PÓS-COLONIALISMO E IDEOLOGIAS DEMOCRATIZANTES: UMA ILUSÃO ACERCA DA IGUALDADE SOCIAL

Elton E.B. Cavalcante - UNIR [1]
Maria Célia da Silva - UNIR ²



RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar aquilo que se convencionou chamar de teorias do pós-colonialismo, as quais fazem uma sondagem psicológica e social das minorias políticas marginalizadas, colocando-as como vítimas de uma pseudodemocracia. Isso porque apenas grupos que detêm poder de consumo na sociedade capitalista veem seus anseios representados nos textos literários: da cultura indígena aparece na literatura apenas o lado exótico; os mitos são tratados não como uma crença viva de nações milenares, mas como fontes de informação que contribuem para o lazer das sociedades urbanas. Muito se fala em ouvir o outro, em alteridade, mas se combate constantemente qualquer prática que esteja em desacordo como a moral e ética capitalistas. Então, a voz dada ao sujeito é controlada, e os indivíduos se veem cada vez mais marginalizados.

Palavras-chave: Colonialismo, Pós-colonialismo, Neo-colonialismo.


INTRODUÇÃO

A literatura produzida nos países antes denominados de terceiro mundo está cada vez mais sendo prestigiada em termos de premiações mundiais. De certa forma, o público-leitor dessas nações se interessa não mais pelo exótico, mas também pela expressão puramente artística das nações mais pobres. Até mesmo as minorias políticas, que não tinham espaço para expressar-se na literatura culta, atualmente podem ser ouvidas com certa frequência.
 Por que houve essa mudança de perspectiva? Tal reviravolta está condicionada ao que se convencionou chamar de cultural estudies, que, por sua vez, se embasa nos estudos sobre o pós-colonialismo.  O objetivo deste artigo é, pois, analisar os traços característicos e gerais da literatura pós-colonial, seu conceito e suas consequências; para tanto o ponto de partida são as ideias de Thomas Bonnici, o qual afirma que as raízes do imperialismo continuam profundas e plenamente existentes na literatura moderna e que as bases teóricas dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais podem vir a ser uma forma de neocolonialismo, visto que partem dos povos outrora colonizadores e buscam levar um discurso democratizante para todos os países do globo.
Esse discurso ideológico sobre a democracia parece ser algo positivo, mas há países que não concordam com o espírito democrático do Ocidente, e acusam as nações ocidentais de excessivamente liberais. Os países ocidentais ricos buscariam assim, além de expandir a democracia, ampliar também suas redes de influências comerciais: na verdade estariam a formar públicos consumidores e adaptados ao modo de viver ocidental.

1. PÓS-COLONIALISMO
O termo pós-colonialismo é usado para “descrever a cultura influenciada pelo processo imperial desde os primórdios da colonização até os dias de hoje” (BONNICI, 1998, p.03). Mas pode ser entendido também “como toda a produção literária dos povos colonizados entre os séculos XV e XX” (Idem, p.03). Neste último sentido, alguns teóricos questionam o conceito de pós-colonialismo, pois admitir

um estado pós-colonial é, consequentemente, pressupor que o colonialismo teve um fim. Se examinarmos detalhadamente a história recente dos países que sofreram o processo de colonização, com certeza chegaremos  à conclusão de que, em muitos deles, ainda não terminou. Pelo contrário, ela continua e não só nesses países, mas persiste na proposta de globalização, cuja forma de domínio se esconde sob a idéia de uma aparente igualdade (GOMES CARREIRA, 2003, p. 01).

 Assim literatura dos povos que sofreram a colonização estaria sob a égide de um neocolonialismo sustentado nas ideologias que pregam os valores consumistas e individualizantes das sociedades ocidentais.
Analisando, porém, com mais atenção a citação acima, a autora afirma que “em muitos deles [a colonização] ainda não terminou”, isso leva a crer que em alguns países o processo de colonização está extinto, e em outros não. O que fez com que fosse extinto em uns e se mantivesse noutros? A Globalização. Então quem coloniza quem? Há uma classe colonizadora, um grupo social específico? Há. Porém esse novo grupo não é delimitado pela aparência física, cor da pele ou dos olhos, são pequenos e grandes investidores que, de acordo com as regras do capitalismo financeiro, põem seu capital onde melhor lhes aprouver.
Em realidade, o que talvez haja é um novo processo de colonização ligado a um discurso ideológico de que os regimes democráticos e o Capitalismo são os antídotos para os problemas de todas as nações do Globo. Nessa nova colonização, a cor e o sexo, a idade e a beleza não são fundamentais, o importante é o poderio econômico.
 A globalização é a mantenedora do processo de neocolonização; todavia o que levou países outrora colonizados, como os EUA, Austrália, Canadá, por exemplo, a quebrarem o discurso do colonizador? Aí é que está o problema, pois os países citados enriqueceram, porém o discurso interno em cada um deles ainda é um discurso autoritário e que impede muitos grupos sociais de terem suas individualidades respeitadas. O objetivo então dos estudos literários pós-coloniais seria analisar as classes marginalizadas e fazer com que elas pudessem ser ouvidas. Quando um romancista escreve um texto, os teóricos do pós-colonialismo tentam ver no enredo as pressões sociais que levaram as personagens pobres a agirem desta ou daquela maneira. As minorias étnicas têm também seu espaço. Tenta-se tirar do texto aquilo que ainda não ocorre de fato na sociedade: um diálogo verdadeiramente igualitário entre todos os sujeitos sociais.
Ora, de um lado há o Capitalismo financeiro que não segrega por cor ou sexo, mas por riqueza ou pobreza, do outro há teóricos do pós-colonialismo insinuando que a pobreza é uma conseqüência da colonização. Então, pode-se perguntar quem é o colonizador e o colonizado nesse novo processo? A resposta não é tão simples, principalmente em se tratando de estudos literários e culturais, já que há um desconcerto acerca das consequências da colonização. Para alguns teóricos, os estudos pós-coloniais têm como objeto as classes marginalizadas e as etnias que foram vítimas de escravidão; para outros, o pós-colonialismo é um conceito mais amplo:

o pós-colonialismo, academicamente, “se reporta a uma série de estudos centrados nos efeitos da colonização sobre as culturas e sociedades colonizadas, que podem ser interpretados como parte da teoria pós-modernista, que busca trazer à baila as vozes das culturas e dos segmentos sociais periféricos. Essa busca de ‘descentramento’, segundo os teóricos  do pós-modernismo, é uma tentativa de ‘ouvir’ as ‘margens’, incluindo-se aí, todas as minorias raciais, as mulheres e os homossexuais (Gomes Carreira, p. 01, 2003).

O conceito de pós-colonialismo, desta forma, estaria muito mais ligado a uma crítica a toda e qualquer forma de autoritarismo do que a um autoritarismo específico, como foi o caso dos processos de colonização ocorridos entre os séculos XIV e XX. É, a bem da verdade, uma tentativa de se eliminar o preconceito em geral e de minimizar as diferenças sociais; é, também, uma consequência do paradigma democrático ocidental, expresso nas maiorias das Constituições Nacionais, inclusive na brasileira.
Pós-colonialismo sob este aspecto pode parecer extremamente positivo, e é, todavia pode haver traços negativos nessa nova postura democratizante defendida pelos teóricos do pós-colonialismo? Para responder a esta pergunta, necessário se faz verificar os três tipos de sociedades pós-coloniais apresentados por Thomas Bonnici, a saber:

“Settler colonies”: Na América espanhola, no Brasil, nos Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, a terra foi ocupada por colonos europeus que conquistaram e deslocaram as populações indígenas. Uma certa modalidade de civilização européia foi transplantada e os descendentes de europeus, mesmo após a independência política, mantinham o idioma não-indígena. Se no início os colonos inquestionavelmente consideravam que o seu idioma era apropriado para expressar a complexa realidade do lugar ocupado, os escritores mais recentes iniciaram uma série de questionamentos a este respeito.  “Sociedades invadidas”: Na América Central, na Índia e na África com suas civilizações díspares em vários estágios de desenvolvimento, as populações foram colonizadas em sua terra. Portanto, os escritores nativos já possuíam suas respostas milenares e seu modo de ver, embora estes fossem marginalizados pelos colonizadores. Às vezes, o idioma europeu substituiu o idioma do escritor; às vezes, ofereceu-lhe uma oportunidade para que seus escritos fossem melhor divulgados e lidos. Em ambos os casos, o idioma europeu causa uma certa ambigüidade no texto escrito. “Sociedades duplamente invadidas”: As sociedades primordiais dos indígenas das ilhas do Caribe foram completamente exterminadas nos primeiros cem anos do descobrimento. A população atual das Índias Ocidentais veio da África, Índia, Ásia, Oriente Médio e da Europa através do deslocamento, do exílio ou da escravidão. De todas as sociedades colonizadas, talvez a sociedade caribenha seja a que mais sofreu os efeitos devastadores do processo colonizador, onde o idioma e a cultura dominantes forma impostos e as culturas de povos tão diversos aniquiladas. (BONNICI, 1998, p. 2).


Como se pode perceber pela citação, houve formas distintas de reação ao colonizador, dentre elas, as mais resistentes foram àquelas denominadas, por Bonnici, como “sociedades invadidas.” Na China, por exemplo, a luta contra o colonizador é ainda algo em voga, pois existe, desde Mão Tsé-Tung, uma luta renhida para assegurar a independência política e a identidade nacional. Em sociedades como esta, os estudos culturais são importantes para que se compreendam as diversas facetas do autoritarismo e dos preconceitos sociais. Entretanto, há sociedades, como as do Oriente Médio, que têm verdadeira aversão à cultura européia, inclusive na sua forma de entender a literatura. As culturas iraniana e israelense, a título de ilustração, não sofreram, pelo menos da forma tradicional, uma colonização recente. Nelas, a batalha é para que se mantenha uma tradição milenar, que no fundo é questionada como válida pelo Ocidente, basta ver as críticas feitas pela mídia ocidental à forma como os muçulmanos tratam suas mulheres ou como aceitam os regimes políticos teocráticos. Em tais países, há, internamente, grupos minoritários que discordam dos governos ditatoriais, por conseguinte qualquer escritor muçulmano que critique duramente a sua própria tradição cultural é logo bem aceito no Ocidente, muitas vezes tornando-se best-seller. A crítica feita por esses autores é também caracterizada como pós-colonial, ao menos se levarmos em conta o conceito dado alhures por Gomes Carreira (2003).
Disso se conclui que o conceito de pós-colonialismo está unido intimamente à noção de pós-modernidade política, porque, no fundo, é ainda, uma consequência da Guerra-Fria, pois durante esta Estados Unidos e URSS tinham algo em comum, cada qual tentava, por meio de propaganda ideológica, convencer as outras nações, que pertenciam às suas zonas de influência, que seus regimes políticos eram os melhores. Americanos pressionavam para que o capitalismo e a democracia fossem dominantes; a URSS subjugava e impunha o comunismo e a  “ditadura do proletariado”. O capitalismo venceu aquela guerra, porém entrou em outra: só que agora não apenas para dizer que o capitalismo é melhor que o comunismo, mas, e, principalmente, para convencer que a democracia é a melhor forma de governo já existente no mundo. É uma luta por democratização, pois por trás desta há o individualismo e todas as teorias racionalistas oriundas do Iluminismo. O individualismo leva a negação de tabus sociais e à autoafirmação da autonomia da vontade, e desta para a valorização das coisas materiais e ao consumismo não existe longa distância.
Durante o século XIX, quando o Paraguai enfrentou as forças capitalistas neo-colonizadoras, teve contra si a tríplice aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. A população paraguaia questionava a forma de viver imposta pela potência hegemônica da época, a Inglaterra. Esta usou de toda a sua influência política para fazer com que as nações sul-americanas entrassem em conflito. A guerra quase exterminou a população paraguaia, todavia esta se viu obrigada com o tempo a aceitar as regras do capitalismo e a fazer parte das nações consumidoras de produtos europeus. A imposição aos paraguaios não era a democratização, mas independente do sistema político, que o Estado paraguaio não deixasse de importar os produtos industrializados e exportar a matéria-prima para as indústrias europeias e brasileiras.
Com a Independência política das nações americanas, o colonialismo europeu voltou-se para a África e a Ásia, entretanto não deixou este de se impor de forma ideológica às latino-americanas. O maior exemplo disso foi a pressão inglesa para que a escravidão no Brasil deixasse de existir. Os ingleses perceberam que homens libertos ajudariam a formar uma população consumidora consistente. Logo em seguida apoiaram as repúblicas americanas, pois os governos imperiais, por mais competentes e humanistas que fossem (é o caso do de D. Pedro II) dificultavam as transações comerciais. As próprias nações europeias foram aos poucos se democratizando, pois isso era uma exigência não das camadas mais pobres ou da classe média, mas uma imposição do grande capital. O grande capital passou a pressionar por públicos consumidores sem usar a força, mas o sutil discurso democratizante, e é dentro desse contexto que se pode colocar o surgimento dos estudos culturais e das teorias pós-colonialistas.
Se analisarmos o discurso de escritores desde a década de cinqüenta do século XX, veremos em alguns o desejo de quebrar tabus sociais, liberar forças contidas, sensualismo, luxúria, em suma, tudo aquilo que os discursos tradicionais tentavam reprimir. As forças repressoras como a religião e a moral foram questionadas, mesclando-se ao discurso libertário uma vertente que valoriza o ateísmo e a irracionalidade.  E é esse discurso liberalizante que vai ser levado a todas as regiões do globo, inclusive para o Oriente Médio. A partir dessa nova realidade, surge um questionamento: quando se exige que povos do Irã e Iraque aceitem que suas mulheres ajam da forma como as ocidentais agem, não se se está, de certa forma, colonizando? Sim, está. E é nisso que reside o lado negativo dos estudos pós-coloniais, pois na ânsia de dar voz a todos os sujeitos marginalizados obrigam-se outros, marginalizados ou não, a compactuarem com o discurso democratizante.
  A ideia de estudos pós-coloniais partiu não dos povos colonizados, e sim de nações outrora colonizadoras. O discurso pós-colonial leva em seu bojo um discurso muito mais amplo: o de que a democracia é a mais importante e a melhor forma de governo e que deve ser aceita por todas as nações e todos os grupos étnicos, o que seria muito bom se a intenção central não fosse a formação de grupos consumidores e arredios a leis.
Esse discurso pode migrar do campo macro-político e se estender para as relações interpessoais dentro de um mesmo país ou região, tanto em democracias, ditaduras ou monarquias: é aceito por todas as minorias, pois é a forma que essas minorias têm de ter seus posicionamentos ouvidos pelos demais. Não é à toa que na literatura contemporânea e pós-colonial muito se usa os termos “o outro”, diálogo, rememorar, subjetividade etc. O problema disso é que grupos outrora marginalizados ao assumirem o poder ou ter voz passam a impor também suas ideologias.


2. A QUESTÃO SOCIAL

Ouvir o outro não é uma questão tão somente de colonizador/colonizado, mas de democracia e não democracia. A título de ilustração, pode-se encontrar uma literatura que valoriza os mitos indígenas, que diz que a cultura indígena deve ser respeitada e preservada, mas também é comum tecer críticas ferrenhas a essa mesma cultura, tais como: os rituais de passagem, o tratamento dado às mulheres, os rituais de casamento, entre outros. Tentar interferir dessa maneira não significa mudar a cultura do outro? Pode-se entender isso como um diálogo?
O índio que é descrito desde Alencar, passando por Mário de Andrade até Milton Hatoum, é apresentado como um objeto exótico, algo pitoresco, e não como a representação de um homem em toda a sua plenitude. Quando Mario de Andrade tentava de fato colocar o índio como parte integrante da nossa cultura, de qual índio ele falava realmente, do que já estava se enquadrando à cultura ocidental ou daquele que não aceitava em hipótese alguma a sujeição aos valores europeus e brasileiros? Em Macunaíma, a configuração do caráter nacional é posta pela união das três grandes raças que compõem o Brasil. A cultura indígena sempre se revela num contexto místico e surreal, e o índio não é idealizado, como o Peri de Alencar, ao contrário, deixa-se ver em situações mais baixas e degradantes.  
Outro autor que aborda a temática indígena é Milton Hatoum, diferente de Mario de Andrade, mostra o quanto a cultura indígena tem de útil e interessante. Mas por que ele  aborda, com tanta ênfase, os mitos indígenas na sua literatura? É porque as nações indígenas já não oferecem tanto risco aos governos nacionais, os índios estão dominados em suas terras e quando são defendidos, são por antropólogos, etnólogos, religiosos protestantes ou católicos, lingüistas, pela FUNAI etc. A cultura indígena descrita em Hatoum é um arremedo não dos povos indígenas que enfrentaram o colonizador (como foi feita pela Confederação dos Tamoios ou pela Confederação do Rio Negro), mas um daqueles que hoje se encontram em situação precária e tendo que precisar da ajuda do colonizador para poderem sobreviver.  Não é uma literatura que instiga o leitor indígena à indignação pela situação dos seus antepassados, mas, ao contrário, é apenas a representação do lado exótico que o leitor urbano e burguês não conhece e deseja ver.
Assim, ao se falar em dar voz ao outro, os estudos pós-coloniais, os romances deste período tratam de dar uma voz limitada, voz que não fira os interesses do público-leitor. Para ilustrar bem isso, basta observar a literatura feminista e a que faz defesa implícita ou explícita ao homossexualismo, nestas permite-se de fato que as minorias exponham suas idéias e que gritem para serem ouvidas, mesmo por que muitos dos autores são ou feministas ou homossexuais; e é desta maneira por que são minorias que pertencem de fato à sociedade capitalista democrática: são públicos consumidores que questionam os tabus sociais, o machismo, mas não a sociedade liberal.
 Mas e quanto aos indígenas? Quem escreve romances e teses sobre eles são ou pessoas brancas ou mestiças que já têm incutidas em si os valores democráticos ocidentais. O índio, em si, pouco dialoga, nas obras literárias, com o núcleo do poder colonizador, afinal em quantos romances se fala da briga interna do índio contra os governos federais e estaduais do Brasil, quantas teses ou romances divulgam o real objetivo de muitos índios: o de ter uma própria nação?
Vivemos uma democracia, onde todos são livres e iguais perante a Lei, porém direitos e deveres estão atrelados a interesses político-econômicos. Os grupos democráticos podem falar o que quiserem desde que não firam as cláusulas pétreas da Constituição Federal ou os interesses da República. Onde estão os romances que tratam das questões separatistas no Sul e no Nordeste do Brasil? A literatura, seja ela de cunho regionalista ou não, obedece a um cânone quem nem sempre se remete a questões puramente estéticas; pois, segundo Bordieu, é aceito pela academia aquele que diz o que a academia quer ouvir. Há uma forma magnífica de triagem do que pode ou não ser levado a público pelas grandes editoras. A Internet pode até ir contra essa corrente, mas para que um texto escrito tenha o critério de validade aceito, não basta ser lido, deve ser enquadrado como “merecedor” de ser lido.  Dentro desse merecimento, a literatura que representa o interesse do homem indígena fica sempre de fora.
Então, o que o índio tem de fato a dizer é escamoteado por meio de um discurso imposto pelo cânone. Por trás da alteridade, da valorização absoluta da democracia, há uma postura que irradia um discurso dos grupos hegemônicos. Algo semelhante está ocorrendo em alguns países do Oriente Médio. No Iraque, por exemplo, a luta é para se implantar a democracia e todos os valores que advém dela em uma população que ainda não entende, ou não quer entender, o que é uma democracia. O mesmo ocorreu com o Japão pós-guerra, pois este país era um império e os governos americanos investiram bilhões de dólares para que a população fosse aos poucos perdendo o respeito profundo pela figura do imperador e passassem a aceitar os valores ocidentais. Esse convencimento não pode ser considerado um diálogo, é muito mais uma imposição.


3. PÓS-COLONIALISMO E LINGUAGEM NA AMAZÔNIA

Nos EUA as populações afro-descendentes foram uma das causas da guerra civil entre sulistas e nortistas. O conflito entre os descendentes de europeus, de um lado, e os descentes dos indígenas e africanos ainda existe, alimentado pelo preconceito contra as migrações dos povos latinos. Há então, no campo ideológico, uma tentativa de supressão da literatura, por exemplo, negra, em prol de uma literatura mais branca.  Contra essa situação, os estudos literários e pós-coloniais têm surtido um efeito benéfico.
Os americanos, entretanto, ao menos os descendentes dos colonizadores, mantém a postura de não negação de um traço fundamental de sua formação cultural, a saber: a influência direta da cultura anglo-saxã. Os americanos superaram a colonização externa aceitando que muito do que têm é graças aos esforços dos ingleses. Ao invés de negarem o colonizador, aceitaram-no como fonte de saber para, logo em seguida, superá-lo.
No caso brasileiro, o povo nacional também é miscigenado, crioulo e pardo, e, diferentemente dos espanhóis e ingleses, que exterminaram as populações indígenas, o colonizador português mesclou-se às populações nativas, tanto que não houve uma guerra civil por aqui nos moldes da norte-americana. Todavia, o ranço ao colonizador persiste tanto pelos indígenas e afro-descendentes (o que é justificável) como, também, pelos descendentes de portugueses. Como exemplo dessa atitude, pode-se perceber que desde o Modernismo há uma tentativa de diminuir a influência do português culto, que, bem ou mal, serviu como instrumento fundamental para a unificação e manutenção do país. Critica-se a gramática tradicional, afirma-se que há um “preconceito lingüístico” que impede que as camadas mais pobres tenham voz. Mario de Andrade, por exemplo, escreveu em um português coloquial e fez críticas aos parnasianos pelo fato de estes usarem o idioma mais próximo do culto.
E é aqui que está a grande diferença entre os colonos norte-americanos e os brasileiros, pois os primeiros usam o inglês culto como ferramenta a ser aprendida nas escolas, sendo a gramática tradicional instrumento fundamental de aprendizado do idioma. No Brasil, alguns educadores propuseram “traduzir” livros como O Capital, de Karl Marx, para variantes linguísticas tidas como incultas pela padrão. Não se pode negar que é uma possibilidade a ser experimentada, mas também se deve observar que essa “tradução” camufla a série de erros que o sistema educacional brasileiro possui. Afinal, as classes médias e altas põem seus filhos para aprenderem o português culto e, assim, conseguirem os melhores empregos. Já aos filhos dos mais pobres lhes é ensinado que a gramática tradicional é um elemento do colonizador para a manutenção do status quo, assim deixam de lhes ensinar os elementos essenciais para a leitura e produção de textos e, com isso, diminuem-lhes as chances de sucesso profissional e pessoal.
No Brasil, a escola é vista, por muitos teóricos, como um “aparelho ideológico do Estado”, e, por isso, passa a ser mais palco de todos os jogos políticos e menos o de ensino da língua portuguesa culta. O resultado disso é a proliferação do analfabetismo e consequentemente da subjugação dos povos que foram marginalizados durante a colonização, pois estes ficam mais distantes do linguajar culto falado pelas classes mais abastadas. Muitos educadores criticam o livro didático pelo fato de ele não ter uma linguagem específica para cada região, assim o livro didático para a Amazônia deveria ter a linguagem coloquial típica das populações menos abastadas. O problema é que tais educadores falam e escrevem no português culto e exigem de seus acadêmicos que façam textos cada vez mais próximos do padrão de Portugal. O mercado de trabalho exige o português culto, assim a escola passa a fazer um desserviço ao não ensinar o português culto.
 No Brasil, e principalmente na Região Norte, o discurso é de que as classes sociais ricas detêm o monopólio do saber e não querem dividi-lo com as outras. Entretanto, os ricos ou muito ricos da Amazônia nem sempre são os detentores de um português culto ou de notório saber. Mas a pobreza perdura, e os textos literários são escritos e analisados sempre colocando como causa dessa situação o processo de colonização.  Cada vez mais se extraem dos enredos contemporâneos interpretações sobre a marginalização das personagens negras, mulheres, indígenas, árabes etc.; e a culpa, dizem, é sempre do colonizador brutal e arrogante. Pode até ser, mas pode ser que por trás desse discurso pós-colonial haja algo mais, como a tentativa apaixonada de defesa e conservação da Amazônia, de suas florestas, da cultura cabocla, dos mitos locais e da ideia de que ela desapareça. Ora, talvez esse discurso ajude a manter pobre o ex-colonizado, mesmo vivendo ele numa região potencialmente rica. O discurso pós-colonial passa a impedir qualquer modificação no cenário amazônico: a industrialização é combatida a ferro e fogo. A geração de riquezas fica a critério daquilo que se convencionou chamar “desenvolvimento sustentável”, que tenta manter a produção da forma como era no século XIX. O progresso material é impedido e a culpa pela pobreza é da colonização, extinta há quase duzentos anos...


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso pós-colonial tem seu lado positivo, no momento em que faz com que populações marginalizadas possam ter seus anseios ouvidos, ao menos nos textos literários; no entanto, podem camuflar ideologias neocolonizadoras. As culturas indígena e árabe, por exemplo, em diversos pontos, são vistas nos romances como conflitantes com o modo de ser do homem ocidental. A forma como índios e árabes se relacionam com suas mulheres, filhos e idosos pode ser vista como bárbara, o que gera por vezes indignação e o desejo de ajudar as minorias políticas dessas culturas a terem voz e se libertarem. Assim, o discurso democratizante passa a ser quase uma cruzada pela moralização mundial. Todavia, por trás dessa preocupação moral, pode haver interesses econômicos, pois havendo mais liberdades e direito de escolhas entre os indivíduos árabes, por exemplo, a possibilidade de eles serem dominados pelo discurso consumista aumenta. Ocorrendo isso, não se permite que as outras culturas se democratizem por escolha ou quando estiverem preparadas para isso, mas por uma pressão econômica globalizante.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONNICI, Thomas. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais. Mimeses. Bauru, v.9, n.1, p.07-23, 1998.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Tradução: Denice B. Catani. Ed. UNESP. São Paulo, 2004.

HATOUM, Milton. O arquiteto da memória. Frankfurt: Revista Deutsche Welle. 11 de outubro, 2004. (Entrevista concedida a Soraia Vilela). Disponível em: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,,1355392,00.html>. Acesso em: 11 nov. 2008.

________. Escrever à margem da história.  Revista Mirandum – coedição Mandruvá (Revista de Estudos Árabes da FFLCHUSP). Entrevista concedida a Aida Ramezá Ranania. São Paulo 05. 11. 1993 Disponível em: <http://www.hottopos.com/collat6/milton1. htm#escrever>. Acesso em: 09 mar. 2013.

GOMES CARREIRA, Shirley de Souza. A representação do outro em tempos de pós-colonialismo: uma poética de descolonização literária. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. Vol. II, número VI, julho-setembro de 2003. http://unigranrio.com.br/letras/revista/index.html



[1] Graduado pela Universidade Federal de Rondônia
² Graduada pela Universidade Federal de Rondônia