|
Larissa
Ceres Lagos
UFSC
Resumo:
Esse trabalho
pretende analisar questões pontuais do ensaio “Raízes do Brasil”, abordando a
questão espacial como influência na formação de conhecidas características da
personalidade do cidadão brasileiro, usando por base os conceitos de Semeador e
Ladrilhador e do Homem Cordial, apresentados por Sérgio Buarque de Holanda, e
abordando a problemática do gênero ensaístico, bem como a afinidade correspondente
entre a intelectualidade e os ensaios ibero-americano, questionar o papel do
ensaísta dentro do contexto social.
Palavras-chave: Ensaios ibero-americanos, Teoria
da Literatura, Historiografia Brasileira
Abstract: This paper intends to
analyze the punctual questions of the essay “The Roots of Brazil”, approaching
the special issue as influence in the formation of known personal
characteristics of the Brazilian citizen, using as base for the concepts of
Seeder, Tiler and Friendly Man, present by Sérgio Buarque de Holanda, and
approaching the problematic of essay
genre, as well as the corresponding affinity between intellectuality and
Ibero-American essays, in order to question the essayist role in the social context.
Keywords: Ibero-American essays,
Theory of Literature, Brazilian Historiography
Introdução
O
ensaio, apesar de não ser colocado como um gênero formal (a formação literária
clássica identifica apenas os gêneros lírico, épico e dramático), promove uma
espécie de liberdade de voz pessoal tecida a partir de experiência de vida,
reflexões e estudos do autor, muitas vezes abrangendo mais que apenas uma área
de conhecimento.
Michel
de Montaigne talvez seja o primeiro nome lembrado quando suscitamos a questão
ensaística, pois sob o título Ensaios
encontra-se sua obra (e foi o primeiro a nomear o fluxo das ideias e reflexões
encadeadas textualmente), contudo, esse não foi um gênero estreado por
Montaigne se levamos em conta, por exemplo, diálogos filosóficos, epístolas e
meditações (de Marco Aurélio).
Publicado
pela primeira vez em 1936 pela editora José Olympio, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, é indiscutivelmente
um grande nome da academia brasileira, assinando grandes estudos sociológicos e
urbanísticos assim como Casa-grande e senzala
e Formação do Brasil contemporâneo
respectivamente de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.
A
relação entre a escrita ensaística possui grande tradição na América Latina,
não apenas pela permeabilidade de seu gênero, mas pela riqueza altamente
explorada dentro do seu contexto social. A obra de Sérgio Buarque de Holanda
figura em uma extensa lista de ensaios brasileiros que, ao serem encarados
assim, abrem portas para as discussões da posição do intelectual em seu
contexto social.
O Ensaio e os ensaístas da América
Latina
Ainda
que não seja um gênero “novo”, as discussões acerca de uma teoria que estude
características, pense conceitos e promova reflexões interpretativas (ou até
mesmo seletivas) só irão ganhar terreno em conhecida a discordância entre Georg
Lukács e Theodor Adorno sobre a alma e a forma ensaística. Enquanto o primeiro
discorre uma longa carta a Leo Popper (publicada em 1910) sobre a alma
artística de um ensaio,
Hay, pues, una
ciencia del arte; pero hay también un modo enteramente diferente de
manifestación de temperamentos humanos cuyo modo de expresión es las más de las
veces el escribir sobre arte. Digo solo las más de las veces; pues hay muchos
escritos nacidos de sentimientos semejantes que no entran en contacto con la literatura ni con el arte, escritos en los
que se plantean las mismas cuestiones vitales que en los que se llaman crítica,
sólo que directamente enderezadas a la vida; no necesitan la mediación de la
literatura y el arte. De este tipo son precisamente los escritos de los más
grandes ensayistas: los diálogos de Platón y los escritos de los místicos, los
ensayos de Montaigne y las imaginarias páginas de diario y narraciones de
Kierkegaard. (LUKÁCS,
1970, p. 18)[1]
Em
1958, o pensador Theodor Adorno (2003, p.18) produziu uma contundente réplica
abordando uma constituição, não necessariamente científica, mas esteticamente
distinta da produção artística defendida por Lukács. Diz ele,
(...) o ensaio
se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente acusada de ter sido
apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie da arte tanto
por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade
desprovida de aparência estética. É isso que Lukács não percebeu quando, na
carta a Leo Popper que serve de introdução ao livro As Almas e as formas, definiu o ensaio como forma artística.
Porém, admite-se que essa aparente
polarização compartilha de uma fronteira permeável com ao domínio estilístico
do autor perante a obra ensaística. Pois ainda que fragmentário, dialoga
diretamente com o leitor sem a intervenção elementar de terceiros.
Ao
que existam parcelas de estudiosos defendendo que o ensaio aborda uma ideia com
a intenção de encontrar “a verdade” [2],
ou outros que discordem radicalmente dessa posição (como o próprio Adorno). Ou
ainda, os que defendem o desenvolvimento do ensaio como argumentação em busca
de persuasão[3].
Poderiam
ser criadas infinitas categorias para tentar rotular cada ensaio tendo como
base interpretações de diversos conceitos linguísticos, filosóficos ou
literários. No entanto, provavelmente essa concepção fugiria da ideia geral de
ensaio, que é somente o que se pode assegurar. Adorno (2003, p. 16-17)
fortuitamente discorre que
O ensaio, porém,
não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em vez de alcançar
algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços ainda
espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se
entusiasmar com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e
odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada,
segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho.
Ainda com Adorno (2003, p.25),
conseguimos vislumbrar a abrangência do fluxo ensaístico,
O ensaio não
almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta sobre tudo
contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero
não seriam dignos da filosofia; revolta-se com essa antiga injustiça cometida
contra o transitório, pela qual este é novamente condenado no conceito. O
ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade
ontológica ao resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por
oposição ao individual nele submetido.
“O centauro dos gêneros” é a
tortuosa e profícua maneira usada por Alfonso Reyes para sintetizar a forma e a
alma do ensaio é interpretada por “(...)
pues al igual que el centauro, combina el ensayista el pensamento feraz humano
y la energia creativa del animal”[4] (SALINAS e ADSUAR,
2005, p.9).
A
forma do centauro admite uma enorme gama de comentários dicotômicos, a
dualidade humana entre razão e força, lógica e instinto, civilização e barbárie
(tendo em vista o clássico ensaio Sobre
os canibais de Montaigne, lembrando-nos que “devemos evitar nos ater às
opiniões correntes e como devemos julga-las pela razão, não pela voz do povo”),
mas que como em um centauro, apesar dessas características serem polarizadas,
elas se encontram de uma maneira orgânica (ou o mais orgânica possível).
Quando
nos referimos à produção ensaística latino-americana, conseguimos facilmente
nos deparar com essas características como pedras fundamentais dentro da
própria cultura do Novo Mundo.
Sobre
o ensaio moderno na América Hispânica, Oviedo (1991, p.22) observa que,
Hay que
entender ese inicial auge del ensayo como un fenómeno asociado a la realidad
sociohistórica de un continente que quería cobrar total autonomía cultural
frente a España; esto explica dos cosas: que, como ya se anotó, el ensayo
moderno surja en América antes que en la península, y que aparezca sobre todo
como un instrumento indagatorio de la identidad de las nuevas naciones. Lo
último ha quedado como una huella permanente en el ensayo y en las
preocupaciones de nuestros ensayistas más importantes. Suele decirse con
frecuencia que el ensayo es, en otras partes el género que aparece el último,
porque corresponde a un nivel avanzado del proceso intelectual de un Pueblo, y
porque se vuelca al conocimiento lo ya existente. En América parece ocurrir lo
contrario: los fundadores de la conciencia cultural y literaria del continente
son sus ensayistas.[5]
A
tradição ensaística na América Latina consolidou-se como meio de formação de
uma identidade cultural e intelectual, pois é comprometida com uma reflexão
sobre a realidade e possui um caráter um tanto “marginal”, até mesmo pela
característica de hibridez e “desnecessidade” de categorização, acaba acordando
com a história do continente.
Os
estilos, claro, variam tanto quanto é possível ao ensaísta, seja em um libelo
de beleza humanística como José Enrique Rodó em Motivos de Proteo ou
com a graça e musicalidade que Fernando Ortiz aplica no Contrapunteo cubano del tabaco y
el azúcar, como inúmeros outros notáveis (Facundo de Sarmiento, La
Expresión Americana de Lezama Lima, José Martí de Nuestra América, Octavio
Paz com El labirinto de la soledad, para citar uma pequena parcela).
O Semeador, o Ladrilhador, o Homem
Cordial e suas relações com o espaço
Nascido
em São Paulo, Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982) foi além de ensaísta,
historiador, professor, jornalista e crítico literário. Seu viés sociológico
(extremamente aflorado em Raízes do
Brasil) despontou após entrar em contato com a obra do alemão Max Weber.
Entre suas maiores obras, estão: Cobra
de Vidro (1944), Monções (1945),
Caminhos e Fronteiras (1957), Visão do Paraíso (1959), Do Império à República (1972) e O Extremo Oeste (1986, obra póstuma).
Raízes do Brasil
faz um traçado historiográfico da colonização brasileira até os anos de 1936
(reeditado e revisado em 1947 e 1955, sendo lançada uma edição definitiva em
1955, contando com adendos de Antonio Cândido e Evaldo Cabral de Mello
posteriormente), dividido em sete partes, mais as notas ao fim dos capítulos:
Fronteiras da Europa; Trabalho & Aventura; Herança Cultural; O Semeador e o
Ladrilhador; O Homem Cordial; Novos Tempos; Nossa Revolução
Cada
capítulo estrutura-se procurando explicar a origem de certas particularidades
muito reconhecidas dos vários âmbitos da cultura do nosso país desde o início
da colonização do continente americano, sempre contraponto as características
hispânicas e lusitanas. A realidade problemática da cultura do personalismo, o
colonialismo rural, as dificuldades com as características de aventureiros e
trabalhadores, o patrimonialismo, nacionalismo e a artificialidade positivista
são os tópicos arquitetados engenhosamente pelo autor, que recorre
alternadamente a esses conceitos para traçar o perfil da nação.
Neste
trabalho, em específico, trataremos dos capítulos “O Semeador e o Ladrilhador”
e “O Homem Cordial”.
A
criação das analogias entre Semeador e Ladrilhador com a cultura de colonização
de portugueses e espanhóis transporta o texto de Sérgio Buarque de Holanda para
as fundações das cidades. Enquanto na hispano-américa prolifera-se a ideia de
estabelecimento e propagação do reino espanhol (inclusive ao nomear o
território de Nova Espanha), a colônia portuguesa destinou uma série de
territórios a donatários nobres (conhecidas escolarmente por Capitanias
Hereditárias) que deveriam administrar as terras, ainda que não tivessem um
suporte estrutural (ou um planejamento objetivo determinado pela coroa). Foi
uma tentativa prática de uma solução simples, muito mais interessada em “não
criar mais problemas” que, necessariamente, desenvolver a região.
O
requinte estratégico do desenvolvimento do ladrilhador narrado por Sérgio
Buarque de Holanda é meticuloso e mostra a intensa força da ideia da coroa
espanhola de dominar o espaço físico e natural através da simetria, iniciando
pelos sítios em que se estabeleceram cujo projeto incluía uma “vontade
criadora”, em que:
A construção da
cidade começaria sempre pela chamada praça maior. Quando em costa de mar, essa
praça ficaria no lugar de desembarque do porto; quando em zona mediterrânea, ao
centro da povoação. A forma da praça seria a de um quadrilátero, cuja largura
correspondesse pelo menos dois terços do comprimento, de modo que, em dias de
festa, nelas pudessem correr cavalos. Em tamanho, seria proporcional ao número
de vizinhos e, tendo-se em conta que as povoações podem aumentar, não mediria
menos de duzentos pés de largura por trezentos de comprimento, nem mais de
oitocentos pés de comprido por 532 de largo; a mediana e boa proporção seria a
de seiscentos pés de comprido por quatrocentos de largo. A praça servia de base
para o traçado das ruas: as quatro principais sairiam do centro de cada face da
praça. De cada ângulo sairiam mais duas, havendo o cuidado de que os quatro
ângulos olhassem para os quatro ventos. Nos lugares frios, as ruas deveriam ser
largas; estreitas nos lugares quentes. No entanto, onde houvesse cavalos, o
melhor seria que fossem largas.[6] (HOLANDA,
1995, p.97).
Enquanto
o semeador não teria desenvolvido, a princípio, planejamento ou estrutura para
a fundação das vilas, fixou-se em terras litorâneas que facilitavam o
escoamento da matéria-prima para a capital do império, Lisboa, porém
facilitavam invasões estrangeiras (como ocorreu com franceses e holandeses). As
mobilizações para outras regiões seguiram o “modismo” de busca por minérios e,
eventualmente, plantio de cana-de-açúcar e café. Essa política, bem como com as
Capitanias Hereditárias, demostra a permeabilidade de intensão do crescimento
de cidades posteriormente.
Mesmo em seus
melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter
mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se
fizessem grandes obras ao menos quando não produzissem imediatos benefícios.
Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a
metrópole. (HOLANDA, 1995, p.107)
No
entanto, cabe fazermos aqui uma reflexão sobre o comportamento de ambos,
deixando de nos reter sobre a questão espacial da colonização (sobre o qual
ainda comentaremos em seguida), quando nos voltamos para o histórico “humano”
das colonizações, percebemos que a princípio a relação dos “semeadores” com os
nativos foi muito mais profícua do que com “ladrilhadores”. É de comum conhecimento
que à América espanhola couberam territórios que incluíam povos mais
civilizadamente avançados, porém é igualmente inegável que a “limpeza étnica”
foi uma estratégia violenta e de intencionalidade primordial para o
estabelecimento do prolongamento do reino espanhol[7].
Inclusive, em âmbito colonial, é comentado por Sérgio Buarque de Holanda a
facilidade que existia durante o início da colonização na entrada de
estrangeiros em terras portuguesas que estivessem dispostos a trabalhar, o que
não era permitido nas terras hispânicas para assegurar a ordem e o domínio
sobre a região.
Ainda
que respondessem aos desígnios da Espanha, suas colônias sempre foram voltadas
para um desenvolvimento (ainda que não concomitante) orgânico com a capital.
Pode-se notar que, enquanto no Brasil foi necessária a transferência da sede da
monarquia para o Rio de Janeiro para, finalmente, contar com bibliotecas e
universidades, em 1558 é criada a Universidade de São Domingos, a de São Marcos
(em Lima) em 1551, no mesmo ano em que é fundada a da Cidade do México.
Nas
“Notas do capítulo 4 A Vida Intelectual na América Espanhola e no Brasil”
Sérgio Buarque de Holanda (1995) apresenta dados incontestáveis comparando o
número de bacharéis, doutores e licenciados formados pela Universidade do
México ainda no período colonial com o número de estudantes brasileiros em
Coimbra da mesma época. Nada menos que dez vezes maior. Em seguida, ao discutir
a introdução da imprensa nas colônias, relata a bipolaridade entre as políticas
feitas por cada metrópole, pois enquanto na Nova Espanha, a cultura da imprensa
vinha se espalhando desde 1535 na Cidade do México, alastrou-se pela região
dominada até chegar a Lima por volta de 1584 e abranger todas as grandes
cidades da hispano-América até 1747, enquanto a imprensa só pode ser
introduzida no Brasil no século XIX. Sobre isso, escreve:
Os entraves que
ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil opunha a administração
lusitana faziam parte do firme propósito de impedir a circulação de ideias
novas que pudessem pôr em risco a estabilidade do seu domínio. E é
significativo que, apesar de sua maior liberalidade na admissão de estrangeiros
capazes de contribuir com seu trabalho para a valorização da colônia,
tolerassem muito menos aqueles cujo convívio pudesse excitar entre os moradores
do Brasil pensamentos de insubordinação e rebeldia. (HOLANDA, 1995, p. 121)
A
reflexão sobre os entraves encontrados nesse meio até hoje é inevitável, pois a
cultura da intelectualidade, tão valorizada e tradicional na América espanhola,
ainda hoje encontra resquícios da essência imposta pela colonização lusitana.
Muito menos que antes, obviamente, mas ainda muito marcante. Inclusive, o
próprio intercâmbio cultural entre os (posteriormente) países da América Latina
se encontrava menos aberto (alguns anos atrás) do que seria o esperado quando
se pensa em países de proximidade linguística e territorial, pois as terras
tupiniquins deixaram seus vizinhos de lado muito tempo, enquanto estabeleciam
pontes culturais com outras nações (França na década de XX e Estados Unidos, após
a Segunda Guerra Mundial).
De
meados ao fim do capítulo anterior, Sérgio Buarque de Holanda já começa a
delinear o cerne do homem que surgirá. Completamente deslocado do seu habitat,
já sem esperanças de voltar à metrópole quando o colono assume ares burgueses
recém-descobertos, trocando a indumentária rústica de quem explora e trabalha
na região, por roupas pomposas procurando uma aparência mais nobre que se
diferenciasse das pessoas humildes.
A
relativa flexibilidade das classes sociais fazia com que essa ascensão não
encontrasse, em Portugal, forte estorvo ao oposto do que sucedia ordinariamente
em terras onde a tradição feudal criara raízes profundas e onde, em
consequência disso, a estratificação era mais rigorosa. Como nem sempre foi vedado
a netos de mecânicos alçarem posição de nobres de linhagem e misturarem-se a
eles, todos aspiravam à condição de fidalgos.
As
culturas agrária, latifundiária e personalista serviram para adiantar, talvez,
o trecho mais comentado da obra. O homem cordial, a contribuição brasileira
para a humanidade[8]. É realmente interessante
como a arquitetura do texto de Sérgio Buarque de Holanda trabalha, nesse capítulo,
o espaço urbanístico em que o “homem cordial” surge.
Georg
Simmel em seu ensaio A Metrópole e a Vida
Mental (publicado em 1903) comenta sobre os “ajustamentos” do homem perante
as forças externas e as diferentes relações entre o homem e o meio em que
interage (metrópole ou campo). Mais especificamente, a ideia presente neste
trecho de Raízes do Brasil remete
aos conceitos trabalhados por Simmel (1979, p. 12-13):
A base
psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos,
que resulta da alteração ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores.
(...) A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a
discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural
extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui
mais lentamente, de modo mais habitual e uniforme. (...) Assim, o tipo
metropolitano de homem – que, naturalmente, existe em mil variantes individuais
– desenvolve um órgão que o protege das corretes e discrepâncias ameaçadoras de
sua ambientação externa, as quais, do contrário, o desenraizariam. Ele reage
com a cabeça, ao invés de com o coração.
Mais
adiante, Simmel (1979, p.17) reflete sobre a atitude fechada do homem
metropolitano,
Na medida em que
o indivíduo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela
inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige
dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude
mental dos metropolitanos um para o outro, podemos chamar, a partir de um ponto
de vista formal de reserva. Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos
externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quando as da cidade
pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma
relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada
internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável.
Porém,
quando nos referimos ao Novo Mundo, colonizado com particularidades abundantes
da península ibérica (à exceção do norte) e não por povos anglo-germânicos,
essa “reserva” que Simmel aponta como inerente ao homem metropolitano, não se
configura da mesma maneira.
Moldado
pelo seu passado colonial, o brasileiro encara a cidade desenvolvida com
melancolia. A sua única defesa, retida no fenótipo da sociedade tal qual
conhece, é uma ética movida por emoção e sentido muito mais que pela razão.
Diferentemente do homem europeu moderno, a abordagem praticada pelo brasileiro
é do artifício de barganha sentimental, com aversão ao ritual, na tentativa de
criar um escudo forrado pela intensão de perpetuar os laços consanguíneos em um
ambiente tão pouco propenso a tal empreitada.
Nossa forma
ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.
Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida
consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que
são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu
em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo
servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que
permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções.
Por meio de
semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam
ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo espírito de triunfo
sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia
ante o social. (HOLANDA, 1995, p.147)
A
relação problemática do surgimento das grandes cidades, da especialização do
homem e da necessidade que a geração do capitalismo causou no seio de uma
sociedade que havia aprendido, desde os primeiros passos da colonização, a
designar tarefas confiando muito mais nos laços de proximidade e afeto que da
racionalização, tomou o brasileiro de assalto quando este se viu encaixado em
uma nova ordem onde a sua relação de familiaridade se encontra deslocada.
Foi o
moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados no
processo de manufatura e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu sua
atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os
antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao
capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários
ínfimos. (HOLANDA, 1995, p. 142)
Gostaríamos
de chamar atenção, no entanto, para a construção do texto dessa obra. A
arquitetura, o estilo. A uma primeira leitura superficial, pode-se encontrar
alguma dificuldade em encontrar um posicionamento do escritor, pois que as
ideias se encontram polarizadas sobre um mesmo tema, propondo uma reflexão
partindo da dialética.
Sobre
isso, Antônio Candido (1986, p.13) observa,
Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável
metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da
reflexão latino-americana. Em vários níveis e tipos do real, nós vemos o
pensamento do autor se constituir pela exploração de conceitos polares. O
esclarecimento não decorre da opção prática ou teórica por um deles, como em
Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialético entre ambos. A visão de
um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no sentido forte do
termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se
interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento.
Raízes do Brasil,
porém, é uma obra que problematiza a ideia de classificação, pois ainda que
faça um traçado histórico da colonização da ibero-américa, não se resume
simplesmente disso. Durante os dois capítulos que discutimos até agora, são
inúmeros os trechos em que o autor reflete sobre outros aspectos culturais,
como Sociolinguística (ao se referir ao extenso uso de diminutivos, ou quando
reflete – nas “Notas do capítulo 4 A Língua-geral em São Paulo” – sobre o uso
abrangente do tupi em detrimento ao português entre as famílias e os nativos do
interior de São Paulo) ou mesmo Literatura Clássica (quando discorre suas
impressões sobre Os Lusíadas de
Camões).
E
qual seria a melhor disposição para Raízes
do Brasil? Antropologia, Sociologia, História ou Literatura? Fato é que
todas essas áreas podem clamar essa obra como representativa da sua área. Desse
modo, a identidade da gênese desse texto recai em um problema metodológico,
tratado sob o aspecto do gênero ensaio[9].
Esse
é o grande diferencial ensaístico. Tônica similar encontrada em Os Sertões de Euclides da Cunha, onde a
carta topográfica do terreno divide a obra com mapas de itinerários das
expedições do exército, definições botânicas sobre a vegetação, descrições
influenciadas por tratados deterministas e com a mitológica cena da destruição
da matadeira [10].
Tomando a
decisão de acabarem com a matadeira,
guerrilheiros de Canudos (todos jovens, tem torno de dezoito anos) invadem
sorrateiramente o acampamento militar ao meio-dia (quando o sol está a pino e
os soldados descansam):
“(...)
Adiante divisam a presa cobiçada. Como um animal fantástico, prestes a um bote
repetido, o canhão Withworth, a matadeira,
empina-se no reparo sólido. Volta para “Belo Monte” a boca truculenta e
rugidora que tantas granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas.
Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do sol, ajaezando-a de
lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da
clareira. Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um
traz uma alavanca rígida. Ergue-a num gesto ameaçador e rápido...
E a pancada bate estrídula e alta, retinindo...
E um
brado de alarma estala na mudez universal das coisas; multiplica-se nas
quebradas; enche o espaço todo; e detona em ecos que atroando os vales
ressaltam pelos morros numa vibração triunfal e estrugidora, sacudindo num
repelão violento o acampamento inteiro...” (CUNHA, 1979, p. 349-350)
Relatos
que ultrapassam descrição, ainda que envolvam acontecimentos reais, permeadas
de sensibilidade e refinamento linguistico, artístico e posicionamento
político. O exemplo selado por Euclides da Cunha (1979, p.435) nas últimas duas
linhas d’Os Sertões “É que ainda não
existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”, é uma
síntese da riqueza intelectual e da potência do ensaio. A obra de Sérgio
Buarque de Holanda é permeada de por semelhantes ocorrências que acabam por
assinalar o autor como um ensaísta imbuído das características de intelectuais
latino-americanos.
Conclusão
O
ensaio de Sérgio Buarque de Holanda permite, através do seu estilo dialético,
uma profunda reflexão entre o Brasil e os outros países do continente ibero-americano
justamente ao traçar certas comparações duais da colonização portuguesa e
espanhola. Insere-se na categoria, pois favorece a inclusão do país dentro de
uma tradição ensaística de formação de identidade, bem como de desenvolvimento
da intelectualidade em território nacional.
É impossível relevar o local de
enunciação de Raízes do Brasil,
ainda que seu texto tenha sido modificado em virtude das revisões feitas pelo
autor. Sérgio Buarque possui claramente um conceito de sociedade oposto ao vigente
da Era Vargas (desde sua publicação até a sua última revisão).
Ironicamente, em seus prefácios o
autor relata essas modificações e a introdução de notas de rodapés dos capítulos,
bem como de notas sobre os capítulos (subdividindo-os, inclusive, em tópicos),
como que continuando a semeadura das ideias já desenvolvidas, modificando ou
expandindo o texto original. Posteriormente, acaba admitido que para eventuais
adendos, seria mais prático que escrevesse outro livro[11],
no entanto não deixa de ser curiosa a atitude das revisões ideológicas e
textuais. Evidentemente que com isso não estamos taxando a escritura de Sérgio
Buarque de Holanda de desleixada, mas simplesmente observando que o espaço
urbano reflete não só a organização de uma sociedade, como também o próprio seu
autor. Talvez, o lugar do ensaio seja mesmo o “entre-lugar”, a terceira margem.
REFERÊNCIAS
ADORNO,
Theodor. “O ensaio como forma”. In:_____. Notas
de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. Tradução de Jorge M. B. de
Almeida.
CANDIDO, Antonio. O significado
de “Raízes do Brasil”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
CASAS, Arturo. Breve propedéutica
para a análise do ensaio. In:
Rosario Álvarez y Dolores Vilavedra (eds.), Cinguidos por unha arela
común. Homenaxe ó Profesor Xesús Alonso Montero,
t. II. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 1999.
[315-327] Edición original, en lengua gallega.
DOMÍNGUEZ, Chamizo Pedro J. Verdade
Y Futuro: el ensayo como version moderna del diálogo filosófico. Disponível em:
< http://www.ensayistas.org/critica/ensayo/chamizo.htm> Acesso em:
15 set 2013.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
LUKÁCZ, Georg. “Sobre la esencia y forma del ensayo
(Carta a Leo Popper)” In.______: El Alma
y las formas. Barcelona: Grijalbo, 1970.
MELLO, Evaldo Cabral de. Raízes
do Brasil e depois (pósfácio). In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In._____. Ensaios. Tradução de J. Brito Broca e
Wilson Lousada. Disponível em: http://www.loyola.g12.br/upload/file/DOSCANIBAIS.pdf. Acesso em 15 set 2013.
OVIEDO, José Miguel. Breve historia del ensayo hispanoamericano.
Madrid: Alianza Editorial, 1991.
SALINAS,
Vicente Cerveras: ADSUAR, Maria Dolores. El bosquejo como arte. In:______. El Ensayo como género literário.
Espanha: Universidad de Murcia, 2005.
SIMMEL.
Georg. A Metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G. O Fenômeno Urbano. São Paulo: Zahar, 1979. (Tradução Sérgio Marques
dos Reis)
[1] Há, pois, uma ciência da arte; mas há também um modo
inteiramente diferente de manifestação de temperamentos humanos cujo modo de
expressão é na maioria das vezes escrever sobre arte. Digo somente na maioria
das vezes, pois há muitos escritos nascidos de sentimentos semelhantes que não
entram em contato com a literatura nem com a arte, escritos que se propõem as
mesmas questões vitais que os chamamos de crítica, só que diretamente
endereçadas à vida; não necessitam de mediação de literatura e arte. Deste tipo
são precisamente os escritos da maioria dos grandes ensaístas: os diálogos de
Platão e dos escritos místicos, os ensaios de Montaigne e as imaginarias
páginas de diário e narrações de Kierkegaard. [tradução minha]
[2] Em artigo intitulado Verdad y Futuro: el ensayo como
versión moderna del diálogo filosófico, Pedro J. Chamizo Domínguez
discorre justamente sobre a localização da “verdade” dentro do ensaio (se no
passado ou no futuro, para então discorrer sobre as diferenças conceituais):
“Diálogo
y ensayo son géneros literarios filosóficos (y también científicos) que
comparten la característica común de situar la verdad en el futuro de la
reflexión. Como consecuencia de compartir esta característica básica, diálogo y
ensayo comparten también otras características que se puede resumir en las
siguientes: Ambos se presentan como fruto de la faena del hombre para
orientarse a la verdad en colaboración con otros hombres que comparten el buen
sentido. La conciencia de la propia
ignorancia es el punto de partida mismo para poder orientarse hacia la verdad.”
[3] “Si bien no existe unanimidad en la consideración del ensayo como
modalidad retórica demostrativa o persuasiva, lo cierto es que la presencia de
algún modo de argumentación es consustancial al archigénero y suele comparecer
en cada una de las partes en que se articula el discurso, ya incluso en el
exordio. Ello tiene implicaciones que alcanzan la determinación inventiva o
temática, pues esa selección se resuelve en el ensayo en cuanto hipótesis
desarrollada o problematización que se sujeta a las estaciones del razonamiento
y la persuasión.” (ARTURO CASAS,
1999, p.6)
[4] “(...) pois que igual ao centauro, combina o ensaísta
o pensamento fértil humano e a energia criativa do animal” [tradução minha]
[5] Entende-se que esse auge inicial do ensaio como um
fenômeno associado à realidade sócio histórica de um continente que queria
cobrar total autonomia cultural frente à Espanha; isto explica duas coisas:
que, como já se notou, o ensaio moderno surja na América antes que na península,
e que aparece sobretudo como um instrumento indagatório da identidade das novas
nações. O último foi deixado como uma marca permanente no ensaio e nas
preocupações de nossos ensaístas mais importantes. Diz-se com muita frequência
que o ensaio é, em outras partes o gênero que aparece por último, porque
corresponde ao nível avançado do processo intelectual de um povo, e porque se
volta ao conhecimento já existente. Na América parece ocorrer o contrário: os
fundadores da consciência cultural e literária do continente são seus ensaístas
[tradução minha]
[6] Retirado de Reconpilación de leyes de los reinos de las Indias (HOLANDA, 1995,
p.201)
[7]
Interessante lembrar a política de “importação de europeus” promovida pro
Sarmiento na Argentina no fim do século XIX e início do XX.
[8]
“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a
civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”.” (HOLANDA,
1995, p. 146). A expressão “homem cordial”, conforme relata nas notas do
capítulo, é do escritor Ribeiro Couto, em uma carta escrita para Alfonso Reyes
e incluída em sua publicação Monterey.
Sérgio Buarque de Holanda explica que a palavra “cordial” deve ser tomada em
sentido exato e etimológico, entendida como uma espécie de técnica de bondade
envolvente e política. Página 205.
[9]
“Na realidade, a “sociologia da formação brasileira” tinha mais de ensaística
do que de sociologia, constituindo antes um esforço de introspecção coletiva do
que de análise científica, à maneira da que fora levada a cabo na Espanha pela
geração de 98” (MELLO,1995, p.191)
[10]
Canhão Withworth conforme apelidado pelos habitantes de Canudos.
[11]
“Se por vezes tive o receio de ousar uma revisão verdadeiramente radical do
texto – mais valeria, nesse caso, escrever um livro novo – não hesitei,
contudo, em altera-lo abundantemente onde pareceu necessário retifica, precisar
ou ampliar sua substância.” (HOLANDA, 1995, p. 25)