Kenedi Santos Azevedo – UFAM[1]
RESUMO:
Neste trabalho analisa-se as obras de
José Saramago apontando a subversão das metanarrativas e as situa no âmbito da
Literatura Pós-Moderna proposta por Linda Hutcheon no livro Poética do pós-modernismo – história,
teoria, ficção, de 1991. Além de demonstrar a retomada dos temas históricos
pelo escritor e sua reescritura, no sentido de questionar o passado.
Palavras-Chave:
Literatura Pós-Moderna, Metanarrativas, José Saramago.
No ano passado,
especialmente no dia 16 de novembro, José Saramago faria noventa anos de idade.
Esse dia ficou conhecido pelos seus leitores como “Dia do desassossego”, porque
Saramago dizia sempre: “Escrevo para desassossegar, não quero leitores conformados,
passivos, resignados”. E é com esta frase que inicio este artigo, com o intuito
de desassossegá-los também com as considerações que tecerei a partir de então.
Inicialmente retomo o
título – “Subvertendo as metanarrativas com José Saramago” – e passo à
tentativa de conceituação do termo “metanarrativa”. Recorro à definição contida
no e-dicionário de termos literários Carlos Ceia, que diz:
Na filosofia e na teoria da
cultura, uma metanarrativa assume o sentido de uma grande narrativa, uma narrativa
de nível superior (“meta-“ é um prefixo de origem grega que significa “para
além de”), capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de
representar uma verdade absoluta sobre o universo. A Bíblia e o Alcorão são
exemplos de metanarrativas universalmente conhecidas;
Nesse
sentido, compreendo que na história do mundo, diversas metanarrativas se
configuraram com o passar do tempo, “capaz de explicar todo o conhecimento existente”,
como o Iluminismo e o Marxismo e “capaz de representar uma verdade absoluta”,
no caso da Bíblia e do poema épico “Os Lusíadas”, por exemplo, verdades essas
que se cristalizaram, mitificaram-se no ideário popular, formando opinião,
criando regras e exercendo uma supremacia universal.
O
mundo foi criado em seis dias por um espírito que pairava sobre as águas, Adão
e Eva foram os primeiros seres humanos, criados a partir do barro, tudo isso
segundo o texto bíblico. Vasco da Gama e seus tripulantes enfrentaram
adversidades incontáveis ao singrarem os mares na busca de novas terras e
riquezas: monstros marinhos, a ira dos deuses, tudo em prol da constituição de
Portugal como a potência marítima daquela época. Esses fatos elencados
anteriormente tornaram, não obstante, verdades cimentadas pelo tempo. Quem vai
de encontro ou contra essas grandes narrativas? Somente alguém com o domínio da
história, alguém com uma preocupação particular com os mecanismos da linguagem
e da gramática do texto, porque na prática textual, uma metanarrativa é todo o
discurso que se vira para si mesmo, questionando a forma como se está a
produzir uma narrativa. E esse discurso torna-se uma constante nos romances
saramaguianos, ganhando, deste modo, um cariz pós-moderno.
No meio literário,
geralmente, nesse âmbito que tem como convenção interrogar as verdades e as
relações de poder no campo histórico e bíblico, principalmente, possui, sem
sombra de dúvidas, um projeto que faz referências ao passado. Revisitar um fato
feito por meio da obra de arte continuamente suscita polêmica, porquanto, nessa
visita ou revisita ao passado, pode-se desvendar eventos até então não
desvendados, devido às ações de interesse de determinados grupos considerados
conservadores que se sobrevêm na parte mais alta da crítica, não apenas literária.
Linda
Hutcheon discorre sobre a preocupação do sujeito pós-moderno com a construção
dos pressupostos históricos. Isso faz com que haja um retorno ao passado, na
tentativa de preencher os vazios deixados pelas convenções, recontar os fatos,
colocando em xeque as verdades históricas. Na ficção, essa forma de reescrita
ganhará o nome de metaficção historiográfica, assim, o programa pós-moderno tem
sido, portanto, a desconstrução do mito cartesiano de que é possível construir
uma narrativa capaz de explicar tudo o que se sabe sobre o homem e o mundo.
Assim,
a metaficção historiográfica sugere que a verdade e a falsidade não precisam ser
os pontos de partida para se debater a ficção. A metaficção historiográfica acode
que só têm “verdades”, assim no plural, e nunca, verdade única e definida. Além do mais, o que diferencia a
narrativa ficcional da histórica são suas estruturas, as quais são contrariadas
pela metaficção.
Distante
de uma descrença consciente, o historiógrafo tem por intuito organizar e
constituir os fatos identificados no passado, porém isso jamais resiste à
subjetividade do sujeito historiador. Portanto, a diferença de maior
proeminência entre a história e a ficção é que o historiador “encontra” suas
histórias e as explica, diferente do ficcionista que “inventa” suas histórias a
partir de outras, criando muitas vezes, paródias. Paródia, não no sentido de
zombar como faziam os irreverentes modernistas, mas de desconstruir. Com isso,
recorro mais uma vez a crítica canadense que diz:
A intertextualidade pós-moderna é
uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o
presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um
novo contexto. Não é um desejo modernista de organizar o presente por meio do
passado ou de fazer com que o presente pareça pobre em contraste com a riqueza
do passado. Não é uma tentativa de esvaziar ou de evitar a história em vez
disso, ele confronta diretamente o passado da literatura [...] (HUTCHEON, 1991,
p. 156).
Espontaneamente, este
seguimento narrativo força à convivência com o absurdo; porém, a história às
avessas a que o leitor tem ingresso, correspondendo a um “como se” ficcional
que apresenta vias de verossimilhança, incide a interpretação aberta e crítica
da história. Desta forma, do mesmo modo que o passado, o presente é
irremediavelmente sempre já textualizado para nós, e a intertextualidade
assumida da metaficção historiográfica trabalha como um dos traços textuais
dessa concepção chamada pós-moderna.
Portanto, a história serve
para a construção de um código novo, já que não é apenas figuração cênica
devido à impossibilidade de ser petrificada como painel de um fundo sobre o
qual as personagens se movimentam. Essas personagens são, porquanto, a história
em movimento, comprovando a metaficção, tão comum nos romances de portugueses,
como Lídia Jorge, Vergílio Ferreira, António Lobo Antunes, Mário Claudio potencializando-se
em José Saramago.
No seu livro Um Romance de Impoder, de 1997, Luís
Mourão considera “que os anos de 1978-79 são os anos em que a nossa ficção se
dá conta de que a história parou” (p. 21) e isso faz com que o leitor português
seja colocado “perante a evidência de um tempo suspenso, indeciso dos seus
itinerários de futuro, talvez definitivamente esgotado naquilo que até aí
tinham sido os seus princípios estruturantes”, diante dessa constatação
entendemos que “A queda das metanarrativas legitimadoras foi a crônica de uma
morte longamente anunciada. Daí a sua rápida banalização. Mas nunca como aqui a
banalização foi uma forma tão perfeita de denegar o que se afirmava dado
adquirido (MOURÃO, 1997, p. 9).
José
Saramago tornou-se um especialista em desconstruir a história oficial. Tanto
fez que a própria Bíblia, livro tido como sagrado pelo cristianismo, não passou
despercebida pelo romancista português. Primeiramente toma o Novo Testamento e
escreve, ou mesmo preenche um vazio que é deixado de lado pelos homens santos.
Sabemos que no texto bíblico há o relato sobre a infância de Jesus, desde o
nascimento até os doze anos. Depois daí, abre-se uma lacuna na história do
Filho de Deus que vai até seus trinta anos quando escolhe seus doze discípulos e
finda aos trinta três quando da sua morte.
E
é justamente nessa lacuna que Saramago vai construir O evangelho segundo Jesus Cristo, um livro extremamente polêmico
cuja publicação causou o desespero da igreja e o desterro do escritor. Ao
contar o envolvimento amoroso entre o Messias e Maria de Madalena, o escritor
português reconta essa história apontando o lado humano de Jesus, no sentido
carnal, terreal, não espiritual, celeste, porque a Bíblia já dá conta desse
lado.
Alguns
anos depois, o romancista se aventura nas sendas do Antigo Testamento e observa
uma injustiça cometida contra Caim, por parte do divino Criador. Em um jogo com
a temporalidade e movimentação espacial, elabora uma história para esse enigmático
personagem bíblico, inserindo novos personagens, como a fogosa Lilith.
Questiona as atitudes e decisões de deus – assim mesmo com letras minúsculas –,
além de mostrar as falhas e desvios de caráter dos patriarcas, por meio de um
discurso carregado de ironia, apoiado em uma crítica ferrenha às verdades
consagradas pelo meio cristão. Lembrando de tal modo o trabalho de Marshall
Berman ao considerar que “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é
sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com
sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros
homens” (BERMAN, 1986, p. 87)
Aqui as personagens
engendram-se complexamente na teia narrativa. Essas mesmas personagens são
seres questionadores e questionáveis, fazendo-nos ater não apenas na sua
representação. Como nos diz Vera Bastazin.
Representação plural e complexa,
a personagem, durante muitos séculos, foi entendida e analisada tendo o homem
como modelo de sua criação. À personagem não se dava o destaque de uma produção
criativa; ao contrário, ela era entendida apenas como simples imitação, cuja
origem estava centrada numa matriz, indubitavelmente, humana. Compreendida hoje
como objeto de papel ou de composição verbal, o certo é que a personagem se
transformou em linguagem. Aprofundada em seu enfoque teórico, ela se recusa a
ser objeto de mero entretenimento e se impõe como representação que se abre em
múltiplas possibilidades interpretativas. Objeto de prazer e de desafio, a
personagem é entretecida por relações de sensibilidade e de raciocínio –
binômio indispensável para se falar de arte (BASTAZIN, 2006, p. 13).
De
tal modo, personagens como Caim exemplificam claramente o posicionamento desses
seres de papel nos romances pós-modernos. Desafiando não apenas outras
personagens na estrutura narrativa, mas também o próprio leitor que se debruça
nas páginas dos livros, tentando decifrar suas personalidades, afinal, igualmente
surpreendido com a vitalidade, dinamicidade que ora os caracterizam. São justamente
esses seres que ajudam nos questionamentos acerca das atitudes e omissões de
dados que poderiam ter vindo à tona no passado, contudo ficaram às escuras por
motivo vário. Quanto ao texto bíblico não é diferente como veremos no trecho
que se segue do diálogo entre Caim e Deus, momento após a morte de Abel.
Que fizeste com o teu irmão,
perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas do meu
irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida dele
se tu não tivesses destruído minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para
pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E
de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para
matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse abel quando estava na tua
mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da
infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um
momento abandonasse a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os
outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que
aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os
deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem
ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te
que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a
sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo caso
nunca maior que o teu, que permitiste que abel moresse, Tu é que o mataste,
Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O
sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e
o bem, se escolheu o mal pagará pro isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como
aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim [...] (SARAMAGO, 2009, p. 34,
35).
E
esse diálogo que mais parece um embate de múltiplas acusações entre ambos,
continua página adiante, não obstante, o excerto acima é suficiente para
compreendermos o posicionamento do personagem diante de seu superior, daquele
que se diz seu criador. Enquanto Deus aponta o dedo em direção ao crime
cometido por Caim contra o irmão, Caim aponta o dedo a Deus mostrando que mesmo
sendo deus, comete falhas, principalmente por ser ele, Caim, sua criatura,
sendo deste modo, igualado aos outros deuses existente, diminuindo-o, muitas
vezes, principalmente ao dizer o que faria se fosse esse Deus.
O
leitor, como espectador, presencia o estilhaçamento do discurso genesíaco sendo
desconstruído a partir da visão de um personagem que, posto à margem na bíblia,
destaca-se no romance saramaguiano pelos questionamentos diretos ao seu senhor
e criador, deixando assim, a esse leitor, aquele a quem deve apoiar ou
condenar. O personagem bíblico ora ficcionalizado mais uma vez, destaca-se pelo
seu relevo textual, evidenciando procedimentos que vão dos mais gerais aos mais
específicos, abrindo-se na construção narrativa por uma tonalidade
predominantemente prosaica e muitas vezes, densamente poética, se fazendo o
ente necessário ao desempenho da narratividade que se desenrola dos pontos
obscuros e omissos do texto bíblico e da potencialidade exercida por esse
personagem que se revela plural como um ser revestido de realidade a quem o
leitor se identifica, aceitando-o ou recusando-o.
Assim
também são engendrados os personagens do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, a começar pela própria geração de
Jesus, muito semelhante à dos homens comuns para além da sua complexa
ficcionalização. Saramago inicia a desconstrução do Novo Testamento ao sugerir a
formação do Messias, não no sentido espiritual como se vê no trecho: “Deves
saber, ó Maria, que o Senhor pôs a sua semente de mistura com a semente de José
na madrugada em que concebeste pela primeira vez”, mas legitimando a José a
paternidade, não como convencionou a metanarrativa cristã. Daí em diante, surge
aos olhos do leitor um personagem humanamente construído com seus medos,
receios, desejos, desconfianças e coragem, a ponto de enfrentar deus em uma
conversa que transcrevo abaixo.
Não criei nenhum mundo, não posso
avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a
quê, Alargar a minha influência, a ser deus de muito mais gente, Não percebo,
Se cumprires bem teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou
certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de
lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus
dos que chamaremos católicos, à grega, E qual o papel que me destinaste no teu
plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer
espalhar uma crença e afervorar uma fé [...] (SARAMAGO, 2005, p. 309).
Tanto
o discurso de Caim quanto de Jesus, remete-nos a uma deslegitimação da
metanarrativa que se cimentou por séculos e séculos, percebida pelo escritor
português ao demonstrar um início de declínio e erosão interna no discurso
escamoteado pela legitimação e fortificação dessa metanarrativa cristã, por
intermédio de uma ironia ácida. De acordo com Lyotard (2003) “na sociedade e na
cultura contemporâneas, sociedade pós-industrial e cultura pós-moderna, a
legitimidade do saber se põe em outros termos” (p. 79), já que essas narrativas
perderam, de certo modo, a credibilidade, ao serem colocadas em xeque pelo
homem contemporâneo, um homem cada vez mais cético e questionador.
Deste modo, a subversão
desses eventos tidos como verdades absolutas, sobressai-se na obra do
português, principalmente quando pensamos em uma verdade que se faz ou que se
fez mito, como é o caso de Os Lusíadas,
por narrar os feitos heróicos dos navegadores conquistadores, apontando para a
edificação da identidade de uma nação presa de certa forma ao seu passado,
sobre isso, o ensaísta Eduardo Lourenço (2001) é categórico ao afirmar que
“[...] o imaginário português cumpre a dupla função de medir o abismo que
separa o povo português do seu passado glorioso e de lhe oferecer um presente
que, apesar de tanta nostalgia, o torne contemporâneo de si mesmo” (p. 85).
E aí rege a imaginação
criadora de José Saramago (1988) ao iniciar e finalizar o romance O ano da morte de Ricardo Reis: “Aqui o
mar acaba e a terra principia” (p. 7); “Aqui, onde o mar se acabou e a terra
espera” (p. 428), que mesmo sendo a retomada da heteronímia pessoana, não deixa
de fazer claras alusões ao épico camoniano. De tal modo, estamos diante do
esvaziamento do mar português nas páginas de uma narrativa anti-épica; se
levarmos em consideração que “o mar acaba” ou “acabou” e “a terra espera” ou “principia”,
devemos imediatamente pensar que o percurso marítimo aos poucos é substituído
pelo terreno, especialmente por Portugal, no caso do romance, pelas ruas de
Lisboa.
O mesmo ocorre em A jangada de pedra, quando presenciamos
o deslocar da Península Ibérica e seu afastamento do restante da Europa, ao
mesmo tempo ironia e reivindicação da supremacia cultural exercida pelos países
ibéricos ao restante do mundo, o esvaziamento dessa cultura era o risco que
corriam ao serem anexados à União Europeia, fato alvo da crítica de José
Saramago e que fez germinar o romance. No entanto não era apenas uma forma
revoltosa de negação ao tratado, mas também, a vivificação do mito do navegante
luso, uma maneira de mostrar a universalidade do país, apesar da forma desconstrutiva
de narrar tal episódio. Nas palavras de Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
(2004) “Como uma superpalavra, A jangada
de pedra é um intertexto onde se encontram problematizados discursos
anteriores relativos ao imaginário da pátria e da nacionalidade”, subvertidos
ao serem arquitetados por Saramago na narrativa.
E essa revisitação ao
passado glorioso, a releitura de Camões não para nesses dois romances ora
supracitados, há outros cuja temática recorre sempre ao mito camoniano, como a
crônica “O elogio da couve portuguesa” o romance-conto A viagem do elefante, a peça teatral Que farei com este livro e outros. Para Linda Hutcheon essa
revisitação
parece estar inevitavelmente
vinculada àquele conjunto de pressupostos culturais e sociais contestados que
também condicionam nossas noções sobre a arte e a teoria atuais: nossas crenças
em origens e finais, unidade e totalização, lógica e razão, consciência e
natureza humana, progresso e destino. Representação e verdade, sem falar nas
noções de causalidade e homogeneidade temporal, linearidade e continuidade.
(HUTCHEON, 1991, p. 120).
Em um misto entre
ficção e história ou mesmo ficcionalização da história como no caso de Memorial do convento, quando esses dois
aspectos se confundem ao serem entrelaçados, bem como em História do cerco de Lisboa ao vermos a história oficial ser
subvertida por uma simples partícula de negatividade, o “não”, os cruzados não
ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa. Tomamos essa negativa e a
generalizamos como sendo primordial para entendermos as obras de Saramago,
porque é o mesmo “não” que o romancista se apropria e utiliza
insubordinando-se, rebelando-se contra os pressupostos históricos como verdade
absoluta e não censurável. São romances que buscam respostas para diversas
questões sobre o ser humano e sobre a sua atuação na história como agente e
personagem principal.
Claro está que José
Saramago presenteia seus leitores com livros que trazem em sua estrutura
narratológica um ente responsável, não apenas pelos dados obscuros da história,
mas por lições assim como ocorria com os narradores primordiais, um resgate de
cunho oralizante que se embrenham nas páginas dos livros desse romancista,
lembrando aquilo que Walter Benjain havia mencionado sobre o narrador, especialmente
o narrador primordial, um homem que sabe dar conselhos: “O conselho tecido na
substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está
definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.”
(p. 200, 201). isto é, a verdadeira narração é a que passa de pessoa para
pessoa por meio da oralidade, ou seja, conforme (PINTO, 2011) “Tendo um
narrador para conduzir as ações que compõem a fábula [...]” (p. 34). Saramago
se utiliza de vários aspectos orais para construir seus romances: provérbios,
ditados populares, textos bíblicos e etc. Assim sendo, o narrador tem por
característica fornecer conselhos sábios. Essa característica é observada em
todos os seus livros, especialmente no Memorial
do convento, Ensaio sobre a lucidez
e A jangada de pedra; já os ditados
populares, ocorrem principalmente em A
viagem do elefante, seu penúltimo livro. Quanto aos textos bíblicos
percebemos claramente nos romances O
evangelho segundo Jesus Cristo e Caim,
mesmo que de forma subversiva. Nos demais também é latente os aspectos do narrador
oral de modo especial quando pensamos que esse narrador é detentor do
conhecimento e quer repassar admoestações sobre a vida, tão comuns no Ensaio sobre a cegueira, ou sobre a
morte, como em As intermitências da morte.
Meu intuito, portanto
foi de fazer com que também reflitamos sobre as questões trazidas no cerne de
cada romance. Como seria o mundo se todos ficassem sem enxergar? O que
aconteceria se a morte não existisse? Por que a Península Ibérica afasta-se da
Europa, o que há por detrás de tal metáfora? Se Fernando Pessoa já havia
morrido, o que acontece com seus heterônimos, Ricardo Reis, por exemplo? Além
das questões de cunho bíblico que são retomadas como forma de preenchimento do
vazio, no caso de Maria de Magdala e Jesus e as aventuras de Caim após o
assassinato de seu irmão. Ficamos então diante daquilo que Linda Hutcheon
escreve: “A intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um
desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também
de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto” (HUTCHEON,
1991, p. 156), no caso de Saramago, não apenas reescrever o passado, mas as
histórias antigas, populares, tradicionais e saber contá-las, mesmo que seja de
forma subversiva como vimos anteriormente.
REFERÊNCIAS
BASTAZIN,
Vera. Mito e Poética na literatura
contemporânea: um estudo sobre José Samago. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2006.
BERMAN,
Marshall. Tudo que é sólido desmancha no
ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CEIA, Carlos. Metanarrativa, E-Dicionário de Termos Literários,
coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9. Disponível em
http://www.edtl.com.pt. Acesso 12/12/2012.
HUTCHEON,
Linda. Poética do pós-modernismo –
história, teoria, ficção. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LOURENÇO,
Eduardo. A nau de Ícaro e Imagem e
miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LYOTARD,
Jean-François. A condição pós-moderna:
um relatório sobre o saber. Tradução de José Navarro. Lisboa: Gradiva, 2003.
MOURÃO,
Luís. Um romance de impoder.
Coimbra: Angelus Novus, 1997.
OLIVEIRA,
Maria Lúcia Wiltshire de. De Camões a
Saramago: leituras da pátria portuguesa. Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
SARAMAGO,
José. O ano da morte de Ricardo Reis.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SARAMAGO,
José. O evangelho segundo Jesus Cristo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SAMARAGO,
José. Caim. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
[1] Professor de Literatura
Portuguesa e Brasileira da Universidade Federal do Amazonas. Mestre em Letras:
Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP e do
Grupo de Pesquisa "Nós do Insólito: vertentes da ficção, da teoria e da
crítica" - UERJ