“ESTAMOS PRONTOS, CAPITÃO”: Bob Esponja influenciando o universo infantil por sua relação de subserviência no trabalho



Patricia Maria dos Santos Santana
(Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ/
Bolsista CAPES)

Resumo: Este artigo almeja desenvolver algumas contribuições de Marcuse, autor que mais se debruçou sobre a temática do trabalho, para a reflexão sobre alguns problemas. Compreenderemos aqui através da ótica do desenho infantil como a maioria da população, nos países industrializados, podem agir e pensar em formas que a oprimam. Essa é uma tentativa de entender elementos que sustentam a dominação e a racionalidade irracional da sociedade capitalista. Inculcar certos valores nas mentes infantis desde tão tenra idade faz parte de um jogo de relações que vão muito além da mais simples representação de um mero personagem papalvo e tolo como Bob Esponja. Seu olhar submisso e otimista sobre o trabalho apresenta inconsistências, pois faz uma microanálise desconectada das contradições da sociedade capitalista, tentando resolver o conflito entre capital e trabalho por meio da hierarquização radical das relações.
Palavras-chave:  Desenho animado; Capitalismo; Psicologia; Marcuse; Trabalho.


Abstract:  This article aims at developing some Marcuse’s contributions, author who has most studied the thematic of labor, to discuss some problems about. Through the cartoon optic there will be an understanding about how the majority of people in industrialized countries can act or think about ways that oppress them.  This is a try of understanding the elements which sustain domination or the irrationality reason of the capitalist society. To inculcate certain values in kids’ minds since such a young age is a part of a set of relationships that go far beyond the simple representation of a mere simpleton and silly character as Sponge Bob. His submissive and optimistic look about his work presents inconsistencies because it makes a microanalysis disconnect to the contradictions of capitalist society, trying to solve the conflict between capital and labor through radical hierarchy of relationships.
Keywords: Cartoon; Capitalism; Psychology; Marcuse; Labor.

Aqueles que não precisam trabalhar chamam o trabalho de virtude
para enganar quem trabalha.

Santiago Rusiñol y Prats

Introdução
           O desenho SpongeBob SquarePants intitulado no Brasil como Bob Esponja Calça Quadrada é uma série americana criada pelo biólogo marinho e animador Stephen Hillenburg. A série gira em torno das aventuras do personagem que dá título ao desenho e seus diversos amigos, que habitam a cidade submarina de Bikini Bottom (Fenda do Biquíni, no Brasil). A base da série foi criada por Hillenburg em 1984, enquanto ele estudava e lecionava biologia marinha no Ocean Institute, na Califórnia.  Criou na época uma história em quadrinhos chamada ‘Interdital Zone’ estrelada por diversas formas antropomórficas de animais marinhos, muitos dos quais acabariam se transformando nos personagens de SpongeBob SquarePants. Hillenburg abandonou o instituto para se tornar um animador em 1987.  O episódio piloto da série foi ao ar nos Estados Unidos em 1 de maio de 1999. A estreia oficial da série foi em 17 de julho do mesmo ano, com o episódio “Bubblestand Ripped Pants”. O desenho conseguiu uma popularidade imensa a partir do ano seguinte e permaneceu assim desde então.  Um longa-metragem baseado na série foi lançado em 19 de novembro de 2004 nos cinemas. A série completou seu décimo aniversário em 17 de julho de 2009. No Brasil, ela é exibida por um canal de TV por assinatura e por um canal aberto.
           Bob Esponja é uma esponja do mar otimista que vive dentro de um abacaxi no fundo do oceano com seu caramujo de estimação Gary, que mia como gato.  A duas casas de distância de Sponge Bob vive seu melhor amigo, Patrick, uma estrela do mar rosa amigável, mas pouco inteligente que vive sob uma rocha. No meio dos dois vive Lula Molusco, um polvo arrogante que não gosta dos seus vizinhos, especialmente de Bob Esponja, por seu comportamento tolo. O chefe de Bob Esponja e Lula Molusco é o seu Sirigueijo, um caranguejo avarento, obcecado por dinheiro e proprietário do restaurante Siri Cascudo. O arqui-inimigo de Sirigueijo é Plankton, um pequeno copépode verde, proprietário de um restaurante fast food chamado Balde de Lixo, situado do outro lado da mesma rua do Siri Cascudo. Plankton passa a maior parte de seu tempo planejando um meio de roubar a receita do popular hambúrguer de siri do senhor Sirigueijo para conseguir o mesmo sucesso, embora seus planos sempre fracassem.
            Freud (1996) inicia seu pensamento teórico assumindo que não há nenhuma descontinuidade na vida mental. Ele afirmou que nada ocorre ao acaso e muito menos os processos mentais. Há uma causa para cada pensamento, para cada memória revivida, sentimento ou ação. Cada evento mental é causado pela intenção consciente ou inconsciente e é determinado pelos fatos que o precederam. Uma vez que alguns eventos mentais parecem ocorrer espontaneamente, Freud começou a procurar e descrever os elos ocultos que ligavam um evento consciente a outro.  O ponto de partida da investigação freudiana gira em torno da formação da consciência e essa se dá em épocas muito remotas do ser humano, desde praticamente o nascimento. Daí todo acontecimento presente na vida do homem ser importante para chegar a uma análise do que esse mesmo homem é em fase adulta.
           Podemos observar em Eros e Civilização, um diálogo constante que Marcuse tem com a obra Freudiana. Uma grande influência de Freud será a busca da felicidade do indivíduo humano, que virá através da satisfação dos desejos individuais de cada pessoa. As pessoas hoje seriam infelizes porque a sociedade bloqueia a realização de seus desejos, e devemos tentar reverter essa situação. O comportamento das pessoas na sociedade atual está mais voltado para como atuam as pulsões e como procuram realizar ou reprimir os seus desejos. Marcuse acreditava em uma inversão do sentido do progresso, mas o homem não quis fazer isso.  Ao invés de se basear em uma sociedade de produção e consumo desenfreados, poder-se-ia usar a riqueza e o conhecimento da sociedade de forma a satisfazer, na medida do possível, as pulsões vitais humanas, além de impedir os efeitos nocivos de nossas vontades destrutivas. O homem poderia então trabalhar menos e se dedicar mais a uma vida de satisfação de seus desejos e pulsões, vivendo de maneira muito mais realizadora e plena. Contudo, o progresso só fez com que o homem acreditasse nos aparelhos de dominação que ditavam que apenas seguindo os rumos do próprio progresso é que a felicidade seria alcançada. Daí, acreditar que nossas crianças encontram-se na frente da televisão sem correr riscos é pura ingenuidade. A mídia é um aparelho de dominação ativo e a mesma sabe que é mais fácil moldar os pequenos introjetando informações subliminares em seus incosncientes desde cedo. Precisamos ter cuidado com as ameaças silenciosas que nos cercam e que cercam as crianças.

1. O Inconsciente e suas amarras
            Para Freud (1996), o consciente é somente uma pequena parte da mente, incluindo tudo do que estamos cientes num dado momento. O interesse de Freud era muito maior com relação às áreas da consciência menos expostas e exploradas, que ele denominava Pré-Consciente e Inconsciente. A ideia inicial de Freud era de que há conexões entre todos os eventos mentais e quando um pensamento ou sentimento parece não estar relacionado aos pensamentos e sentimentos que o precedem, as conexões estariam no inconsciente. Uma vez que estes elos inconscientes são descobertos, a aparente descontinuidade está resolvida. No inconsciente estão elementos instintivos não acessíveis à consciência. Além disso, há também material que foi excluído da consciência, censurado e reprimido. Este material não é esquecido ou perdido, mas não lhe é permitido de ser lembrado.  Freud nos diz que a maior parte da consciência é inconsciente. Ali estão os principais determinantes da personalidade, as fontes da energia psíquica, as pulsões e os instintos.
            A consciência moral se forma a partir de determinados elementos que permitem formar no ser humano, qualidades que concretizem sua tendência para o bem. E isso através da família, da escola, das igrejas, dos partidos e, enfim, de toda a sociedade. Segundo a psicanálise o psiquismo humano é composto de três instâncias que são constituídas pelo Id, Ego e Superego. Segundo Freud, o ser humano nasce Id. O Id é o princípio do prazer, da libido, a busca do agradável e a rejeição do desagradável. O Ego é constituído pelo princípio da realidade. É o psiquismo humano enquanto consciente ou ciente de que vive em sociedade, que conhece, trabalha, tem horário e é responsável. O Superego é formado pela censura, pelo princípio da restrição, pela proibição, pela medida, pelas normas morais, regras comuns, leis, ideais coletivos e preferência pelo interesse geral. A criança que não sofre nenhuma restrição e é satisfeita em todos os desejos e caprichos tende a tornar-se um adulto sem normas, egoísta e antissocial. Sua vida, de modo geral, é pautada pela autopermissividade, isto é, só vê a si mesma e seus interesses particulares. Na formação do Superego é importante o equilíbrio. Hoje, os pais trabalham fora e a TV molda as crianças. A educação moral da criança vai sendo desenvolvida assim.  No início, a formação da consciência moral é heterônoma, ou seja, ela vem de fora. As crianças aprendem o que é bom e o que é mau a partir dos pais, dos professores, da sociedade e da mídia. Ainda não sabem escolher e decidir por conta própria. Porém com a ausência dos pais, a família não tem mais a função essencial de anos atrás.  Quem mais fala e mais autoridade possui é a TV, apresentando falsos valores, modelos estranhos à cultura local, ídolos, consumismo... Assim, os pais perdem, cada vez mais, seu lugar e sua função.

2. Analisando o discurso do desenho animado
          Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, Cinderela, Branca de Neve, Os três Porquinhos... Os contos de fada estão repletos de questões freudianas. No livro Psicanálise dos Contos de Fada, o estudioso Bruno Bettelheim diz que, ouvindo ou lendo essas histórias, as crianças encaram vários medos e acabam lidando com eles.   Se nos voltarmos para os desenhos animados essa percepção não é diferente, é tudo bem mais "psicanalítico" nesse aspecto, considerando o contato demasiado que a criança tem com esse tipo de mídia desde tenra idade. Questões voltadas para o bem e para o mal estão presentes. Questões relacionadas a um molde, a um modelo de cidadão futuro. Bob Esponja nos desenhos de sua série representa, dentro do capitalismo selvagem, o funcionário padrão que jamais falta, sempre faz esforços sobrenaturais para preservar seu emprego e agradar ao seu patrão. Possui uma ingenuidade incrível, que jamais indaga ou reivindica nada, ele apenas obedece.  Mostra comportamento inerente a todo e qualquer ser alienado que facilmente pode ser manipulado por outro ser humano com certo poder. E o poder que tratamos aqui é o poder financeiro. A Fenda do Biquíni é um microcosmo social em suas representações. O patrão de Bob Esponja, o senhor Sirigueijo, representa o patrão inescrupuloso no universo capitalista disposto a fazer qualquer coisa para obter lucro acima do normal em seus negócios. Ele dispõe de uma espécie de trabalho que beira ao escravismo com seus funcionários Lula Molusco e Bob Esponja. Bob é extremamente alienado, mas Lula mostra-se um pouco mais consciente de tudo que o cerca.  Contudo, Lula também não tem forças para se rebelar contra o sistema de dominação no qual se encontra, agindo de acordo com os padrões trabalhistas. A disputa acirrada encontrada no capitalismo selvagem também está presente na rivalidade que há entre as duas redes de restaurante: a do senhor Sirigueijo e a do Plankton. Enquanto o restaurante de Sirigueijo representa o poder do capitalismo instaurado e cristalizado, o restaurante menor, o de Plankton, representa o microempresário incluso nesse universo e que luta para poder crescer e se firmar. 
         Os filmes e desenhos infantis, por meio de suas narrativas, sugerem comportamentos que podem ser repetidos ao longo da vida das pessoas e se caracterizam como instrumentos de produção e reprodução de significados culturais.  Assim,
[...] em qualquer sociedade, os inúmeros artefatos educativos existentes têm como principal função com/formar os sujeitos, moldando-os de acordo com as normas sociais. Grande parte desses artefatos educativos está inserida na área cultural como, por exemplo, televisão, cinema, revistas, livros ou histórias em quadrinhos. De qualquer forma, são revestidos de características “inocentes”, como prazer e diversão, que também educam e produzem conhecimento. (SABAT, 2003, p. 149)


Nesse sentido, a escolha feita pela redefinição de caminhos diferentes daqueles apresentados pelos filmes infantis tende a ser rejeitada por causar um desconforto em relação ao poder do discurso hegemônico.  Silva (2006, p.23) registra que “os diferentes grupos sociais não estão situados de forma simétrica relativamente ao processo de produção cultural”. Existe um vínculo estreito e inseparável entre significação e relações de poder. Bob Esponja vive em estado de alegria extrema e tal alegria sem aparente explicação reflete-se também no trabalho. Ele ama incondicionalmente sua função assalariada de fazer sanduíches, gosta de trabalhar muitas horas, de ser maltratado pelo patrão e não se importa em ganhar pouco na lanchonete. Uma coisa é desempenhar sua função com paixão mesmo sendo simples, mas ele vive a cultura do ser subserviente e acomodado. A rotina dele é massacrante, não pede uso da criatividade. Fazendo uma representação do grotesco, passando o entendimento que todo trabalhador pobre é servil, risível e alienado, o personagem Bob Esponja consegue desempenhar muito bem a sua função de empregado padrão. Essa é uma apologia. Dentre os que endossam a apologia do trabalho encontram-se também aqueles que conseguem visualizar, mesmo no trabalho alienado, mecanismos de fuga e prazer ou espaços para a constituição de uma consciência crítica, mas essa não é a visão do desenho animado Bob Esponja dentro do capitalismo.  Portanto, é fundamental resgatar as contribuições de Marcuse sobre a relação entre trabalho e mais-repressão, ou seja, trabalho e sacrifício extra.

3. Marcuse e a mais-repressão

           Herbert Marcuse foi um dos primeiros a interpretar críticamente os Manuscritos Economico-filosóficos de Karl Marx e pensava encontrar neles um fundamento filosófico da economia política no sentido de uma teoria da revolução. É de Marx que virá sua crítica ao Nacionalismo e aos efeitos que o capitalismo burguês vai ter na vida das pessoas. Também vem de Marx a proposta de que, com o desenvolvimento da tecnologia e do capitalismo como um todo, em conjunto com uma ação revolucionária da sociedade, poderemos alterar as nossas condições e erguer uma nova organização social, que possibilite uma vida melhor para as pessoas. Marcuse procura esboçar caminhos que nos levem para além da organização sócio-econômica atual, para além de uma alienação social.  Ele se preocupava com o desenvolvimento descontrolado da tecnologia, o racionalismo dominante nas sociedades modernas, os movimentos repressivos das liberdades individuais, o aniquilamento da Razão. Para os membros da Escola de Frankfurt, o proletariado se perdeu ao permitir o surgimento de sistemas totalitário como o nazismo e o stalinismo por um lado, e a "indústria cultural" dos países capitalistas pelo outro lado. O problema da sociedade moderna é a invasão da mentalidade mercantilista e quantificadora a todos os domínios do pensamento. Marcuse foi figura importante de Frankfurt. Sua obra Eros e Civilização gira em torno de uma pergunta: seria possível uma sociedade não repressiva? Para obter resposta, Marcuse recorreu aos conceitos freudianos com aspectos da teoria marxista, ou melhor, interpretou filosoficamente “A Civilização e seus Descontentes” de Freud e a confrontou com a sociedade capitalista contemporânea.
             Sendo o homem constituído basicamente por dois instintos primários, Eros e Thânatos (Eros é a energia da libido, o princípio de prazer e Thânatos é nossa inclinação à destruição, à morte), ambos têm procedência comum que são oriundas do desejo de eliminação da tensão, a vontade de retroagir ao estado inorgânico anterior à vida. O aparelho mental humano (estrutura psíquica) é dividido em: Id, Ego e o Superego. Freud faz a “passagem” do Pai ao Superego em um ponto de vista simbólico baseado em uma história fictícia da ‘Horda Primeva’. No princípio das civilizações, o comando era exercido por um Pai Primordial. Este detinha o monopólio das mulheres do grupo e impunha o trabalho aos filhos. Os filhos nutriam um sentimento ambivalente pelo pai: ora afeto, já que a sua presença promovia unidade e segurança ao grupo, ora revolta, pela imposição das restrições. Aqueles que ameaçassem a soberania despótica eram excluídos. Em dada passagem, os filhos exilados se rebelam, assassinam o pai e o devoram. O poder, então, é assumido pelo clã de irmãos. Entretanto, o pai é divinizado e interioriza-se o tabu. Surge o sentimento de culpa. Eis o Superego e a repressão.  Marcuse parte da repressão freudiana para fazer o apontamento de seu conceito de mais-repressão de nossa sociedade.  Como o próprio nome indica, mais-repressão é a repressão adicional, que excede o necessário à civilização. Ela é ensejada pela dominação de alguns homens sobre outros. Nas sociedades primitivas era preciso a repressão devido à carência tecnológica. Como observa Freud, se não houvesse repressão, a vida não seria possível, já que os homens, entregues ao princípio de prazer, matariam uns aos outros.
           Marcuse diz que Freud não observou a mais-repressão. Na sociedade contemporânea capitalista, na qual a abundância tecnológica dispensa a repressão originária, emerge a mais-repressão, fundada no trabalho alienado.  Agora, a dominação não é mais do pai primordial, mas sim impessoal e objetiva concretizada no Princípio de Desempenho (que passa a ser o Princípio de Realidade). Os homens são concebidos por suas funções econômicas. As posições sociais são definidas pelo desempenho. As preocupações contemporâneas (como por exemplo, reconhecimento social) nada têm a ver com o Ser do homem.  O controle, a repressão, desloca-se do campo instintual para o controle da consciência e é de tal força que o indivíduo e o todo são a mesma coisa. O superego é automatizado.  Há controle também sobre o tempo liberado, uma vez que não existe tempo livre.  Não há a possibilidade de o individuo entregar-se a si próprio ou retirar-se para um mundo diferente. O repertório de escolhas é superficial, restrito a opções de consumo. Enfim, a civilização contemporânea é a consumação plena do trabalho alienado e da negação humana. Tudo é mercadoria inclusive o homem em suas relações.
           Bob Esponja quer ser o melhor funcionário sempre. Preocupa-se em não desagradar o chefe autoritário, vive predestinado a um espírito de equipe latente, coloca seu desempenho nas alturas em nome de um negócio que não é seu e sequer recebe participação dos lucros, procura viver bem com todo mundo absorvendo situações de aperto para si, para desfazê-los e assumir uma função pacificadora, é flexível, ou seja, cede sob pressão, e é subserviente. Acima de qualquer uma das descrições feitas, ele é alienado e lhe falta inteligência para dissociar situações. Cegamente submisso, é extremamente explorado, escravizado e não tem consciência disso. Vive de forma desarvorada a mais repressão e não se questiona o motivo de vivê-la. Boa parte dos eventos da série ocorre na Fenda do Biquíni, uma cidade subaquática localizada no Oceano Pacífico, no litoral de uma ilha tropical no Atol de Bikini. Stephen Hillenburg declarou que muito da Fenda foi baseado na cidade americana de Seattle.  Apesar das implicações e analogias surgidas a partir da localização da cidade em relação à vida real, Hillenburg declarou que deseja manter a cidade isolada do mundo real. Os cidadãos da Fenda vivem principalmente em edifícios relacionados a temas aquáticos, e usam "navios móveis”, um mistura de navios e carros como meio de transporte. Mas a pergunta que surge é: seria realmente possível esse distanciamento do real quando os personagens em suas inter-relações são tão reais?

4. Despertando um inconsciente ‘estar sempre pronto’ nas crianças

            Os meios de comunicação exercem um papel muito importante na formação da criança. Segundo Bucht (2002, p. 207), “muitas pessoas que lidam com crianças pequenas notam também que elas muitas vezes copiam o que veem na televisão ou no cinema”. Isto ocorre porque a mídia está presente no dia-a-dia da criança, incontestavelmente influenciando no seu desenvolvimento.
Os tempos atuais apresentam novo cenário em todos os campos da vida social. Diante de uma sociedade que hoje tem maior acesso à informação, seja por meio das instituições educacionais, seja por meio da mídia, da literatura ou dos recursos tecnológicos, uma das maneiras encontradas para a manutenção dos arranjos sociais é a construção de identidades via simbolismos culturais.
 
As identidades só se definem [...] por meio de um processo de produção da diferença, um processo que é fundamentalmente cultural e social. A diferença, e portanto, a identidade, não é um produto da natureza: ela é produzida no interior de práticas de significação, em que os significados são contestados, negociados, transformados. (SILVA, 2006, p. 25).

Por meio das práticas de significação, vão-se formatando pessoas que  reproduzirão modelos de comportamentos e de atitudes adquiridos ao longo dos tempos.              Desenhos e filmes infantis sempre exerceram fascínio em um grande número de pessoas.  É, porém, nas crianças que seus efeitos se revestem de poder praticamente hipnótico. A cada dia, mais envolventes e bem elaborados, tornam-se investimentos de alto valor financeiro, que apresentam intricado nível de produção em todos os aspectos que os compõem: textuais, sonoros, visuais, narrativos e efeitos especiais, proporcionados estes pela tecnologia. As narrativas, somadas às imagens exibidas nas telas, vão construindo nas crianças atitudes e comportamentos sem que elas e os adultos que as acompanham em seu cotidiano as percebam.  Sabat (2001) aponta que a imagem, e tudo o mais relacionado à visão, constitui também o texto escrito sobre o social, sobre sujeitos históricos. Segundo a autora, longe de serem simples mecanismos de diversão, os filmes infantis podem ser considerados espaços de constituição de identidades.  Giroux acrescenta que

as identidades individuais e coletivas das crianças e dos/das jovens são amplamente moldadas, política e pedagogicamente, na cultura visual popular dos videogames, da televisão, do cinema e até mesmo em locais de lazer como shopping centers e parques de diversão. (GIROUX, 1995, p. 50)


Ainda de acordo com Giroux (p. 51), os filmes infantis “inspiram no mínimo tanta autoridade cultural e legitimidade para ensinar papéis específicos, valores e ideais quanto locais mais tradicionais de aprendizagem”. O autor considera o gênero como ‘performativo’, pelo fato de não ser uma afirmação ou uma negação, mas, sim, uma construção que ocorre por meio da repetição de atos que possuem correspondência com as normas sociais e culturais. 
           Atualmente, devido ao fato dos pais trabalharem fora de casa, as crianças ficam muito tempo em frente à televisão. Desta forma, o ensino que antes era somente dado pelos pais, tem se dividido com as escolas e com os meios de comunicação, principalmente a televisão. Há de se ter cuidado redobrado com os pequenos, pois nem sempre as crianças que ficam expostas às programações da televisão estão vendo programas realmente infantis e muitas vezes os ditos programas infantis chegam repletos de mensagens subliminares que, de fato, atuam com agentes diretos na construção das mentalidades.  Montigneaux (2009) descreve entre 4 e 9 anos como a fase de ouro do imaginário. O personagem é essencial e constitui um elemento motor na compra de uma marca. Ele seduz as crianças pelo imaginário que induz e no qual as crianças se projetam. O processo de identificação funciona sobre os personagens heróis ou carismáticos. A mídia é muito atrativa para as crianças por ser prazerosa e convidativa.  Segundo Bucht (2002, p. 79):

Através da mídia as crianças têm acesso a todos os assuntos possíveis. É através da mídia que elas buscam a diversão e, o mais importante, criam a sua própria identidade. Por isso temos que supervisionar o que elas assistem, para sabermos se é uma programação adequada à determinada idade ou não.

           Como as mídias fazem parte do dia-a-dia das crianças, elas acabam sendo influenciadas e imitam o que veem.  Sendo assim é possível perceber que por meio das mídias, as crianças têm acesso a muitas informações e conforme nos diz Bucht  (2002, p. 19) “as informações fluem de maneira cada vez mais livres e com vínculos cada vez mais frouxos em tempo e lugar”. Devido à ausência dos pais, a criança acaba se apegando aos meios de comunicação, em especial à televisão no seu cotidiano. Isso porque a televisão é o segundo maior meio de depois do rádio. Assim, através dela, os sentidos e os modos de agir necessários ao crescimento psicológico e social da criança, acabam sendo fornecidos por personagens televisivos, como por exemplo, os personagens de desenhos animados, os quais as crianças buscam imitar. Conforme comenta Montigneaux (2009), a criança facilmente se encanta com o personagem porque o personagem pertence ao mundo dela. São, portanto, pontos de referências preciosos para a criança e significam familiaridade e proximidade. Só que as crianças são muito influenciáveis. Tão influenciáveis que em certos países como a Suécia, propagandas para menores de 12 anos são proibidas porque até essa idade a formação do pensamento crítico, que nos faz duvidar da veracidade de algo, não está concluída. E, com isso, os especialistas argumentam que a criança não tem condições para discernir entre o que é ruim ou bom para ela.
       

Considerações  finais

           Infelizmente, estamos em uma sociedade que pensa na infância não como esta deve ser pensada e considerada, mas sim mediante a lógica do mundo moderno que deslegitima a própria concepção de criança e crê na supremacia do homem em seus modelos totalizantes porque fica mais fácil acelerar o passo e introduzir em tenra idade modelos que se aproximam do universo adulto. Assim, nossas crianças já se habituarão a se conformar e aceitar sem ranços as imposições da sociedade no futuro, quando se tornarem cidadãos adultos. Lévy (2006) acredita que as mudanças do mundo contemporâneo nos têm promovido uma nova forma de sermos humanos e isso engloba inclusive a capacidade de ser criança.  Por sua vez, Postman (1999) apresenta uma visão mais radical e afirma que, de acordo com os acontecimentos do mundo nas últimas décadas, a infância está desaparecendo.  Incutir em seres tão pequenos o compromisso cego de se encaixar em um mundo onde a lógica do capital esteja acima dos padrões de bem viver e de não repressão parece ser a ideia central do desenho aqui analisado. Seja na figura de Bob Esponja Calça Quadrada ou de qualquer outro personagem submisso das estórias contadas para as crianças, o importante é já estar pronto, mesmo sendo uma criança, para adentrar nas garras do mundo moderno capitalista selvagem, aludindo à musica do desenho da esponja amarela na qual, em seu comecinho, um coro infantil responde a um velho homem do mar: “Estamos prontos, Capitão!”. Parece que o importante é mesmo estar pronto para servir, não importa a época. E se depender de Bob Esponja, o processo de subserviência já se inicia na mais tenra idade, lá onde ainda o cérebro não processa conscientemente o que lhe chega, mas assimila de forma inconsciente as mensagens ocultas que nos cercam.

Referências bibliográficas
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 
BUCHT, Catharina. Perspectivas sobre a criança e a mídia. Brasília: UNESCO, 2002.
FREUD, Sygmund. Obras Psicológicas Completas de Freud.  Tradução Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIROUX, Henry A. ‘Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney’. In: SILVA,Tomaz Tadeu (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MONTIGNEAUX, Nicolas. Público-Alvo: criança: a força dos personagens para falar com o consumidor infantil. Rio de Janeiro: Negócio, 2009.
POSTMANN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Tradução Suzana Menescal. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.
SABAT, Ruth. ‘Filmes infantis como máquinas de ensinar’. In: Anais 25ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação, 2002. Caxambu: Anped, 2002.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
LÉVY, Pierre. ‘A Revolução Contemporânea em Matéria de Comunicação’. In: Revista Famecos. Porto Alegre: PUC, 2006.