Louisy de Limas
(Mestranda em Literatura pela UFSC)
Resumo
Esse texto propõe alguns esboços sobre o erotismo
outro, que seria o gozo feminino. Transgredindo o registro psicanalítico do
imaginário, abordaremos a mulher como questão. Sua ambiguidade. Seu corpo.
Partindo de romances e biografias dos próprios autores, ensaiamos em um limiar
onde todos são personagens e que se fazem habitar em nossas cotidianidades. O imaginário é aquilo que não para
de se escrever. É a busca da eternidade ao que preencheu. Analítica da caverna
de Lascaux e da caverna feminina. As manchas sempre transgridem o imaginário de
sentido na superfície dos desenhos, inaugurando uma remissão ao infinito, como
se a arte fosse menos o objeto e mais a sua ausência, como se pudéssemos dar
morada ao que nunca mais vamos recuperar.
Palavras chave: erotismo, gozo, Georges Bataille, Lascaux, imaginário.
Palavras chave: erotismo, gozo, Georges Bataille, Lascaux, imaginário.
A mulher
é uma caverna
No
ano de 1940, quatro amigos que brincavam despretensiosamente descobriram uma
caverna. Havia uma fresta, uma fenda, por onde puderam passar. Chamaram seu
professor para averiguar a descoberta. Oito anos depois, foi aberta à visitação
pública. Mil e duzentas pessoas em média a visitavam por dia e em 1963 ela foi
interditada, proibindo-se a visitação pública. A caverna des-coberta logo
estaria coberta novamente, pois, para preservá-la, não poderia mais ser vista.
As pessoas não mais lá entrariam com tanto ar saindo de seus pulmões. Gás
carbônico em demasia danificou suas pinturas, há tempo escondidas. Diferentemente
de outras cavernas mais acessíveis, ela permanece na profundidade onde não
costumamos frequentar. E antes que frequentá-la vire um hábito, logo somos
impedidos novamente. Não podemos mais vê-la, pois seria danificada, mas resta
preservada para quê se ninguém pode entrar? Preservar pela arte e pelos
milhares de desenhos nas suas paredes. Ah, os especialistas! Poucos tem o
privilégio de entrar, poder estudá-la, pesquisá-la. E então a reproduziram
virtualmente, para que em qualquer lugar do mundo possamos desvendar seus
mistérios ao percorrê-la inteira por dentro, penetrá-la em seus profundos
corredores.
A
caverna fica no vale de Vézere, perto do pequeno povoado de Montignac, na
França. Suas pinturas datam de quase 20.000 anos atrás, do período Paleolítico
Superior. Pelas suas ossadas e instrumentos de trabalho que nos restaram,
sabemos que esses homens das cavernas se assemelhavam conosco. Antes disso, o
homem de Neanderthal já sepultava seus semelhantes. Mas o que marca Lascaux?
Lascaux é uma marca. É o nascimento de uma vida interior, de alguma desordem no
mundo da natureza e do trabalho. Em 1955, Georges Bataille publica um livro
chamado: Lascaux, ou o nascimento da arte. Ele vai falar que, mais que os
instrumentos de trabalho ou as sepulturas, a arte vai marcar essa passagem do
animal ao homem. Para criar, precisamos fabricar instrumentos e usar nossa
habilidade para manuseá-los, ao mesmo tempo em que nos colocamos contra o mundo
da utilidade e do trabalho. É o reflexo de uma perturbação, o homem que se
coloca contra o mundo ao seu redor e, assim, joga. A arte e o jogo se opõem ao mundo da utilidade e do trabalho.
Uma angústia essencial que faz o ser sair de si, se estendendo nas pinturas.
Para Bataille (ANTELO, 2005, p.11), Lascaux marca a descoberta de uma vida
interior do homem que, com o traço, ultrapassa seus limites:
Sabemos que as cavernas retiram a arte do mito narcísico de sua origem. É a tese de Bataille em Lascaux (1955): as grutas não são espaço de imitação, mas de representação, em que as imagens se tornam signos porque, justamente, as imagens encontradas numa caverna não querem nunca criar algo novo, mas apenas violentar uma superfície. Elas não reiteram a diferença, mas assinalam a indiferença. São espaços de alteração, como diria Bataille, em que o bifronte- o alto e o baixo, o interno e o externo- impõe-se ao nosso olhar e pede para ser tocado.
Ao
entrar em Lascaux, parece que estamos entrando dentro de um corpo - o nosso -
dando de cara com a nossa própria escuridão. Suas paredes onduladas lembram
nossos órgãos internos. Mas algo nos chama a atenção: são pinturas, grande
parte delas de animais. Uma cavalgada dá o primeiro impulso. Uma imagem sobre a
outra em cores rubras; as rugosidades da superfície compõem os movimentos dos
cavalos, bisontes, bois, veados, uma variedade de animais, alguns que nem
chegaram até nós. A beleza de Lascaux pode nos causar torpor semelhante àquele
que sentimos ao contemplar as mais belas obras de arte num museu, que
geralmente são dotadas de assinaturas e do ano em que foram produzidas, algumas
vezes antecipadamente encomendadas por outros. Mas o que podemos saber desses
homens que nos deixaram, como diz Bataille, “insaciáveis sombras”? Sabemos que
eram coletores e caçadores, mas que lugar tinha essas pinturas em seus rituais
e crenças?
É
a imagem no fundo do poço que mais surpreende Bataille. Trata-se da primeira
figuração humana, embora sua cabeça seja de pássaro. Estaria com o rosto
coberto por uma máscara? Outro pássaro abaixo nos faz lembrar o relógio cuco.
Ou seriam postes mortuários? O homem deitado estaria morto ou em transe? A
saliência de uma parte de seu corpo não nos engana: seu órgão sexual está
enrijecido. Uma flecha atravessa o grande animal ao seu lado, um bisonte; seus
chifres apontados não ameaçam, pois suas tripas saem de si no corte da flecha.
Enquanto isso, um rinoceronte se afasta. A cena difere das outras pelo drama:
os animais e o homem parecem contar alguma história. Seriam encantamentos para
a caça ser bem sucedida? Não o sabemos. Uma história que nos coloca de frente
com o erotismo e a morte.
Esse
empreendimento já começaria fadado ao fracasso se estivéssemos em busca de
alguma resposta científica ou método filosófico. Nem a literatura é suficiente
para conter o erotismo, seu excesso. Encontramos com ele nas diversas
manifestações humanas. Estabelecemos regras de linguagem para nos comunicar, e,
além disso, cantamos, assobiamos, criamos instrumentos para fazer música.
O animal não é nem quer ser, simplesmente é o que é. O homem quer sair de si próprio, está sempre fora de si. O homem quer ser leão, águia, polvo, pombo, cenzontlé. O sentido criador dessa imitação nos escapa se não percebermos que se trata de uma metáfora: o homem quer ser leão sem deixar de ser homem. Quer dizer, quer ser homem que se comporta como leão, a palavra como é o jogo erótico. A cifra do erotismo. Só que é uma metáfora irreversível: o homem é leão, o leão não é homem. O erotismo é sexual, a sexualidade não é erotismo. O erotismo não é uma simples imitação da sexualidade, é sua metáfora.
(PAZ,
1999, p. 33)
Assobiamos
imitando os passarinhos e construímos meios para voar como eles. O homem imita.
Ele quer ser passarinho. Ele é passarinho sentindo o ar gelado do alto dos céus
no seu rosto. Ele quer ser passarinho por que quer sair de si. Quer ser “livre
como um passarinho”. Asa delta, parapente, avião: prolongamos nossos corpos em
asas artificiais. Ele é passarinho, mas sem deixar de ser homem.
A mulher é um vaso vazio
O vaso, a taça e a concha são alguns
exemplos para representar a feminilidade angustiada. Recipientes vazios. Seres
faltosos e desejantes. No Canibalismo
Amoroso, Affonso Romano de Sant’Anna usa dessas metáforas femininas para
ilustrar a mulher. E quando fala da água, compara-a com o movimento de vida e
renovação que é o útero. Podemos bem lembrar o rio de Heráclito, em que, com
suas águas correndo sem parar, não podemos nele entrar duas vezes. Eram as
mulheres que, com seus vasos, buscavam água e lavavam suas roupas nas fontes e
rios. E esses trabalhos cotidianos eram o cenário de seus encontros amorosos
secretos e arrebatamentos sexuais.
Possuindo
um corpo que funciona como fonte da vida, a mulher seria, naturalmente,
aproximada com a ideia de vaso sagrado. Com efeito, é no seu ventre que a vida
se gera, e é cercada de água que a criança cresce dentro da placenta. Assim, a
mulher é esse vaso que contém outro vaso.
(
SANT’ANA, 1984, p. 88)
Sabemos
que a vida é descontínua e tem prazo de validade. Para Bataille, a reprodução é
apenas um lapso de continuidade que podemos experimentar, certo conforto no
nosso esquecimento (visto que a continuidade total já pressupõe a experiência
impossível, que é a morte, como poderíamos experimentar justamente lá onde já
não mais estamos?). A nossa vida acabará, mas algo de nós pode continuar, como
se fosse um pedaço do nosso corpo pulsando, independente. É um movimento de
crescimento, cíclico, mas contínuo. Perpetuação ad infinitum. Passagem de um para o outro. Criação de outro a
partir de si. Um desaparece e se torna dois. Uma gratuidade. Imortalizamo-nos
em nossos filhos. Somos o arco, e nossos filhos setas vivas arremessadas no ar.
Não somos nós que continuamos, mas algo vindo de nós, mesmo que sejam alguns
costumes ou carga genética. Afinal, eles vêm de nós, mas não os possuímos, eles
continuam sozinhos. Um gentil tapa na cara - qual aqueles de todos os pais
extremamente apegados - assim o é o poema do libanês Gibran Khalil Gibran
(2002):
Dos
Filhos
E uma mulher que
carregava o filho nos braços disse: “Fala-nos dos filhos.”
E ele disse:
Vossos filhos
não são vossos filhos.
São filhos e
filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de
vós, mas não de vós.
E, embora vivam
convosco, a vós não pertencem.
Podeis
outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos.
Pois eles têm
seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar
seus corpos, mas não suas almas;
Pois
suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em
sonho.
Podeis
esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida
não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois o arco
dos quais vossos filhos, quais setas vivas, são arremessados.
O
Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com Sua força para que
suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso
encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como
Ele ama a flecha que voa, ama também o arco, que permanece estável.
Comparamos o vaso à
mulher, não apenas por exercer uma determinada função como se encher de uma
determinada substância ou conter alguma coisa dentro de si como se algo que
estivesse fora a pudesse preencher para depois derramar-se, transbordar-se. Mas
ela é enquanto é vazio, um nada. Seu formato de caverna nos mostra uma
ausência. A abertura de sua extremidade nos propõe um limiar entre o dentro e o
fora. Sua superfície se prolonga por todo seu interior. O vaso recorta um
vazio, permanece como um espaço solto, que não precisa conter nada para ser
vaso. A mulher é vaso pois seus buracos não denunciam algo que deveriam conter.
Ela não precisa ser preenchida, penetrada para ser o que é. Como a caverna nos
remete a algo que está nela mesma, aquilo que se inscreve como inalcançável. A
mulher é um vaso vazio.
Anaïs Nin e a redescoberta de uma
sexualidade exuberante: trabalho e desejo
“No
oposto de um polo espiritual, a exuberante sexualidade significa a persistência
da vida animal em nós.” (BATAILLE, 2004, p. 235). O trabalho é o freio do desejo. Com esse
pensamento talvez Hegel concordasse com Kinsey, nos resultados de suas
pesquisas sobre o trabalho e a exuberância sexual.
A “animalidade” ou a exuberância sexual é, em nós, aquilo pelo qual não podemos ser reduzidos a coisas. A “humanidade”, ao contrário, no que ela tem de específico, no tempo do trabalho, tende a fazer de nós coisas à custa da exuberância sexual.
(Idem,
p. 247)
Kinsey
transforma a sexualidade humana em coisa, onde podemos elaborar uma tabela,
analisar dados e trabalhar com números. Assim o podemos consumir através de uma
grande variedade de objetos fetichistas, acompanhando as novas tendências do
mercado, enquanto corpos provocantes estampam grandes telas na beira da estrada
e anúncios publicitários. Trabalhar para produzir e consumir. Quem são os
senhores e escravos contemporâneos?
Apenas o objeto inerte - sobretudo se ele é fabricado, se ele é produto de um trabalho - é a coisa, por excelência privada de todo mistério e subordinada a fins que lhe são exteriores. É coisa aquilo que, por sua própria conta, é nada. Nesse sentido, os animais, em si mesmos, não são coisas, mas o homem os trata como tais: eles são coisas na medida em que são objetos de um trabalho (criação) ou ferramentas de um trabalho (bestas de carga ou de tração). Se ele entra no ciclo das ações úteis, como um meio, não como um fim, ele é reduzido a coisa. Mas essa redução é a negação do que ele é apesar de tudo: o animal só é uma coisa na medida em que o homem tem o poder de negá-lo.
(Idem,
p. 245)
Usando
o animal, fazemos dele um meio para outro fim. Transformando o animal em coisas
úteis para nos servir, ele cumpre alguma função. Ele tem outro destino que não
foi o escolhido por ele - de viver livremente sua animalidade-, mas por nós.
Utilizamos os animais para testar nossas pesquisas, para nos alimentar e até
para nos estimar nos fazendo companhia e demandando carinho. Negamos sua
soberania. Enquanto isso o trabalho também nos transforma em coisas úteis,
cumprindo uma determinada tarefa.
Da mesma maneira, a animalidade subsistente do homem, sua exuberância sexual, só poderia ser considerada como coisa se tivéssemos o poder de negá-la, de existir como se ela não existisse. Efetivamente nós a negamos, mas em vão. A sexualidade, qualificada como imunda, como bestial, é mesmo aquilo que se opõe ao máximo a redução do homem a coisa: o orgulho íntimo do homem está ligado a sua virilidade. Ela não responde de forma alguma ao que é o animal negado, mas ao que o animal tem de mais íntimo e de mais incomensurável. É exatamente nela que não podemos ser reduzidos como bois a força do trabalho, ao instrumento, a coisa. (...) o homem é, antes de tudo, um animal que trabalha, submete-se ao trabalho e, por essa razão, deve renunciar a uma parte da sua exuberância. Não existe nada de arbitrário nas restrições sexuais: todo homem dispõe de uma soma de energia limitada e, se ele dedica uma parte dela ao trabalho, ele faltará para o consumo erótico, que dela fica proporcionalmente diminuído.
(Idem,
p. 246)
Os
relatórios Kinsey são uma grande pesquisa pelos anos 40 e 50 nos Estados Unidos,
onde grande parte dos nossos tabus sexuais é não só desmistificada, mas também
escancarada como experiência cotidiana de boa parte das pessoas. Assuntos como
fetichismo, homossexualidade, traição etc., são explicitados publicamente por
intimidades.
O
trabalho é o freio do desejo. Enquanto a imensa face dos assalariados faz pouco
sexo, Kinsey nos mostra que os que trabalham pouco são sexualmente exuberantes,
não importando se pobres ou bem afortunados, artistas ou intelectuais. Porém, o
que ele conta é o número de orgasmos, e não a duração do ato. Amar alguém
também não seria transformá-lo em coisa? Se queremos o outro, ele não passa a
ser nosso objeto de desejo? Quando queremos possuir o outro, devorá-lo, até com
os dentes se possível? Dominá-lo. Meu homem! Minha amada! A linguagem nos
coloca numa posição de pertencimento. Temos ciúme por querer aquele corpo só
para nós.
Nos
anos 30, enquanto Anaïs Nin publicava seu livro sobre D.H. Laurence e clamava
por mais aventura na sua vida amorosa, Henry Miller aparece na sua vida. Ela
não trabalhava braçalmente, mas escrevia. Seu marido Hugo sustentava a casa
como banqueiro, assim ela podia escrever tranquilamente. Anaïs ajudou a
publicar o primeiro livro de Henry Miller e escreveu o prefácio do Trópico de Câncer. Sua paixão por Henry
e sua esposa June a iniciou em uma caminhada cheia de fantasias reais. O filme
de Philip Kaufman de 1990, baseado no seu livro Henry e June, tirado de seus diários, retrata bem a época de sua
redescoberta exuberante. Esse encontro inspirou Anaïs não só a escrever seus
diários, mas diversos livros como A casa
do incesto de 1936, Uma espiã na casa
do amor de 1954 e Delta de Vênus
de 1977.
Anaïs
descreve uma mulher que se arrisca a experimentar os prazeres, sendo erótica
enquanto transgride e ainda criadora de mundos, compondo textos incríveis
romanceando sua experiência fática. Aqui, o trabalho não é o freio do desejo.
Anaïs inverte Hegel. O desejo estimula seu trabalho. Falamos aqui de um
trabalho específico que não é o de escravo, mas o intelectual. Anaïs escreve os
frutos de seus casos amorosos. Sua obra é sua vida, sua biografia, embora
enquanto ela escreva as palavras saiam de suas lembranças e sonhos, tornando-se
mundo, literatura. Ela se dissolve tecendo letras. Inspirando-se em June, cria
uma personagem que é um misto dela mesma e de sua musa. Anaïs inventa uma
mulher para gozar. A autora morre para se multiplicar em outras. O gozo que
vira texto já não lhe pertence mais. Ela precisa de Sabina para gozar na cara
dos leitores suas “múltiplas
peregrinações de amor” (NIN, 2007, p. 100). Sabina é uma atriz, casada, que vive muitos casos amorosos fora
do seu casamento. Uma amante solitária, como descreve Anaïs Nin (Idem, p. 79):
Ninguém iria aplaudir quando ela fosse bem sucedida por causa de sua engenhosidade em derrotar as limitações da vida. Esses momentos nos quais ela atingia um pique de humor acima do pântano dos perigos, dos escorregadios brejos da culpa, eram aqueles em que todos a deixavam sozinha, não absolvida; eles pareciam estar esperando sua hora de punição, após ter vivido como uma espiã na casa de muitos amores, por ter evitado o escândalo por ter derrotado os sentinelas que vigiavam limites definidos, por ter passado sem passaporte nem licença de um amor para outro.
Talvez
sua solidão fosse ainda maior, pois era a solidão reunida de inúmeras mulheres.
Uma mulher que se fragmenta em diversas amantes. E era a solidão de cada amor o
que lhe restava. Não só porque Sabina era atriz, mas porque sabia que sua
unidade dissolvia-se em cada corpo que a desejava.
Escrevendo
como quem borda uma colcha de retalhos, Anaïs nos conta sobre uma mulher que se
atreveu a testemunhar o que experimentou. Antes de transformar o sexo em coisa
e ciência[1]
como o fez Kinsey, Anaïs Nin o fez testemunho e poesia.
O resto que permanece
Sabina
experimenta sua solidão depois de estar com muitos homens. Ela só sabe de sua
suposta unidade quando está diante do outro. Da demanda, do desejo do outro. É
quando lhe chama à vida, faz lembrar de que é portadora de um corpo. Quando o
outro não está ela se depara consigo mesma. Sofre, sente a falta. Ama porque
sofre. Gozo é também sofrimento, não a dor que ela evita, mas sente onde existe
uma autopunição. É o que sempre retorna, é quando ela é atravessada, se afeta,
se sente mais viva. Gozar não é produzir nem acumular energia, mas é gasto,
dispêndio. Segundo Bataille (2005, p. 18),
“há sempre excesso, porque a radiação solar que se encontra na origem de
todo o crescimento é dada sem contrapartida, ‘o sol dá sem nunca receber’; por
isso, há necessariamente acumulação de uma energia que não pode deixar de ser dilapidada
na exuberância e na ebulição.”
Trata-se
de um resto que não se perde totalmente, voltando com algum sentido, pois é
aquilo que fura, machuca, traz uma ausência. Sabina vive a ambiguidade de ser
outra. Ela se divide entre a segurança de seu lar e o aconchego de Alan, e a
liberdade de estar no mundo se sentindo amada e desejada por todos os homens. É
nessa ambiguidade que o gozo da santa e da prostituta se encontram. Sabina é
Madame Edwarda e Santa Teresa. Ela afirma seu desejo indo atrás dele escondida
de seu marido, como uma espiã. Em cada penetração ela se multiplica. Então, ao
raiar do dia, volta para Alan, seu porto seguro, onde nenhum outro amplexo poderia
confortá-la mais. Ela se sente inocente sabendo de sua culpa, pois a cada
traição, ela prova o seu grande amor. Sabina se faz boomerang num vai e vem felino.
Bibliografia
ANTELO, Raul. Eros é a Vida, Arte e Angústia segundo
Duchamp. Texto da conferência do III Colóquio da EBP: Atas, 2005.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São
Paulo: Arx, 2004.
BATAILLE, Georges. A parte maldita precedido de A noção de
despesa. Trad. Miguel Serras Pereira. Editora Imago: Lisboa, 2005.
BORNHEIM, Gerd. O
desejo. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HEGEL, Georg Wilhem
Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.
LACAN, Jacques. Seminário, livro
20: mais ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; Versão
brasileira de M. D. Magno. Terceira edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
NIN, Anaïs. Uma espiã na casa do amor. Trad.
Reinaldo Guarany. Porto Alegre: L&PM, 2007.
PAZ, Octavio. Um
mais além erótico: Sade. Tradução Wladir Dupont. São Paulo: Mandarim, 1999.
ROUDINESCO, Elisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história
de um sistema de pensamento. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
SANT’ANA, Affonso
Romano de. O Canibalismo Amoroso. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
SURYA, Michel. Georges
Bataille, An Intellectual Biography. Verso: London, 2010.
[1] Embora a
ciência trate de condições empíricas e estabeleça leis gerais em generalidades
que se repetem e que possa muitas vezes oprimir e dogmatizar, nesse caso Kinsey
surgiu como uma libertação para muitas pessoas que achavam que sua sexualidade
era imoral e perceberam o quanto compartilhavam experiências e desejos com seus
contemporâneos.