia teve alguns poemas publicados em revistas e suplementos literários; no
entanto, a maior parte de sua obra é póstuma. Mesmo o que publicou em vida,
ganhou visibilidade apenas depois de seu suicídio.
Após sua morte,
cresceram os estudos sobre sua produção literária. Professores britânicos e
norte-americanos procuravam manuscritos e pequenos resquícios de obras inéditas[4].
Pesquisas das mais diversas áreas das humanidades usaram Plath. A psiquiatria
nomeou um distúrbio com o seu nome: efeito Sylvia Plath, que acomete pessoas
excessivamente inteligentes, principalmente mulheres criativas.
A psicanálise não
deixou de ver na figura angustiada de Plath uma amostra da melhor espécie para
seus estudos. Se sua poesia era confessional, e os temas de sua produção eram
seus sofrimentos psicológicos, os seguidores de Freud e Lacan viram ali a imagem
perfeita para os estudos que relacionam psicanálise e literatura. Sua obra
poética, a partir de então, era o reflexo do seu inconsciente perturbado: seus
poemas eram longas cartas suicidas, odes à depressão, pedidos de ajuda e,
principalmente, sua vida íntima exposta. Sylvia transitou entre as categorias
de gênio artístico a mulher ciumenta histérica; de poetisa singular a
sexualmente reprimida; de escritora brilhante ao melhor exemplo da má resolução
edípica feminina.
Diante disso, uma
abordagem de linha psicanalítica, no atual momento teórico, serviria apenas
para ratificar as posições adotadas anteriormente, reduzindo Sylvia, mais uma
vez, a uma doente mental. Apreciam-se os estudos atuais da psicanálise,
principalmente aqueles que auxiliam nas questões autobiográficas, entre eles,
cita-se Castilla del Pino (2003), com sua Teoria
dos sentimentos, que fala das múltiplas manifestações do eu; no entanto,
basta folhear seu texto para encontrar entre os capítulos os conceitos de
anormal e patológico.
Embora se reconheça a
evolução teórica da psicanálise, não será abordada aqui nenhuma teoria que
esteja epistemologicamente comprometida com esse campo de estudos: a escrita
feminina já “sofreu” o suficiente com os conceitos psicanalíticos, para que se
retorne novamente a eles.
Mesmo que revistas e
reatualizadas, todo compromisso com uma teoria traz seu universo conceitual
junto com ela, de maneira que assumir a posição de Castilla del Pino é
corroborar com o que ele se compromete anteriormente e atualmente, o qual ainda
postula conceitos de sentimentos de anormalidade e patologia. Legitimar a
anormalidade e a patologia significa legitimar sua oposição: o normal e o
saudável.
Como não é a intenção
deste texto discutir isso – mas ao mesmo tempo não irá concordar-se com tais
dicotomias simplistas –, será reconhecida a existência do autor, de seu
trabalho e seu mérito ao trazer os estudos da neurologia para o campo da
psicanálise e os subsídios que possibilitam as contribuições dela para os
estudos sobre o espaço autobiográfico. Todavia, para este texto, em especial,
seu conceito de “eu” será deixado de lado e adotar-se-á o “eu” de Benveniste, conceituado
nos Problemas de linguística geral
(1991).
Para Benveniste (1991),
toda enunciação é subjetiva e todo enunciado pressupõe um eu-enunciador, logo,
não há a não-subjetividade no enunciador[5]. Dessa
forma, na literatura, como na linguagem oral, todo discurso é proferido por um
eu-subjetivo, uma vez que, para o linguista, a subjetividade é “a capacidade do
locutor para se propor como ‘sujeito’” (p.288). Dessa forma, a língua é o meio de
o sujeito marcar sua subjetividade, de maneira que essa só pode ser
compreendida e analisada na manifestação do enunciado. Uma vez que todo
enunciado é único e não pode ser repetido – já que o contexto sempre se altera
–, o eu-enunciador manifesta-se sempre de maneira diferente, quando enuncia.
Ora, isso é semelhante com a teoria do Del Pino, que afirma que assumimos
muitos eus, com a diferença de que aqui não se manifesta o caráter normativo e
regulador da psicanálise.
Para a abordagem do
espaço autobiográfico, Biezma (1993) afirma que existem diversos níveis de
emergências do eu, de acordo com a produção, sendo o mais direto o diário e as
correspondências e o menos direto a produção literária em terceira pessoa, no
entanto, Biezma, Castillo e Picazo assumem que o EU manifesta-se em qualquer
tipo de produção, a presença de um ‘eu’, neste sentido, é medida por gradação
da proximidade da produção. Textos que são diretamente ligados ao autor, como
dito antes, diários, correspondências e confissões estariam em um primeiro
nível de emergência; textos narrados em primeira pessoa seriam de segundo nível
de emergência; textos que possuem um distanciamento formal, como narrativas em
terceira pessoa, em que o narrador assume a posição de observador de certos
fatos, estariam na terceira emergência do eu.
Em nosso objeto de
análise, os diários de Sylvia apontam para a primeira emergência do eu;
contudo, sua narrativa em primeira pessoa, A
redoma de vidro (1991), e seus poemas encaixam-se na segunda emergência do
eu, chamada por Biezma (1993) de “emergência disfarçada”. É importante
salientarmos aqui que o autor não fala especificamente sobre produções de
poetas; no entanto, no caso de Plath – uma confessionalista –, podemos incluir
seus textos em poemas também na segunda emergência, já que possuem os elementos
necessários para a classificação nesta categoria: o eu-lírico está na primeira pessoa, os poemas
estão diretamente ligados com a vida da autora, alguns inclusive têm títulos
bastante sugestivos – Daddy (Pai) é
um bom exemplo – e seus poemas constituem pequenas narrativas, já que contam
histórias íntimas da autora.
No entanto, Biezma et
al (1994: 234) afirmam que:
Para nosotros, como para Philippe Lejeune, lo esencial de una autobiografia es que, además de que el objeto del discurso sea fundamentalmente el individuo, exista un proyeto básico del autor, que se intente captar la personalidad en su totalidad, en un movimiento capitulativo de síntesis del yo, haciendo hincapié especialmente en su génesis, como elemento profundo y determinante del ser, y que el autor, desde luego, intente plasmar la unidad profunda de esa existencia, su posible sentido,obedeciendo a las exigencias a menudo contradictorias de la fidelidad y de la coherencia.
Nota-se que os teóricos
corroboram o pensamento de Lejeune (2008), ao afirmar que autobiografias
diferem de outros textos memorialísticos, uma vez que autobiografias procuram
dar o todo da vida do autor; no entanto, mesmo Lejeune afirma que autobiografia
pode ser “qualquer texto em que o autor parece expressar sua vida ou seus
sentimentos, quaisquer que sejam a forma do texto e o contrato proposto por
ele” (p. 53). Diante disso, pode-se afirmar que certos romances em primeira
pessoa podem ser autobiográficos, embora não sejam, necessariamente,
autobiografias no sentido stricto sensu
do termo.
Neste sentido,
modificando as formas de abordagem mais comuns da obra de Sylvia Plath, desvinculando-se
do simples biografismo e das análises puramente psicanalistas, que
diagnosticaram a autora dentro dos manuais de psicopatologias, procuram-se outras
teorias de compreensão do fenômeno autobiográfico, buscando ampliar as formas
de entendimento do texto literário da poetisa, excluindo conceitos já
pré-estabelecidos, na tentativa de falar algo diferente ou, pelo menos, de
outro lugar de análise.
O espaço autobiográfico de Sylvia Plath: depressão, suicídio e literatura
Sylvia Plath alcançou
fama póstuma devido ao seu fim trágico. Na literatura contemporânea, tal fato
aconteceu raríssimas vezes. Mesmo com um pequeno reconhecimento enquanto viva,
apenas após sua morte que seus textos interessaram o grande público e o
universo acadêmico literário. A polêmica do caráter autobiográfico de seus
textos mostrou as mais inesperadas posições críticas nos Estados Unidos e na
Inglaterra na época, mas, independentemente da forma como se aborde uma análise
sobre a obra de Plath, o suicídio e a depressão estarão presentes. Obviamente
que nem todo escritor suicida carrega embutido em sua obra esse elemento
explícito, basta pensar em Ernest Hemingway, Pedro Nava, Stephan Zweig entre
outros: não se pode dizer o mesmo sobre Sylvia Plath.
Em uma produção
literária em que a vida da autora está intimamente ligada à sua obra, é
interessante notar o quão dificultoso era para a escritora essa transformação
de matéria vivida em arte. Em seus diários, Sylvia afirmava que “precisava sair
de si” [6](p.
473), ou seja, o solipsismo da autora lhe causava incômodo, era como se o tempo
todo estivesse refletindo sobre sua condição, anotava em seu diário “vou perecer
se não conseguir escrever sobre ninguém a não ser eu mesma” (p. 621). A verdade
é que Sylvia jamais pensou que sua vida fosse interessante para matéria
literária, ela afirmava que sua existência não serviria nem para um conto de 20
páginas (KUKIL, 2003).
No entanto, ao
analisarmos a obra A redoma de vidro
(1991), percebemos que Sylvia romanceou sua juventude, sua primeira tentativa
de suicídio, seu primeiro amor, a relação complicada com a mãe, o sonho de ser
escritora e sua internação. Hoje não há dúvidas de que Sylvia transformou em
romance tudo o que viveu quando jovem, antes de formar-se em inglês.
O próprio texto nos dá
uma pista sobre isso:
Resolvi que passaria o verão
escrevendo um romance [...] pus a primeira folha virgem na minha máquina de
escrever portátil e rodei o rolo para cima. [...] Uma ternura encheu meu
coração. A heroína será eu mesma, disfarçada. Ia se chamar Elaine. Elaine.
Contei as letras nos dedos. Seis letras, como Esther. Parecia um bom começo.
(PLATH, 1991: 113)
Esther é o nome da
narradora-personagem cujo nome possui seis letras, como Sylvia. Percebe-se que
não é inocente esta fala. Sylvia, de algum modo, queria dizer aos seus leitores
que era ela a heroína disfarçada. Ela era a escritora que, quando jovem, teve
depressão e tentou suicidar-se aos dezenove anos, que passou por tratamentos
psiquiátricos, que de aluna brilhante tornou-se profundamente triste e
insatisfeita com a vida.
Lejeune (2008) afirma
que nomes ficcionais de narrativas autobiográficas permitem que o leitor
desconfie se o narrado não é também o vivido pelo autor. No entanto, no caso de
A redoma de vidro (1991), temos um
acontecimento interessante. O livro foi publicado em janeiro de 1963, poucos
dias antes do suicídio da autora, com o pseudônimo de Victoria Lucas. Até então
ninguém conhecia Sylvia Plath; entretanto, com a publicação do livro nos
Estados Unidos, em 1971, com o nome verdadeiro da autora, a recepção da
narrativa mudou drasticamente: o que antes serias apenas um texto ficcional
aconteceu de ser visto como autobiográfico e A redoma de vidro passou de romance ficcional para romance
autobiográfico – nem mesmo Lejeune conseguiria dar conta de tal fenômeno.
Não irá aqui se
discutir o caráter de verdade e ficcionalidade da obra, pois toda obra
literária é ficcional, de maneira que sabemos que nem tudo que a autora colocou
em seu texto narrativo ocorreu da maneira descrita, e nem todos os personagens
existentes no universo ficcional tem um correspondente no mundo real. Todavia,
a obra causou bastante impacto quando lançada nos Estados Unidos, até mesmo a
mãe de Sylvia Plath disse que a filha tinha tendência para modificar as coisas,
provando que muitas coisas ali poderiam ser lidas como reais e, ao mesmo tempo,
ficcionais: se modifica, significa que ficcionaliza, nada mais perfeito para um
escritor.
Esther Greenwood,
narradora-personagem de A redoma de vidro,
narra sua vida como bolsista em uma revista de moda em Nova York e a futilidade
das mulheres e homens da cidade grande, durante os trinta dias que fica como
bolsista da revista Lady’s day.
Oriunda do interior, Boston, Esther sonha ser escritora e inscreve-se para um
curso de escrita, após o término de seus dias na revista de moda, pleiteando
uma bolsa. Por não conseguir a bolsa, passa as férias de verão em casa, com a
mãe, e decide escrever um romance. É neste período que aparecem as primeiras
manifestações depressivas, as consultas psiquiátricas, a tentativa de suicídio,
a internação em um hospital psiquiátrico, a terapia de eletrochoque e a
dificuldade de ser mulher nos anos 60, quando os sonhos de uma mulher inquieta não
são compatíveis com o que a sociedade espera de uma jovem de 19 anos.
Tal como Esther, Sylvia
também tentou o suicídio aos dezenove anos. A descrição dada pelo livro é
semelhante com o que ocorreu com Plath:
Abri a torneira e enchi um grande
copo d’água. Peguei a água e o frasco de pílulas e fui para o porão. [...] Atrás
do aquecedor a óleo havia um vão escuro na parede, à altura do meu ombro, que
se transformava em um respiradouro coberto, entre a casa e a garagem, a perder
de vista. [...] Levei um bom tempo para me enfiar nele. Por fim, depois de muitas
tentativas, consegui e rastejei para dentro da escuridão como um duende. [...]
Enrolei-me em minha capa preta como se fosse minha própria sombra, abri o
frasco de pílulas e comecei a engoli-las depressa, entre goles de água, uma,
depois outra, depois outra... [...] (p. 155)
Aos dezenove anos,
Sylvia fez o mesmo e, por pouco, não morreu. No trecho acima, muitos estudiosos
de Plath veem a descrição da tentativa de suicídio da autora na juventude.
A dificuldade em ser
mulher e não querer adaptar-se aos padrões socialmente instituídos também
aparece várias vezes, como na recusa da personagem por não querer casar, além
de seu incômodo com a valorização da virgindade da mulher, coisa que não
ocorria com os homens, elemento que incomodava profundamente a narradora. Além
disso, a personagem detesta a ideia de um dia poder a vir ser mãe.
Sylvia Plath tinha a
intenção de colocar isso em uma obra para livrar-se de seu passado, conforme
seus diários. Essa incidência temática, no entanto, não aparece apenas em A redoma de vidro, mas também em seus
poemas.
Ao lermos a coletânea
de poemas Ariel (2007), de Plath,
encontramos os mesmo elementos temáticos que compõem a narrativa A redoma de vidro (1991). A ausência do
pai, a depressão, a temática do suicídio e os problemas amorosos. Constrói-se,
neste sentido, o que Lejeune (2008) chamaria de espaço autobiográfico, ou seja,
vários textos que compõem a imagem do autor e vida do autor. Dentre os poemas
mais interessantes, destaca-se aqui “Lady Lazarus” (p. 86), um dos mais famosos
poemas da autora:
I
have done it again.[7]
One
year in every ten
I
manage it —
A
sort of walking miracle, my skin
Bright
as a Nazi lampshade,
My
right foot
A
paperweight,
My
featureless, fine
Jew
linen.
Peel
off the napkin
O
my enemy.
Do
I terrify? —
The
nose, the eye pits, the full set of teeth?
The
sour breath
Will
vanish in a day.
Soon,
soon the flesh
The
grave cave ate will be
At
home on me
And
I a smiling woman.
I
am only thirty.
And
like the cat I have nine times to die.
This
is Number Three.
What
a trash
To
annihilate each decade.
What
a million filaments.
The
Peanut-crunching crowd
Shoves
in to see
Them
unwrap me hand and foot —
The
big strip tease.
Gentleman
, ladies
These
are my hands
My
knees.
I
may be skin and bone,
Nevertheless,
I am the same, identical woman.
The
first time it happened I was ten.
It
was an accident.
The
second time I meant
To
last it out and not come back at all.
I
rocked shut
As
a seashell.
They
had to call and call
And
pick the worms off me like sticky pearls.
Dying
Is
an art, like everything else.
I
do it exceptionally well.
I
do it so it feels like hell.
I
do it so it feels real.
I
guess you could say I've a call.
It's
easy enough to do it in a cell.
It's
easy enough to do it and stay put.
It's
the theatrical
Comeback
in broad day
To
the same place, the same face, the same brute
Amused
shout:
"A
miracle!"
That
knocks me out.
There
is a charge
For
the eyeing my scars, there is a charge
For
the hearing of my heart —
It
really goes.
And
there is a charge, a very large charge
For
a word or a touch
Or
a bit of blood
Or
a piece of my hair on my clothes.
So,
so, Herr Doktor.
So,
Herr Enemy.
I
am your opus,
I
am your valuable,
The
pure gold baby
That
melts to a shriek.
I
turn and burn.
Do
not think I underestimate your great concern.
Ash,
ash —
You
poke and stir.
Flesh,
bone, there is nothing there —
A
cake of soap,
A
wedding ring,
A
gold filling.
Herr
God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out
of the ash
I
rise with my red hair
And
I eat men like air.
No
poema citado, encontram-se elementos partilhados na obra narrativa e que estão
evidentes no poema. Lady Lazarus nos fala das três tentativas de suicídio do
eu-lírico, a primeira, aos dez anos, a segunda, aos vinte – fato que ocorreu
aos dezenove –, em que o eu-lírico diz que se fechou como uma concha – na
realidade, escondeu-se no porão – e que quase morreu. A terceira tentativa não
é descrita, uma vez que Plath recém tinha trinta anos, quando escreveu; morreu
aos 30. Além disso, nota-se que, ao falar, expõe-se para a multidão, fala dos
médicos que a trataram, em hospitais, em que sofreu tratamento de eletrochoque,
não é à toa que a palavra charge, em
inglês, tem o significado de “carga elétrica” também.
Evocando
seus médicos, seus inimigos, o eu-lírico afirma que renasce e devora homens.
Homens representam, na época de Plath, o poder, a dominação contra a qual ela
luta para afirmar-se como escritora. Ao falar que o que sobra de sua carne
queimada é o anel de casamento, uma barra de sabão, ou uma obturação de ouro,
percebe-se a rede semântica de coisas do dia a dia de uma mulher casada com um
homem bem sucedido.
Desta
forma, o espaço autobiográfico construído por Sylvia Plath é, marcadamente,
construído pela depressão, o suicídio e a luta contra o machismo que imperava também
no mundo das letras, na época de publicação. Não é à toa que, em sua narrativa
e em seus diversos poemas, a poetisa coloque o embate entre o homem e a mulher.
Como em seu poema, Sylvia retornou como uma fênix, e sua obra é a maior prova
disso: o legado que a deixou imortal.
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Paul.
Rough magic: a biography of Sylvia
Plath. New York: Da Capo Press, 1991.
BEACH,
Cristopher. The Cambridge introduction to
twentieth-century american poetry. United Kingdom: University Cambridge
Press, 2003.
BENVENISTE,
Emile. O homem na língua. In: Problemas
de linguística geral I. São Paulo: Pontes, 1991.
BENVENISTE,
Emile. O homem na língua. In: Problemas
de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989.
BIEZMA, Javier
del Prado et al. Autobiografia y
modernidad literária. Ediciones de la Universidad de Castilla-La mancha,
1994.
BRIGGS,
Asa. Who's
who in the twentieth century. London: Oxford Press, 1999.
DEL PINO,
Castillo. Teoria dos sentimentos. Lisboa: Fim de
século, 2003.
KUKIL,
Karen V. Os diários de Sylvia Plath 1950
-1962. São Paulo: Globo, 2004
LEJEUNE,
Philipe. O pacto autobiográfico. Belo
Horizonte: UFMG, 2008.
PLATH,
Sylvia. Ariel. Campinas: Verus, 2007.
PLATH,
Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo:
Globo, 1991.
[1]
Sylvia Plath nasceu em
outubro de 1932 e faleceu em fevereiro de 1963, aos 31 anos. Seu suicídio foi o
gatilho que a tornou famosa: a autora vedou a cozinha e o quarto em que os
filhos dormiam, deixou a janela do quarto deles aberta, com o café da manhã
pronto, ao lado de suas camas, e colocou a cabeça dentro do forno, com o gás
aberto. Morreu por intoxicação. Hoje, seus poemas são lidos e estudados nas
universidades anglo-saxãs e cursos de letras de língua inglesa. É considerada
uma das mais importantes representantes do movimento norte-americano chamado de
“poesia confessional”. Ganhou o prêmio Pulitzer em 1982, 19 anos após sua morte,
com a coletânea de poemas, intitulada The Collected Poems, organizada pelo seu ex-marido, Ted Hughes. BRIGGS,
Asa. Who's
who in the twentieth century. London: Oxford Press, 1999.
[2] Uma das principais
características da poesia confessional era a investigação das pressões da
[instituição] familiar, esta sendo vista como uma instituição reguladora da
vida da classe média; mais especificamente, poemas confessionais focavam
questões como o divórcio, a infidelidade sexual, a negligência infantil e os
transtornos mentais adquiridos na infância e ainda presentes. [tradução minha]. BEACH,
Cristopher. The Cambridge introduction to
twentieth-century american poetry. United
Kingdom: University Cambridge Press, 2003.
[3][3] O ex-marido de Sylvia, Ted
Hughes, foi um dos poetas britânicos mais importantes do século XX. Muitos
atribuem responsabilidade do suicídio da autora a Ted, devido aos casos
extraconjugais, à negligência afetiva e às duras críticas feitas ao trabalho da
jovem esposa, que enfraqueceram ainda mais o frágil equilíbrio psicológico da
poetisa. Após o suicídio de Sylvia, Ted Hughes eliminou partes do diário dela, queimou
cartas e extraviou outros documentos da autora, justificando que era para que
“seus filhos não vissem”; no entanto, testemunhos de conhecidos do casal apontam
que ambos tinham uma relação difícil. Supostamente, o divórcio com Ted, após
anos perdoando as relações extraconjugais do marido – Ted largou-a para ficar
com a amante, amiga da escritora -, serviu como mote para a última tentativa de
suicídio – desta vez bem sucedida – de Sylvia. ALEXANDER, Paul. Rough magic: a biography of Sylvia
Plath. New York: Da Capo Press, 1991.
[4]
ALEXANDER, Paul. Rough magic: a
biography of Sylvia Plath. New York: Da Capo Press, 1991.
[5] Benveniste, na sua teoria, não
foca o falante real, empírico, no mundo, mas o sujeito enunciador, este sendo
visto como aquele que quando profere um
enunciado torna-se um sujeito de enunciação. É o sujeito de enunciação que
interessa ao linguista. Embora existam trabalhos importantes que associem a
teoria de Benveniste com o homem falante, em seus textos, não há incidência de
uma preocupação com o homem real falante e vazio de enunciado.
[6]
KUKIL, Karen V. Os diários de
Sylvia Plath 1950 -1962. São Paulo: Globo, 2004.
[7] Eu fiz de novo/ Um ano em cada
dez/ Eu ajeito/ Um tipo de milagre ambulante, minha pele/Brilha como abajur
nazista/ Meu pé direito/ Um peso de papel/ minha inexpressividade fina/ Linho
judeu/ Derrube o tecido/ Oh, meu inimigo/ Eu assusto?/ Este nariz, a cova dos
olhos, os dentes todos?/ O hálito amargo/ Um dia irá/ logo, logo a carne/ e o
túmulo estará em mim/ em casa comigo/ E eu sou uma mulher sorridente/ Tenho
apenas trinta/ E como o gato nove vidas para morrer/ Esta é a número três/ Que
lixo/ Aniquilar-se a cada década/ Que milhões de filamentos/ Os amendoins sendo
mastigados pela multidão/ Que querem ver/ Então desenfaixam as mãos e os pés/ O
grande strip-tease/ Senhores, senhoras/ Estas são minhas mãos/ Meus joelhos/ Eu
posso ser pele e osso/ Nada menos, eu sou a mesma e idêntica mulher/ A primeira
vez que aconteceu eu tinha dez/ Foi um acidente/ Na segunda/ Eu quis perder
tudo e não voltar mais/ eu me encavernei/ Como uma concha/ Eles chamaram,
chamaram/ E tiraram vermes de mim como pérolas/ Morrer/ É uma arte como tudo o
mais/ Eu faço excepcionalmente bem/ Eu faço como o inferno/ Eu faço como se
fosse real/ Eu acho que você pode dizer que tenho um chamado/ É fácil fazer
isso em uma cela/ É fácil fazer o suficiente e ficar nela/ É teatral/ Volto no
início do dia/ ao mesmo rosto/ ao mesmo bruto/ aflito grito:/ Milagre! /Que me
derruba/ Há um peso/ Para ver minhas cicatrizes/ há um peso/ Para ouvir meu
coração/ Realmente tem/ Um peso grande/ Por uma palavra ou toque/ Ou um pouco
de sangue/ Ou um pedaço dos meus cabelos na minha roupa/ Então, senhor Doutor/
Então, senhor Inimigo/ Sou sua obra/ Sou valiosa/ O bebê de ouro puro/ Que se
mistura a um grito/ Eu viro e queimo/ Cinzas, Cinzas/ Você toca e mexe/ Carne,
osso, não há nada lá/ Uma barra de sabão/ Um anel de casamento/ Uma obturação
de ouro/ Senhor Deus, Senhor Lúcifer/ Cuidado, Cuidado/ Eu renasço do meu
cabelo vermelho/ E devoro homens como ar.
[tradução minha]