FESTA DO ABSURDO: A LÍNGUA E O INTELECTO EM VILÉM FLUSSER


Rafael Miguel Alonso Júnior
Mestrando em Teoria Literária – UFSC
rafamalonso@gmail.com

Introdução

Vilém Flusser (1920-1991), ensaísta tcheco-brasileiro, brasileiro-tcheco, tcheco naturalizado brasileiro, tcheco de nascimento e brasileiro por opção (por ocasião, seria mais apropriado). Definir Flusser é, de entrada, problemático. Até mesmo a alcunha “ensaísta” é limitada. Flusser fez teoria, filosofia, ficção e poesia; tudo ao mesmo tempo. E nunca fez questão de especificar sobre o que falava. A divisão entre teoria e práxis, filosofia e ficção era, para Flusser, duvidosa e até desnecessária. Encaixá-lo como pensador dos media e enquadrá-lo no campo dos estudos da comunicação é desperdiçar o potencial teórico de Flusser. Portanto, classificar Flusser é, de entrada, equivocado. Este trabalho colocará a discussão a respeito das imagens técnicas em segundo plano. Ela vai aparecer, mas quase como subtexto de outra discussão, a saber: a discussão de Flusser sobre o que é e como se articula o pensamento. Ou, para utilizar a expressão empregada por Flusser em A dúvida (2011), livro que serve de base a este trabalho, a discussão sobre o que é e como se articula a “conversação ocidental”.
            Para que o argumento deste trabalho tenha clareza, opta-se por, antes de se entrar de cabeça na teoria flusseriana, desenhar-se um breve panorama do lugar – ou do não-lugar – a partir do qual Flusser nos fala. Este curto prelúdio de tom biográfico não tem como intenção apresentar ao leitor um pouco da vida de Flusser a fim de que possa conhecê-lo melhor. Afinal, conhecer Flusser de perto é, no máximo, captar o fundamento da sua falta de fundamento; é compreender melhor como se forma esse não-lugar citado acima. Como relata Rainer Guldin, estudioso alemão de Flusser, “a abordagem de Flusser para investigar, pensar e pesquisar tornou-se uma expressão das incertezas que ele confrontara em sua vida” (GULDIN, 2008, p. 59).

1. Bodenlos

            A vida de Vilém Flusser corria sem sobressaltos em Praga, na República Tcheca, seu local de nascimento. A mãe vinha de família nobre e o pai era professor universitário. O clima intelectual de Praga era favorável, basta pensar em Kafka, Rilke e no teatro experimental de Capek. No colégio, Flusser era considerado pelos professores talentoso para a filosofia e tido como leitor voraz. Em 1939 a tranqüilidade foi interrompida. A Eslováquia anunciou independência da Tchecoslováquia e debandou para o lado nazista. Nos dias seguintes, as forças nazistas invadiram o que seguia como República Tcheca. No mesmo ano, o pai de Flusser, Gustav Flusser, foi levado pelos nazistas. A partir de então, Vilém assumiu como sua a família da namorada, Edith, com quem viria a se casar no Brasil, em 1941. Mas o caminho até a América do Sul foi tortuoso. Primeiro, Flusser, Edith e os pais de Edith foram à Inglaterra. A família de Edith passou a fronteira sem percalços. Flusser só avançou porque Gustav Barth, pai de Edith, subornou o funcionário responsável pela liberação dos estrangeiros. Ao sair da República Tcheca, os fugitivos não tinham um plano definido. A intenção era fugir do caos, de preferência para o mais longe possível. Na Inglaterra, Flusser e a família de Edith viram-se diante de algumas opções de fuga: Shangai, Panamá e Brasil. A escolha pelo último deu-se por acaso. Já dentro do navio, o sucesso da empreitada não estava garantido. Os nazistas mantinham inúmeros submarinos espalhados pela costa a fim de derrubar navios carregados de fugitivos. O navio de Flusser consegue chegar ao Rio de Janeiro, mas por sorte. Conta o professor brasileiro Gustavo Bernardo, também estudioso de Flusser, que o navio que trouxe Flusser, Edith e a família Barth foi interceptado pelos nazistas e naufragou, na tentativa de retornar à Europa, não muito distante de terras brasileiras. Fuga aparentemente concluída era hora de respirar ar puro e ameno, distante do odor de pólvora que tomava conta da Europa. Não para Vilém Flusser. Ele ainda não havia deixado o navio e foi chamado para rezar o kadish (oração proferida em público, por órfãos, em homenagem aos pais) numa sinagoga próxima. Ele recebera a notícia do assassinato do pai, em 18 de junho de 1940. No ano seguinte, casou-se com Edith, e não tardou para mudar-se para São Paulo. No início, a rotina de Flusser era tediosa: trabalhava durante boa parte do dia como comerciante. À noite, atenuava a rotina maçante do trabalho com muita leitura. Tal rotina, por certo, não amansava o espírito inquieto de Flusser. Prova contundente disso é que Edith acompanhava Flusser diariamente no trajeto até o trabalho com medo de que ele se suicidasse. Nos anos 60, Flusser foi contratado pela USP e assumiu a cadeira de professor de Ciências da Comunicação na FAAP. Rapidamente, Flusser tornou-se figura pública conhecida e professor popular. Costumava dar aulas com salas abarrotadas de alunos e o terraço da sua casa era uma extensão da sala de aula, no qual recebia freqüentemente amigos e alunos, com os quais permanecia em diálogo por horas[1]. Além disso, conviveu e fez amizade com grandes escritores e teóricos da época, dentre eles Haroldo de Campos e Guimarães Rosa. 
            Bodenlos, a autobiografia de Flusser, publicada postumamente em 1992 mas que foi escrita por volta dos anos 70, traz passagens em que é possível perceber com mais clareza o que clima existencial de Flusser. Ainda em Praga, durante a ocupação nazista, Flusser diz que a atrocidade que se configurava diante dos seus olhos permitia ao mesmo tempo uma “sensação de liberdade vertiginosa” (FLUSSER, 2007, p. 31). Flusser, obviamente, em nada compactuava com a ocupação nazista, mas esse desterramento abrupto provocado pela invasão nazista abriu-lhe a porta para a existência errante, sem fundamento[2]. A palavra alemã bodenlos pode ser traduzida como “sem chão, sem fundamento”. Para Flusser, a arte da ausência de fundamento consiste em “apostar absurdamente a própria vida” (FLUSSER, 2007, p. 34). Flusser acredita que “não importa se praguense ou londrina, a gente é provinciana se tem fundamento. Mas quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo” (FLUSSER, 2007, p. 35). Flusser chega a mencionar o termo suicídio, o que justifica em parte a preocupação de Edith. Mas, quando trata do assunto, entende o suicídio não de forma literal, mas enquanto capaz de proporcionar “liberdade diabólica do jogo entre tempos e com tempos” (FLUSSER, 2007, p. 38). O clima no Brasil, quando da sua chegada, é assim definido: “Tudo que estava acontecendo no Brasil se apresentava à gente como um fazer-de-conta deliberado. As pessoas que cercavam a gente suspendiam não apenas o saber da bomba, mas também o saber do poder decisório que exerciam os Estados Unidos sobre o Brasil” (FLUSSER, 2007, p. 56). Flusser vê a auto-alienação como abandono do próprio eu, e toma esse “eu” completamente desessencializado como uma esponja, que pode chupar elementos de não importa que cultura[3]. Da mesma forma, Flusser julga todo apelo patriótico como maneira de santificar ligações humanas impostas e desprezar ligações livres, colocando “o parentesco familiar acima das afinidades eletivas” (FLUSSER, 2007, p. 228). A errância e a recusa em assumir um fundamento – assim como a recusa em aceitar passivamente conceitos formados historicamente e com tendência à repetição irrefletida – transferem-se para o texto de Flusser, visto que o autor concede importância capital ao estudo da língua e ao trabalho com as palavras – assunto que merecerá destaque neste trabalho. A autobiografia foi escrita por Flusser em quatro idiomas: português, alemão, inglês e francês. Estes eram os idiomas mais familiares, embora Flusser dominasse mais de dez línguas. Já o capítulo “O chão que pisamos”, presente em Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar[4], ganhou doze versões. Flusser, ao contrário da maioria dos escritores, não tinha por hábito refazer seus escritos (cortá-los, reescrevê-los ou complementá-los), mas vertê-los em outras línguas.
A tendência à tradução de Flusser é o assunto central do ensaio Tradução e escrita multilinguística, de Rainer Guldin[5]. Guldin liga o pensamento nômade de Flusser à prática da tradução e diz que esta se configura ao autor tcheco-brasileiro como “conceito filosófico, ferramenta crítica e princípio criativo... A tradução é, então, uma maneira específica de pensar, escrever e viver” (GULDIN, 2008, p. 59). Guldin vê em Flusser um pensador à frente do seu tempo, pois, ainda nas décadas de 50 e 60, antecipou discussões, hoje atuais, a respeito da tradução, já que Flusser vislumbrava a tradução como quebra de ponto de vista superior e irradiador de significado pleno, vendo, ao contrário, a tradução enquanto tentativa de expor perspectivas múltiplas e como desdobramento daquilo que já tem múltiplas camadas, como explicitação da potencialidade do texto. Cada novo esforço de escrita é encarado como tentativa de tradução do que já foi escrito, mas em novo nível de significado. “A tradução é, então, um processo aberto alimentado por sua própria impossibilidade” (GULDIN, 2008, p. 68). Como aponta Guldin, Flusser aproxima a decomposição do eu pela tradução como forma simbólica de morte. “Pelo estudo da tradução, portanto, podemos aprender algo sobre a morte, ainda que apenas metaforicamente” (GULDIN, 2008, p. 72). É possível dizer que Flusser toma a tradução como forma de tangenciamento ao não-traduzível (a morte), mas não para apropriar-se da morte, mas para dela aproximar-se, para captar o seu clima. Flusser vê a tradução como ampliação das possibilidades de leitura, como acréscimo de camadas significantes, como expansão do intelecto.
O modo como o intelecto define-se, expande-se e culmina no que Flusser chama a “conversação ocidental” é ao que este trabalho irá se dedicar a partir de agora, após esta breve, mas que se julga necessária, viagem pela vida de Flusser. Viagem que visou a apresentação da falta de fundamento da qual parte a obra de Flusser e que não temeu incorreções biográficas. Segundo enfatiza Gustavo Bernardo, Flusser, durante as entrevistas, costumava inventar histórias a seu respeito e incentivava a publicação de descrições biográficas contraditórias (BERNARDO, 2008, p. 10).

2. Do intelecto como jogo de palavras

            Vilém Flusser escreve A dúvida por volta do fim dos anos 50 e começo dos anos 60. O gesto inicial de Flusser é desmembrar o famigerado “penso, logo existo”, de Descartes. Na concepção de Flusser, a falha cartesiana não está no “penso”, mas no “logo existo”. Muito mais do que um elogio à racionalidade, a frase cartesiana aponta para um sujeito pensante bem definido, controlador e emissor de tais pensamentos. A proposta de Flusser parte da “dúvida da dúvida” e encara o desafio da “intelectualização do próprio intelecto” (FLUSSER, 2011, p. 25). Mas, ao contrário da proposta cartesiana, a de Flusser não visa a constituição bem definida do “eu” pensante, mas a dissolução deste “eu”. O autor reconhece, de início, que não se trata de tarefa fácil, e admite que “o idealismo radical, a dúvida cartesiana e a intelectualização completa desembocam no niilismo” (FLUSSER, 2011, p. 26). Flusser propõe uma outra forma de pensamento, que resista ao idealismo ingênuo, ao eu cartesiano e à crença extrema na racionalização.
Nas primeiras páginas do livro, Flusser deixa claro que, como o leitor atento poderá perceber, a motivação da escritura é a crença reticente na civilização ocidental. Sendo assim, não se trata do abandono do intelecto, mas da sua superação por si próprio. Ou nas palavras de Flusser: “vivência intelectual da futilidade do intelecto” (FLUSSER, 2011, p. 32). A saída encontrada por Flusser é esta: a aproximação (a ligação quase direta) do pensamento com a linguagem ou, caso se prefira, a sua não-separação. “A preocupação com o pensamento e a consideração do intelecto fazem parte da disciplina da língua” (FLUSSER, 2011, p. 51). Flusser define intelecto como campo no qual ocorrem pensamentos e, por conseqüência, define pensamento como organização de palavras. Pensar, portanto, é organizar palavras, e sendo o pensamento o projeto-mestre humano e passível de avaliação, “a análise lógica da frase é uma análise ontológica” (FLUSSER, 2011, p. 60). Definido o pensamento como organização de palavras, e sendo um conjunto significativo de palavras uma frase, Flusser recorre, sem receio de retroceder ao cartesianismo que quis abandonar, às categorias de sujeito, objeto e predicado. Segundo Flusser, tudo deve aceitar a forma “sujeito, ou objeto, predicando uma frase” (FLUSSER, 2011, p. 59). A frase tem dois horizontes, o sujeito (sub-jectum), que está no fundo do projeto, e o objeto (ob-jectum), que obsta o projeto. O predicado é aquilo que se projeta. Como tal estrutura tem origem na gramática, Flusser lembra que seu uso fora de contexto gera equívocos, como as intermináveis discussões em torno do sujeito e do objeto, da identificação de um suposto “eu” com o sujeito e da diferenciação entre objeto real e objeto ideal. Tais equívocos, na opinião de Flusser, não passam de erros de sintaxe. “Estritamente falando, podemos dizer que a realidade é a soma dos predicados de todas as frases articuláveis” (FLUSSER, 2011, p. 66) e a frase “é a única maneira pela qual símbolos se realizam, porque assim adquirem significado”. Dada a organização lingüística do pensamento, acrescenta-se que a tendência do pensamento é exaurir sujeito e objeto, de predicado em predicado. Mas essa meta é inalcançável. Realizações parciais são possíveis: as frases significativas, quando “o pensamento adquire uma aura vivencial de satisfação, um clima de obra de arte completa e perfeita” (FLUSSER, 2011, p. 44-45). Mas, ao mesmo tempo em que parece ter se completado, o pensamento é carregado de dinamismo interno que o impede de repousar sobre si mesmo. Está-se diante do paradoxo da lógica, segundo Flusser, método pelo qual avança o pensamento ocidental: o mesmo conjunto de regras que permite a abertura do pensamento impede o seu fechamento, a sua completude. A mesma ferramenta que permite a criação do pensamento garante a sua multiplicação. Nem tudo pode servir para sujeito e objeto numa frase significativa. “O abandono da fé no último significado do pensamento não acarreta, necessariamente, o abandono do uso pragmático dos significados dos pensamentos individuais” (FLUSSER, 2011, p. 46)[6].
            Numa rápida retrospectiva: o intelecto é o campo no qual ocorrem pensamentos. Pensamentos são organizações de palavras, ou ainda organizações de frases significativas. Sendo o pensamento organização de palavras, este se enquadra na estrutura sujeito, objeto e predicado e segue as regras da gramática. É nítida a aproximação tecida por Flusser entre pensamento e língua. O verbo que melhor definiria o pensamento seria o “articular”, pois como aponta Flusser, a língua “não descreve nem explica, articula” (FLUSSER, 2011, p. 98). Desta forma, a expansão do intelecto dá-se pela expansão da língua. Pensar é forçar os limites da língua. Pensar é fazer poesia. Segundo Flusser, a expansão do intelecto vem da intuição poética, já que intuir pode ser entendido como chamar, chamar algo. Quem vai de encontro ao limite da língua para chamar, cria nomes próprios. O verso é a situação limite da língua, pelo qual a língua tenta superar a si mesma. “No campo do intelecto ocorrem dois tipos de pensamentos: “versos” e “conversos” (FLUSSER, 2011, p. 80). Os nomes próprios são chamados, as palavras secundárias são conversadas. Cabe à crítica tornar os nomes próprios conversáveis, cabe à crítica criticá-los. “A conversação é o processo da explicitação crítica, da intelectualização e da profanação do verso”, neste sentido, “a conversação é idêntica ao conceito de história” (FLUSSER, 2011, p. 82-83). O tecido da conversação ocidental é o tecido da história. A expansão do intelecto dá-se pela criação de nomes próprios, que deixam de ocupar lugar  proeminente no intelecto a partir do momento em que são criticados à exaustão, conversados em excesso. Processo sem fechamento[7]. “A poesia aumenta o território do pensável, mas não diminui o território do impensável” (FLUSSER, 2011, p. 82). Volta-se ao niilismo inicial.

3. Com o diabo, mas não ao inferno

            Em A história do diabo (a primeira versão em alemão data de 1956/57, mas o livro é publicado em português somente em 1965), Flusser joga com a famosa frase bíblica: “ao criar céus  e terra, o Senhor arrancou um pedaço do “ser em si”, do “puro ser”, para mergulhá-lo na correnteza do tempo” (FLUSSER, 2008, p. 33). Deus criou o espaço e o tempo, mas o fluxo do tempo, graças ao qual os fenômenos acontecem, é obra diabólica. Deus é intemporalidade, eternidade, fuga do mundo. O Diabo é a temporalidade, o diabo é a história. Sendo assim, o caráter positivo do diabo manifesta-se no mundo através da ciência, da arte e da filosofia. Mas, ao mesmo tempo, “a história do diabo é a história do progresso” (FLUSSER, 2008, p. 24). É prudente seguir o diabo e inserir-se no mundo. Mas é necessário abandoná-lo antes que ele nos conduza até o inferno. É o diabo quem cria a história, mas ele pode acabar com ela caso confie-se em demasia nele. Em outras palavras, é necessário preservar o mistério; o enigma não pode ser revelado. “Todos os nossos problemas são, em última análise, religiosos” (FLUSSER, 2007, p. 18) e “todo nome próprio é um mito” (FLUSSER, 2011, p. 100). Escrever é atividade diabólica, na medida em que é superação do silêncio do não precisar mais escrever, superação do tempo, sendo a língua o manancial do qual todos os mitos e todos os ritos brotam e a conversação a ritualização e a desmitologização dos nomes próprios. O poeta é o profeta, e o crítico o sacerdote. O poeta é mitólogo, enquanto o crítico desmitologiza utilizando-se das regras da gramática. O intelecto adora em sua fase intuitiva, e ora em sua crítica. O intelecto é auto-destruidor. Momento perigoso, de tensão. O inferno não está distante. “A conversação ocidental atingiu o estágio de ritualização no qual a oração ora não mais sobre o inarticulável, mas sobre si mesma” (FLUSSER, 2011, p. 102). Incorre-se no risco de a conversação ocidental refluir sobre si mesma, de não mais criticar o nome próprio, de girar insistentemente ao redor do mesmo ponto. É o momento no qual a teia do pensamento esquece-se de que tem por função “revestir a rocha, e não captá-la” (FLUSSER, 2011, p. 89), ou caso se prefira, é a visão completa da coisa. “A visão da coisa é o fundir-se do intelecto com a coisa que provocaria simplesmente o desaparecimento do intelecto” (FLUSSER, 2011, p. 95). Este é o momento em que a conversação ocidental deixa de ser conversação autêntica e se torna conversa fiada, e não mais produz informação nova. Não mais joga com a variedade dos significantes, mas se fecha sobre o significado. Quando Flusser fala de produção de informação nova, não se trata da produção de informação da maneira como ela se dá nas páginas virtuais de notícias, nas quais o processo consiste na renovação constante das informações, mas de informações efêmeras e que discorrem sobre temas conhecidos. Trata-se da assunção do verbo informar assumida por Flusser, que entende informar enquanto dar forma, (in) formar. Tal produção de informação nova corre contra a tendência natural do universo (e que parece ser a da grande mídia[8]) rumo à entropia. Para Flusser, trata-se da produção de informação pouco provável, que rema contra a correnteza entrópica que nos arrasta. Nas palavras de Flusser: trata-se de impedir que o acaso se transforme em necessidade. “A história tem um objetivo concreto, contra o qual ela corre, a saber: ser colocada em imagem” (FLUSSER, 2010, p. 213). Exemplos contrários pululam. O mais impactante, sem dúvida, é Auschwitz. Em Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, Flusser diz que no campo de concentração “a cultura ocidental revelou uma das suas virtualidades nela inerentes. Auschwitz é realização característica da nossa cultura... a tendência ocidental rumo à objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho” (FLUSSER, 1983, p. 10). Aqui, Flusser introduz brevemente conceitos que lhe são caros, como os de aparelho e programa, para reforçar que “Auschwitz não é infração de modelos de comportamento ocidental, é, pelo contrário, resultado da aplicação de tais modelos” (FLUSSER, 1983, p. 11), sendo que “a objetivação derradeira dos judeus em forma de cinza é a derradeira vitória do espírito do Ocidente” (FLUSSER, 1983, p. 12). A transformação dos judeus em cinza é, assim, a tradução literal da tendência ocidental rumo à objetivação, à redução do outro inapreensível em objeto[9]. Para Flusser, pensar de maneira pós-histórica implica, entre outras acepções, pensar fora do projeto ocidental, não de maneira a abandoná-lo, mas de maneira a evitar que virtualidades catastróficas inerentes em seu programa ocorram. Há catástrofe quando a conversação ocidental interrompe o processo de significar símbolos ou, ainda, quando deixa de criar nomes próprios e reflui sobre si mesma. A conversação ocidental não faz mais sentido quando o mito é esvaziado e o rito não mais se processa sobre o inarticulável. É através desta linha de raciocínio que Gustavo Bernardo aponta que o elogio da superficialidade de Flusser significa, também, desistência da busca pela origem[10]. Opção pelo superficial, desprezo pelo profundo. Abaixo do superficial não há nada. Quando a conversação ocidental se dispõe a atingir o ponto mais profundo ou a desvendar o mistério, ela se torna conversa fiada. Segundo Flusser, talvez não haja conversação mais propensa à conversa fiada do que o discurso científico.

4. Do discurso da ciência

O livro Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza (2011), que como ilustra Gustavo Bernardo na introdução não é possível distinguir com clareza se estamos diante de um livro de filosofia ou de ficção, é profícuo para a ampliação do debate em torno do discurso científico. O livro é composto de pequenos capítulos, todos eles com títulos sugestivos e que levam nomes de elementos aparentemente “naturais”: vales, vacas, pássaros, chuva, grama, montanhas e dedos. A proposta de fundo do livro, segundo Flusser deixa subentendido, é problematizar a relação entre natureza e cultura, ou ainda: alertar para a completa inoperância de tal separação. Em linhas gerais, pode-se resumir o argumento de Flusser da seguinte forma: a) a natureza só se dá na medida em que entramos em contato com ela, em que buscamos compreendê-la. “Não vivemos, pois, em uma, mas em muitas naturezas. Na natureza captável pelas categorias da nossa ciência da natureza” (FLUSSER, 2011, p. 114); b) o homem perde contato com a natureza na medida em que a própria cultura assume esse lugar. Assim, a cultura “longe de libertar o homem da determinação pelas forças da natureza, se constitui em condição determinadora. Portanto, em segundo natureza” (FLUSSER, 2011, p. 161). Neste sentido, mais produtivo do que insistir na separação entre natureza e cultura é separar “experiências determinantes e experiências libertadoras” (FLUSSER, 2011, p. 162). Um capítulo em especial do livro de Flusser mostra-se atraente para a discussão que se coloca. O capítulo intitula-se Neblina. O ponto de partida provém da visão da paisagem tomada do terraço da residência de Flusser que, em certas manhãs, é obstruída pela neblina, que impede a visualização das belas cadeias montanhosas ao longe. Para Flusser, o autêntico trabalho intelectual não consiste em desobstruir a visão, apagando a neblina, a fim de alcançar a visão plena da paisagem, a essência de sua beleza. A operação flusseriana é diferente, para não dizer oposta. “Remover neblinas, e tentar mostrar que são neblinas e não algo, me parece ser a única atitude digna. Optei contra a profundidade em favor da superficialidade” (FLUSSER, 2011, p. 150). Não se trata de gesto agressivo, de arrancar a neblina do campo de visão a fim de enxergar o todo. Mas de gesto epistemológico, o simples expor do caráter superficial e não-essencial da neblina. Essa atitude se comprova na medida em que a neblina desaparece. Excluída a neblina, o que se mostra ao campo de visão é o horizonte ensolarado. Horizonte que não se apresenta, à visão de Flusser, como visão perfeita ou como novo obstáculo a ser transposto, mas como limite a ser respeitado. Neste sentido, querer avançar além do horizonte, ou supor o horizonte como visão plena, seria aniquilar o mito. “Somente depois de ter removido os horizontes nebulosos verei os verdadeiros limites que me são impostos” (FLUSSER, 2011, p. 153). Para Flusser, a indignidade dos ideólogos e o erro dos marxistas é esse: não se abrir às neblinas concretas. “Desideologizar não é libertar (isto, sim, seria absurdo), mas é permitir às verdadeiras condições que apareçam” (FLUSSER, 2011, p. 154). A partir do que diz Flusser em Neblina, chega-se à aporia do discurso científico, a uma delas, ao menos: “dificuldade de distinguir entre a obscuridade feita e a dada” (FLUSSER, 2011, p. 156).
O conhecimento científico e sistemático do Ocidente estabelece-se inicialmente, e absurdamente, como diz Flusser, com a física. Mais precisamente com o estudo de corpos inanimados e distantes, como os planetas. Mas, a partir do momento em que o estudo científico e sistemático expande-se rumo ao homem e à sociedade, a ficção do conhecimento objetivo desmorona. Aquele que visa conhecer é o mesmo que se dispõe a ser conhecido. Sobre tal paradigma científico, que não difere muito do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg[11], transcreve-se uma passagem do livro Natural:mente, na qual Flusser aborda com clareza a questão. A passagem é extensa, porém elucidativa:

Tal progresso está atualmente por encerrar-se. Não apenas no sentido de ter a ciência atualmente estendido a sua competência para abranger também o homem e a sociedade e, portanto, não pode mais avançar, apenas pode tornar-se mais minuciosa, mas no sentido mais radical de ter a ciência atualmente esbarrado contra uma fronteira insuperável. Enquanto o saber científico perambulava por regiões extra-humanas, nas quais o homem não está existencialmente interessado, era possível manter a ficção do conhecimento objetivo. Mas agora, quando o saber científico está penetrando regiões nas quais o homem está implicado (interessado), tal distinção fictícia entre o objeto conhecível e sujeito conhecedor se torna insustentável. Em tais regiões, o homem é simultaneamente objeto e sujeito do conhecimento. Tal barreira oposta ao progresso do conhecimento científico é aspecto importante daquilo que Husserl chamou de a crise da ciência do Ocidente. Em termos que interessam no presente contexto, aquela curiosíssima natureza da qual o progresso científico partiu para investir contra o homem e a sociedade, está se revelando agora horizonte ficticiamente objetivo, e não fundamento sólido, daquela realidade concreta na qual estamos implicados. Tal crise da ciência (a qual pode, por sua vez, ser explicada como uma das razões de uma crise geral, ou como manifestação de revolução mais profunda, pouco importa) exige uma reformulação radical tanto os métodos da ciência quanto do interesse da ciência pelas coisas. Tal reformulação está ocorrendo ao nosso redor. Quanto ao interesse pelas coisas, este se dirige atualmente para as mais próximas e nas quais estamos mais implicados. A direção do avanço do conhecimento está se invertendo. Quanto aos métodos, estes se fundamentam sobre a inter-relação entre conhecedor e conhecido, e sobre os efeitos que o próprio conhecimento tem sobre o conhecedor e o conhecido. Em outros termos, a ciência está se tornando autoconsciente enquanto atividade de um homem inserido na realidade e interessado em modificá-la, e não mais nutre a ilusão de ser disciplina pura de um homem que transcende a realidade. Isto significa, entre outras coisas, que a física está deixando de ser modelo de todas as ciências, e as que tratam de fenômenos mais concretos (como a teoria da comunicação) estão tendendo a se estabelecerem em modelos. Portanto, de certa maneira está recomeçando, “ab ovo”, o esforço todo de conhecer cientificamente o mundo que nos cerca. De certa maneira, somos atualmente tão ignorantes e ingênuos quanto o foram os pioneiros da ciência moderna. E como eles estavam obrigados a carregar nas costas o peso do aristotelismo, nós somos obrigados a carregar o fardo muito mais pesado dos “conhecimentos objetivos” acumulados por eles. Não se trata, por certo, de peso morto. Mas de peso que deve ser “posto entre aspas para uso futuro” (para falarmos novamente com Husserl), sob pena de continuarmos esbarrando, futilmente, contra a barreira da objetividade (FLUSSER, 2011, p. 167-169).

O paradigma científico entra em crise quando o homem se torna objeto. Enquanto observador distanciado dos ditos fenômenos naturais, a objetividade científica ainda era plausível. Mas agora o homem entrou de vez no espaço da ciência e tornou-se seu principal objeto. As ciências humanas há muito tempo passaram a trabalhar o conhecimento de forma sistemática e científica. “... a filosofia dá a luz à ciência, e que a ciência vai devorando a filosofia da qual nasceu” (FLUSSER, 1983, p. 45). A ciência sente a necessidade de reformular as suas bases, bem como os seus métodos. Gustavo Bernardo aponta que no ensaio “Do espelho”, Flusser lembra que a palavra especulação vem de espelho. O espelho, como se sabe, reflete a realidade, mas a inverte. Refletir é voltar-se contra si mesmo, e todo aquele que reflete mostra-se preocupado com o espelho (BERNARDO, 2008, p. 132). Refletir seria, portanto, formar uma imagem de si próprio, ou de um objeto, mas imagem deformada[12]. No mesmo ensaio, Gustavo Bernardo reitera que a ficção não se restringe como problema literário, mas constitui o coração de todos os problemas filosóficos. Para Bernardo, o que pede Flusser é que “reconheçamos o caráter ficcional dos modelos que informam a nossa vida, para reconhecer a ficção como o fundamento da ciência e da ética” (BERNARDO, 2008, p. 143). A exposição da falibilidade do discurso científico é perceptível em quase todos os textos de Flusser. Se não trata do assunto diretamente, sempre o tangencia, como se esse tema se constituísse numa espécie de preocupação corrente e inescapável, sendo inevitável ignorá-lo.

5. O jogo honesto da filosofia

Em um de seus primeiros livros, já citado neste trabalho, A história do diabo, Flusser diz que “a ciência não está ciente de que somos nós os autores das leis da natureza” (FLUSSER, 2008, p. 170) e que a “inexistência do mundo fenomenal não é, para a ciência, o fim, mas é o começo das suas atividades” (FLUSSER, 2008, p. 174), sendo a realidade desprovida de autor e limitada ao “diabo e às suas artimanhas” (FLUSSER, 2008, p. 189). O que Flusser propõe, ampliando o ponto de vista de Gustavo Bernardo, é jogo filosófico. Jogar com a filosofia é jogar honestamente. Na filosofia de Flusser, o “quê” é menos importante do que o “como”. Segundo Flusser, as demais atividades mentais negam a sua inautenticidade. Cabe à filosofia assumir a sua inautenticidade; nisso reside a honestidade da filosofia: o reconhecimento de que tudo que ela faz não passa de gesto. Para Flusser, a vida em todas as suas manifestações é negação da morte. A filosofia é afirmação da morte, é vivência articulada da passividade imposta pela morte. Em Bodenlos, seu livro aparentemente mais pessoal, lê-se: “Brincar com filosofia significa ler filósofos, não para conquistar “critérios”, ou “conhecimentos”, ou “valores”, mas para descobrir semelhanças temáticas e estruturais entre filosofias aparentemente contraditórias, e divertir-se com isso” (FLUSSER, 2007, p. 43). Jogar com a filosofia não é, para Flusser, partir em busca de explicações, justificativas ou descrições. A teoria de Flusser é luta contra a causalidade e a finalidade. Ler filósofos é rearticulá-los, ou seja, articular novamente aquilo que já foi articulado em outro momento histórico, por outro filósofo. É alterar a configuração, mudando de posição as peças do jogo. Caso se queira voltar ao início deste trabalho, pode-se dizer que jogar com a filosofia é, para Flusser, traduzir, ou retraduzir, os filósofos lidos. Mas a ideia de tradução não se limita aqui à possibilidade de converter um discurso de uma língua para outra, mas de reconsiderar um discurso e criticá-lo, intercalando teorias distintas e vendo brotar o contraditório. “Não podemos mais ser revolucionários, mas sabotadores” (FLUSSER, 1983, p. 133).
            O intelecto, entendido por Flusser como campo no qual ocorrem pensamentos, é expandido pela poesia, posto que o trabalho da intuição poética, entendido como criador de nomes próprios, tem como modo de operação esgarçar os limites da língua. O entendimento do trabalho poético como expansão do intelecto aliado ao entendimento da filosofia como jogo de rearticulação de discursos filosóficos leva à mudança em relação ao entendimento da figura do poeta. Este não mais se constituiria enquanto autor, mas enquanto “permutador” (FLUSSER, 2010, p. 120). Neste contexto, a discussão proposta por Flusser diz respeito ao futuro da escrita. Neste ponto, especificamente, Flusser discute se a poesia perderia o valor que costumamos lhe conceder caso a sua produção se dissociasse do alfabeto. Este talvez seja um ponto limite, e a sua reflexão exigiria atenção à parte. Mas, independentemente da plataforma que se utilize para compor, alfabética ou digital, o que está em jogo é a figura do poeta não como autor, mas como permutador; caso se prefira, como jogador. Prova da parcial irrelevância do meio de composição do poeta vem do primeiro exemplo dado por Flusser: Mallarmé, que segundo Flusser expressou essa atitude teoricamente, de maneira quase informática. O que está em questão, portanto, é o que Flusser chama de “poesia dessacralizada” (FLUSSER, 2010, p. 121). Seu modo de operação é assim descrito por Flusser:

O poeta alfabetizado manipula, por meio de letras, palavras e regras lingüísticas, a fim de produzir assim um modelo de experiência para os outros. Dessa forma, ele acredita ter introduzido uma experiência concreta própria (sentimento, pensamentos, desejo) na língua e com isso ter tornado acessível aos outros a experiência e a língua modificada por meio dessa experiência. O novo poeta, munido de aparelhos alimentados digitalmente, não pode ser tão ingênuo. Ele sabe que tem de calcular sua experiência, decompô-la em átomos de experiência, para poder programá-la digitalmente. E, nesse cálculo, ele deve averiguar o quanto sua experiência já seria pré-modelada por outras. Ele não se reconhece mais como “autor”, mas como permutador. Também a língua que ele manipula não lhe parece mais material bruto que se acumula em seu interior, mas ele a vê como um sistema complexo que lhe chega para ser permutado por ele. Sua atitude em relação ao poema não é mais a do poeta inspirado e intuitivo, mas a do informador. Ele fundamenta-se em teorias e não faz mais poesia empiricamente (FLUSSER, 2010, p. 120).
        
6. A festa do absurdo

Flusser vê a poesia, a intuição poética, como possibilidade de expansão do intelecto. A poesia não enquanto criação “ex nihilo”, tendo o artista gênio a capacidade de assimilar a inspiração (divina ou não, tanto faz) e traduzi-la em palavras apropriadas. O poeta de Flusser é jogador; o verso é jogo com palavras, e jogo com palavras é produção de pensamento. Cabe então à poesia a criação de nomes próprios, de mito, tendo o crítico o papel de ritualizar, tornar os nomes próprios conversáveis, criticá-los. Mas esse processo aparentemente bem definido na teoria mostra implicações controversas. É o caso da conversa fiada, momento no qual a conversação ocidental reflui sobre si mesma, esgota o mito, esvazia o mistério. Flusser está longe das palavras divinas, ao contrário, as satiriza filosófica e poeticamente em A história do diabo, mas recorda que, sem essa base religiosa de todo pensamento, especialmente o ocidental, a conversação perde o sentido. Flusser expõe o dilema enfrentado pela conversação ocidental e que ameaça conduzi-la à entropia, qual seja, a escolha que parece inevitável entre superintelectualização e anti-intelectualismo. O desprezo pelo intelecto pode ser ignorado, já que não está em questão o abandono do intelecto nem a fuga da conversação ocidental. Resta o perigo da “intelectualização total” (FLUSSER, 2011, p. 114). Como lembra Flusser, o pensamento ocidental tem por meta pensar o impensável, e eliminá-lo. A conversação ocidental tem “meta heróica” e é, portanto, “orgulhosa” (FLUSSER, 2011, p. 115). Frente a esse impasse que parece insolúvel, Flusser propõe uma reavaliação do intelecto enquanto “campo de festa” (FLUSSER, 2011, p. 104). Na festa do pensamento, Flusser reforça que o intelecto “não mais se esforçaria por explicar e antever a “realidade”, como o tentou fazer no passado, nem seria uma disciplina autossuficiente em busca da consciência perfeita, como tenta ser atualmente, mas se tornaria um esforço intelectual fundamentalmente estético. O pensamento não mais procuraria ser verdadeiro, mas ser “acertado” (FLUSSER, 2011, p. 106). Mas como é possível perceber, trata-se de festa absurda, pois culmina no abandono do intelecto. A festa do pensamento de Flusser exige que a conversação ocidental abandone a sua sede pela intelectualização total e reconheça, portanto, que jamais conseguirá articular completamente o inarticulável. Está-se metido na conversação ocidental e sabe-se que ela jamais nos conduzirá a um resultado definitivo e satisfatório. A conversação ocidental é absurda. “O sacrifício do intelecto é parte da festa” (FLUSSER, 2011, p. 113), aliás, trata-se do auge da festa, do ponto alto do absurdo, assim como o sacrifício do intelecto deve ser feito “em troca de nada” (FLUSSER, 2011, p. 113). Para Flusser, é possível “participar de uma festa conscientemente” (FLUSSER, 2011, p. 105), ou seja, é possível participar de uma festa sabendo-se que é uma festa, é possível reconhecer o grau absurdo da conversação ocidental e entregar-se a ela[13]. Flusser diz em sua autobiografia que o papel do intelectual, e o do professor em particular, é provocar zonas de subversão intelectual em seu torno e proporcionar acesso à tradição sem frear o entusiasmo para criação nova. Trata-se de seguir, mesmo que por curiosidade, o conselho de Flusser: “escutemos os nomes como sussurram em nosso íntimo, e conversemos com eles” (FLUSSER, 2011, p. 120).

Referências Bibliográficas:

BATAILLE, Georges. Lascaux o el nacimiento del arte. Trad.: Axel Gasquet. Córdoba: Alción, 2003. 
BERNARDO, Gustavo; FINGER, Anke; GULDIN, Rainer. Vilém Flusser: uma introdução. São Paulo: Annablume, 2008. 
DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada: desnudez, sueño, crueldad. Trad.: Juana Salabert. Buenos Aires: Losada, 2005.
FLUSSER, Vilém. A dúvida. São Paulo: Annablume, 2011.
___________. A história do diabo. 3 ed. São Paulo: Annablume, 2008.
___________. Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011.
___________. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007.
___________. A escrita – Há futuro para a escrita? Trad.: Murilo Jardelino da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.
___________. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
___________. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume: 2008.
___________. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011.
GINZBUG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad.: Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
NANCY, Jean-Luc. La mirada del retrato. Trad.: Irene Agoff. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.
___________. Pintura en la gruta. In: Las musas. Trad.: Horacio Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2008, p. 97-110.
___________. La representación prohibida. 1 ed. Trad.: Margarita Martínez Buenos Aires: Amorrortu, 2006.





[1]As informações biográficas a respeito da vida de Vilém Flusser, expostas até aqui, estão presentes no texto As redes de Flusser, de Anke Finger, compilado em “Vilém Flusser: uma introdução”.
[2] Pode-se ainda dizer que abriu caminho para uma vida baseada na estrangeiridade. Na página 64 de “Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza”, livro de Flusser que será citado adiante, o autor, ao falar da estrangeiridade do cedro no contexto do parque próximo à sua casa, quando vivia na França, faz a seguinte definição de estrangeiro: “Estrangeiro (estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo”.
[3] Ibid., p. 67.
[4] Flusser, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 9-15.
[5] Este ensaio de Rainer Guldin está presente em Vilém Flusser: uma introdução, já citado neste trabalho. O livro contém seis ensaios, dois de Guldin, dois de Anke Finger e dois de Gustavo Bernardo. A ideia, como o título enseja, foi apresentar uma introdução ao pensamento de Flusser. Como forma de homenageá-lo e, por assim dizer, entrar no jogo da escrita flusseriana, o livro foi escrito, literalmente, a seis mãos. O processo é explicado por Gustavo Bernardo na apresentação da versão brasileira, à página 9: “Primeiro escrevemos os nossos capítulos em inglês, que não é a língua materna de nenhum de nós, para podermos nos ler e nos criticar com mais facilidade; depois, os vertemos para o alemão (no caso de Rainer e de Anke) e para o português (no meu caso); a seguir, Anke revisa o meu inglês, Rainer traduz os meus capítulos para o alemão e eu traduzo os capítulos dos dois para o português. Finalmente, publicamos primeiro em português, que se pode dizer a terceira “língua materna” de Flusser, e depois nas outras duas línguas”.
[6] Na página 50 do mesmo livro, Flusser diz que “o conceito não é algo, mas de algo; para falarmos em termos simples, o conceito é o traço que uma coisa deixa no intelecto”. Abre-se, portanto, a perspectiva de vislumbrar o intelecto como produtor de pensamentos que equivalham a traços, vestígios, já que tais pensamentos são incapazes de se completarem ou de atingirem o significado final. Na mesma linha, Rainer Guldin, no ensaio já citado sobre o multilinguismo de Flusser, lembra que o filósofo comparou o seu método de escritura, pautado em traduções e retraduções, a um palimpsesto, como se todos os textos anteriores sobrevivessem no último, mas não de forma integral, mas no vazio entre as linhas e as palavras, enfim, por meio de traços. Como nos lembra Guldin, em versão inglesa inédita do texto “The Gesture of Writing”, Flusser diz que esse palimpsesto não é facilmente decifrável, mas num certo sentido ainda efetivo. Já numa versão francesa do mesmo texto, Flusser usa a palavra vestiges, ou seja, vestígios, sobras, como forma de apontar a dimensão multilinguística da própria escrita. Guldin completa: “A página escrita é um espaço com múltiplas camadas de linhas [dentro de linhas (dentro de outras linhas)] que o leitor é convidado a desenterrar em um interminável movimento de decifração. Ele deverá procurar os traços deixados pelo processo de tradução e retradução, o invisível conteúdo plurilingüístico escondendo-se sob a última versão monolinguística do texto, as diferentes camadas do palimpsesto multilinguístico final espelhando a complexidade múltipla do pensamento original”. Por mais efetiva que seja a busca, o máximo que o leitor encontrará são traços, a partir dos quais, mais ou menos organizados, poderá o texto ser criticado (retraduzido pelo leitor), já que a procura pelo significado original é vã. A definição de Flusser do conceito enquanto traço, ou até mesmo o seu palimpsesto, assim como a escritura flusseriana enquanto gesto vestigial feita por Guldin, não estão distantes da forma como Jean-Luc Nancy, em La pintura en la gruta, texto que tem Bataille por referência, define o traço. Segundo Nancy, os riscos (traços) feitos pelos homens na caverna de Lascaux abrem a possibilidade da abertura à estranheza, e não ao reconhecimento. Desta forma, Nancy define o traço como abertura ao mundo, mas não por meio de uma identificação, mas de um afastamento. O homem que risca a parede da caverna percebe a estranheza da sua humanidade, ou a humanidade da sua estranheza, mas não se reconhece como sujeito. Embora em contextos diferentes, percebe-se que as definições de traço de Flusser, Guldin e Nancy não estão voltadas ao fechamento, mas à abertura. Ver referência do texto de Nancy ao final.
[7] Em A história do Diabo, Flusser descreve esse processo sem fechamento quando explana sobre os pecados capitais inveja e avareza. A inveja, que é desejo de superação, desejo de alcançar o outro, está do lado do mito, portanto do lado da criação dos nomes próprios. Já a avareza, definida como tendência ao equilíbrio, aproxima-se do rito, portanto da conversação, da crítica ao nome próprio. Flusser diz que a tensão dialética entre inveja e avareza, tensão entre progresso e conservação, é o que marca a conversação ocidental. “A insatisfação crescente criada pela satisfação parcial é justamente o característico do pecado” (p. 96). De maneira ainda mais poética, Flusser acrescenta: “Na boca que beija sente ainda o gosto dos lábios já beijados, mas já está pressentindo o gosto das bocas que estão lá, prontas a serem beijadas” (p. 95). Na mesma linha, do lado da inveja estão as palavras e o escrever, já do lado da avareza concentram-se as regras gramaticais e a leitura. Quem escreve, amplia o intelecto e faz poesia. Quem lê, conversa e critica. Em nenhum momento Flusser tece juízo de valor a respeito da superioridade intelectual de uma ou de outra. Flusser, Vilém. A história do diabo. 3 ed. São Paulo: Annablume, 2008.
[8] Segundo Flusser, o que caracteriza a cultura de massa não é o consumo, mas o seu contrário: o refugo, o lixo. Nosso divertimento, na opinião do filósofo, é prova disso: sensações que são eliminadas sem serem digeridas. A cultura de massa não é cultura do consumo, portanto, porque não processa, não digere as informações que recebe. Para Flusser, somos seres que dispensam o intestino. O que nos é fundamental são a boca e o ânus, ou seja, boca para engolir a sensação, e ânus para eliminá-la. Nosso divertimento funcionaria apenas como aparelhos orais e anais, apenas com input e output. Na visão de Flusser, “isto permite aos aparelhos que nos programam a utilizar-nos como feedback. Podem alimentar-nos com sensações já eliminadas, já que não notamos que já as devoramos no passado. Toda sensação é concreta, portanto sempre nova. Somos canais para a repetição eterna”. O que marca a cultura de massa para Flusser, e a televisão é o exemplo maior dado pelo autor, é a comunicação que ele chama de anfiteatral. A comunicação entre emissor e receptor até existe, mas não se revela comunicação autêntica, dialógica. Ao receptor só é dada a possibilidade de resposta enquanto feedback, daí a proliferação atual dos inúmeros institutos de pesquisa e que tem por missão aferir o feedback da massa e convertê-lo em dados, em números, a fim de que novas programações possam ser emitidas. A dita sociedade em rede, prometida pela internet, converte-se em sociedade de receptores. Mas Flusser não para por aí. Segundo ele, malograda essa contra-revolução da libido oral-anal, persistem restos de interioridade. Esses restos manifestam-se de duas formas: o interesse que em nós despertam os refugos (consciência de que estamos sendo alimentados por merda) e a tendência de remexermos a merda. Essa primeira manifestação termina em onda de Kitsch e em pornografia. “A segunda é mais interessante. Estão surgindo ciências coprofílicas, estudos do indigerido. A psicanálise, a arqueologia, a etimologia, a busca das “fontes” e das raízes é disto exemplo. Estão surgindo movimentos coprófilos que visam reciclar a merda. O movimento ecológico é disto exemplo. Outro é a reciclagem de especialistas”. Flusser, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 115 e 116.
[9] Quem discute esse projeto nazista empreendido pelos alemães em linha de raciocínio parecida é Jean-Luc Nancy em La representación prohibida. Ver referência ao final.
[10]Esse argumento de Gustavo Bernardo está exposto na introdução do livro: Flusser, Vilém.  Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011.
[11] No ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário, presente no livro Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história, Ginzburg esboça um panorama a respeito da pesquisa científica no final do século XIX e início do século XX. Segundo Ginzburg, o estudioso de arte Giovanni Morelli, juntamente com Conan Doyle e Sigmund Freud, dão o ponto de partida para uma mudança de paradigma da ciência, até então fortemente guiada pelos métodos de Galileu. Se com Galileu a escolha era pela generalização na tentativa de compreender o todo, Freud, Doyle e Morelli apresentam método oposto, que parte do fragmento, do vestígio, do resto. De certa forma, trata-se de um reconhecimento da dificuldade (ou impossibilidade) de reconstituição da totalidade. Isso, em linhas gerais, é o que Ginzburg chama de “paradigma indiciário”. Mas a discussão não acaba. O embate prossegue: de um lado, uma forma de conhecer que se mostra grandiosa, capaz de explicar a totalidade, mas que, pelo seu forte aspecto generalizante, carece de rigor científico. De outro, uma forma de conhecer que parte do menor, que concentra a atenção no fragmento e portanto encontra-se bem embasada teoricamente, mas que tem dificuldade para abarcar grandes camadas. O próprio Ginzburg parece colocar-se ora de um lado, ora de outro. Ver a referência completa ao final.
[12] Essa temática do espelho aparece com clareza em La mirada del retrato, de Jean-Luc Nancy. A imagem do retrato não oferece semelhança, mas é jogo de dessemelhanças, portanto mais de afastamento e estranhamento do que de identificação. Exemplo claro é dado por Nancy ao citar o autorretrato de Johannes Gumpp, de 1646. Nesta pintura, um pintor aparece de costas, pintando seu retrato. Do lado esquerdo, está o espelho no qual o pintor vê a própria imagem para basear-se. Do lado direito, está o retrato a ser pintado, que se encontra praticamente pronto. O olhar da figura do espelho está voltado ao pintor. O olhar da figura do retrato está voltado ao observador do quadro. Trata-se de jogo de dessemelhanças. Não é à toa, aliás, que no mesmo quadro um gato encontra-se ao lado da imagem do espelho, enquanto um cachorro aparece ao lado da imagem do retrato. Ambos trocam olhares furiosos. Ver a referência completa no final.
[13] A leitura dos livros de Flusser mostra que a ideia de circularidade lhe agrada. Não circularidade no sentido de fechamento de sentido, mas como possibilidade de embaralhamento dos argumentos, como forma de mostrar que o novo pode não ser tão novo, e o que parece ultrapassado pode soar atual. Flusser, embora não pessimista em relação às imagens técnicas, martelou até a morte uma máquina de escrever. Da mesma forma, muitos de seus livros trazem a seguinte frase no capítulo final: este capítulo pode ser lido como o primeiro. Outros não exigem ordem linear de leitura. Sendo assim, é permitido um retorno aos homens de Lascaux, aos pintores das cavernas, que foram analisados por Georges Bataille, em Lascaux o el nacimento del arte, como artistas. O clima da época em Lascaux, mostrado por Bataille, é semelhante ao clima da festa do pensamento de Flusser. Segundo Bataille, os primeiros artistas do Ocidente eram homens que careciam de indignidade, riam ardentemente, sendo exuberantes e de gozo fácil. A arte era atividade lúdica, separada do trabalho, e a consciência de morte já se manifestava. A arte enquanto jogo tendo como subtexto a consciência de morte – sinal de honestidade. Ainda segundo Bataille, imperava em Lascaux clima religioso (religioso no sentido flusseriano), transgressivo, mágico, no qual o sagrado superava o profano, as desordens superavam o cálculo e a razão, e a sorte superava o mérito. Descrição esta que poderia ser equiparada a de Flusser quando esboça a sua festa do pensamento. Ver a referência completa ao final.