Marcel Franco da Silva
Licenciado pleno em Língua Portuguesa (UEPA)
Mestre em Ciências da Religião (UEPA)
marcelpa@hotmail.com
Introdução
A
literatura de expressão amazônica é, na maioria das vezes, uma literatura de
expressão da poesia dos rios da Amazônia. O amazônida se identifica com os rios
de sua terra e revela em sua produção literária esses elementos, assumindo,
inclusive uma filiação com eles, apresentando-se como filho deles.
Assim
se percebe na poesia de Izarina Maria Tavares Israel (1949-), “filha do Rio
Amazonas”, nascida e criada na cidade de Óbidos/PA, expoente escritora paraense
que nesse breve estudo é apresentada para nos fazer conhecer um pouco sobre as
experiências e relação do homem amazônida com “os rios de sua aldeia”, como
diria Nilson Chaves.
Izarina
Tavares Israel tem uma vasta produção literária, participou de vários concursos
e antologias de poemas no âmbito nacional, recebeu medalhas e menções honrosas
pelo o conjunto de seu trabalho e foi eleita como membro da Academia Brasileira
de Estudos e Pesquisas Literárias.
Em
1997 publicou o livro de poemas “Maresia e Avesso”, revelando um talento
poético ímpar e que aqui será observado, com vistas à interpretação da
acqua-poesia de uma escritora amazônida contemporânea, oriunda de uma
cidade-celeiro de grandes escritores brasileiros, como Inglês de Souza
(1853-1918) e José Veríssimo (1857-196).
Ouçamos,
pois, a voz dos rios na poesia de Izarina Tavares Israel e que é também a
própria voz da poeta obidense.
1. O Rio: Substância Poética de Izarina
A
história da Amazônia se confunde com a própria história do amazônida,
expressada de muitas maneiras e que tão bem nos é revelada por meio da
literatura de expressão amazônica. Geralmente, a poetização do rio é frequente
na literatura dos escritores da região Norte, sendo, em alguns casos, difícil
achar fronteiras entre o homem e o rio: o poeta conta de si com a voz do rio e
o rio conta de si com a voz do poeta, conforme se evidencia no livro “Maresia e avesso” (1997), de Izarina Tavares
Israel, que será observado nesse texto.
Por
meio de sua poética, Izarina nos fala da “memória do Rio” (ISRAEL, 1997, p.
13), que é também a memória de suas experiências/vivências com os rios de sua
terra natal (Óbidos/PA). Em certos momentos, a poeta nos faz pensar no rio como
a expressão do “totalmente outro” (OTTO, 2007, p. 58), do sagrado:
Deus-matéria, personificado e carregado de sentimentos (ISRAEL, 1997, p.12).
Memórias,
encantos e desencantos fluem na poesia líquida de Izarina, como uma pororoca
que cessa quando a autora tematiza a saudade, a solidão e nesse momento, então,
“é hora de olhar o negrume do rio” (IDEM, p. 14), pois, como diria Bachelard,
ao analisar a poética de Edgar Allan Poe, “água vai absorver o negro
sofrimento” (BACHELARD, 1997, p. 49).
As
lembranças descritivas do rio no “Maresia e Avesso” se traduzem no sentimento
nostálgico da autora: são águas pesadas, “ricas de tantos reflexos, de tantas
sombras” (IDEM, p. 60), reveladoras do íntimo da alma e são pesadas como
lágrimas porque “trazem ao mundo um sentido humano, uma vida humana” (IDEM, p.
67).
Implícita
ou explicitamente a água dos rios é a substância poética dos poemas de Izarina
Israel, que nos transportam às reminiscências do passado, como se nota nos
poemas “O Rio”, “Despedida”, “Matapi”, “Meu Velho Matapi”, “Na Doca do Meu
Cais”, “Óbidos”, “Saudades”, “Cidade Pauxis” e em muitos outros que mostram,
ainda que dolorosas, o sentimento do homem-rio, do homem amazônida que
sobrevive frente a tantas adversidades da vida, como perdas materiais,
amorosas, familiares, saída de sua terra natal, ou seja, um viagem “por túneis
nunca navegados, trazendo à tona todos os [...] medos” (ISRAEL, 1997, p. 43).
2. Adeus à Beira-Rio:
Sentimentalidade Poética Amazônica
Dizia
o poeta Vinícius de Moraes que a “vida é a arte do encontro, embora haja tanto
desencontro pela vida” e é o que justamente se percebe em muitos poemas de
Izarina Israel. E essa arte do encontro e desencontro, “no porto e no coração”
(ISRAEL, 1997, p. 14), faz-se presente não só na obra da poeta, mas também no
cotidiano do homem amazônida, que vai escrevendo sua história às margens do
rio.
Em
“Despedida” Izarina retrata, então, esse “negro sofrimento”, cujas imagens se
tornam o nosso devaneio, nossas intermináveis fantasias, para que essa dor,
como uma água, possa ser escoada, dissolvida e, finalmente, venha a ser
extinguida de nós (BACHELARD, 1997, p. 49):
A
noite é escura.
Há
em mim um não querer partir.
No
cais, as tábuas carcomidas.
No
porto e no coração
Há
um ar de desolação, acomodação e covardia...
Beijos
loucos, roubados ao clarão da lua
Na
solidão a dois, das multidões.
Um
beijo equilibrista
Desafia
o cais que fica e o barco que sai.
É a
necessidade de viver a eternidade
Em
um segundo.
O
coração descompassado oscila
Entre
a lógica e o desalento,
Entre
a incógnita e o prazer na dor.
O
barco sai inconsciente
A
dor que causa o partir.
Ventos
e lágrimas se misturam...
Ao
redor, olhares enigmáticos,
Incisivos,
indiscretos, espantados.
No
cais já não se distinguem as pessoas,
Só
as luzes que piscam
No
último gesto de adeus.
O
soluço convulsivo aos poucos cessa.
— É
hora de olhar o negrume do rio... (ISRAEL, 1997, p. 14).
Hesitação,
solidão, lembranças do tempo vivido saltam nesse poema de Izarina, que também
procura retratar e descrever às margens de lugarejos amazônicos e experiências
das pessoas nesses espaços que não são alegorias poéticas, mas sim espaços
históricos que fala à alma do caboclo amazônida.
O
queixume, a dor da separação são evidentes em “Despedida”, mas não são apenas
uma angústia particular da poeta; também traduzem a experiência de várias
pessoas que passaram ou passam por situação semelhante, de encontros e
despedida à beira-rio, conforme atesta o poema (IDEM). Nas linhas finais do
poema a dor “no porto e no coração” chega ao ápice, “num último gesto de
adeus”, o adeus à beira-mar que
é
simultaneamente o mais dilacerante e o mais literário dos adeuses. [...].
Desperta em nós, sem dúvida, os ecos mais dolorosos. Todo um lado de nossa alma
noturna se explica pelo mito da morte concebida como uma partida sobre a água.
(BACHELARD, 1997, p. 77-78).
Todo
esse sofrimento, esse “soluço convulsivo aos poucos cessa”, encontra a morte
nas águas, como forma de
enfrentamento e superação dessa “dor que causa ao partir”. E, ao “olhar o
negrume do rio”, o poeta nos dá a certeza de que a “água que vai absorver o
negro sofrimento” (IDEM, p. 49), que resta depois do adeus à beira-mar.
Algumas considerações
Além
da poetização do rio, a obra de Izarina Israel retrata a sensualidade, o
erotismo, mesclados com elementos da natureza e da cultura amazônica, o que,
sem dúvida, mercê ser pesquisado e analisado com mais profundidade.
Como
foi dito anteriormente, tratou-se aqui de um breve estudo, que observou de uma
forma mais geralmente um tema de grande relevo em uma de suas obras: a relação
homem e rio. Izarina é uma poeta multifacetada e, em seu trabalho, há também
uma “mística intricada” (ISRAEL, 1997, p. 49), o que poderá ser assunto de
interesse para os estudiosos de literatura e religião, por exemplo.
É
preciso, ainda, ouvir as muitas vozes que saltam dos poemas dessa épica que
canta a sua terra, o mundo físico-interiorano das várzeas amazônicas (CARDOSO apud ISRAEL, 2003, p. 3), e, ao mesmo
tempo, revela-nos as angústias e sentimentos do homem amazônida, que sobrevive
entre seres e não-seres.
Referências
BACHELARD, Gáston. A
água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
ISRAEL, Izarina Tavares. Maresia e avesso. Belém: Cejup, 1997.
____________. Banzeiro.
Belém: s.n., 2003.
OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes; São
Leopoldo: Sinodal, 2007.