Geraldo Generoso Ferreira
Mestre em Linguística Aplicada
pela UNITAU
Silvana Marchesani
Universidade Federal de Viçosa
Doutoranda em Letras – PUC Minas
Tatiane Chaves Ribeiro
Doutoranda em Letras – PUC Minas
Resumo
O presente trabalho
objetiva analisar como o uso de modalizadores e vozes textuais podem construir
sentidos e influenciar modos de pensar e de agir. Como corpus, temos um texto inicial de livro didático de Língua
Portuguesa dirigido aos docentes que utilizarão tal material, Assim, partimos,
como arcabouço teórico, do Interacionismo Sociodiscursivo, em interface com os
estudos da Sociolinguísitca Interacional e da Análise do discurso da
perspectiva francesa. Os resultados apontam para uma tentativa de orientação do
agir docente organizado discursivamente por meio de modalizadores e vozes
textuais. Nota-se, também, que esses modalizadores e vozes edificam um ethos
discursivo das autoras frente a seus interlocutores.
Palavras-chave: Mecanismos
enunciativos, Interacionismo sociodiscursivo, Ethos.
Abstract
This study aims to analyze how the use of modal
and textual voices can construct meaning and influence on readers’ thinking and
action. As corpus we have a Portuguese book guideline for teachers who use such
material as a way to ground and justify the choices present in the educational
and methodological work. Thus, we set as theoretical frame the Sociodiscursive
Interactionism interfaced with Interactional sociolinguistics studies and
Discourse analysis of French perspective. The results point to an attempt to
guide the teachers’ actions by the discursive perspective which is organized
through modal and textual voices. These
textual resources voices also designed the authors’ ethos toward their
interlocutors.
Keywords: Enunciative
Mechanisms, Sociodiscoursive Interacionism, Ethos
Introdução
A linguagem é constitutiva do sujeito e o possibilita viver em sociedade. Por meio
de interações, os sujeitos constroem seus mundos, difundem ideias, trocam modos
de pensar e de agir. Ao almejar difundir ideias e fazer com que elas sejam
aceitas e seguidas, muitos sujeitos utilizam-se de estratégias argumentativas
para construírem seus discursos.
Quando se tem por base a interação, podem-se levantar
estratégias que, ao serem utilizadas, constroem sentidos e geram efeitos de
cunho perlocutório. Daí, a necessidade de uma leitura linguístico-discursiva
que faça emergir tais estratégias discursivas via modo de organização textual.
Neste sentido, a
abordagem e análise de textos a partir da perspectiva de folhado textual
cunhado pelo Interacionismo Sociodiscursivo, ISD, permiti-nos explorar tais
estratégias, observando como são produzidos os discursos frente a seus
objetivos. Dito de outra forma, como os modos de organização textual podem
levar os sujeitos pressupostos no ato de interação a agirem de determinada
maneira. Assim, acreditamos que o estudo de
modalizadores e vozes textuais, dentro da perspectiva do ISD, pode ser um instrumento
para a análise de discursos diversos.
Dessa forma, o presente trabalho objetiva analisar como o uso
de modalizadores e vozes textuais podem construir sentidos e influenciar modos
de pensar e de agir. Como corpus,
temos um texto inicial de livro didático de Língua Portuguesa dirigido aos
docentes que utilizarão tal material, como forma de embasar e justificar as
escolhas didáticas e metodológicas presentes na obra. Assim, partimos, como
arcabouço teórico, do Interacionismo Sociodiscursivo, em interface com os
estudos da Sociolinguísitca Interacional e da Análise do discurso da
perspectiva francesa.
Interação e produção
de sentido
Falar em interacionismo é remeter, em certa medida, às
práticas sociais situadas que se estabelecem na promoção do desenvolvimento
humano. Entretanto, tal postulado nem sempre foi concebido com esse enfoque.
Apesar de estudiosos como Vygostky (1999), observarem o desenvolvimento humano
a partir dessa perspectiva, na linguística, é só a partir da segunda metade do
século 20 que pesquisadores vão se debruçar sobre tal temática, buscando
avançar no debate entre internalismo x externalismo.
Contudo, a falta de rigor metodológico e as possibilidades
múltiplas de enfoque teórico sobre a compreensão da ação humana levaram, na linguística,
a um esvaziamento semântico do termo interacionismo, segundo Morato (2001). A
autora ainda observa que epistemologicamente os estudos de base etnográficos e
aqueles voltados ao ensino de línguas proporcionaram uma fecunda terminologia
para a designação de interacionismo: interacionsimo discursivo,
sociointeracionismo, interacionismo sociohistórico, interacionismo
construtivista, interacionismo simbólico etc.
Não obstante a essa gama de termos suscitados pelos estudos interacionais,
no campo da linguística, podemos, de certo modo, observar uma confluência ou um
ponto de partida para esses enfoques que presumem o estabelecimento das
práticas sociais a partir da linguagem.
Neste sentido, a ação humana e, consequentemente, o
desenvolvimento humano nos mais diferentes aspectos: psicológicos, sociais,
culturais, cognitivos, são produtos dessa inter(ação) que se estabelecem nas
mais diferentes sociedades via linguagem.
Dessa forma, Morato ainda observa o importante duplo caráter
assumido pela linguagem como estruturada e estruturante do conhecimento humano:
Entendida como
atividade constitutiva do conhecimento humano, a linguagem não é apenas
estruturada pelas circunstâncias e referencias do mundo social; é ao mesmo
tempo estrututrante do nosso conhecimento e extensão simbólica de nossa ação
sobre o mundo. Ou seja, podemos dizer da linguagem que ela é uma ação humana
(ela predica, interpreta, representa, influencia, modifica, configura,
contingencia, transforma etc.) na mesma proporção em que podemos dizer da ação
humana que ela atua também sobre a linguagem. (MORATO, 2001, p.317)
O trecho acima nos leva a refletir sobre a função da
linguagem nas ações humanas em que as mesmas só ganham significados a partir da
interpretação e reconhecimento operados por práticas linguageiras construídas
de forma coletiva.
Nessa perspectiva, a interação ganha uma dimensão também
discursiva, uma vez que a produção de textos (oral ou escritos) emerge de um
ato dialógico, na perspectiva baktiniana, e, consequentemente, interativo. Daí
a importância de observarmos, dentre outros aspectos, os espaços (materiais ou
simbólicos) de onde emergem tais textos e o lugar ocupado pelos sujeitos nesse
espaço interativo.
Assim, ao analisarmos um texto, devemos, sobretudo, observar
as condições sociointerativas presentes na construção do mesmo as quais poderão
servir como índice para uma interpretação que reconheça o caráter discursivo
presente nesta prática social.
A perspectiva
sociointeracionista e a infraestrutura textual
Neste trabalho, abordaremos uma
perspectiva sociointeracionista e tomaremos a língua como trabalho social, como
interação verbal. Pensaremos o texto como uma materialidade linguística que
constitui um todo organizado de sentidos. Para Bronckart (1999), o agir linguageiro
é realizado através de textos. O texto representa uma unidade comunicativa e
apresenta características que dependem da situação de interação no qual é
produzido.
De maneira geral, Bronckart define
texto como uma unidade de produção de linguagem constituída pela determinação
do modo de organização de conteúdo referencial; pela composição de frases
articuladas umas às outras e pela relação de interdependência.
Tal organização constitui-se pela
infraestrutura geral do texto - plano mais geral do texto - tipos de discurso e
modalidades de articulação; pelos mecanismos de textualização - a conexão
(organizadores textuais) e a coesão (nominal e verbal) e pelos mecanismos
enunciativos - vozes e modalizações. Essas três camadas superpostas serão
definidas pelo referido autor como folhado textual. Bronckart, também, observa
que os mecanismos de textualização contribuem para a produção da coerência
textual e, ainda, que os mecanismos enunciativos contribuem para o
estabelecimento da coerência pragmática, explicitando, assim, diferentes
avaliações acerca do conteúdo temático e sobre a procedência das instâncias
enunciativas e ao seu (ao) posicionamento frente ao que é enunciado.
Dentre os mecanismos enunciativos
(vozes e modalizações) abordados por Bronckart, as modalizações, meio pelo qual
os falantes manifestam o modo como eles consideram os seus enunciados, serão o
foco das análises, neste trabalho.
As modalizações têm como finalidade
“revelar” os diversos comentários (avaliações/julgamentos) a partir de qualquer
voz enunciativa a respeito do conteúdo temático. Bronckart (1999), fundamentado
nas classificações da Antiguidade Grega e na teoria dos três mundos de Habermas
(1987) adota os seguintes tipos de funções modalizadoras: as lógicas, as
deônticas, as apreciativas e as pragmáticas. As modalizações lógicas pertencem
ao mundo objetivo e consistem em julgamentos sobre o valor de verdade de
proposições enunciadas tratadas como certas, possíveis ou improváveis. Já as
modalizações deônticas são constitutivas do mundo social, amparam-se em
valores, opiniões e regras. As modalizações apreciativas são constituitvas do
mundo subjetivo e procedentes da voz-fonte do julgamento. E as modalizações
pragmáticas são constitutivas do conteúdo temático, ou seja, personagem, grupo
ou instituição. Para autor:
as modalizações
têm como finalidade geral traduzir, a partir de qualquer voz enunciativa, os
diversos comentários ou avaliações formulados
a respeito de alguns elementos do conteúdo temático. Enquanto os mecanismos de
textualização, que marcam a progressão e a coerência temáticas, são
fundamentalmente articulados à linearidade do texto, as modalizações por sua
vez, são relativamente independentes dessa linearidade e dessa progressão
(BRONCKART, 1999, p.330).
Assim, podemos analisar
e descrever como as ações linguageiras se tornam constitutivas do social e como
os agentes interagem uns com os outros. O agente-produtor decide sobre o
conteúdo temático e sobre o modelo de gênero adequado à determinada situação,
seleciona os tipos de discurso, assim como organiza os mecanismos de
textualização.
Uma vez que, segundo
Bronckart, os mecanismos enunciativos contribuem para o estabelecimento da
coerência pragmática do texto, isto pressupõe a análise dos seguintes aspectos:
a distribuição das vozes e a marcação das modalizações que, apesar de
distintos, revertem para a responsabilização do que é enunciado.
No tópico seguinte, observamos, também, como os mecanismos enunciativos
podem corroborar para a construção do ethos
do enunciador do texto.
Ethos e mecanismos enunciativos
Em um processo interativo, pode haver trocas verbais nas
quais um dos interlocutores objetiva influenciar os demais. Nesse segmento,
faz-se importante a edificação, por parte do sujeito enunciador, de um ethos capaz de convencer o outro.
Para Amossy, “os antigos designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si
destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório” (AMOSSY, 2008,
p.10). Amossy
baseia-se em Aristóteles, ao trabalhar a questão do ethos, e compartilha com esse o pensamento de que o ethos é construído no e pelo discurso.
Segundo a autora, o enunciador, em seu discurso, edifica de forma consciente ou
não a imagem de si através de suas escolhas lexicais, valores que retoma, etc.
Nesse mesmo caminho, Auchlin (2001) afirma que “apoiando-nos na posição de
Aristóteles, o ethos possui duas características centrais, inalienáveis: i. ele
é dialogal e reflexivo; e ii. ele é casualmente dependente do discurso, ou
emergente em relação ao discurso” (AUCHLIN, 2001, p.211).
De
acordo com Ducrot (1984), o autor de um enunciado, ao se expressar, põe em cena
determinado número de personagens e a partir do confronto destes sujeitos é que
será construído o sentido do enunciado. O autor faz, ainda, a distinção entre
dois tipos de locutor: o locutor L e o locutor λ. O primeiro é o ser do discurso, isto é, criado no e
pelo discurso, já o segundo representa o ser do mundo, o ser de quem se fala.
Nessa perspectiva, Ducrot defende que o ethos
está ligado ao locutor L.
Observando a distinção
pontuada por Ducrot, Amossy salienta:
Analisar o locutor L no discurso consiste não em ver o
que ele diz de si mesmo, mas em conhecer a aparência que lhe conferem as
modalidades de sua fala. É nesse ponto preciso que Ducrot recorre à noção de
ethos: o ethos está ligado a L, o locutor como tal: é como origem da enunciação
que ele se vê investido de certos caracteres que, em contrapartida, tornam essa
enunciação aceitável ou recusável (AMOSSY, 2008, p.15).
A noção de ethos proposta por Ducrot é retomada por
Maingueneau (2008). Para esse, “além da persuasão por argumentos, a noção de
ethos permite, de fato, refletir sobre o processo mais geral da adesão de
sujeitos a uma certa posição discursiva” (MAINGUENEAU, 2008, p.69). Em outras
palavras, por meio de seu discurso, o sujeito enunciador revela qual sua
posição em relação a determinado assunto/contexto e visa conquistar a adesão de
seu(s) interlocutor(es) interferindo, assim, no pensar e agir deste. Nesse
segmento, acredita-se que, no estudo aqui proposto, o ethos discursivo das autoras é, também, responsável por guiar ou
não o agir docente a partir do texto proposto pelas autoras do livro didático.
Se
o ethos convence pelo discurso,
nota-se que, em razão das escolhas linguístico-discursivas e estilísticas
efetuadas pelo sujeito enunciador, é nesse que o ethos se mostra. Ao se considerar tais escolhas, observa-se que o
uso de mecanismos enunciativos (vozes e modalizadores) torna-se um importante
recurso linguístico-textual utilizado por sujeitos para “fortalecerem” seus
discursos e, consequentemente, contribuírem para a construção de um ethos positivo e respeitável alcançando,
dessa forma, os efeitos de sentido desejados.
Por
meio de modalizações, o enunciador demonstra sua posição de sujeito falante
seja em relação aos demais sujeitos envolvidos ou ao seu próprio discurso. Em
outros termos, o uso de modalizadores transmite a avaliação do enunciador
acerca do que é exposto. Por outro lado, a fim de justificar a posição que
ocupa ou defende, o sujeito enunciador pode se valer, também, de vozes
textuais, as quais representam as instâncias responsáveis pelo que é dito e ratificam,
dessa forma, o seu dizer, orientando seu destinatário a uma leitura e
interpretação do texto, segundo a sua visão ideológica-discursiva.
No presente trabalho, observando um texto
educacional de apresentação de um livro didático, buscamos analisar como os
mecanismos enunciativos compõem a organização textual e, ao mesmo tempo, constroem
o ethos dos sujeitos enunciadores. Em
seguida, passamos à análise e à discussão dos dados.
Análise e discussão dos dados
Ao
analisarmos um texto seguimos, de certo modo, alguns padrões que nos oferecem
índices para interpretação do que é enunciado. Bronckart (1999) propõe esse
exercício a partir de um modelo de leitura e interpretação textual, a saber, o
levantamento do contexto de produção e dos níveis organizacional, enunciativo e
semântico. O autor ainda salienta que a análise desses aspectos não se
configura de forma isolada e independente, pelo contrário, cada aspecto
corrobora na interpretação que se faz de cada nível, clarificando e endossando
o embasamento desses.
Assim,
em nosso trabalho, procuramos seguir o modelo de análise proposto por
Bronckart, nos atentando mais especificamente, ao nível enunciativo.
No
que se refere ao contexto de produção, o texto em análise como já dissemos,
trata de um texto inicial de um livro didático em que tal material é
apresentado aos professores que, no caso, são os destinatários primários de tal
texto. As autoras em questão são especialistas na área com titulação de
doutorado e mais de 10 anos de docência. Essas especificações estão assinaladas
na página anterior ao texto o que, a nosso ver, parece um recurso argumentativo
que serve como uma credencial para as locutoras que neste contexto assumem um
lugar na enunciação do suposto saber (cf. FOUCAULT, 1979), e consequentemente
do suposto poder. É também a partir desse lugar que se dá a construção do ethos das autoras.
Quanto
ao nível organizacional, observamos no texto a seguinte estruturação em termos
do plano global.
Seções do texto
|
Conteúdos tematizados
|
Considerações
iniciais
|
Apresentação do
ensino de Língua Portuguesa e redação
na atualidade.
|
Linha pedagógica e
procedimentos metodológicos
|
Apresentação do
enfoque teórico e metodológico de embasamento das autoras.
|
Organização dos
capítulos e seções do livro
|
Justificativa e
apresentação dos capítulos e seções do livro e expectativas das autoras em
relação ao material.
|
Os novos rumos do
trabalho com Língua Portuguesa no ensino médio
|
Apresentação de
documentos oficiais nos quais o documento se baseia e justificativa para a
mudança teórico-metodológico do ensino de Língua Portuguesa.
|
Quadro 1- Plano Global
do texto analisado
Em nosso entendimento,
a estrutura organizacional favorece a uma lógica argumentativa das autoras, uma
vez que a intenção explícita de tal texto é fazer com que seus destinatários
utilizem o material em sua prática docente. Contudo, é interessante observar
que, em nenhuma das seções, as autoras se dirigem especificamente aos
professores. Na visão de Ferreira (2011), esse recurso, comum em textos
educacionais de caráter prescritivo, tem por finalidade atenuar tal caráter e,
consequentemente, minimizar as resistências dos profissionais frente ao que é
enunciado.
Modalizações,
gerenciamento de vozes e ethos
No referido texto em análise, podemos observar, seguindo
a linha argumentativa já mencionada, a utilização de diferentes vozes e de
modalizações.
Na seção intitulada “Considerações
iniciais”, observamos o uso predominante do discurso teórico que
produz um efeito de objetividade em relação ao conteúdo temático. O sujeitos
enunciadores buscam distanciar-se do objeto temático de forma que suas
asserções sejam vistas como verdades incontestáveis ou pressupostas. Ao mesmo
tempo, as vozes no trecho referido desdobram-se entre a de um especialista no
assunto e a de um ‘vendedor” de determinado produto:
Quem
quer que se ponha a refletir sobre a questão do trabalho com Língua Portuguesa,
tanto no Ensino Fundamental como no Médio, constatará que a situação está ainda
muito longe de ser a ideal (...).
(...) o material aqui apresentado pretende
fornecer subsídios para que esses problemas possam ser enfrentados com
tranqüilidade.
Como observado, na primeira parte, temos uma constatação
efetuada pelas autoras, no que se refere ao ensino da Língua Portuguesa nos
níveis fundamental e médio, como algo inadequado, ou seja, que precisa ser
mudado. Ao final da seção, os enunciadores apresentam o material, pontuando
como este pode auxiliar àqueles que dele fizerem uso na sua prática
profissional. É interessante observar que além de apontar o material como
adequado, temos ainda uma espécie de “promessa” de tranqüilidade frente aos possíveis
problemas na prática docente.
Na seção, Linha pedagógica e procedimentos
metodológicos, temos uma fusão de vozes e modalizações:
Acreditamos,
com base em nossa experiência em sala de aula, que o estudo de Gramática não se
pode limitar a uma apresentação sistemática dos conteúdos previstos nos
programas do Ensino Médio. Por outro lado, sabemos que os alunos devem tomar
conhecimento os alunos devem tomar conhecimento de tais conteúdos de forma a
atribuir-lhes um significado prático.
No trecho acima autoras expressam, por meio de
modalizações deônticas – utilizando a 3ª pessoa do plural “acreditamos e nós
sabemos”- uma opinião, amparadas pelo mundo social, isto se torna um valor de
verdade a ser seguido. Ao mesmo tempo, as autoras utilizam-se ainda da voz de
professoras que demonstram conhecimento e experiência no agir docente. Dessa
forma, conferem autoridade ao estabelecer “orientações” aos destinatários, no
caso, os professores que utilizarão tal material. Todavia, quando mencionado,
por exemplo, que os alunos devem tomar conhecimento, a voz percebida é
oriunda de documentos oficiais como os PCN - documento de referência para os
profissionais da educação.
Deve-se salientar também que é diferente o uso de primeira
pessoa nos trechos citados acima e em passagens como “sabemos que os alunos devem tomar conhecimento de tais conteúdos de
forma a atribuir-lhes um significado prático”, em que se percebe, pelo
contexto, que o termo “sabemos” refere-se aos professores de Língua Portuguesa
(LP) em geral. O
emprego desse termo pode ser considerado uma estratégia, por parte dos sujeitos
enunciadores, de aproximação com seus interlocutores, uma vez que, ao
atribuírem um sentido amplo à palavra em questão, demonstram compartilhar, ao
menos, um conhecimento/saber com os interlocutores, ao invés de apenas
impor-lhes algo novo. Esse efeito de aproximação contribui, ainda, para uma
imagem positiva dos enunciadores, já que deixam transparecer que seus
interlocutores, também, sabem algo relevante para um bom desempenho de sua
profissão. Essa “imagem positiva” está relacionada ao ethos que é construído ao longo do texto.
Em outro segmento,
podemos observar a utilização de uma modalização lógica:
Assim, para que as aulas façam sentido tanto para alunos como para
professores, é necessário que as discussões gramaticais tenham sempre por base
um quadro teórico no âmbito do qual a linguagem seja entendida como uma atividade que modifica e constitui os
interlocutores, e que é por eles constantemente modificada e manipulada.
A estrutura oracional
utilizada “é necessário” consiste em uma avaliação de um elemento que se refere
ao conteúdo temático apoiado no mundo objetivo, ressaltando, assim, uma
verdade, um valor posto socialmente e reforçado, mais uma vez, pela voz das
próprias autoras que demonstram compartilhar desse valor social.
No trecho abaixo podemos perceber a emergência da voz dos
documentos oficiais que prescrevem, em certa medida, como deve ser o ensino
e a aprendizagem em sala de aula:
Somente estudando-se a linguagem em relação
ao uso efetivo que dela fazem os falantes, podem adquirir sentido as discussões
sobre a língua, em todos os níveis de análise, e a metalinguagem necessária
para a condução dessas discussões.
No excerto acima, o
uso do discurso teórico reforça o
caráter argumentativo do trecho em que percebe-se a impossibilidade de qualquer
outro enfoque de ensino e estudo da linguagem.
Outro exemplo de modalização, desta vez,
pragmática pode ser observado no trecho abaixo em que as autoras, valendo-se de
uma expectativa direcionada aos possíveis leitores e usuários do referido
livro, ressaltam as ações esperadas pelos docentes em sala de aula:
Espera-se, portanto, que, ao preparar suas
aulas, os professores sejam capazes de contribuir com exemplos semelhantes, que
tornam o aprendizado da Língua Portuguesa mais significativo para os alunos.
Nesse trecho, há a construção de uma imagem de superioridade
por parte dos enunciadores, uma vez que a capacidade dos professores é
assinalada apenas como uma possibilidade, tendo do livro com referencial para a
construção dos exemplos. Em outros termos, o modelo de aula, de atividades e de
textos propostos pelos enunciadores são modelos a serem seguidos com a
finalidade de garantir sucesso na aprendizagem do conteúdo.
Ao serem utilizados modalizadores e, como nas passagens abaixo,
observa-se como esses reforçam o ethos das autoras que por meio desses buscam
legitimar suas asserções no mundo social:
(...) é necessário que as discussões gramaticais tenham sempre por base
um quadro teórico no âmbito do qual a linguagem seja entendida como uma atividade que modifica e constitui os
interlocutores, e que é por eles constantemente modificada e manipulada.
(...) é importante, ainda, que a correção dos textos se
faça com base em parâmetros objetivos, de conhecimento também dos alunos, de
modo a possibilitar a identificação dos problemas que exigem maior atenção.
(...) torna-se imprescindível dispor também dos conceitos de contexto e
interlocução, que variam de acordo com o tipo de texto a ser produzido.
Dessa forma, os sujeitos enunciadores se posicionam não só como pessoas
mais experientes, mas também como sujeitos a serem seguidos. Em outros termos,
eles se colocam como seres capazes de dizerem o que é necessário, importante
e/ou imprescindível para um bom aprendizado de Língua Portuguesa.
Considerações finais
Numa abordagem sociointeracionista,
objetivou-se analisar e descrever como as ações humanas e, por sua vez,
linguageiras se constituem socialmente e como ocorre a interação entre os
sujeitos. Através da identificação e da análise de mecanismos enunciativos e de
diferentes aspectos como a distribuição de vozes e a definição de modalizações,
tentamos demonstrar como se dá a atribuição de sentidos ao texto e a responsabilidade
aos ditos e não-ditos no/do enunciado.
Dadas as reflexões acima, observa-se que o uso de
modalizações no texto em questão pressupõe um gesto de configuração discursiva,
uma vez que estabelece a coerência pragmática do texto e, ao mesmo tempo,
orienta o destinatário na interpretação dos conteúdos tematizados.
No texto analisado, tal configuração tem como objetivo final
convencer docentes a utilizarem determinado material e, consequentemente,
orientar o agir desses profissionais na perspectiva pedagógica construída pelas
autoras do texto.
Por meio de vozes textuais, as autoras (sujeitos
enunciadores) demarcaram seu posicionamento tanto enunciativo quanto
identitário. Tal fato proporcionou a edificação de um ethos positivo, respeitável e com experiência suficiente para dizer
o que se deve ou não fazer em sala de aula e, dessa forma, ser capaz de
prescrever o agir docente.
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