PRESSUPOSTOS E SUBENTENDIDOS – LENDO ENTRELINHAS



Carlos Antônio Magalhães Guedelha
(Doutor em Linguística - UFSC/UFAM)

RESUMO: Neste artigo, desenvolvo considerações a respeito das informações implícitas dos enunciados, dedicando especial atenção ao fenômeno linguístico da pressuposição. Na pesquisa, tomei por base as reflexões de Ducrot (1977; 1987), ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e Oliveira (2009). Exploro alguns conceitos relevantes apresentados por esses pesquisadores, como “conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento compartilhado”, e os exemplifico através de manchetes de jornais, principalmente. Além disso, destaco os testes básicos que podem ser usados para avaliar o valor de verdade de pressupostos em uma sentença. O estudo comprova que a escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um texto nunca é um ato gratuito. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na intrincada rede dos contextos que são as interações humanas, as palavras perdem a sua neutralidade e se transformam em veículos potenciais de ideologias. A análise dos enunciados permite confirmar que nas entrelinhas dos discursos há pressupostos que, focalizados no seu conjunto, refletem a ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.

Palavras-chave: Enunciado. Enunciação. Pressuposição. Entrelinhas.

ABSTRACT: The main objective of this paper is making considerations about the linguistic phenomenon of presupposition. The theoretical basis which supported the research were Ducrot’s reflections (1977: 1987), expanded by Illari and Geraldi (2002), Moura (2006) and Oliveira (2009). Some relevant concepts presented by these researchers were focused, such as “posited content”, “presupposed content” and “shared knowledge” and exemplify through newspaper headlines, mainly. Furthermore, basic tests were outlined which may be used to evaluate the truth value of presuppositions in a sentence. At last, the difference between presupposition and implicit was shown, presenting them as two different forms of implicits. The study shows that the choice of words and rhetoric recourses on a text organization is never a free act. Taking out from their dictionary state and cast over an intricate net of contexts that constitute the human interactions, words lose their neutrality and are transformed into potential vehicles of ideologies. The analyses of these newspaper news allow the conclusion that in the interplay of discourses there are presuppositions that, if focused in their conjunction, they reflect the ideology from which the utterance has been built.

Key-words: Presupposition. Shared knowledge. Implicit.


1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é desenvolver um estudo a respeito do fenômeno semântico da pressuposição, tendo como ponto de partida as reflexões estabelecidas por Ducrot (1977; 1987) e ampliadas por Ilari e Geraldi (2002), Moura (2006) e Oliveira (2009). Focalizo alguns conceitos relevantes apresentados por esses pesquisadores, como “conteúdo posto”, “conteúdo pressuposto” e “conhecimento compartilhado”. Para exemplificá-los, selecionei textos de jornais e revistas brasileiras, de onde recortei os enunciados a serem analisados. Além disso, destaquei os testes básicos para avaliar o valor de verdade de pressupostos em uma sentença, o que Oliveira (2009) chama de “condições de felicidade” no proferimento da sentença.
 A descoberta da pressuposição como realidade linguística contribuiu decisivamente para a pulverização da antiga concepção de que as línguas naturais, como códigos, permitem expressar todos os seus conteúdos de forma explícita. O conhecimento de que a pressuposição desestabiliza essa concepção ultrapassada significou, no entendimento de Rector (1980), a passagem da semântica do enunciado (produto) para a semântica da enunciação (processo). A esse respeito, cabe destacar que Ducrot procurou mostrar que a língua não pode ser definida como um código, um instrumento de comunicação, conforme defendia Saussure. Ela deve ser considerada, pelo contrário, “como um jogo, ou melhor, como o estabelecimento de um jogo que se confunde amplamente com a vida cotidiana” (DUCROT, 1977, p. 12).
Para Ducrot, o fenômeno da pressuposição é responsável pelo surgimento, no interior da língua, de “todo um dispositivo de convenções e de leis, que deve ser compreendido como um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos”.  Ele deixa bem claro que o pressuposto “é apresentado como uma evidência, como um quadro incontestável dentro do qual a conversação deve necessariamente inscrever-se, ou seja, como um elemento do universo do discurso. Introduzindo uma ideia sob forma de pressuposto, procedo como se meu interlocutor e eu não pudéssemos deixar de aceitá-lo” (DUCROT, 1977, p.12).
              Com essas palavras, o teórico instaura a ideia de que a realidade linguística da pressuposição lança os interlocutores numa relação de cumplicidade forjada na própria interlocução, e confere à língua o caráter inerente de uma arena de debates e o lugar por excelência do confronto de subjetividades. Oliveira (2009, p. 28), comentando essa perspectiva de Ducrot sobre a língua, que se realiza como um jogo ou debate, reitera que “não falamos para trocar informações sobre o mundo, mas para convencer o outro a entrar no nosso jogo discursivo, para convencê-lo da nossa verdade”. Acrescenta ainda que “não falamos sobre o mundo, falamos para construir um mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa verdade, verdade criada pelas e nas nossas interlocuções”.

2 CONTEÚDOS POSTO E PRESSUPOSTO

Moura (2006), também analisando as ideias de Ducrot, ressalta dois conceitos fundamentais no estudo da pressuposição: o conteúdo posto, que diz respeito à informação contida no sentido literal das palavras de uma sentença; e o conteúdo pressuposto, ou pressuposição, que engloba informações que podem ser inferidas da enunciação dessas sentenças. Ele explica que “o conteúdo pressuposto de uma sentença não é afirmado nessa sentença, mas inferido a partir dela” (MOURA, 2006, p. 13).
E é isso mesmo que Ducrot (1987) preceitua: que o conteúdo de um enunciado se reparte arbitrariamente em posto e pressuposto. Assim, para ele o pressuposto é inerente ao enunciado que o veicula. Defende que o pressuposto pertence ao enunciado, mas de um modo diferente do posto, uma vez que o posto preenche as linhas do discurso, enquanto o pressuposto reside nas suas entrelinhas.
Tomemos como exemplo, a manchete (1) a seguir:
(1)     “Tráfico volta a dominar seis áreas do Alemão pacificado”.
    (Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2013)

O conteúdo posto é que o tráfico volta a dominar seis áreas do Alemão, um complexo de favelas do Rio de Janeiro, que havia sido pacificado. E o conteúdo pressuposto é que o tráfico já havia dominado essas seis áreas do Alemão anteriormente. É o uso do verbo “voltar” (volta), com sua acepção iterativa, que desencadeia o pressuposto presente em (1).
Mas como é que se desencadeia a pressuposição em um enunciado? que artifícios linguísticos permitem fazê-lo? Segundo Moura (2006) e Oliveira (2009), a língua conta com dispositivos especializados na função de ativar conteúdos pressupostos, isto é, expressões que apontam para a existência de pressupostos no enunciado. Entre os referidos dispositivos linguísticos, também chamadas de gatilhos pressuposicionais, destacam-se:
a)             os verbos factivos (demandando orações substantivas como complementos, os verbos factivos sugerem que o sujeito da enunciação – o locutor –  se compromete com a verdade da proposição que a oração subordinada encerra, ou seja, o complemento do verbo principal é tomado como verdade);
b)      os verbos implicativos (resultativos);
c)      os verbos de mudança de estado;
d)     as expressões iterativas (pressupõem fato repetido,  já acontecido antes);
e)      e as expressões temporais.
São recursos que nos obrigam a perceber, nas entrelinhas do enunciado, informações que não estão expressas nas linhas do texto, mas são evocadas ou sugeridas.
Como exemplificação de todas as situações listadas acima, observemos as manchetes a seguir e o quadro que as representa:
               (2) Médicos Sem Fronteiras confirmam que centenas de sírios morreram com gás” (El País, Espanha, 25 de agosto de 2013).

               (3) “Candidato do P-SOL consegue liminar para participar de debate” (A Crítica, Manaus, 28 de setembro de 2010).

               (4) “Polícia revela onde estão os radares de velocidade” (Correio da Manhã, 5 de setembro de 2013).

               (5) “Leilão do trem-bala é adiado de novo e pode não ocorrer” (O Globo, Rio de janeiro, 13 de agosto de 2013).

               (6) “Manaus nunca mais terá apagão, diz Lula” (A Crítica, Manaus, 27 de novembro de 2010).


Enunciado
conteúdo pressuposto
gatilho pressuposicional
(2)
centenas de sírios morreram com gás
“confirmam” – verbo factivo
(3)
“consegue” – verbo implicativo
(4)
os locais onde os radares de velocidade estão eram desconhecidos
“revela” – verbo de mudança de estado
(5)
o leilão do trem-bala já havia sido adiado antes
“de novo” – expressão iterativa
(6)
Manaus já teve apagão antes
“nunca mais” – expressão temporal
Quadro 1 – pressupostos e gatilhos

Além dos gatilhos listados acima, há dois outros que são bastante expressivos: as descrições definidas e as sentenças clivadas. As descrições definidas, conforme Moura (2006, p. 17), “são expressões que fazem uma certa descrição de um ser específico”, ou seja, desempenham um papel semelhante ao dos nomes próprios, por sua natureza identificativa.  “O uso de uma descrição definida pressupõe a existência do ser a que ela se refere. Esse tipo de pressuposição é chamado também de pressuposto de existência” (MOURA, 2006, p. 17). As descrições definidas são sempre sintagmas nominais (geralmente encabeçados por um artigo definido e tendo um substantivo como núcleo), que identificam um referente no mundo. É o que acontece, por exemplo, em (7), (8) e (9):
(7)   “Os primeiros 100 dias do novo governador do Amazonas.”
(A Crítica, Manaus, 9 de abril de 2011)

(8)   “Relator pede absolvição do prefeito de Parintins.”
(A Crítica, Manaus, 29 de novembro de 2010)

 (A Crítica, Manaus, 28 de setembro de 2010).
             
              Nessas três manchetes, as expressões definidas foram utilizadas em substituição aos nomes próprios específicos, como mostra o Quadro 2:
enunciado
pressuposto de existência
descrição definida
(7)
Existe alguém que é o novo governador do Amazonas
o novo governador do Amazonas
(8)
Existe alguém que é prefeito de Parintins
o prefeito de Parintins
(9)
Existe alguém que é candidato do P-SOL
(o) candidato do P-SOL







Quadro 2 – descrições definidas
             
            
As sentenças clivadas também são especializadas em ativar pressupostos.  Trata-se de construções em que “uma sentença simples é dividida em duas orações a fim de destacar um certo constituinte da sentença, enfatizando-se a informação relativa a esse constituinte” (MOURA, 2006, p. 21). A fórmula das sentenças clivadas é: “(não) foi SN que SV”, sendo SN sintagma nominal e SV sintagma verbal. Nesses casos, o SV dispara sempre uma pressuposição, como nos exemplos que seguem (os exemplos não constituem manchetes de jornal):
(10)    Foi a Maria que limpou as vidraças.
(11)    Não foi o meu filho que jogou pedra no cachorro.
(12)    Não foi Vidas Secas que a turma leu este ano.
              Em cada um dos três enunciados acima, há uma informação anteriormente conhecida, dada como certa (SV), e uma nova informação que é fornecida (SN). É exatamente essa informação dada como certa que constitui a pressuposição, como se pode ver no quadro 3:

Enunciado
Pressuposto
informação nova
(10)
alguém limpou as vidraças
foi a Maria
(11)
alguém jogou pedra no cachorro
não foi o meu filho
(12)
a turma leu algum livro no este ano
não foi Vidas Secas
Quadro 3 – sentenças clivadas

3 TESTES DE PRESSUPOSIÇÃO

              O adjetivo é uma das classes de palavras mais produtivas na construção de pressuposições. Nesta sessão, exemplificaremos isto através da análise da manchete (13) abaixo:    
(13)    “Manacapuru registra novo deslizamento de terras”.
   (A Crítica, Manaus, 12 de novembro de 2010)

Com o apoio de Ilari e Geraldi (2002), podemos perceber que a mensagem veiculada por este enunciado circula em dois níveis.
No nível mais superficial, temos uma informação no plano literal. A manchete nos informa que houve um deslizamento de terras em Manacapuru (um dos municípios do Amazonas). Este é o conteúdo posto; no segundo nível, somos levados a considerar outra afirmação, que não participa do eixo sintagmático (não está expressa explicitamente na sintaxe do enunciado) mas ajuda a compor o eixo paradigmático (é evocada ou sugerida). Assim, podemos inferir, a partir de (13), que já aconteceu deslizamento de terras antes em Manacapuru. Este é o conteúdo pressuposto.
O que se percebe pela análise de (13) (o que é prontamente confirmado pelo texto da reportagem), é que o seu enunciador – o jornalista – pretendeu muito mais do que comunicar o fato situado no primeiro nível. Ao utilizar o adjetivo “novo”, ativou um gatilho de pressuposição que conduz o leitor a pensar sobre o fato de que não é a primeira vez que Manacapuru registra um deslizamento de terras. Dessa forma, a manchete nos permite vislumbrar:
a) um tempo anterior à enunciação (passado) em que houve deslizamento(s) de terra em Manacapuru;
b) um tempo da enunciação (presente) em que o tremor de terras volta a acontecer naquela cidade.
Para insistir mais um pouco na realidade da pressuposição no enunciado em análise (a manchete do jornal), continuamos dialogando com Ilari e Geraldi (2002, p. 61), para quem “uma frase pressupõe outra toda vez que tanto a verdade quanto a falsidade da primeira implicam a verdade da segunda”. Observemos, a esse respeito, a bipartição de (13):
(13)  “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
(13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.
Parece evidente que, se negarmos (13) afirmando (13b)
(13b) Não é verdade que Manacapuru registrou um novo deslizamento de terras, essa negação não afeta o conteúdo de (13a). Assim sendo, considerando que a negação afeta o conteúdo declarado de uma sentença, mas não afeta o conteúdo pressuposto, e que (13a) não é afetado pela negação de (13), podemos concluir que (13a) não é um conteúdo declarado, mas encerra uma pressuposição. Ou seja: a informação pressuposta (13a) permanece intacta ainda que se questione a veracidade do enunciado de (13), pois ela é dada ao leitor, pelo jornalista, como indiscutível. O jornalista a apresenta como a sua margem convencimento.
Conforme Moura (2006) e Oliveira (2009), há outras formas de testar o valor de verdade de pressuposições em um enunciado, além da negação. Na verdade, o teste pode ser realizado por qualquer uma das peças de um conjunto de estruturas conhecido como “família pressuposicional” ou “P-Família”: a negação, a interrogação, a dúvida e a estrutura hipotética (condicional) “se A, então oração principal”. Façamos todos esses testes com (13) e (13a), sendo (13a) um conteúdo pressuposto de (13):
(13) “Manacapuru registra novo deslizamento de terras.”
              (13a) Já houve deslizamento de terras em Manacapuru anteriormente.


estrutura
        
representação

Enunciados
(13a) é anulada?
Negação
Não é verdade que (13)
Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras
NÃO
Interrogação
(13)?
Manacapuru registrou novo deslizamento de terras?
NÃO
Dúvida
Duvido que (13)
Duvido que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras
NÃO
Hipótese
Se (13), então...
Se Manacapuru registrou novo deslizamento de terras, então a população deve estar preocupada.
NÃO
Quadro 4 – Teste de valor de verdade: P-Família

É possível constatar que o conteúdo pressuposto (13a) não se altera em nenhum dos testes acima. Em todos eles, mantém-se intocada a informação (não declarada explicitamente, é claro) de que não é a primeira vez que Manacapuru registra deslizamento de terras. Essa informação implícita resiste quando negamos, questionamos, duvidamos ou formulamos hipótese a respeito da proposição.
Ilari e Geraldi (2002) fazem referência a dois enfoques que a linguística tem estabelecido em relação ao fenômeno da pressuposição. O primeiro está relacionado à pressuposição como “uma condição de emprego da oração que a pressupõe” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). Isto significa que o jornalista não estaria utilizando apropriadamente (13) se não confiasse na verdade de (13a) e se não tivesse razões para acreditar que (13a) é, de alguma forma, conhecido pelo seu interlocutor (o leitor do jornal) previamente ao uso de (13).
O segundo enfoque diz respeito à pressuposição como “um mecanismo de atuação no discurso” (ILARI e GERALDI, 2002, p. 63). O jornalista, como locutor, sabendo que as afirmações pressupostas não são passíveis de negação, utiliza-as como recurso para estabelecer limites à “conversação” e para direcioná-la. Desse modo, o jornalista que escreveu (13) está, de fato, conduzindo o seu leitor a acreditar, compulsoriamente, que Manacapuru já registrou deslizamento de terras antes. O jornalista tem consciência de que uma refutação por parte do leitor em relação a isso equivale a tornar polêmica a “conversação”, podendo inclusive travar o diálogo proposto.
Dessa forma, detectar o(s) pressuposto(s) em uma leitura é de fundamental importância para o leitor, pois esse recurso argumentativo não é posto em discussão pelo autor do texto, fato que deixa o leitor refém do pensamento do autor e o leva até mesmo defender opiniões que não são necessariamente as suas.

4 CONHECIMENTO COMPARTILHADO

Ainda em relação a (13), esse conhecimento prévio de que o jornalista se serve em sua enunciação corresponde ao que Moura (2006) denomina de conhecimento compartilhado: um conjunto de proposições aceitas como verdadeiras pelos indivíduos envolvidos em um contexto de enunciação, ou seja, o locutor e o interlocutor. Trata-se do que Oliveira (2009) chama de fundo conversacional: conjunto de discursos previamente existentes num determinado contexto de interação.
Analisando por esse ângulo, confirmamos que a validade do proferimento de (13) pelo seu locutor, a felicidade desse proferimento (Oliveira, 2009) depende da existência de (13a) no conhecimento compartilhado (ou no fundo conversacional) entre esse locutor e  seus interlocutores (os leitores). Em outras palavras, é necessário que os leitores assumam (13a) como um proferimento verdadeiro para que o diálogo tenha curso.
Imaginemos que um leitor conteste (13) enunciando (13f):
(13f) Não é verdade que Manacapuru registrou novo deslizamento de terras, pois nunca houve deslizamento de terras antes na cidade.
Nesse caso estaríamos diante de uma situação problemática, com a polêmica instaurada e o diálogo travado. O conteúdo pressuposto não estaria sendo computado como um elemento constituinte do conhecimento compartilhado. Vale dizer que se trataria de um proferimento inexistente no fundo conversacional, o que acarretaria prontamente um enorme prejuízo à conversação, pois se o pressuposto é falso, o conteúdo posto do enunciado não tem valor de verdade.


5 PRESSUPOSTO X SUBENTENDIDO
           
Há pessoas que confundem pressuposto com subentendido, ou tomam os dois modos de implícito como sendo uma coisa só. Mas quando nos reportamos a Ducrot, constatamos que ele insistentemente demarca os traços que diferenciam esses dois fenômenos. Em sua “distinção entre pressuposto e subentendido” (DRUCOT, 1987), argumenta que:
a)              O pressuposto insere-se no componente linguístico, enquanto o subentendido é mais uma questão de retórica;
b)             O pressuposto mantém estreita ligação com as construções sintáticas, enquanto o subentendido dificilmente denuncia filiação sintática;
  c) O pressuposto situa-se num passado em relação ao presente da enunciação, enquanto o subentendido ocorre num momento posterior ao ato de enunciação, como um acréscimo da interpretação do ouvinte/leitor;
              d) O pressuposto é parte integrante do sentido dos enunciados, enquanto o subentendido diz respeito à maneira pela qual o sentido deve ser decifrado pelo destinatário.
              O subentendido, segundo Ducrot (1987), está sempre excluído do sentido literal do enunciado, ao qual se opõe sempre. Ele é externo ao enunciado e só aparece quando um interlocutor, em um momento posterior à enunciação, reflete sobre o próprio enunciado.
              Por exemplo, imaginemos a seguinte cena: João está sozinho em sua casa e recebe, a contragosto, a visita indesejável de um colega, e este se demora demais em ir-se embora. Depois de algum tempo, João, já muito contrariado, olha para o relógio repentinamente e profere (14):
(14)  Puxa! Já estou atrasado para o trabalho!
              Suponhamos que com isso João está sugerindo ao visitante que vá embora de sua casa. Mas não o faz de forma direta, apenas insinua. Ao proferir (14), João esconde-se atrás do seu próprio enunciado para não se comprometer. Caso o colega fique ressentido e reclame de estar sendo expulso por João, este pode muito bem contrapor que em momento algum mandou que ele fosse embora, que em momento algum teve intenção de expulsá-lo, sob a alegação de “eu não disse nada disso, você é que tá entendendo desse jeito. Eu apenas falei que estou atrasado para o trabalho”.
            Neste cenário, estamos diante de um subentendido, que leva em conta as circunstâncias da enunciação, as condições de ocorrência externas ao enunciado. Ducrot (1987, p. 42) considera que, ao construir enunciados com subentendidos, “o locutor apresenta sua fala como um enigma que o destinatário deve resolver” e deixa a responsabilidade para o destinatário. Ou seja, “ao enunciar algo que pode ser subentendido, pode ter a intenção de transmitir a informação que deseja, mas sem se comprometer. Assim, não diz explicitamente, mas dá a entender, deixa subentendida alguma informação; deixa-a camuflada para não se comprometer”. Dessa forma, o subentendido, por possibilitar dizer uma coisa aparentando não a dizer ou não a querer dizer, é inteiramente debitado para o ouvinte/leitor. Ducrot (1987, p. 42) lembra que “a linguagem oferece exemplos frequentes dessa atitude, certamente muito hipócrita”. A hipocrisia decorre da atitude dissimulada do locutor.

6 CONCLUSÃO

As considerações que fiz neste artigo mostram que a língua não pode ser concebida reducionalmente como uma estrutura autônoma ou como um simples código a serviço da comunicação, como apontava Saussure. Ao contrário, ela se realiza como um espaço de interação entre indivíduos e veicula não apenas mensagens explícitas, mas também – e em grande medida – conteúdos implícitos que denunciam intenções e subintenções do falante, fato que pode ser facilmente comprovado pela abordagem da pressuposição. Não raro, um enunciado veicula mais informações nas suas entrelinhas do que nas suas linhas. As informações implícitas que inevitavelmente emergem dos enunciados denunciam a necessidade de se olhar para a língua como um jogo interativo como preceituou Ducrot (1977; 1987).
Isso significa que no discurso as palavras jamais são utilizadas em estado de dicionário, imersas em sua situação de neutralidade. Como o signo linguístico é essencialmente ideológico, não há neutralidade na linguagem. Digo com Citellli (2000, p. 29) que podemos “ler a consciência dos homens através do conjunto de signos que a expressa”. Retiradas de seu estado de dicionário e lançadas na intrincada rede de contextos que são as interações humanas, as palavras perdem a sua neutralidade e passam a ser veículos potenciais de ideologias. A escolha de palavras e recursos retóricos na organização de um texto nunca é um ato gratuito, não se trata da seleção de meros recursos formais, estilísticos ou estéticos. Ao contrário, “o modo de dispor o signo, a escolha de um ou outro recurso linguístico revelaria múltiplos comprometimentos de cunho ideológico” (CITELLI, 2000, p. 26).
O arrazoado acima é plenamente confirmado pelo fenômeno linguístico da pressuposição. Insisto em que além das várias informações explícitas, que são perceptíveis na superfície textual, um enunciado pode conter informações implícitas que não devem ser ignoradas. Há expressões explícitas que desencadeiam os pressupostos que, focalizados no seu conjunto, refletem a ideologia a partir da qual o enunciado foi construído.

REFERÊNCIAS
CITELLI, A. Linguagem e persuasão. 14. ed. São Paulo: Ática, 2000. (Princípios)

DUCROT, O. Dizer e não dizer. Princípios de semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.

–––––––. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987.

ILARI, R. & GERALDI, J. W. Semântica. 10. ed. São Paulo: Ática, 2002 (Princípios).

MOURA, H. M. de M. Significação e contexto:  uma introdução a questões de semântica e pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2006.

OLIVEIRA, R. P. de. Semântica. In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Cristina (orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol. 2, 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

RECTOR, M. Manual de semântica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. (Linguistica e Filologia).