Silviana Deluchi
(Mestranda em Literatura
- UFSC)
Resumo: Este
artigo pretende demonstrar como a personagem do conto “El acomodador”, do
escritor uruguaio Felisberto Hernández, pode ser lido como uma metáfora da
escritura. O “acomodador” que ilumina as coisas com seu olhar é entendido aqui
como o escritor, que pode ver na
escuridão e posteriormente fazer ver o que imagina mediante as palavras de sua
escritura. Ainda que algumas vezes o “acomodador” deixe-se levar pelo desejo do
Outro, fracassando na empreitada da escritura.
Palavras-chave: Escritura; metáfora; olhar; Felisberto Hernández.
Resumen:
Este
artículo busca demonstrar como el personaje del cuento “El acomodador”, del
escritor uruguayo Felisberto Hernández, puede ser leído como una metáfora de la
escritura. El “acomodador” que ilumina las cosas con su mirada es entendido
aquí como el escritor, que puede ver en la oscuridad y posteriormente hacer ver
lo que imagina utilizándose para tal de las palabras de su escritura. Aunque
algunas veces el “acomodador” se deja llevar por el deseo del Otro, fracasando
en la tarea de la escritura.
Palabras
clave:
Escritura; metáfora; mirada; Felisberto Hernández.
A pesar de todo me parece que cada vez escribo mejor
lo que me pasa:
lástima que cada vez me vaya peor
(“Las dos historias”, Felisberto Hernández)
A escrita de Felisberto
Hernández fugia aos moldes da literatura uruguaia de sua época, não seguia
padrões, normas estilísticas, e, muitos
menos, a temática a que se dedicavam seus conterrâneos, que se pautava
no nativismo e no crioulismo. Felisberto rompe com as tradições de relatar, com
os costumes literários em busca de uma autenticidade literária. Em vários de
seus textos, volta-se à angústia e ao prazer da escritura, tecendo considerações sobre as relações como
escritor, ou como a escritura se desenvolve. Em outros textos, como “El acomodador”, ao qual dedicarei esta
análise, trata inclusive da uma metáfora
da escritura e do escritor observada por Rosario Ferré. Hernández apresenta
essa propensão para escrever sobre personagens artistas, escritores. Ao jogar
com o leitor, por várias vezes pode confundi-lo fazendo com que confunda
autobiografia com a ficção– já que Hernández,
por muito tempo, desenvolveu a atividade de escritor paralelamente à de
pianista. Outro aspecto que pode confundir o leitor de Hernández é a menção que
ele faz a personagens reais, ou seja,
que fizeram parte de sua vida, como sua professora de piano, Celina Moulié, em El caballo perdido, e Clemente Colling,
em Por los tiempos de Clement Colling[1],
que também foi seu professor de piano e que morou por algum tempo na casa da
família Hernández.
“El acomodador” (1946)[2],
narrado em primeira pessoa, relata a história de um “acomodador” de teatro – um
lanterninha de teatro – que migrou para a cidade grande ainda jovem, e acredita
não receber o devido valor por seu trabalho e, acima de tudo, ser oprimido pelo meio em que vive. Ele não
possui amigos, suas atividades se resumem ao seu trabalho no teatro e a passear
pela cidade para descobrir novos lugares e imaginar o que ainda não conhece da
cidade.
Yo
era acomodador de un teatro; pero fuera de allí lo mismo corría de un lado para
otro; parecía un ratón debajo de muebles viejos. Iba a mis lugares preferidos
como si entrara en agujeros próximos y encontrara conexiones inesperadas.
Además, me daba placer imaginar todo o que no conocía de aquella ciudad. (p. 75)
Com o passar do
tempo ele passa a crer que existe uma luz que sai de seus olhos e que com ela
consegue iluminar as coisas e fazê-las suas. Poder-se-ia pensar que o trabalho
é de tal importância para ele que a luz com que
acomoda o público no escuro do teatro, se desloca para os seus olhos e
ele mesmo possui agora o poder da iluminação das coisas que deseja. Ainda se pode pensar que o escritor, com a
“luz” dos seus escritos, ilumina com palavras, e que por essa via, a luz do
“acomodador” não seria mais que a metáfora para o ato de escrever, como é a
opinião de Rosário Ferré.
Por outro lado ainda,
Lacan, em O Seminário XI, tem uma
análise sobre o poder do olhar no quadro de Holbein, “Os Embaixadores”, e esta
escritura lacaniana pode aclarar este
olhar do “acomodador” iluminado pelo
desejo de ver o outro. Segundo Lacan, o quadro
mencionado:
[...] está aí para lembrar a vocês em três termos a
ótica utilizada na montagem operatória que testemunha o uso invertido da
perspectiva, que veio dominar a técnica da pintura nominalmente entre os
séculos dezesseis e dezessete. A anamorfose nos mostra que não se trata, na
pintura, de uma reprodução realista das coisas do espaço – expressão sobre a
qual há muitas reservas a fazer. (LACAN, 1996, p. 91)
Lacan demonstra que há um
singular objeto no quadro “que está lá para olhar, para pegar” (1996, p. 91) como
para “pegar na armadilha, aquele que
olha, quer dizer, nós” (1996, p. 91, grifos do autor). Ao explicar que este olhar é ele mesmo sempre algum jogo
de luz com a opacidade, um respelhamento de fazer aparecer a luz como
cintilação, ele diz, inclusive, que o olhar participa da ambiguidade da jóia, e
que ele pode funcionar como forma de anteparo, ou seja, como uma mancha dentro
do próprio quadro. Daí a transformação do poder do olhar: o que era mancha
vira caveira, por anamorfose, mimetismo
ou jogo de trompe l’oeil, um resto no
quadro que mostra a posse desses homens importantes. Mais ainda, Lacan, ao
pensar que a função cria o órgão, isto é, a visão, nós nos maravilhamos com as
pré-adaptações do instinto, e, valendo-se do texto de Roger Caillois sobre o mimetismo,
Medusa e Companhia, conclui que o
organismo pode fazer qualquer coisa, inclusive emanar luz “própria” (LACAN,
1996, p. 97).
Seguindo esse poder que a
visão pode desenvolver, que é impulsionado pelo desejo de ver, Rosario Ferré
escreve, em 1986, o livro intitulado “El
acomodador”: una lectura fantástica de Felisberto Hernández, onde diz que “El acomodador” pode ser lido
como uma metáfora da escritura. Ora, esta metáfora, ao implicar
coincidentemente os dois momentos de que fala Lacan – o de “ver o outro” e o de
“dar-se a ver”, atua de modo similar. Para
tanto, Ferré (1986, p. 81) afirma que há no texto de Hernández duas funções do
escritor: “ ‘ver’, sino ‘ver en la oscuridad’ es la primera función del
escritor” e “una segunda función […] ‘hacer
ver’ a sus espectadores lectores el espectáculo que imagina” (o “dar-a-ver”).Trata-se,
portanto, de uma atividade imaginativa calcada no poder da visão, onde o
narrador-personagem se dedica a imaginar o seu espetáculo particular e
apresentá-lo aos espectadores. Partindo do pressuposto de que imaginar é ver, o
narrador-personagem acredita realmente possuir uma luz que sai de seus olhos e
que com ela ilumina tudo ao seu redor, ele se convence desse seu poder. No
entanto, como para possuir essa luz ele deve estar completamente convencido, se
algo desvia sua atenção, ou se desconfiar de si mesmo, a luz desaparecerá.
Desta maneira é que se pode pensar no fracasso da escritura. Como personagem,
operando no nível da ficção, se o narrador não confia em si mesmo a sua luz
desaparece, e como narrador, operando no nível da escritura, se não confia em
si mesmo como narrador-escritor, sua escritura fracassa.
No início o “acomodador”
dedica grande parte de seu tempo para “imaginar” as coisas. Como ele mesmo diz
no início do relato, assim que encerra o seu turno no teatro, vaga pelas ruas
da cidade, “como si entrara en agujeros” (p. 75), para ver tudo o que lhe
parece interessante e imaginar o que ainda não conhecia. Quando retorna ao seu
apartamento, sozinho, tenta meter os olhos por portas entreabertas e ver o que
se passa no apartamento dos seus vizinhos. Já em casa, dedica horas a olhar
objetos que se encontram em sua mesa de cabeceira. Ele se entrega totalmente a
sua “lujuria de ver” (p. 82). O “acomodador” pratica o “imaginar” e o “ver”
simultaneamente, porém “imaginar” ainda é o que mais preenche o seu tempo.
Talvez essa seja uma forma de fugir ao sofrimento que lhe foi imposto, pelo não
reconhecimento do seu trabalho como “acomodador”, ou se pensando no narrador,
pelo não reconhecimento da sua escritura e por não conseguir impor o seu
espetáculo ao espectador-leitor. Do mesmo modo como acontece com os personagens
da literatura kafkiana que, mesmo esperançosas, em suas idas e vindas em busca
de uma saída, andam em círculos e acabam voltando ao mesmo início, sem conhecer o sucesso, aproximando-se ainda mais do fracasso.
E com o passar do tempo
aparece essa luz inesperada e fantástica que sai de seus olhos e lhe traz uma
nova esperança. Como em vários dos textos de Hernández, esse fenômeno
fantástico – como lido por Ferré – é
desencadeado pela angústia do narrador, pelo sofrimento, e pela solidão que ele
sente, ou como diria Jorge Panesi, em “Felisberto Hernández, un artista del
hambre” (2000, 213-4)[3]:
“la base que sostiene los textos de Felisberto es el desamparo y la carencia,
el hambre […] ése es el verdadero
origen del contar, una carencia que coincide, lisa y llanamente con el hambre”. A solidão, a carência e a fome
lembram em “El acomodador” a presença de uma ausência. O que nos remete
novamente à literatura de Kafka, onde seus personagens estão em constante
busca, mas que não conseguem suprir os seus desejos, permanecendo a constante
da presença da ausência. E não é estranho pensar a “fome” nesse texto, já que o
narrador é levado por seu único amigo a um refeitório onde se oferece jantar
gratuito para pessoas carentes, e
será nesse refeitório que se desenrolará a maior e mais importante parte do
relato e da escritura. No entanto, não será
somente a fome de comida a ser saciada no refeitório, ali o “acomodador” poderá
saciar também a sua fome de “imaginar” e “ver”. Pois, quando se pensa na possibilidade de que o “acomodador”
seja aquele que está em controle da narrativa, aquele que gosta de imaginar que
a filha do “director da orquestra” (apelido para o dono do refeitório) se
afogou. E além de imaginar que a filha se afogou, imagina que os comensais que
ali estão também se afogam: “yo insitía en suponer que la hija se había ahogado
[...] yo me imaginaba a la hija, a pocos centímetros de la superficie del água
[...] A los que comían frente a mí y de espaldas al río,
también los imaginaba ahogados” (Hernández, 2010,
p. 77-8). Quando se leva em consideração a “fome”
analisada por Panesi, é justamente quando o narrador diz que no refeitório
“aquellas comidas con sus vinos me excitaban mucho y me aumentaban la luz”
(p.82).
O narrador de “El acomodador” utiliza-se
infinitamente da faculdade da imaginação para criar outra natureza com a
natureza real (aquela da luz da lanterna que se converte em luz nos seus
olhos), criando também um mundo diferente, onde possui sim um poder diferente dos
demais. Esse mundo diferente pode ser visto aqui como um espetáculo teatral
particular, que é todo construído e representado na sua imaginação. Em dois
momentos se pode perceber com clareza como ele imporá a si mesmo o seu
espetáculo imaginário, onde o “imaginar” e
o “ver” se encontrarão no mesmo espaço e momento, ele passa a ver o que
imagina, agora habitando um mundo diferente. Primeiro momento: inicialmente o
narrador imagina os comensais afogados
e, posteriormente, em outra noite de jantar, um deles diz: “ ‘Me voy a morir’. En seguida
cayó con la cabeza en la sopa [se afoga].”(p.78). O narrador
passa a ver o que imagina, já não se limitando ao imaginar. Segundo momento:
quando está em sua casa e, sem querer, vê seus olhos e seu rosto refletidos no
espelho: “vi mi cara y mis ojos en el espejo, con mi propia luz [...] Me juré
nunca más mirar aquella cara mía ni aquellos ojos de otro mundo” (p. 79). Este
cruzamento entre o imaginar e o ver, gera um jogo de espelhos, onde um ato é
refletido no outro, segundo Ferré (1986, p. 84): “Como en un juego de espejos,
no solo imagina lo que ve, sino que ve lo que imagina: la luz de su imaginación
brotando de sus ojos como un manantial primaria y aterrador. Su mirada
reproduce y da forma a su imaginación, y su imaginación le devuelve la mirada.”
No entanto, ainda resta impor o seu espetáculo a alguém que esteja fora
do seu mundo, a alguém que não esteja vinculado ao seu imaginar. E mais uma vez
o refeitório será palco do seu espetáculo, quando ele mostrará ao mordomo, que
ali trabalha, o seu poder de iluminar as coisas com os seus olhos. Porém, há
nessa demonstração da sua imaginação – do seu espetáculo particular – a
intenção de poder penetrar no espaço privado do refeitório para poder “possuir”
os objetos que ali se encontram.
Operando no nível da escritura, o narrador
invade o espaço do outro, onde ilumina e apreende na escuridão os objetos do
outro e trabalha a sua escritura. Ele apodera-se desses objetos, desses
fragmentos de pequenas histórias, para criar a sua. Esta que não será fechada,
para que assim não se cristalize, e abrindo
possibilidades para o leitor-espectador fazer a sua própria leitura.
Como o narrador não mede esforços para o consumo de outros, apoderando-se do
que não é seu e abrindo caminho por todos os lados, identifica-se com o
conceito de “Caráter Destrutivo”, desenvolvido por Walter Benjamin, o qual
afirma que:
O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade:
despejar. [...] O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente por
que vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas,
também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda parte, tem de desobstruí-lo
também por toda parte. Nem sempre a brutalidade, às vezes com refinamento. Já
que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é
capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não
por causa da ruína, mas por causa do caminho que passa através delas.
(BENJAMIN, 2011, p. 223-5)
Quando
o narrador expõe ao mordomo o seu
espetáculo particular, obrigando-o a abrir-lhe as portas do refeitório, para
penetrar no cômodo “escuro” onde se encontram objetos que deseja possuir, ele
abre caminho para apreender tudo o que ali se encontra e desenvolver a sua
escritura, através da sua visão. O narrador encontra-se em uma constante busca
sobre o que escrever, correndo atrás de material para incorporar à escritura,
tal qual o caráter destrutivo, impossibilitando uma totalidade, e trabalhando
aberturas, abrindo caminhos. Nesse local, ele passará a “ver” mais do que “imaginar”.
Aqui o olho passa a ser mais importante do que a imaginação, exercendo papel de
verdadeiro protagonista na narrativa, ou como diria Nancy, em “Pintura en la
gruta”:
[...] el ojo que hasta aquí no ha hecho más que
percibir las cosas se descubre viendo. Ve
esto: que ve. Ve que ve ahí: ve donde
hay algo del mundo que se muestra. Y
siempre es ver también en la noche de la gruta, la mirada recta tendida hacia
la profundidad negra. Y el ojo ve ahí la Idea, la extranjera, la figura: el
Monstruo que es él mismo es abierto por ella e en ella, es ritmado a su son, y
es ella. Ve lo invisible, y el desvanecimiento del sentido de su propia
presencia en el mundo. (NANCY, 2008, p. 110)
Já no cômodo
do refeitório ele acredita “estar en el
centro de una constelación [e que] podía mirar una cosa y hacerla mía
teniéndola en mi luz un buen rato” (p. 83). Neste momento, como o olhar, ele coloca os objetos
em relação, como em uma montagem, onde se tem a possibilidade de colocar em
relação elementos que não teriam relação alguma um com o outro. O narrador
entrega-se, novamente, ao seu espetáculo particular, onde imagina que pode ver
e iluminar tudo que está ao redor, oscilando
entre apropriar-se de um objeto para com ele gozar privadamente ou incorporá-lo
ao seu próprio eu – como incorpora a lanterna utilizada no seu trabalho e que
lhe permite emitir luz com seus olhos. O “ver” será intensificado com a aparição de uma
mulher sonâmbula, descrita como “una
mujer bellísima: parecía haber sido hecha con las manos y después de haberla
bosquejado en un papel” (p. 84). Outro momento em que seu vício de imaginar se faz
presente: a mulher parecia ter sido desenhada e feita com as mãos antes de ser
real, ela foi imaginada, desenhada e esculpida para somente depois criar vida.
Apesar de sua beleza estonteante, essa mulher carrega traços da filha do dono do
refeitório, aquela que ele gostava de imaginar que havia se afogado, indo a
contrapelo da história original, ou real. Porém há algo, nessa visão da mulher,
que o incomoda, ela também emite uma luz e o narrador não consegue iluminá-la
com a luz dos seus olhos. A luz da mulher vem de um candelabro que traz nas
mãos, diferente da luz do narrador que (em
sua imaginação) é “natural”, e a dela artificial. A partir desse
encontro ele se entregará totalmente a “lujuria de ver”, e esquecerá a sua
imaginação. Quando esquece a imaginação e entrega-se ao ver – apesar de ser uma
das funções do escritor, segundo Ferré – ele também esquece o processo da
escritura, passando a ser somente espectador-leitor.
Dando
sequência aos seus momentos de visão, o narrador passa a “ver” a sonâmbula
todas as noites em suas incursões ao cômodo do refeitório. Ali ele se entrega
totalmente ao que denomina “ritual”, onde a mulher lhe roça a “cola de su
peinador” quando passa ao seu lado. Sua imaginação se fez “real”, ele vê o que
imagina, e em função de querer iluminar e possuir a sua visão, ou melhor, a
mulher de sua visão, passa a ofuscar-se
e esquece-se de si mesmo: “Había
olvidado mi propia luz: la hubiera dado toda por recordar con más precisión
cómo la envolvía a ella la luz de su candelabro.”(p. 86). Esta obsessão por
possuir esta mulher e se fazer ver, o faz imaginar que a vê por todos os
lugares, passando a vê-la na rua e em um
cinema, onde ela não o reconhece e ainda o trai com outro. Como o narrador
esquece de si mesmo, passa a ser teleguiado –
em palavras de Lacan – pelo Outro. O seu desejo de ver não é seu, é do
Outro. Esse Outro inalcançável é quem guia os desejos do narrador.
Vemos então aqui que o olhar opera numa certa queda, queda de desejo,
sem dúvida, mas, como dizer? O sujeito não está aí de modo algum, ele é
teleguiado. Modificando a fórmula que é a que eu dou para o desejo enquanto
inconsciente - o desejo do homem é o
desejo do Outro – direi que é de uma espécie de desejo ao Outro que se trata, na extremidade do qual está o dar-a-ver. (LACAN,1988, p. 111, grifos
do autor)
Porém, o narrador nunca se “dá-a-ver”, a
sonâmbula perambula pelo cômodo todas as noites, passa por ele, pisa nele, mas
nunca o vê e nem o sente. Ele, ao contrário, consegue senti-la e vê-la, mas é invisível aos olhos
dela e continua sendo guiado pelos desejos dela. O desejo continua sendo desejo
do Outro, e não se volta ao Outro, porque ele colocou-se em
posição onde não consegue se “dar-a-ver”, fazer-se ver. Com a diminuição da sua luz, diminui também a
sua confiança em si mesmo, o que, consequentemente, desencadeia a diminuição da
sua luz e – no nível da ficção – a sua escritura-espetáculo também perde a
força.
Esta luz pode ser pensada como o traço que se
inscreve no papel dando vida à escritura. A luz rompe a escuridão, como o traço
rompe o branco do papel. Antes dela não havia história, a partir do momento em
que se faz presente, e que se faz ver, faz saltar do fundo um traço, que será o
desenvolvedor da escritura. A partir do momento em que o narrador vê sua luz,
ele também faz um traço, ele se faz através desse traço, e se distingue,
abrindo-se e criando uma diferença. Em “Pintura en la gruta”, Nancy define o
traço e as manifestações que ocorrem depois que ele é feito.
Del pintor
a la pared, la mano abre una distancia que suspende la continuidad y la
cohesión del universo, para abrir un mundo. La superficie de piedra se
convierte en ese mismo suspenso, su relieve, su matiz y su grano. El mundo
parece quedar cortado, cercenado de sí, y cobra figura en su corte: aplanado,
liberado del espesor inerte, forma sin fondo, abismo y playa de la aparición.
El trazo
divide y dispone la forma: é la forma. Descarta al mismo tiempo – con el mismo
tino, con el mismo trazo atinado – al animal trazador y su gesto: en el extremo
del pedernal o del dedo surge lo real separado, lo real repentino dibujado y
destinado según su lisa y llana realidad, ofrecida como tal sobre la pared
inclinada, sin sustancia, sin peso, sin resistencia a su despliegue. La
realidad misma de lo real, desconectada de cualquier uso, inviable, intratable
y hasta intocable, densa y porosa, opaca y diáfana directamente sobre la pared,
película impalpable e impasible en la superficie de la roca: la roca misma
transfigurada, pura superficie, pero siempre sólida.
No una
presencia: su vestigio o su nacimiento, su vestigio naciente, su huella, su
monstruo. (NANCY, 2008, p. 107)
Antes havia um vazio, tudo escuro, ou tudo
branco, agora existe a luz e o traço, e a historia começa a ser contada. O narrador
não busca uma totalização, mas sim se fazer ver e fazer ver o seu
espetáculo-escritura. Quando narrador demonstra ao mordomo do refeitório sua
luz ele se expõe, se “dá-a-ver”. Porém, no cômodo com a sonâmbula, é como se
ele estivesse perante o olhar de um cego, ela não o vê, não há exposição e ele
não se “dá-a-ver”, mesmo que ela lhe roce o cauda do seu penhoar, há ainda a
impossibilidade do toque.
Em busca do material para a sua
escritura-espetáculo o narrador se lança rumo ao desconhecido, correndo riscos
e invadindo o espaço alheio. Como em um jogo onde se joga baixo determinadas
regras, ele as quebra, se arrisca no espaço do outro, abre caminhos. Ele vive
do arriscar-se em prol da sua escritura-espetáculo. É na errância da escritura
que transborda o sentido desses caminhos que o narrador busca abrir, não
pensando em um resultado final, mas sim na deriva, no movimento. No entanto, a
escritura errante agora se vê em perigo por conta da sua nova condição do
narrador. Já não é mais ele que joga com o outro, mas o outro que joga com ele,
fazendo com que desacredite de sua força e de sua luz, e por consequência,
enfraquecendo também a escritura. O traço começa a esfumar.
Chegado a este ponto, há que se voltar a um
momento importante da narrativa. Naquele segundo momento em que o narrador
impõe à sua visão o que imaginava, vê seus olhos refletidos no espelho com sua
luz, lhe causando extremo desconforto:
[…] vi mi
cara y mis ojos en el espejo, con mi propia luz [...] Me juré nunca más mirar
aquella cara mía ni aquellos ojos de otro mundo. Eran de un color amarillo
verdoso que brillaba como el triunfo de una enfermedad desconocida; los ojos
eran grandes redondeles, ya la cara estaba dividida en pedazos que nadie podría
juntar ni comprender.
Me quedé
despierto hasta que subió el ruido de los huesos serruchados y cortados con el
hacha. (p. 79-80)
Pouco tempo depois de sua luz aparecer o narrador
desconfia de si mesmo, que na realidade ele oscila entre o confiar pleno e a
diminuição da confiança. Operando no nível da escritura, se pode dizer que aqui
a linguagem enfraquece, perdendo movimento, quase petrifica. O “acomodador” vê um monstro porque assim acha que os
outros o veem. É o olhar de um fracassado, de quem não tem coragem de
“dar-se-a-ver”, deixando de ser lugar de passagem. Assim como o seu rosto está dividido em pedaços que não se pode juntar,
nem compreender, a linguagem também está desgastada, em pedaços,
impossibilitando o seguimento da narrativa. E como o sujeito que existe na linguagem, há aqui também o
possível fracasso do narrador como personagem, como “sujeito” da narrativa. O
que vem a revelar como a linguagem pode
ser frágil. Outro elemento que demonstra como personagem e linguagem podem ser frágeis e quebradiços,
são “los huesos serruchados y cortados con el hacha”. Essa frase, utilizada
quase como um refrão na narrativa, se repete várias vezes fortalecendo a ideia
de fragilidade, e já dando indícios do
fracasso da narrativa. Ainda se poderia pensar na narrativa como um corpo, e os
“huesos serruchados” poderiam ser vistos como a fragmentação do texto.
A esse ponto já está explícito que o narrador
é oscilante, por momentos ele se sente inferior (“parecía un ratón debajo de
muebles viejos” ( p. 75) ), e em outros se ente superior (“no importaba que
ellos no sospecharan todo lo superior que era yo” (p. 75) ). Quando impõe o seu
espetáculo ao mordomo e consegue possuir as coisas que estão no cômodo do
refeitório, ele põe a narrativa em movimento, a linguagem erra por todos os
caminhos, se intensifica ganhando força. Porém, como o aparecimento da
sonâmbula, e sua obsessão por ela, seu mundo começa a se desestruturar, e daqui
em diante o narrador não conhecerá mais caminho de volta, passando somente a
admirá-la e esquecendo-se de si mesmo e de seu propósito, a escritura.
Após “imaginar” que vê sua amada sonâmbula
perambulando pelas ruas com outro homem, o narrador decide voltar ao
refeitório, agora para impor a ela a sua presença, o seu espetáculo. Pois é
somente ela quem não “aceita” este espetáculo da imaginação. Sua tentativa é
frustrada, ele fracassa. Usando um gorro ele faz sinais para a mulher, que
ainda assim não o vê, então resolve atirar este objeto nela e:
Es la
primera vez que se establece un contacto físico entre el acomodador y la mujer-fantasma,
y este contacto tiene como resultado el derrumbe de la ficción (y del
“espectáculo”): la mujer da un grito,
deja caer el candelabro (cuya luz se apaga), y cae al suelo. El
acomodador descubre entonces que lo que ha pretendido es imposible: a pesar de
que con su luz ha logrado darle forma a su “espectáculo” de la mujer-fantasma,
no puede obligarla a que lo mire y lo ilumine a su vez con su luz. (FERRÉ, 1986, p. 87)
Mediante este ato o narrador-acomodador
descobre que sua imaginação pode ser muito frágil. E descobre na mulher
sonâmbula as mesmas características que via em seu rosto, quando se vê no
espelho, ela passa a ter aquela mesma cor amarelo verdosa “y no veía de ella
nada más que sus huesos” (p. 90). Retomamos aqui os “huesos serruchados”
lembrando agora os ossos da mulher, que também podem ser frágeis, comparando-os
com a linguagem que se despedaça, se rompe, e a fragmentação da narrativa. Com
o apagamento da luz da mulher, ele consegue iluminá-la, penetrando o seu corpo
e vendo o que lhe causa angústia em si mesmo. Também é descoberto pelo dono do
refeitório, o pai da mulher, sendo expulso do lugar onde se desenvolvia a sua
escritura-espetáculo. Com o passar dos dias o narrador se torna apático, sua
luz se apaga. Ele fracassa como narrador, no nível da escritura, no intento de
dar seguimento à narrativa, e também fracassa como personagem no nível da
ficção, não conseguindo fazer-se ver e ser reconhecido.
En los días
que se siguieron tuve mucha depresión y me volvieron a echar del empleo. Una
noche intenté colgar mis objetos de vidrio en la pared; pero me parecieron
ridículos. Además fui perdiendo la luz; apenas veía el dorso de mi mano cuando
la pasaba por delante de los ojos. (p. 92)
Esta é uma
narrativa do fracasso, como as histórias kafkianas, ao menos de acordo com
Benjamin ou Blanchot. Gregor Samsa, personagem de A metamorfose, e Joseph
K., de O processo, são exemplos de
fracassados na literatura de Kafka, que morrem sem alcançar seus objetivos,
Samsa, de retomar sua condição humana, e Joseph K., de provar a sua inocência.
A existência de Joseph K., Gregor e o “acomodador”, “é o estado do ser que não
pode deixar a existência, para quem existir é estar condenado a sempre recair
na existência”, a qual se refere Blanchot em “Leitura de Kafka”(1997, p.
17). Tais personagens lutam
exaustivamente para fugir dessa existência medíocre e opressora, porém, como
diria Benjamin, em “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua
morte”, (2011, p. 143): “nenhuma das suas criaturas [de Kafka] tem um lugar
fixo, um conforto fixo e próprio, não há nenhuma que não esteja sucumbindo ou
descendo (...) nenhuma que não esteja profundamente esgotada.” As personagens
de Kafka – e o “acomodador” – tentam resistir, mas esgotam suas forças e acabam
sucumbindo à pressão imposta sobre elas. Elas fracassam.
REFERENCIAS
BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A propósito do
décimo aniversário de sua morte”. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas
Volume I. 1 ed. 14 reimpressão. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 2011. p. 137-164.
BENJAMIN, Walter. “O caráter destrutivo”. In: Rua
de mão única. Obras escolhidas Volume II. 1 ed. 6 reimpressão. Tradução: Rubens
Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa . São Paulo: Brasiliense,
2011. p. 223-5.
BLANCHOT, Maurice. “Leitura de Kafka”. In: A parte do fogo. Tradução: Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997. p. 09-18.
FERRÉ, Rosário. El acomodador,
una lectura fantástica de Felisberto Hernández. México: Fondo de Cultura
Económica, 1986.
HERNÁNDEZ, Felisberto. “El acomodador”. In: Obras completas. Volume II. 1 ed. 8 reimpressão. México: Siglo Veintiuno Editores,
2010. p. 75-92.
__________. “Las dos historias”. In: Obras completas. Volume II. 1 ed. 8 reimpressão. México: Siglo
Veintiuno Editores, 2010. p. 160-171.
LACAN, Jacques. O seminário.
Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2 ed. Rio de
Janeiro: Jorje Sahar Editor, 1985.
NANCY, Jean-Luc. “Pintura en la
gruta”. In: Las musas. 1ed.
Tradução: Horacio Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2008. p. 97-110.
PANESI, Jorge. “Felisberto
Hernández: un artista del hambre”. In: Críticas.
Editorial Norma: Buenos Aires, 2000. p. 183-220.
[1] “Por los
Tiempos de Clemente Colling” (1942) é escrito após a morte de Clemente Colling
(1926), talvez como homenagem a este personagem totalmente estranho – pianista
e compositor cego, boêmio e com poucos hábitos de higiene – e que teve grande
influência na formação de pianista de Felisberto Hernández.
[2]
Originalmente publicado em Anales de Buenos Aires Nº 6, Buenos
Aires, Junho, 1946. Aqui se fará referência a: HERNÁNDEZ, Felisberto. “El
acomodador”. In: Obras Completas.
Volumen II. 1 ed. 8
reimpressão. México: Siglo Veintiuno Editores, 1983 (2010). p. 75-92. Todas as
citações serão feitas a partir desta edição, para tanto utilizando somente o
número da página, salvo em caso de outro texto, o qual será devidamente
especificado.
[3] Neste texto, Jorge Panesi
analisa La casa inundada, onde o narrador-personagem é um escritor que é
convidado a trabalhar com a Sra. Margarita, que inunda uma casa para conviver
com a água, lá ele deve ser “remero” desta mulher e ouvir as suas histórias.
Mas, Panesi, refere-se à fome e a angústia, justamente por o
narrador-personagem ser solitário, e haver sido convidado a este trabalho
durante uma festa de casamento, a qual não era convidado dos noivos, mas de um
amigo. Panesi faz relação entre a comida da festa e a solidão do
narrador-personagem. Ele aceita o trabalho, e além de trabalhar como “remero”
também escreve a história do marido da Sra Margarita e dos motivos pelos quais
ela resolve inundar a casa.