O ENGENHOSO ARQUIVO DE DOM QUIXOTE



Mauro Enrico Caponi
(Mestrando/UFSC)

Em seu livro intitulado “A arte de escrever”, Arthur Schopenhauer afirma que os livros, se lidos em excesso podem causar no homem um atrofiamento de suas faculdades mentais e uma paralisia para refletir por si mesmo sobre o mundo em que vive. Assim Schopenhauer, a partir de comparações entre os eruditos e os que pensam o mundo por si próprios, parece desvalorizar aqueles que dedicam sua vida aos livros e ao estudo de pensamentos “alheios”. No texto referido, Schopenhauer afirma:

“Em geral, um erudito tão exclusivo de uma área é análogo ao operário que, ao longo de sua vida, não faz nada além de mover determinada alavanca, ou gancho, ou manivela, em determinado instrumento ou máquina, de modo a conquistar um inacreditável virtuosismo nessa atividade. Também é possível comparar o especialista com um homem que mora em sua casa própria, mas nunca sai dela. Na casa, ele conhece tudo com exatidão, cada degrau, cada canto e cada viga, como, por exemplo, o Quasímodo de Victor Hugo conhece a catedral de Notre-Dame, mas fora desse lugar tudo lhe é estranho e desconhecido*.” (Schopenhauer, 2009:31)

Estes escritos do filosofo alemão do século XIX parecem, a meu ver, contradizer o que uma diversidade de análises criticas e filosóficas encontram de original na obra do escritor Miguel de Cervantes em seu mais famoso livro “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha”.  Inicialmente podemos apontar essa discrepância por tratar-se, o Quixote, de um livro em que seu personagem principal não somente cria sua própria realidade, a partir das leituras de livros de cavalaria, senão também pela auto-reflexão que causa nos leitores da obra Cervantina o personagem, Dom Quixote, que parece ser tão próximo de cada um de nós, seres humanos, que acaba transformando o nosso modo de entender o mundo. Como uma aparente metáfora sobre nossa concepção do que é real, e do que significa nossa própria existência. .
Neste trabalho pretendo me basear na critica literária que estudou o Dom Quixote, e em alguns textos que discutiram sobre a concepção da “engenhosidade humana”. Assim, podemos apontar mais um ponto de discordância com a concepção de gênio que Schopenhauer apresenta em seu livro já citado:

Em contrapartida, quando alguém pensa por si mesmo, segue seu mais próprio impulso, tal como está determinado no momento, seja pelo ambiente que o cerca, seja por alguma lembrança próxima. Os eruditos são aqueles que leram coisas nos livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie humana são aqueles que as leram diretamente no livro do mundo. (Schopenhauer, 2009: 41)

Esta afirmação supõe que existe certa distancia entre alguns seres humanos que por esta lógica possuem o ser próprio do “gênio”, como se fossem abençoados por alguma força maior, e os outros que precisam dos livros para poder refletir acerca do mundo.  Uma ultima citação de “A arte de escrever” resume o que neste trabalho pretendo discutir a partir de uma reflexão do que pode ser considerado como o caráter genial de Quixote.

Mais do que tudo, deve-se evitar o perigo de perder completamente a visão do mundo real por causa da leitura, uma vez que o estímulo e a disposição para o pensamento próprio se encontram com muito mais frequência nessa visão do que na leitura. Pois o que é percebido, o que é real, em sua originalidade e força, constitui o objeto natural do espírito pensante e é capaz, com mais facilidade, de comovê-lo profundamente. (Schopenhauer, 2009: 142)

Esta ultima sentença de Schopenhauer, deixa traspassar sua compreensão do mundo como algo que é real por si só. Mas o que se buscará neste trabalho é exatamente o oposto disso, quer dizer que, o mundo compreendido como real, depende de uma formulação ou de uma concepção da realidade que pode ser completamente distinta entre diferentes indivíduos. E para que esta reformulação do mundo possa ser efetivada ela dependerá do gênio que esta presente em todos nós, seres humanos. Mas o que seria este gênio? Como afirmar sua existência?
            A partir de diferentes concepções filosóficas que irão desde Henri Bergson até Derrida e Agamben, este trabalho buscará demonstrar como o inconsciente humano depende de um “gênio” que intrinsecamente esta sempre a procura de uma ruptura com a realidade, fazendo com que o arquivo pessoal e mental de cada individuo busque formas diferentes de aproximar-se e de entender o mundo. Assim podemos usar como exemplo claro a engenhosidade do Fidalgo Alonso Quijano, que a partir de suas muitas leituras de livros de cavalaria acaba criando em sua mente um mundo diferente do que a sociedade espanhola estava acostumada a viver. Por isso as burlas e risadas das pessoas que surgem no caminho de Dom Quixote, que não compreendem como alguém pode pensar tais disparates, tendo como único rotulo para ele, o da loucura.
            Podemos situar em outro horizonte o par loucura-genialidade recorrendo a Sigmund Freud e a sua descoberta do inconsciente a partir de seu peculiar modo de armazenagem e de reprodução das nossas memórias e lembranças. Mais tarde Jaques Derrida, filosofo francês, virá a caracterizar o inconsciente como um lugar de consignação, não como origem, mas como formulação de signos que tendem a uma representação fragmentada de uma arquivo pessoal, dilacerado, que tende sempre à pulsão de morte,e ao apagamento das memórias. Sobre este assunto Derrida em “O mal de arquivo” afirmará:

Estas hipóteses tem um traço em comum. Concernem todas à impressão que, a meu ver, a assinatura freudiana deixou sobre seu próprio arquivo, sobre o conceito de arquivo e de arquivamento, o que é o mesmo que dizer inversamente e por contragolpe, sobre a historiografia. (Derrida, 2001:16)

            A partir das reflexões de Derrida,  surge uma reformulação do inconsciente analisado por Freud. Para Derrida o arquivamento tende sempre a uma pulsão de apagamento ou de esquecimento, e isto caracterizará o que ele chama de  “mal de arquivo”: ao mesmo tempo em que as memórias são produzidas, uma força inconsciente tende a apaga-las, para não deixar vestígios de sua criação. É como se dentro de todos nós tivéssemos duas forças distintas que atuam em direções opostas, uma que cria e outra que instantaneamente apaga. Desse modo, o livro de Derrida se relaciona com o conceito de pulsão de morte de Freud, que representa a vontade do ser humano de voltar a uma origem inanimada e Pré-orgânica. Como afirma Derrida:

Como a pulsão de morte é também, segundo as palavras mais marcantes do próprio Freud, uma pulsão de agressão e de destruição (Destruktion), ela leva não somente ao esquecimento, à amnésia, à aniquilação da memória como mneme ou amnesis, mas comanda também o apagamento radical, na verdade a erradicação daquilo que não se reduz jamais à mneme ou à amnesis,; saber, o arquivo, a consignação, o dispositivo documental ou monumental como hupomnema, suplemento ou representante mnemotencino auxiliar o memento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrario: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória. (Derrida, 2001:22)

Como podemos observar na ultima sentença citada, para Derrida, o arquivo, não se compõe das memórias, más exatamente da tendência ao apagamento destas memórias. Neste ponto se pode fazer uma relação interessante com Dom Quixote que decide mudar totalmente sua vida e esquecer quem ele aparentava ser (Alonso Quijano), para a partir de um gênio inconsciente se transformar em outra pessoa e viver uma vida totalmente distinta da sua, onde a influencia de suas leituras de livros de cavalaria, ao mesmo tempo em que são memórias, não são mais memórias, senão exteriorização e destruição desse imenso arquivo composto pelos livros da cavalaria. Em relação à pulsão de morte, também podemos relaciona-la com as aventura de Quixote, quem em um impulso engenhoso parte pelas terras da Espanha para viver seus últimos momentos de vida, antes de voltar a ser Alonso Quijano e de morrer rodeado de Sancho, sua filha e os personagens que inicialmente riram dele e depois choraram a sua morte.
Para lembrar este caminho até a finitude e os últimos momentos de Quixote, junto com aqueles que não acreditaram nele inicialmente, podemos lembrar o texto de Miguel de Unamuno, intitulado “El sepulcro de Don Quijote”:

Tu locura quijotesca te ha llevado más de una vez a hablarme del quijotismo como de una nueva religión. Y a eso he de decirte que esa nueva religión que propones y de que me hablas, si llegara a cuajar, tendría dos singulares preeminencias. La una, que su fundador, su profeta, don Quijote —no Cervantes, por supuesto—, no estamos seguros de que fuese hombre real, de carne y hueso, sino que más bien sospechamos que fue una pura sangre. Y su otra preeminencia sería la de que este profeta era un profeta ridículo, que fue la befa y el escarnio de las gentes. Es el valor que más falta nos hace: el de afrontar el ridículo. El ridículo es el arma que manejan todos los miserables bachilleres, barberos, curas, canónigos y duques que guardan escondido el sepulcro del Caballero de la Locura. Caballero que hizo reír a todo el mundo, pero que nunca soltó un chiste. Tenía el alma demasiado grande para parir chistes. Hizo reír con su seriedad..(Unamuno, 1988:139)

A partir deste fragmento do texto de Miguel de Unamuno se pode fazer uma rede de relações com os estudos do filosofo Henri Bergson em seu livro intitulado “O Riso”, onde reflexiona acerca da comédia. Em seu livro Bergson busca,  inicialmente, entender o funcionamento da comédia que se expressa a través desses personagens distraídos que parecem perder o controle de seus corpos, tal como se caracterizam geralmente os acontecimentos cômicos mais comuns: desde o teatro burlesco até mesmo no Quixote, onde abundam os tropeços, golpes e quedas. Sobre este primeiro tipo de comédia Bergson dirá que representam o instintivo, o mecânico, o animal, que há em todos os seres humanos, superando a inteligência, esta ultima caracterizada como a faculdade de estabelecer relações, conceitos abstratos e generalizações que são extremamente uteis para evitar situações constrangedoras. Cito Bersgon:

Supongamos que en vez de participar de la ligereza del principio que lo anima, no sea ya el cuerpo a nuestros ojos sino una pesada y molesta envoltura, lastre importuno que retiene en la tierra a un alma impaciente por dejar este suelo. El cuerpo entonces será, para esta alma, lo que el traje era hace un instante para el cuerpo mismo, una materia inerte colocada sobre una energía viva. Y en cuanto tengamos un claro sentido de esta superposición no tardará en producirse la impresión de lo cómico. (Bergson, 1985:61)

Más, em um segundo momento, Bergson busca entender o funcionamento de um tipo distinto de comédia, a comédia que se efetua a partir dos diálogos.  E a partir deste segundo momento, Bergson começa a afirmar que esta característica cômica na forma de dialogo, só pode ser realizada por personagens, ou pessoas, que tem uma engenhosidade original e que sabem buscar caminhos novos para entender o mundo. Pessoas que tem a capacidade de fazer ao espectador refletir acerca de sua concepção de realidade. Assim surge a distinção entre o cômico e o engenhoso:

En la acepción más amplia puede decirse que se llama ingenio a cierta dramática manera de pensar. En vez de manejar las ideas como símbolos indiferentes, el hombre de ingenio las ve, las escucha, y, sobre todo, las hace dialogar entre sí como si fuesen personajes. Las hace salir a la escena y sale él también en cierto modo. Todo pueblo que guste del ingenio es naturalmente apasionado del teatro. (Bergson, 1985:102)

Como podemos perceber nesta citação, o que corresponde como engenhoso para Bergson é a qualidade do homem em ver de formas distintas a realidade, de ter a capacidade de distorcer os sentidos e dar uma nova dimensão às palavras e aos sons. Então o Quixote parece poder caracterizar-se também por uma concepção de engenhosidade que difere da meramente cômica, mas que, no caso do Quixote,  podem estar juntas. Ambas se caracterizam por um pensamento instintivo e mecânico que desmancha a mera inteligência para se transformar em uma mutação de sentidos e de concepções do real. Desta maneira o engenhoso Fidalgo Alonso Quijano, da margem para que seu instinto, seu gênio ou seu inconsciente, em termos psicanalíticos, possa criar uma nova relação entre os significados.
Podemos relacionar esta problemática do engenho e da engenhosidade com o que já apontamos em relação à reflexões de Jaques Derrida acerca do lugar de consignação onde o arquivo pode ao mesmo tempo em que guarda, fragmentar e esquecer, tendendo à primazia do impulso de agressão. E quiçá seja exatamente a isso ao que se refere Bergson quando afirma que, por traz da sociedade da razão, existe um impulso natural situado em uma parte muito obscura de nos mesmos, que pode chamar-se de elemento trágico da nossa personalidade, criando novos modos de ser, pequenas sociedades com pensamentos diferentes aos comuns. Cito Bergson:

De este modo se van formando pequeñas sociedades en el seno de la grande. No hay duda que proceden de la misma organización de la sociedad, y, sin embargo, un aislamiento excesivo llegaría a ser una amenaza para la sociabilidad. Pero precisamente la función de la risa consiste en reprimir toda tendencia aisladora. Su papel es corregir la rigidez, dándole una nueva flexibilidad, hacer que cada uno vuelva a adaptarse a los otros, limar los ángulos. (Bergson, 1985:155)

 Surge aqui então uma forma de entender o riso como algo que pode suscitar, na humanidade, uma reflexão sobre a sua própria forma de interpretar e representar o mundo diferentemente do senso comum, onde as lembranças ou os arquivos tendem a serem caracterizados como formas imutáveis de significância. Dom Quixote contrariamente ao senso comum deixa que as memórias e seu arquivo pessoal cheguem a um movimento de nível paralelo ao dos sonhos. Obstinado por essas ideias que fragmentam sua relação com a realidade, Dom Quixote acaba por viver a sua ilusão ajustando-se a um novo sentido de vida. Então a loucura de Quixote parece não ser distinta da forma como funcionam os sonhos. Os mundos paralelos que cria o Fidalgo com suas memórias, não são mais do que um “auto-apaixonamento”, uma forma original de compreender-se a si mesmo e de transformar o mundo, de adequá-lo àquilo que parece ser o mais justo para consigo mesmo.
 No entanto como afirma Bergson esta maneira de sobrepor seus pensamentos ao mundo dito real aparentemente parece tão prejudicial quanto aquele bêbado que vai perdendo seu contato com a lógica e com as convenções sociais. Porem, visto desde outra perspectiva, pode dizer-se também que, o cômico e engenhoso podem prestar um grande serviço aos homens, na medida em que permitem desestruturar o que a sociedade toma como normal e rir dessa tendência racional, lineal e narcisista do que é tido como normal.
       Toda esta reflexão acerca do conceito de comedia e engenhosidade apontada anteriormente permite que entendamos a Dom Quixote não meramente como um louco, mas sim como um personagem que soube fazer uso de seu arquivo pessoal, que dilacerou sua identidade para reformular uma nova concepção de realidade sendo fiel as suas convicções.
Mais uma vez podemos jogar água abaixo o que Schopenhauer distinguiu como homem de gênio e o erudito, como o primeiro sendo o que conhece o mundo por si mesmo e o segundo como um leitor das ideias dos outros. Dom Quixote é capaz de quebrar esta distinção, pois sendo ele um ávido leitor de historias de cavalaria, usou deste conhecimento para criar uma nova realidade e viver um mundo que parece ter saído dos livros, um mundo em conforme com as suas convicções e crenças, a partir do qual foi capaz de fazer de sua vida uma obra de arte, uma obra de cavalaria. Podemos dizer então que Dom Quixote soube como usar seu arquivo, viver dele, talvez dissesse Derrida, impulsionado pela tendência a fragmentação de sua memória, ao invés de apenas esperar seu apagamento. Don Quixote  reconstruiu suas memórias a partir dos arquivos em um jogo que lhe permitiu esquecer o que não se ajustava a suas convicções.
            Entender o gênio humano como algo que ao mesmo tempo é inseparável do homem, é também um ser desconhecido que mora dentro de todos nós, parece advir da origem latina da palavra Genius, como afirma em seu livro intitulado “Profanações” o filosofo italiano Giorgio Agamben:

“Os latinos chamavam Genius ao deus que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. (...) Que genius tivesse a ver com gerar é alias, evidente, pelo fato de o objeto por excelência “genial” ter sido, para os latinos, a cama: genialis lectus, porque nela se realiza o ato da geração. (...) E dado que esse deus, é de certa forma, o mais íntimo e próprio, é necessário aplacá-lo e tê-lo bem favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da vida.”(Agamben, 2005:7)

       Assim, tanto no titulo de “Engenhoso Fidalgo”, como no caráter engenhoso da comedia apontado por Bergson,  podemos afirmar que a existência de um ser presente de modo inconsciente em todos nós, é o que permite alcançar os remotos “cantos” de nosso ser, de nosso arquivo. Os “cantos” onde Dom Quixote tinha arquivado todo o material necessário para criar o mundo cavalheiresco que leu em seus livros. É também onde, como já foi apontado, o engenhoso comediante se relaciona com o mundo de forma onírica, e por vezes aparentemente sem sentido, ficando mais em contato com a natureza do que com as convenções estabelecidas pela sociedade racional. Assim esclarece Agamben este ponto:

Compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas eu e consciência individual, mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um elemento impessoal e pré individual. (Agamben, 2005:9)

 Assim então, o fato de vivermos em constante aproximação e distanciamento do gênio, é o que dá a possibilidade de ter o contato com a parte não racional que todos temos. Entender que o eu e o gênio vivem juntos é perceber como a vida dita real, pode também ser um sonho ou uma constante quebra entre o que é tido como real pelo eu e o que o gênio, ou louco, quer dilacerar, transformar e adaptar a sua forma não racional, livre de interpretação. Por isso outras duas locuções advindas do latim, citadas por Agamben podem nos fazer refletir acerca do papel do gênio em nossa mente, “Genium suum defraudare”, defraudar o próprio gênio, significa em latim entristecer a vida, e “Genialis”, genial, é a vida que foge do olhar da morte e responde sem duvidar à incitação do gênio que a gerou.
O dito até aqui não se refere somente a personagens ficcionais como Dom Quixote. Cabe apontar aqui a experiência de vida no mundo não ficcional de um grande ator teatral francês do inicio do século XX chamado Antonin Artaud. Ele, que para muitos representou a vanguarda artística, com uma forma de interpretar próxima da poesia surrealista, do automatismo e da visceral transformação do corpo como representação do inconsciente, parece ser um dos ditos loucos pela sociedade, mas que, de acordo ao dito ate aqui, bem poderia ser chamado de gênio, ou “genialis”, ou, melhor ainda, engenhoso.
Inventor do teatro da crueldade, Artaud teve uma vida de tormentos neuronais, parece após este estudo sobre a genialidade que tinha uma característica muito mais importante do que a mera loucura. Alem desta imagem de um homem que luta com seu gênio e que tratava de traspassar a inconsciência na forma de gritos, movimentos corporais e esporádicas manifestações de seu mundo interior, Artaud também representa um dos casos de anamnese mais conhecidos da historia da humanidade. Ao entender, anamnese como conjunto de fatos, memórias, ou arquivos que compõe um sujeito ao longo de sua vida, no caso de Artaud essa movimentação interior de seu inconsciente lutando contra seu eu foi traspassada em seus escritos, encenações teatrais e filmes nos quais atuou, onde sua loucura foi sendo gravada e memorizada. Artaud transformou sua própria vida em sua obra de arte, na manifestação de seu gênio à flor da pele. Martin Esslin em seu livro “Artaud” afirma:

Entre a face do jovem monge de 1928, cheio de sentimento, e o rosto do mártir, desdentado e devastado de 1948, há toda uma vida de sofrimento que Artaud via como sua realização artística definitiva: “La tragedie sur la scene ne me suffit plus, jê vais transporter dans ma vie”, disse Jean Louis Barrault em 1935. Ele planejou sua vida assumiu e suportou seu sofrimento como uma criação proposital, uma obra de arte. (Esslin,1978:13)

Mas assim como Dom Quixote que constantemente é tido como um louco, Artaud passou por muitos anos de internação em hospitais psiquiátricos que não o deixavam viver com seu gênio e que a toda custa tentavam normaliza-lo.
       O próprio Artaud se caracterizou em sua vida como pertencente a um grupo seleto de artistas conhecido como “poetes maudits”, do qual faziam parte Van Gogh, Nietzsche, Baudelaire entre outros. Más o gênio que atormentava estes artistas pode-se caracterizar por aquilo que Derrida define em seu ensaio “Ser justo com Freud”, como o grande esquecimento de Michel Foucault: aquilo que René Descartes chamou no século XVII de gênio maligno. Derrida afirma, em seu escrito pertencentes ao compilado de ensaios de diversos autores intitulado “Pensar a loucura ensaios sobre Michel Foucault”, que este gênio maligno que tende a transformar em ilusões tudo o que se pode observar no mundo, e que nunca pode evidenciar de fato se algo é falso ou verdadeiro, bem poderia ser o inicio do descobrimento de algo que mais tarde se chamaria de inconsciente.
 Se pensarmos na vida de Artaud isso realmente parece fazer sentido, na medida em que ele não queria tratar a linguagem como representação da realidade, mas sim queria inventar uma linguagem totalmente diferente que pudesse expressar diretamente o inconsciente.
Desse modo tanto em Artaud como em Don Quixote a genialidade e o gênio, isso que se apresenta ao mesmo tempo como “engenhoso” e “maligno’, pode ser lido como a manifestação dessa dimensão do inconsciente que habita em cada um de nós  e que leva a que duvidemos do que se considera realidade, para que novas concepções sejam produzidas enxergando de outras formas o que é tido como fidedigno e racional.

 
Referencias Bibliograficas
AGAMBEN. Giorgio – “Genius” in Profanaciones. Buenos Aires, Ed.Adriana Hidalgo,2005.
BERGSON, Henri La Risa. Madrid, Ed. SARPE, 1985.
CERVANTES, Miguel-  Don Quijote de la Mancha. Madrid, Ed.Real academia española . Edición del IV Centenário, 2004
DERRIDA, Jaques – Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, Ed.Relume Dumará, 2001.
DERRIDA, Jaques – “Ser justo com Freud” in Roudinesco, E. (org) Pensar la locura: Ensayos sobre Michel Foucault. Paris, Ed. Galilée, 1992.
ESSLIN, Martin – Artaud. São Paulo, Ed. Cultrix, 1978.
SCHOPPENHAUER, Arthur – “A arte de escrever”. Porto Alegre, Ed L&PM,2009
UNAMUNO, Miguel – “El sepulcro Del quijote” in Vida de Don quijote y Sancho, Madrid: Cátedra,1988(1905), pp 139-153 Acessado em 10/08/13 site: http://cvc.cervantes.es/literatura/quijote_antologia/unamuno.htm