Carlos Antônio Magalhães Guedelha
(Doutor em Linguística
- UFSC/UFAM)
RESUMO: Neste artigo, desenvolvo considerações a respeito das
informações implícitas dos enunciados, dedicando especial atenção ao fenômeno
linguístico da pressuposição. Na pesquisa, tomei por base as reflexões de
Ducrot (1977; 1987), ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e
Oliveira (2009). Exploro alguns conceitos relevantes apresentados por esses
pesquisadores, como “conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento
compartilhado”, e os exemplifico através de manchetes de jornais,
principalmente. Além disso, destaco os testes básicos que podem ser usados para
avaliar o valor de verdade de pressupostos em uma sentença. O estudo comprova
que a escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um texto nunca
é um ato gratuito. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na
intrincada rede dos contextos que são as interações humanas, as palavras perdem
a sua neutralidade e se transformam em veículos potenciais de ideologias. A
análise dos enunciados permite confirmar que nas entrelinhas dos discursos há
pressupostos que, focalizados no seu conjunto, refletem a ideologia a partir da
qual o enunciado foi construído.
Palavras-chave: Enunciado. Enunciação. Pressuposição.
Entrelinhas.
ABSTRACT: The main objective of this paper is making
considerations about the linguistic phenomenon of presupposition. The
theoretical basis which supported the research were Ducrot’s reflections (1977:
1987), expanded by Illari and Geraldi (2002), Moura (2006) and Oliveira (2009).
Some relevant concepts presented by these researchers were focused, such as
“posited content”, “presupposed content” and “shared knowledge” and exemplify through newspaper headlines, mainly. Furthermore, basic
tests were outlined which may be used to evaluate the truth value of
presuppositions in a sentence. At last, the difference between presupposition
and implicit was shown, presenting them as two different forms of implicits.
The study shows that the choice of words and rhetoric recourses on a text
organization is never a free act. Taking out from their dictionary state and
cast over an intricate net of contexts that constitute the human interactions,
words lose their neutrality and are transformed into potential vehicles of
ideologies. The analyses of these newspaper news allow the conclusion that in
the interplay of discourses there are presuppositions that, if focused in their
conjunction, they reflect the ideology from which the utterance has been built.
Key-words: Presupposition. Shared knowledge. Implicit.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é desenvolver um estudo a respeito do
fenômeno semântico da pressuposição, tendo como ponto de partida as reflexões estabelecidas
por Ducrot (1977; 1987) e ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e
Oliveira (2009). Focalizo alguns conceitos relevantes apresentados por esses
pesquisadores, como “conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento
compartilhado”. Para exemplificá-los, selecionei textos de jornais e revistas
brasileiras, de onde recortei os enunciados a serem analisados. Além disso,
destaquei os testes básicos para avaliar o valor de verdade de pressupostos em uma
sentença, o que Oliveira (2009) chama de “condições de felicidade” no
proferimento da sentença.
A descoberta da pressuposição como
realidade linguística contribuiu decisivamente para a pulverização da antiga
concepção de que as línguas naturais, como códigos, permitem expressar todos os
seus conteúdos de forma explícita. O conhecimento de que a pressuposição
desestabiliza essa concepção ultrapassada significou, no entendimento de Rector
(1980), a passagem da semântica do enunciado (produto) para a semântica da
enunciação (processo). A esse respeito, cabe destacar que Ducrot procurou
mostrar que a língua não pode ser definida como um código, um instrumento de
comunicação, conforme defendia Saussure. Ela deve ser considerada, pelo
contrário, “como um jogo, ou melhor, como o estabelecimento de um jogo que se
confunde amplamente com a vida cotidiana” (DUCROT, 1977, p. 12).
Para Ducrot, o fenômeno da pressuposição é responsável pelo surgimento,
no interior da língua, de “todo um dispositivo de convenções e de leis, que
deve ser compreendido como um quadro institucional a regular o debate dos
indivíduos”. Ele deixa bem claro que o
pressuposto “é apresentado como
uma evidência, como um quadro incontestável dentro do qual a conversação deve
necessariamente inscrever-se, ou seja, como um elemento do universo do
discurso. Introduzindo uma ideia sob forma de pressuposto, procedo como se meu
interlocutor e eu não pudéssemos deixar de aceitá-lo” (DUCROT, 1977,
p.12).
Com
essas palavras, o teórico instaura a ideia de que a realidade linguística da
pressuposição lança os interlocutores numa relação de cumplicidade forjada na
própria interlocução, e confere à língua o caráter inerente de uma arena de
debates e o lugar por excelência do confronto de subjetividades. Oliveira (2009,
p. 28), comentando essa perspectiva de Ducrot sobre a língua, que se realiza
como um jogo ou debate, reitera que “não falamos para trocar informações sobre
o mundo, mas para convencer o outro a entrar no nosso jogo discursivo, para
convencê-lo da nossa verdade”. Acrescenta ainda que “não falamos sobre o mundo,
falamos para construir um mundo e a partir dele tentar convencer nosso
interlocutor da nossa verdade, verdade criada pelas e nas nossas
interlocuções”.
2 CONTEÚDOS POSTO E PRESSUPOSTO
Moura (2006), também analisando as ideias de Ducrot, ressalta dois
conceitos fundamentais no estudo da pressuposição: o conteúdo posto, que diz respeito à informação contida no sentido
literal das palavras de uma sentença; e o conteúdo
pressuposto, ou pressuposição, que engloba informações
que podem ser inferidas da enunciação dessas sentenças. Ele explica que “o
conteúdo pressuposto de uma sentença não é afirmado nessa sentença, mas
inferido a partir dela” (MOURA, 2006, p. 13).
E é isso mesmo que Ducrot (1987) preceitua: que o conteúdo de um
enunciado se reparte arbitrariamente em posto e pressuposto. Assim, para ele o
pressuposto é inerente ao enunciado que o veicula. Defende que o pressuposto pertence ao enunciado, mas
de um modo diferente do posto, uma
vez que o posto preenche as linhas do discurso, enquanto o pressuposto reside
nas suas entrelinhas.
Tomemos como exemplo, a manchete (1) a seguir:
(1) “Tráfico
volta a dominar seis áreas do Alemão pacificado”.
(Jornal
O Dia, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2013)
O conteúdo posto é que o tráfico volta a dominar seis áreas do Alemão, um
complexo de favelas do Rio de Janeiro, que havia sido pacificado. E o conteúdo
pressuposto é que o tráfico já havia dominado essas seis áreas do Alemão
anteriormente. É o uso do verbo “voltar” (volta), com sua acepção iterativa,
que desencadeia o pressuposto presente em (1).
Mas como é que se desencadeia a pressuposição em um enunciado? que
artifícios linguísticos permitem fazê-lo? Segundo Moura (2006) e Oliveira (2009),
a língua conta com dispositivos especializados na função de ativar conteúdos
pressupostos, isto é, expressões que apontam para a existência de pressupostos
no enunciado. Entre os referidos dispositivos linguísticos, também chamadas de gatilhos pressuposicionais, destacam-se:
a)
os verbos
factivos (demandando orações substantivas como complementos, os verbos factivos sugerem que o sujeito
da enunciação – o locutor – se
compromete com a verdade da proposição que a oração subordinada encerra, ou
seja, o complemento do verbo principal é tomado como verdade);
b)
os verbos
implicativos (resultativos);
c)
os verbos de mudança
de estado;
d)
as expressões iterativas
(pressupõem fato repetido, já
acontecido antes);
e)
e as expressões
temporais.
São recursos que nos obrigam a perceber, nas entrelinhas
do enunciado, informações que não estão expressas nas linhas do texto, mas são
evocadas ou sugeridas.
Como exemplificação de todas as situações listadas acima, observemos as
manchetes a seguir e o quadro que as representa:
(2) “Médicos
Sem Fronteiras confirmam que centenas de sírios morreram com gás” (El País,
Espanha, 25 de agosto de 2013).
(3) “Candidato
do P-SOL consegue liminar para participar de debate” (A Crítica, Manaus, 28
de setembro de 2010).
(4) “Polícia revela onde estão
os radares de velocidade” (Correio da Manhã, 5 de setembro de 2013).
(5) “Leilão do trem-bala é
adiado de novo e pode não ocorrer” (O Globo, Rio de janeiro, 13 de agosto de
2013).
(6) “Manaus nunca mais terá
apagão, diz Lula” (A Crítica, Manaus, 27 de novembro de 2010).
Enunciado
|
conteúdo pressuposto
|
gatilho pressuposicional
|
(2)
|
centenas de sírios morreram com
gás
|
“confirmam” –
verbo factivo
|
(3)
|
“consegue” –
verbo implicativo
|
|
(4)
|
os locais onde os radares de
velocidade estão eram desconhecidos
|
“revela” –
verbo de mudança de estado
|
(5)
|
o leilão do trem-bala já havia
sido adiado antes
|
“de novo” – expressão
iterativa
|
(6)
|
Manaus já teve
apagão antes
|
“nunca mais” –
expressão temporal
|
Quadro 1 – pressupostos e gatilhos
Além dos gatilhos listados acima, há dois outros que são bastante
expressivos: as descrições definidas
e as sentenças clivadas. As
descrições definidas, conforme Moura (2006, p. 17), “são expressões que fazem
uma certa descrição de um ser específico”, ou seja, desempenham um papel
semelhante ao dos nomes próprios, por sua natureza identificativa. “O uso de uma descrição definida pressupõe a
existência do ser a que ela se refere. Esse tipo de pressuposição é chamado
também de pressuposto de existência” (MOURA, 2006, p. 17). As descrições
definidas são sempre sintagmas nominais (geralmente encabeçados por um artigo
definido e tendo um substantivo como núcleo), que identificam um referente no
mundo. É o que acontece, por exemplo, em (7), (8) e (9):
(7) “Os
primeiros 100 dias do novo governador do
Amazonas.”
(A Crítica,
Manaus, 9 de abril de 2011)
(8) “Relator
pede absolvição do prefeito de Parintins.”
(A Crítica, Manaus,
29 de novembro de 2010)
(A Crítica, Manaus, 28 de setembro de 2010).
Nessas três manchetes, as
expressões definidas foram utilizadas em substituição aos nomes próprios
específicos, como mostra o Quadro 2:
enunciado
|
pressuposto de existência
|
descrição definida
|
(7)
|
Existe
alguém que é o novo governador do Amazonas
|
o novo governador do Amazonas
|
(8)
|
Existe
alguém que é prefeito de Parintins
|
o
prefeito de Parintins
|
(9)
|
Existe alguém que é candidato do P-SOL
|
(o) candidato do P-SOL
|
Quadro 2 –
descrições definidas
As sentenças clivadas também são
especializadas em ativar pressupostos. Trata-se
de construções em que “uma sentença simples é dividida em duas orações a fim de
destacar um certo constituinte da sentença, enfatizando-se a informação
relativa a esse constituinte” (MOURA, 2006, p. 21). A fórmula das sentenças
clivadas é: “(não) foi SN que SV”, sendo SN sintagma nominal e SV sintagma
verbal. Nesses casos, o SV dispara sempre uma pressuposição, como nos exemplos
que seguem (os exemplos não constituem manchetes de jornal):
(10)
Foi a Maria que limpou as vidraças.
(11)
Não foi o meu
filho que jogou pedra no cachorro.
(12)
Não foi Vidas
Secas que a turma leu este ano.
Em cada um dos três enunciados
acima, há uma informação anteriormente conhecida, dada como certa (SV), e uma
nova informação que é fornecida (SN). É exatamente essa informação dada como
certa que constitui a pressuposição, como se pode ver no quadro 3:
Enunciado
|
Pressuposto
|
informação nova
|
(10)
|
alguém limpou as vidraças
|
foi a Maria
|
(11)
|
alguém jogou pedra no cachorro
|
não foi o meu filho
|
(12)
|
a turma leu algum livro no
este ano
|
não foi Vidas Secas
|
Quadro 3 – sentenças clivadas
3 TESTES DE PRESSUPOSIÇÃO
O adjetivo é uma das classes de
palavras mais produtivas na construção de pressuposições. Nesta sessão, exemplificaremos
isto através da análise da manchete (13) abaixo:
(13)
“Manacapuru registra novo deslizamento de terras”.
(A Crítica, Manaus, 12 de novembro de 2010)
Com o apoio de Ilari e Geraldi (2002), podemos perceber que a mensagem
veiculada por este enunciado circula em dois níveis.
No nível mais superficial, temos uma informação no plano literal. A
manchete nos informa que houve um deslizamento de terras em Manacapuru (um dos
municípios do Amazonas). Este é o conteúdo
posto; no segundo nível, somos levados a considerar outra afirmação, que
não participa do eixo sintagmático (não está expressa explicitamente na sintaxe
do enunciado) mas ajuda a compor o eixo paradigmático (é evocada ou sugerida).
Assim, podemos inferir, a partir de (13), que já aconteceu deslizamento de
terras antes em Manacapuru. Este é o conteúdo
pressuposto.
O que se percebe pela análise de (13) (o que é prontamente confirmado
pelo texto da reportagem), é que o seu enunciador – o jornalista – pretendeu
muito mais do que comunicar o fato situado no primeiro nível. Ao utilizar o adjetivo
“novo”, ativou um gatilho de pressuposição que conduz o leitor a pensar sobre o
fato de que não é a primeira vez que Manacapuru registra um deslizamento de
terras. Dessa forma, a manchete nos permite vislumbrar:
a) um tempo anterior à enunciação (passado) em que houve deslizamento(s)
de terra em Manacapuru;
b) um tempo da enunciação (presente) em que o tremor de terras volta a
acontecer naquela cidade.
Para insistir mais um pouco na realidade da pressuposição no enunciado em
análise (a manchete do jornal), continuamos dialogando com Ilari e Geraldi
(2002, p. 61), para quem “uma frase pressupõe outra toda vez que tanto a
verdade quanto a falsidade da primeira implicam a verdade da segunda”.
Observemos, a esse respeito, a bipartição de (13):
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de
terras.”
(13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.
Parece evidente que, se negarmos (13) afirmando (13b)
(13b) Não é verdade que Manacapuru registrou um novo deslizamento de
terras, essa negação não afeta o conteúdo de (13a). Assim sendo, considerando
que a negação afeta o conteúdo declarado de uma sentença, mas não afeta o
conteúdo pressuposto, e que (13a) não é afetado pela negação de (13), podemos
concluir que (13a) não é um conteúdo declarado, mas encerra uma pressuposição.
Ou seja: a informação pressuposta (13a) permanece intacta ainda que se
questione a veracidade do enunciado de (13), pois ela é dada ao leitor, pelo
jornalista, como indiscutível. O jornalista a apresenta como a sua margem
convencimento.
Conforme Moura (2006) e Oliveira (2009), há outras formas de testar o
valor de verdade de pressuposições em um enunciado, além da negação. Na
verdade, o teste pode ser realizado por qualquer uma das peças de um conjunto
de estruturas conhecido como “família pressuposicional” ou “P-Família”: a
negação, a interrogação, a dúvida e a estrutura hipotética (condicional) “se A,
então oração principal”. Façamos todos esses testes com (13) e (13a), sendo
(13a) um conteúdo pressuposto de (13):
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
(13a) Já houve deslizamento de
terras em Manacapuru anteriormente.
estrutura
|
representação
|
Enunciados
|
(13a)
é anulada?
|
Negação
|
Não é verdade que (13)
|
Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras
|
NÃO
|
Interrogação
|
(13)?
|
Manacapuru registrou novo
deslizamento de terras?
|
NÃO
|
Dúvida
|
Duvido que (13)
|
Duvido que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras
|
NÃO
|
Hipótese
|
Se (13), então...
|
Se Manacapuru registrou novo deslizamento de terras, então a
população deve estar preocupada.
|
NÃO
|
Quadro 4 – Teste de valor de verdade: P-Família
É possível constatar que o conteúdo pressuposto (13a) não se altera em
nenhum dos testes acima. Em todos eles, mantém-se intocada a informação (não
declarada explicitamente, é claro) de que não é a primeira vez que Manacapuru registra
deslizamento de terras. Essa informação implícita resiste quando negamos,
questionamos, duvidamos ou formulamos hipótese a respeito da proposição.
Ilari e Geraldi (2002) fazem referência a dois enfoques que a linguística
tem estabelecido em relação ao fenômeno da pressuposição. O primeiro está
relacionado à pressuposição como “uma condição de emprego da oração que a
pressupõe” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). Isto significa que o jornalista não
estaria utilizando apropriadamente (13) se não confiasse na verdade de (13a) e
se não tivesse razões para acreditar que (13a) é, de alguma forma, conhecido
pelo seu interlocutor (o leitor do jornal) previamente ao uso de (13).
O segundo enfoque diz respeito à pressuposição como “um mecanismo de
atuação no discurso” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). O jornalista, como
locutor, sabendo que as afirmações pressupostas não são passíveis de negação,
utiliza-as como recurso para estabelecer limites à “conversação” e para
direcioná-la. Desse modo, o jornalista que escreveu (13) está, de fato, conduzindo
o seu leitor a acreditar, compulsoriamente, que Manacapuru já registrou
deslizamento de terras antes. O jornalista tem consciência de que uma refutação
por parte do leitor em relação a isso equivale a tornar polêmica a “conversação”,
podendo inclusive travar o diálogo proposto.
Dessa forma, detectar o(s)
pressuposto(s) em uma leitura é de fundamental importância para o leitor, pois
esse recurso argumentativo não é posto em discussão pelo autor do texto, fato
que deixa o leitor refém do pensamento do autor e o leva até mesmo defender
opiniões que não são necessariamente as suas.
4 CONHECIMENTO COMPARTILHADO
Ainda em relação a (13), esse conhecimento prévio de que o jornalista se
serve em sua enunciação corresponde ao que Moura (2006) denomina de conhecimento compartilhado: um conjunto
de proposições aceitas como verdadeiras pelos indivíduos envolvidos em um
contexto de enunciação, ou seja, o locutor e o interlocutor. Trata-se do que Oliveira
(2009) chama de fundo conversacional: conjunto de discursos previamente existentes
num determinado contexto de interação.
Analisando por esse ângulo, confirmamos que a validade do proferimento de
(13) pelo seu locutor, a felicidade
desse proferimento (Oliveira, 2009) depende da existência de (13a) no
conhecimento compartilhado (ou no fundo conversacional) entre esse locutor
e seus interlocutores (os leitores). Em
outras palavras, é necessário que os leitores assumam (13a) como um
proferimento verdadeiro para que o diálogo tenha curso.
Imaginemos que um leitor conteste (13) enunciando (13f):
(13f) Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras,
pois nunca houve deslizamento de terras antes na cidade.
Nesse caso estaríamos diante de uma situação problemática, com a polêmica
instaurada e o diálogo travado. O conteúdo pressuposto não estaria sendo
computado como um elemento constituinte do conhecimento compartilhado. Vale
dizer que se trataria de um proferimento inexistente no fundo conversacional, o
que acarretaria prontamente um enorme prejuízo à conversação, pois se o
pressuposto é falso, o conteúdo posto do enunciado não tem valor de verdade.
5 PRESSUPOSTO X SUBENTENDIDO
Há pessoas que confundem pressuposto com subentendido, ou tomam os dois modos
de implícito como sendo uma coisa só. Mas quando nos reportamos a Ducrot,
constatamos que ele insistentemente demarca os traços que diferenciam esses
dois fenômenos. Em sua “distinção entre pressuposto e subentendido” (DRUCOT,
1987), argumenta que:
a)
O pressuposto
insere-se no componente linguístico, enquanto o subentendido é mais uma questão
de retórica;
b)
O pressuposto
mantém estreita ligação com as construções sintáticas, enquanto o subentendido
dificilmente denuncia filiação sintática;
c) O pressuposto
situa-se num passado em relação ao presente da enunciação, enquanto o
subentendido ocorre num momento posterior ao ato de enunciação, como um
acréscimo da interpretação do ouvinte/leitor;
d) O pressuposto é parte
integrante do sentido dos enunciados, enquanto o subentendido diz respeito à
maneira pela qual o sentido deve ser decifrado pelo destinatário.
O subentendido, segundo Ducrot
(1987), está sempre excluído do sentido literal do enunciado, ao qual se opõe
sempre. Ele é externo ao enunciado e só aparece quando um interlocutor, em um
momento posterior à enunciação, reflete sobre o próprio enunciado.
Por exemplo, imaginemos a seguinte
cena: João está sozinho em sua casa e recebe, a contragosto, a visita
indesejável de um colega, e este se demora demais em ir-se embora. Depois de
algum tempo, João, já muito contrariado, olha para o relógio repentinamente e
profere (14):
(14) Puxa! Já estou atrasado para o trabalho!
Suponhamos que com isso João está sugerindo ao visitante que vá embora
de sua casa. Mas não o faz de forma direta, apenas insinua. Ao proferir (14),
João esconde-se atrás do seu próprio enunciado para não se comprometer. Caso o
colega fique ressentido e reclame de estar sendo expulso por João, este pode
muito bem contrapor que em momento algum mandou que ele fosse embora, que em
momento algum teve intenção de expulsá-lo, sob a alegação de “eu não disse nada
disso, você é que tá entendendo desse jeito. Eu apenas falei que estou atrasado
para o trabalho”.
Neste
cenário, estamos diante de um subentendido, que leva em conta as circunstâncias
da enunciação, as condições de ocorrência externas ao enunciado. Ducrot (1987,
p. 42) considera que, ao construir enunciados com subentendidos, “o locutor
apresenta sua fala como um enigma que o destinatário deve resolver” e deixa a
responsabilidade para o destinatário. Ou seja, “ao enunciar algo que pode ser
subentendido, pode ter a intenção de transmitir a informação que deseja, mas
sem se comprometer. Assim, não diz explicitamente, mas dá a entender, deixa
subentendida alguma informação; deixa-a camuflada para não se comprometer”. Dessa
forma, o subentendido, por possibilitar
dizer uma coisa aparentando não a dizer ou não a querer dizer, é inteiramente
debitado para o ouvinte/leitor. Ducrot (1987, p. 42) lembra que “a
linguagem oferece exemplos frequentes dessa atitude, certamente muito
hipócrita”. A hipocrisia decorre da atitude dissimulada do locutor.
6 CONCLUSÃO
As considerações que fiz neste artigo mostram que a língua não pode ser
concebida reducionalmente como uma estrutura autônoma ou como um simples código
a serviço da comunicação, como apontava Saussure. Ao contrário, ela se realiza
como um espaço de interação entre indivíduos e veicula não apenas mensagens
explícitas, mas também – e em grande medida – conteúdos implícitos que
denunciam intenções e subintenções do falante, fato que pode ser facilmente
comprovado pela abordagem da pressuposição. Não raro, um enunciado veicula mais
informações nas suas entrelinhas do que nas suas linhas. As informações
implícitas que inevitavelmente emergem dos enunciados denunciam a necessidade
de se olhar para a língua como um jogo interativo como preceituou Ducrot (1977;
1987).
Isso significa que no discurso as palavras jamais são utilizadas em
estado de dicionário, imersas em sua situação de neutralidade. Como o signo
linguístico é essencialmente ideológico, não há neutralidade na linguagem. Digo
com Citellli (2000, p. 29) que podemos “ler a consciência dos homens através do
conjunto de signos que a expressa”. Retiradas de seu estado de dicionário e
lançadas na intrincada rede de contextos que são as interações humanas, as
palavras perdem a sua neutralidade e passam a ser veículos potenciais de
ideologias. A escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um
texto nunca é um ato gratuito, não se trata da seleção de meros recursos
formais, estilísticos ou estéticos. Ao contrário, “o modo de dispor o signo, a
escolha de um ou outro recurso linguístico revelaria múltiplos comprometimentos
de cunho ideológico” (CITELLI, 2000, p. 26).
O arrazoado acima é plenamente confirmado pelo fenômeno linguístico da
pressuposição. Insisto em que além das várias informações explícitas, que são
perceptíveis na superfície textual, um enunciado pode conter informações
implícitas que não devem ser ignoradas. Há expressões explícitas que
desencadeiam os pressupostos que, focalizados no seu conjunto, refletem a
ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.
REFERÊNCIAS
CITELLI, A. Linguagem e persuasão. 14. ed. São Paulo: Ática, 2000. (Princípios)
DUCROT, O. Dizer e não dizer. Princípios
de semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.
–––––––. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas, São Paulo:
Pontes, 1987.
ILARI, R. & GERALDI, J. W. Semântica. 10. ed. São Paulo: Ática, 2002 (Princípios).
MOURA, H. M. de M. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e
pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2006.
OLIVEIRA, R. P. de. Semântica. In:
MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Cristina (orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol. 2, 6. ed. São
Paulo: Cortez, 2009.
RECTOR, M. Manual de semântica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.
(Linguistica e Filologia).