O ABRASAMENTO SEXUAL NOS SERINGAIS AMAZÔNICOS, POR ALBERTO RANGEL E FERREIRA DE CASTRO




Carlos Antônio Magalhães Guedelha
(Doutor em Linguística - UFSC/UFAM)


RESUMO: As mulheres eram uma presença rara nos seringais da Amazônia. As poucas que existiam, todas tinham “dono”, até mesmo as meninas, crianças pré-adolescentes, cujo compromisso marital era firmado pelo pai desde muito cedo, como uma forma de troca de favores entre este e o futuro marido. Em geral, ao nordestino agenciado para trabalhar nos sertões amazônicos não era facultado levar mulher para o seringal, pois na lógica capitalista do “coronel” a mulher era um fator gerador de despesas na viagem do Nordeste até ali. Além disso, tendo a mulher por perto, o homem produziria menos, ao passo que, ficando ela no sertão, ele triplicaria seu esforço de trabalho com o sonho de voltar para a companhia de sua amada o mais breve possível. Tudo isso, evidentemente, era estratégia de espoliação, pois a estrutura montada nos seringais conspirava para que o sertanejo nunca mais voltasse para sua terra. Consequentemente, premidos pela ausência da fêmea, os sertanejos eram empurrados pelos instintos a atos extremados de pedofilia, zoofilia, bestialidades e crimes passionais, fartos na literatura sobre os seringais. Este estudo aborda essa questão a partir da leitura do romance A Selva, escrito pelo português Ferreira de Castro, e do conto “Maibi”, de autoria do brasileiro Alberto Rangel, utilizando, como contrapontos, outros textos voltados para os seringais amazônicos.

Palavras-chave: Amazônia, seringal, lubricidade.

ABSTRACT: Women used to be an unusual presence in Amazonian rubber tree plantations. The few ones who could be found there had there “owners”, even young girls and pre-adolescent children, whose marital engagements were assigned by their fathers since very early, as a way of exchange favors from their future husbands. Usually, the Northern Brazilian man who was hired to work in the Amazonian remote interior was not allowed to bring woman to the rubber plantations, once under the “colonel” capitalist logic, women were a charge factor on the trip. Furthermore, with a woman around, the man would produce less, whereas with the woman left home, the man would double his effort on work with the dream to go back to the company of his beloved woman as soon as possible. That all was a spoliation strategy once the structure assembled in the rubber tree plantations was a conspirator against the sylvan man to never be able to come back to his origin land. Consequently, forced by the absence of females, sylver men were pushed over by their instinct to extreme pedophilic acts, zoophile, and passionate crimes, very common in the literature about rubber tree plantations. This study approaches this topic from the reading of the romance A Selva, written by the Portuguese writer Ferreira de Castro, and from the book “Maibi”, written by the Brazilian writer Alberto Rangel, using as assistance other texts about the Amazonian rubber tree plantations.

Key-words: Amazonia, rubber tree plantation, lubricity.
INTRODUÇÃO

            O objetivo deste artigo é refletir sobre o abrasamento sexual masculino nos seringais da Amazônia brasileira, tal como o representa a literatura produzida no Amazonas, especialmente o conto “Maibi” do livro Inferno verde, publicado pelo brasileiro Alberto Rangel em 1908, e o romance A Selva, escrito pelo português Ferreira de Castro em 1930.  Utilizo como contrapontos a essas duas obras textos de outros ficcionistas que focalizaram o ciclo da economia gomífera amazônica, entre os quais destaco: “Três histórias da terra”, de Erasmo Linhares; Coronel de barranco, de Cláudio de Araújo Lima; Deserdados, de Carlos de Vasconcelos; No Circo sem teto da Amazônia, de Ramayana de Chevalier; Dos Ditos passados nos acercados de Cassianã, de Paulo Jacob; O Beiradão e Banco de canoa, de Álvaro Maia.
Contribuíram para este estudo as considerações colhidas de Souza (2003), Lima (2009), Krüger (2001) e Nascimento (1998).  Utilizo o termo “abrasamento” no sentido figurado que lhe atribuem os dicionários, qual seja a acepção de “volúpia”, “desejo ardente e incontido”, “excitação”, “lubricidade”. Esse sentido para a palavra em questão deriva da literatura bíblica. Por exemplo, o apóstolo Paulo orientava aos solteiros e às viúvas da cidade de Corinto que, se não conseguirem controlar o desejo carnal, a melhor que poderiam fazer era casar-se, “porque é melhor casar do que viver abrasado” (I CORÍNTIOS 7, 9). Com esse sentido de expressão de sexualidade, o termo migrou para a literatura de uma forma geral.  
Na organização deste artigo, lanço mão dos termos ‘inferno” e “paraíso” relativamente ao espaço amazônico da selva. Mas não se trata de uma contraposição,  uma vez que os dois termos costumam aparecer na literatura para designar o mesmo espaço: a Amazônia. Dessa forma, para o subtítulo “Lubricidade no inferno”, extraí o “inferno” do título do livro de Alberto Rangel (Inferno verde); e para o subtítulo “Lubricidade no paraíso”, recolhi o “paraíso” do romance de Ferreira de Castro (A selva), onde o termo serve de topônimo para o seringal no qual transcorrem os principais eventos narrados na obra.



1 MULHER, MERCADORIA RARA

Nas primeiras décadas do ciclo da borracha (final do século XIX e início do XX), perpetuou-se na selva amazônica um ambiente de violências múltiplas decorrente do fato de que as mulheres eram uma presença rara nos seringais, conforme a historiografia tradicional. As poucas que existiam, todas tinham “dono”, até mesmo as crianças, meninas pré-adolescentes, cujo compromisso marital era firmado pelo pai desde muito cedo, como uma forma de troca de favores com o futuro marido.
Em geral, ao nordestino agenciado para trabalhar nos sertões amazônicos não era facultado levar mulher para o seringal, pois na lógica capitalista do “coronel” a mulher era um fator gerador de despesas na viagem do Nordeste até ali. Além disso, tendo a mulher por perto, o homem produziria menos, ao passo que, ficando ela no sertão, ele triplicaria seu esforço de trabalho com o sonho de voltar para a companhia de sua amada e da família o mais breve possível. Tudo isso, evidentemente, era estratégia de espoliação, pois a estrutura montada nos seringais conspirava para que o sertanejo nunca mais voltasse para sua terra.
Dando ordem expressa aos agenciadores de conduzirem somente homens para o seringal, deixando mulher e filhos no Nordeste, o coronel objetivava economizar nos gastos com passagem e alimentação dos agenciados, além de evitar o estorvo de ter o homem sua mulher por perto para, de alguma forma, travar a sua produção de borracha. Consequentemente, os seringais foram se tornando espaços praticamente vazios da presença da fêmea e, ao mesmo tempo, espaços do abrasamento do macho. Premidos pela escassez de mulheres na selva, os sertanejos eram empurrados pelos instintos a atos extremados de masturbação, pedofilia, zoofilia, bestialidades as mais variadas e crimes passionais, fartos na literatura sobre os seringais amazônicos.
Maia (1997) fala que o cenário era praticamente o mesmo em todos os seringais situados ao longo do rio Madeira e seus afluentes: logo que chegaram as primeiras levas de nordestinos, só existiam mulheres indígenas, e muitas delas passaram a ser perseguidas e estupradas pelos sertanejos abrasados. Ele lembra que, no caso da abertura dos trabalhos de construção da ferrovia Madeira-Mamoré, os quinhentos homens inicialmente levados do Ceará para trabalhar na empresa George Church não conduziam mulheres.
De situações como essa decorreu o surgimento do mercado de mulheres na selva, que se tornou uma prática corriqueira. A mulher passou a ser utilizada como moeda de troca. Maia (1997, p. 93) informa que “as despesas com mulheres figurava nas prestações de contas, no fim das safras, entre máquinas de costura, rifles, fazendas, sabão e café. Havia também o pagamento do valor feminino, baseado na saúde e nos encantos fisionômicos.” 
Esse movimentado comércio de “quengas” (palavra usada por Maia, 1997) ou “decaídas” (palavra usada por Linhares, 1995), arrebanhadas dos prostíbulos de Manaus, Belém e até de Fortaleza e levadas para os seringueiros que tinham saldo, gerava lucros para o coronel e, de certa forma, minorava as ardências lúbricas daqueles homens perdidos na imensidão solitária das brenhas. Tudo como previamente calculado pelos donos de seringais.
Quanto a essa questão, Souza (2003, p. 110) comenta que

A presença feminina no seringal era rara e quase sempre em sua mais lamentável versão. Para os seringueiros isolados na floresta e presos a um trabalho rotineiro, geralmente homens entre vinte e trinta anos, portanto premidos pela exigência do seu vigor, a contrapartida feminina chegava sob a forma degradante da prostituição. Mulheres velhas, doentes, em número tão pequeno que mal chegavam para todos os homens, eram comercializadas a preços aviltantes.

Souza destaca ainda, nesse quadro de premências irreparáveis, o fato de que “enquanto o coronel podia contar com as perfumadas cocottes, além de suas esposas, o seringueiro resvalava para o onanismo, para a bestialidade e práticas homossexuais. Esta penosa contradição legou uma mentalidade utilitarista em relação à mulher” (SOUZA, 2003, p. 110).
Comparando a situação da mulher na sociedade tribal amazônica e na sociedade extrativista da borracha, Souza destaca que naquela a mulher se encontrava integrada sob diversas formas de submissão, enquanto nesta, sendo a procura maior que a oferta, “ela seria transformada em bem de luxo, objeto de alto valor, um item precioso na lista de mercadoria, uma mobília” (SOUZA, 2003, p. 110).  No romance Coronel de barranco, de Cláudio Araújo Lima, há uma passagem expressiva dessa situação, como lembra Lima (2009): a mulher é levada de Manaus para o seringal pelo regatão, como uma mercadoria negociada com o coronel Cipriano a preço elevado. Era comum os seringalistas encomendarem da capital prostitutas estrangeiras para com elas se divertirem. Quando o coronel Cipriano recebe a  prostituta,

a seringueirada toda a “imaginava”. À sua maneira, é claro. Com a imaginação superaquecida pela influência da prolongada abstinência carnal, que ia aos poucos temperando a realidade. Transformando a velha meretriz aposentada num verdadeiro mito. Quase uma deusa, inspiradora de sonhos lascivos e de excessos masturbatórios que confessavam sem a menor cerimônia (LIMA, 2002, p. 255).

Evidentemente, aquela “encomenda” rara passaria a ser objeto de cobiça por onde quer que passasse. E ela acaba por trair o seu “dono”, abrindo perspectiva para o rotineiro desfecho trágico da trajetória da mulher nos seringais. O seringalista vinga-se da traição assassinando a mulher e o empregado de confiança, com quem ela fugira (LIMA, 2009).
Essa questão da necessidade premente da posse da mulher e de seu usufruto, como assinala Lima (2009), está presente em narrativas como No circo sem teto da Amazônia (de Ramayana Chevalier), Deserdados (de Carlos Vasconcelos), Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (de Paulo Jacob) e Beiradão (de Álvaro Maia).  Estes três últimos contêm flagrantes de estupros, aliciamentos e outras formas de aberrações sexuais cujos extremos são, de um lado, a pedofilia e, de outro, a violência contra idosas indefesas. Sem esquecer, é claro, os maus tratos impingidos a animais que eram violentados com grande frequência.
Segundo Maia (1997, p. 98), vencidas as primeiras etapas de exploração dos seringais, aquelas em que a presença feminina era uma raridade ali, os espaços se abriram para a chegada de famílias inteiras (casais, filhos e agregados) e, a partir daí, a conquista feminina deixou de ser um problema. A mulher integrou-se à faina dos seringais, seguindo o companheiro “no deslocamento, nos conflitos, na guerra e no trabalho [...] Completa-lhe a ação nos roçados, nas pescarias, além dos afazeres domésticos e, na hora do perigo, brande a peixeira e a espingarda.” 
A pesquisadora Cristina Wolff (2011), em um estudo que desenvolveu a respeito das mulheres da floresta, destaca que a crise da economia gomífera foi um dos principais fatores responsáveis por mudanças como essas nos seringais. No seu entendimento, foi a partir de 1912 e, especialmente, nas décadas de 20 e 30 do século XX, que a improvisação de grupos familiares se intensificou de forma notável, tendo em vista a necessidade forjada pelo momento de crise. Ela assinala que

para sobreviver nos seringais em crise, foram necessárias grandes transformações. Se antes os seringueiros viviam basicamente da troca da borracha produzida pelas mercadorias vendidas pelos patrões, eventualmente de alguma caça e pesca; agora a agricultura, a caça, a pesca, a criação de pequenos animais, o artesanato e a extração de outros produtos florestais tais como madeiras nobres, peles de animais, óleos vegetais, entre outros, passavam a ser atividades fundamentais para a sobrevivência. E um seringueiro sozinho não conseguiria praticar tantas atividades simultaneamente. (WOLFF, 2011, p. 32)

Outra pesquisadora do tema, Maria das Graças Nascimento (1998), explicita que a mulher passou a ajudar o homem no corte da seringa, numa dura labuta que envolvia as filhas, inclusive as que ainda eram crianças. Seu trabalho ajudava no sustento da família e na luta pela quitação da dívida no barracão do seringal. Muitas vezes o chefe da família adoecia ou se tornava inválido, e a mulher se via obrigada a assumir as responsabilidades por todas essas demandas. Segundo ela,

De uma forma ou de outra, a presença da mulher na formação social dos seringais torna-se decisiva, na medida em que ela executava atividades necessárias para a subsistência da família, permitia ao seringueiro uma jornada menos exaustiva e une aumento de produção em virtude de uma dedicação maior dela ao extrativismo. E o seringal deixa de ser um acampamento só de homens. A presença da mulher nos seringais é um dos fatores que contribuíram para a fixação do homem em um ambiente isolado como é o dos seringais; com isso, toma-se um empreendimento socioeconômico organizado e produtivo para os seringalistas. (NASCIMENTO, 1998, p. 5)

            É essa mulher incansável, solidária e extremamente sofrida, que Maia (1997, p. 99) chama de “companheira desconhecida”. “São as mulheres dos vencedores do deserto, as vencedoras vencidas da floresta”. Mulheres que, segundo ele, em sacrifício anônimo, alegraram “o deserto com o seu sorriso e as suas canções.” A massiva presença da mulher constitui-se, por assim dizer, um elemento saneador do estado de permanente lubricidade masculina no ambiente dos seringais. Porque embora os seringueiros continuassem a levar uma vida sem a menor perspectiva, ter uma companheira ao seu lado ajudava-o a suportar melhor o peso de suas angústias. Era alguém com quem conversar, com quem compartilhar alegrias e sofrimentos. E era a fêmea, com a qual podia dar vazão à sua contingência de macho. Os rumorosos casos de traição, os crimes passionais e as bestialidades continuariam a existir. A solidão também continuava a ser uma realidade inexorável, mas deixava de ser uma “solidão sozinha”, para usar um pleonasmo de Linhares (1995). 

2 LUBRICIDADE NO INFERNO

            No ano de 1908, o pernambucano Alberto do Rego Rangel publicava o livro Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. Um livro que, como bem observou Krüger (2001), pode ser lido tanto horizontal (como um livro de contos, contendo onze narrativas) quanto verticalmente (como um romance de onze capítulos). Essa ambiguidade estrutural é vista por Krüger como uma virtude da obra, o seu primeiro grande mérito. Adoto aqui a segunda perspectiva, ou seja, a leitura do livro como um romance cuja unidade se dá pela presença do narrador viajante que percorre a Amazônia em vários pontos e vai registrando os flagrantes que observa. Cada flagrante é um quadro que, em conjuntos com os demais, forma um grande painel do “inferno” amazônico. Entre esses flagrantes, encontra-se o malfadado casamento do seringueiro com a cabocla, narrado no capítulo intitulado “Maibi”.
Nesse capítulo, conhecemos o cearense Sabino, que, a exemplo de milhares de outros nordestinos, fora agenciado para trabalhar em seringais da Amazônia. Após passar por sucessivas etapas do seu “êxodo”, iniciado na região do baixo Amazonas, chegou ao seringal Soledade, onde passou a trabalhar para Marciano, o proprietário do seringal. Sabino chegou ali acompanhado de Maibi, uma cabocla que conhecera na localidade chamada Castanho, e com quem se casara. Ela era, àquela altura, uma “linda cunhã”, “enguiço núbil”, uma “tentação”, de olhos “tingidos no sumo do pajurá[1]; o andar miúdo e ligeiro de um maçarico”, os cabelos com “o negror da polpa do mutum ‘fava’; o vulto roliço...” E era uma cabocla perita em aplicar “carícias ardentes” em seu homem (RANGEL, 2001, p. 128). 
Após instalar-se no Soledade, Sabino acumulou, ao longo de quatro anos, uma dívida que não conseguia mais quitar. Com o passar do tempo, a dívida apenas aumentava, e uma situação assim sempre trazia preocupação ao seringalista, arrivista que era. Se por um lado a dívida trazia a aparente vantagem, para o seringalista, de escravizar o seringueiro, tornando-o seu refém, por outro lado essa dívida poderia significar queda de produção no trabalho do seringueiro, que podia ser vista pelo patrão como prejuízo a ser evitado. A situação de dívida vultosa quase sempre demandava uma tomada de posição por parte do patrão.
Foi a partir dessa situação que Marciano impôs ao seu empregado “o mais comum dos arranjos comerciais”, uma “transferência de débito, com o assentimento do credor, por saldo de contas” (RANGEL, 2001, p. 126). Em que consistia essa transferência de débito, que o narrador assegura ser tão comum nos seringais? Consistia em que o seringalista tinha autoridade para usar a mulher do devedor como moeda de troca. Funcionava assim: se o seringueiro não conseguia quitar a sua dívida, e era casado, o patrão tomava-lhe a mulher para dá-la a outro seringueiro que tivesse saldo. O seringueiro que recebia a mulher assumia a dívida do outro, e este ficava quite com o patrão.  Foi o que aconteceu com Sabino, em um “negócio” fechado com Marciano junto ao balcão do armazém do barracão.  O seringueiro Sérgio, que tinha saldo e era afamado como trabalhador, assumiu a dívida de Sabino e recebeu a cabocla Maibi como sua mulher.
Após fechar o negócio, Sabino sentiu-se, de certa forma, como se estivesse aliviado de um fardo. Afinal, raciocinava ele naquele momento, a mulher entrara em sua vida para atrapalhá-la. Tentava se convencer de que, se tivesse ido sozinho para o Soledade, teria trabalhado com muito mais afinco e, àquela altura, certamente já teria voltado ao seu querido Ceará.  Mas o seu pensamento era ambíguo. Ao mesmo tempo em que se esforçava para ver a mulher como um estorvo, via-a como uma necessidade, sentia sua falta. Um pensamento torturante o incomodava dolorosamente: um misto de saudade e ciúme que aos poucos se apossava dele. Não suportava a ideia de que “nos braços de outro ela se arrebataria em juras e suspiros...” aplicando em outro as “carícias ardentes” que lhe pertenciam (RANGEL, 2001, p.  128).
Passado algum tempo, quando tudo parecia correr normalmente no seringal, numa tarde Marciano nota que uma canoa, dobrando a curva do remanso, desponta em direção ao armazém, com o seu condutor remando desesperadamente, pálido e atônito. Era o Sérgio, que estava à procura de Maibi. Sérgio conta ao patrão que aproveitara uns dias de chuva, período em que o corte da seringa era impraticável, para fazer uma viagem ao centro, mas ao retornar não encontrara a mulher em casa. Diz-lhe que já a procurara em vários pontos do seringal, e ia continuar procurando-a por toda parte. Depois que ele parte, exasperado, o patrão, “com seu pretendido faro de antiga autoridade policial em São João de Uruburetama, lembrou-se do Sabino. Quem saberia se o cearense,  enciumado, não dera sumiço à rapariga?” (RANGEL, 2001, p. 132)
Pensando assim, Marciano recorreu ao seu “detetive” particular, o empregado Zé Magro, habilidoso na arte de bisbilhotar e farejar. Talvez ele conseguisse encontrar o Sabino e arrancar dele alguma informação a respeito da mulher. O desfecho  de tudo foi que o espião, no seu mister de procurar Maibi, acabou por ficar aterrado diante de um espetáculo macabro de crucifixão que encontrou na colocação destinada ao trabalho de Sabino:

Uma mulher, completamente despida, estava amarrada a certa seringueira. Não se lhe via bem a face na moldura lustrosa, em jorro negro e denso, dos cabelos fartos. O Zé Magro acercou-se, tremendo, a examinar a realidade terrível; na crucificada reconheceu, estupefacto, a mulher do Sabino e do Sérgio. Atado com uns pedaços de ambécima à “madeira” da estrada, o corpo acanelado da cabocla adornava bizarramente a planta que lhe servia de estranho pelourinho. Era como uma extravagante orquídea, carnosa e trigueira, nascida ao pé da árvore fatídica. Sobre os seios túrgidos, sobre o ventre arqueado, nas pernas rijas, tinha sido profundamente embutida na carne, modelada em argila baça, uma dúzia de tigelas. Devia o sangue da mulher enchê-las e por elas transbordar, regando as raízes do poste vivo que sustinha a morta. Nos recipientes o leite estava coalhado – um sernambi vermelho... (RANGEL, 2001, p. 135)


Sabino crucificara a mulher e fincara-lhe no corpo doze tigelas, postas ali para aparar-lhe o sangue, à maneira de látex. Mas de nada adiantaria ao ladino Zé Magro sair em perseguição ao assassino: Sabino enlouquecera e, vagando pela selva, não muito longe dali, contorcia-se desesperadamente em paroxismos epilépticos.
Rangel encerra esse capítulo direcionando o leitor para uma interpretação pretendida: ver o martírio de Maibi como uma metáfora do martírio do Amazonas:

[...] imolada na árvore, essa mulher representava a terra... O martírio de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria ainda assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma indústria que o esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem imponente e flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma auréola de oblação nesse cadáver, que se diria representar, em miniatura um crime maior, não cometido pelo Amor, em coração desvairado, mas pela Ambição coletiva de milhares d’almas endoidecidas na cobiça universal. (RANGEL, 2001, p. 136)


Lima (2009, p. 90-91) amplia, de forma lúcida, essa metáfora que une a mulher e a seringueira, ao considerar que, para o seringueiro, os significados da árvore e da mulher aproximam-se em vários pontos. Ela esclarece:

Como a seringueira, a mulher não pertence ao seringueiro, é um bem do qual só pode usufruir quem sobre ele adquire direito. ‘Maiby’ passa a ser propriedade de Sérgio porque ele possui condições de tê-la. A seringueira, por sua vez, pertence ao patrão que domina os meios de produção do seringal. Sabino tem a ilusão de que a seringueira lhe pertence porque é o extrator de sua riqueza, assim como ilude-se que a mulher lhe pertence quando, de fato, ela pertence a quem pode pagar por ela. As posses mal realizadas da seringueira e da mulher só podem ser compensadas com a morte de ambas. Cortar a seringueira para extrair seu leite é uma forma de matá-la, sangrar a mulher até que se esvaia todo o seu sangue, também.

À parte essa pretendida alegoria do autor, que subtrai do leitor o privilégio e a responsabilidade de interpretar o fato narrado, assumindo as demandas de sua interpretação, não se pode negar que estamos diante de um tresloucado crime passional, expressivo de tantos outros comuns nos seringais. As atitudes brutais, as bestialidades, eram decorrência da escassez ou ausência da fêmea naqueles ambientes.
O narrador de “Maibi” registra também o costume que tinham os homens de dançarem agarrados uns aos outros, aos pares, quando ocorriam as costumeiras “rocegas” de sábado ou domingo. Ao toque convidativo da gaita, “aqueles homens, no meio dos quais havia apenas duas mulheres, se agarravam aos pares, desabalando-se a dançar sobre o soalho flácido e ondulado das paxiúbas” do barracão (RANGEL, 2001, p. 128).
Muitas vezes, o calor da dança, somado ao estímulo do álcool e o apelo dos instintos, fazia aflorar desejos homossexuais em um dos dançantes, ou nos dois. Quando as investidas desse tipo não eram correspondidas, dada a “macheza” do repelente, não raro aquilo que começara como uma dança de par derivava para absurdos atos de violência e assassinato. Linhares (1995) traz a lume um desses casos, narrado pelo próprio cearense que participara do ato, um indivíduo conhecido pela alcunha de Zeca-Dama. Ele se orgulhava de seu passado como homem-dama, aquele que fazia o papel de mulher na dança de par.
A festa do sábado ou do domingo era esperada com sofreguidão, nos seringais, ao longo de toda a semana. Mas não havia mulher, por isso dançava homem com homem, e foi aí que o Zeca-dama ganhou fama. “Experimentei a primeira vez só para dar gosto ao Dorca, companheirão que me ensinou a cortar seringa, com paciência de santo. E quando começamos a dançar, os outros foram parando abestados, olhando nós dois saracoteando pela sala” (LINHARES, 1995, p. 102). Desde aquela noite ficou afamado. E confessa, com indisfarçável orgulho: “Já fui dama afamada. Melhor do que muita mulher de hoje. Quando cheguei nas brenhas do Ipixuna, mulher que é bom não havia. Tudo era homem. Só homem”. Mas antes, faz questão de declarar a sua macheza, para que ninguém dela duvide. “Desarme essa cara de malícia. Não é nada do que o senhor está pensando. Sou macho e muito macho. Até hoje o cabra que duvidou disso, levou troco certo na hora” (LINHARES, 1995, p. 101).
Quem lê o Inferno verde desconhecendo maiores informações sobre o submundo dos seringais amazônicos, comumente fica chocado com a brutalidade que “presencia” ali, especialmente no assassinato de Maibi. Mas à medida que toma conhecimento de como as relações sociais deterioradas se estabeleciam naquele ambiente de completa estupidez, e também à medida que consulta a literatura sobre o período, constata que tal brutalidade é uma constante, gerando o que Krüger (2001) caracteriza como uma certa tendência à “poética da violência”.

3 LUBRICIDADE NO PARAÍSO

            Nascido em Portugal, o escritor José Maria Ferreira de Castro viveu no Brasil, especialmente na Amazônia, no período de 1911 a 1914. Nesse período, “viveu nas condições bastante penosas, no seringal ‘Paraíso’, à margem do rio Madeira, alistado nas hostes dos trabalhadores florestais, especializados no corte da seringa [...]” (LETÍZIA, 2005, p. 17). Por ter ficado órfão de pai ainda na adolescência, rumou para Belém do Pará, na esperança de conseguir algum emprego, contando com o apoio do padrinho, que era comerciante naquela cidade.

Porém, depois de desembarcar na capital do Pará, logo vivera a sua primeira desilusão, percebendo que no armazém do seu protetor não havia lugar para ele e, em consequência disso, seria impelido a aceitar a colocação no rol dos candidatos a seringueiros, recrutados nos sertões do Ceará, da Paraíba ou do Piauí, flagelados pela seca (LETÍZIA, 2005, p. 17).

Em sua vivência na Amazônia (Pará e Amazonas), onde conheceu por dentro a estrutura dos seringais, o escritor testemunhou cenas e flagrantes que mais tarde seriam recriados pela pena vigorosa do artista, transformando-se no romance A Selva, publicado em 1930, considerado por muitos a sua obra-prima.
O protagonista de A Selva chama-se Alberto, um jovem português de 26 anos, estudante do 4º ano de Direito, que se exilara em Belém para fugir da perseguição policial do seu país, por ter participado da Revolta de Monsanto e por defender ideias monarquistas na recém fundada República. Alberto morava com o tio, senhor Macedo, também português, dono de um sórdido hotel para seringueiros na capital paraense. Sendo um homem extremamente ganancioso, Macedo encarava o sobrinho desempregado como um estorvo, um peso a suportar, um fator gerador de despesas desnecessárias. Com a iminência da partida de um navio rumo ao rio Madeira, Macedo aproveitou o ensejo para se livrar de vez do sobrinho incômodo: propôs ao agenciador Balbino que o levasse no lugar de um dos sertanejos que fugiram no decurso da viagem do Ceará até ali. Como mandava a praxe daquele comércio singular, Alberto teve que assumir a dívida do cearense que fugira, ingressando, em seu lugar, no navio que levaria os “brabos” ao seringal. É assim que Alberto, à semelhança de seu criador Ferreira de Castro, ingressa no submundo do seringal Paraíso, no rio Madeira, cujo pomposo nome soa como uma ironia, porque ali era uma espécie de representação do inferno.
Como costuma acontecer em obras de influência naturalista, pautadas pelo determinismo, é comum se ver em A Selva os homens serem governados pelo instinto, especialmente o sexual, que os empurra a atos extremados, premidos que eram pela ausência da fêmea.
O cearense Firmino, que ficara encarregado de ensinar a Alberto as lides cotidianas do seringal, explica ao jovem português, entre tantas outras coisas, o porquê da escassez de mulheres no seringal:

Seu Juca é quem manda buscar os brabos ao Ceará e lhes paga as passagens e as comedorias até aqui. Se eles viessem com as mulheres e a filharada, ficavam muito caros. Depois, se um homem tivesse aqui a família, trabalhava menos para o patrão. Ia caçar, ia pescar, ia tratar do mandiocal e só tirava seringa para algum litro de cachaça ou metro de riscado de que precisasse. E seu Juca não quer isso. O que seu Juca quer é seringueiro sozinho, que trabalha muito com a ideia de tirar saldo para ir ver a mulher ou casar lá no Ceará. (CASTRO, 1979, p. 103)

            E continua:

É uma desgraça! Alguma mulher que há, é de seringueiro com saldo, que a mandou vir com licença de seu Juca. Mas são mulheres sérias e, se não fossem, o homem lhe metia logo uma bala no corpo e outra no atrevido. Aqui é assim. Se aparecesse uma mulher sozinha, todos nós nos matávamos uns aos outros por causa dela. Mas não aparece... Qual é a mulher sozinha que tem coragem de vir para estas brenhas? (CASTRO, 1979, p. 103)

            O “seu Juca” citado pelo cearense era Juca Tristão, o coronel proprietário do Paraíso. Mas ele representa, de forma geral, todos os seringalistas. É a figura do “coronel de barranco”, cujas vontades e caprichos constituíam a lei ao longo dos rios.
Na linguagem simples do sertanejo está a confirmação das observações de Maia (1997), Souza (2003) e Lima (2009) que já citei em relação à ausência ou quase ausência da figura feminina nos seringais como uma decorrência do alvitre dos coronéis de não conduzir para ali nordestinos acompanhados  da família. E a explicação de Firmino tem um desconcertante tom de lamentação: “é uma desgraça!”, diz ele a Alberto, o companheiro que desconhece aquela realidade.
            Narra-se também em A Selva o caso de um seringueiro chamado João Fernandes, um velho que tinha saldo e por isso tinha mulher. Quando ele morreu, deixou a viúva com mais de 70 anos, e esta não quis juntar-se com outro homem, nem “fazer o seu favor” aos que foram lhe bater à porta. Por isso, um dia todos os seringueiros a conduziram à força para o mato, e lá a estupraram, deixando-a morta.
Eram constantes as cenas de zoofilia, pedofilia, bestialidades e crimes passionais. Um dia, por exemplo, Alberto fica chocado ao flagrar o seringueiro Agostinho copulando com a égua que o feitor deixara amarrada próximo à cabana em que moravam. Como desaprovasse severamente a atitude do colega, em conversa com o mulato Firmino, recebeu deste uma justificativa para aquilo que já era considerado normal no seringal. O diálogo é esclarecedor:

– Não há mulher... que vai um homem fazer aqui?
– É horrível! É horrível!
– Também seu Alberto irá, um dia, laçar vaca ou égua...
– Eu? Não diga isso! Proíbo-lhe que me diga isso, ouviu?
– Você verá, seu moço, você verá... Deixe chegar o dia... (CASTRO, 1979, p. 97)


            Na explicação de Firmino, o meio era capaz de moldar o indivíduo, traduzindo ao amigo, sem saber, um princípio naturalista. Ele estava “profetizando” o que iria acontecer com o jovem lusitano, com a passagem do tempo: o meio e os instintos naturais iriam empurrá-lo algum dia para as práticas de zoofilia que, naquele momento, causavam náuseas no europeu. Sintomaticamente, alguns minutos depois, enquanto Alberto ainda se sentia enojado do que vira, Firmino já estava também copulando com a égua, dessa forma aliviando-se de uma necessidade vital.
Firmino, sempre que percebia o asco que tomava conta de Alberto diante dessas cenas de rabaixamento sexual, argumentava no sentido de um determinismo prático cuja formulação teórica desconhecia: “A princípio, se se faz uma coisa feia, se fica com nojo de si... Mas depois!...” (CASTRO, 1979, p. 104)
            Agostinho cometeu também um crime que abalou todo o Paraíso. Andava ardendo de desejo pela filha de Lourenço, o único caboclo do seringal. A menina era ainda uma criança, tinha menos de nove anos, mas, segundo Firmino, já havia “muitos focinhos atrás dos passos dela como tamanduá-bandeira cheirando os formigueiros” (CASTRO, 1979, p. 119). Como o pai da menina lhe negasse a filha, o sertanejo matou-o a golpes de terçado, fugindo em seguida.
            O tempo foi passando, e a “profecia” determinista de Firmino em relação a Alberto começava a se realizar. Certa noite, os dois amigos estavam recolhendo os peixes que haviam pescado. Ao observar os peixes cujas escamas brilhavam à luz do luar, Alberto foi tomado de um estado de lubricidade e começou a “delirar”. Enfeitiçado pelo ambiente, ele começou a ver “as escamas de prata alongarem-se e, com elas, mãos invisíveis irem modelando um corpo feminino, esbelto e nu. E agora os olhos dele transportavam adormecida mulher, que uma nesga de luar envolvia cariciosamente, como um véu diáfano” (CASTRO, 1979, p. 105). Andando mais pela mata, ao se ver em meio a um verdadeiro jardim de orquídeas, cada flor lhe fazia pensar em  lábios carnudos de mulher, e as variadas formas das plantas sugeriam-lhe órgãos secretos femininos. Colhia as flores voluptuosamente, como se estivesse acariciando um corpo de mulher.
Quando foi transferido para morar na margem e trabalhar no armazém aviador do seringal, Alberto passou a sofrer com seus inquietantes estados de lubricidade, motivados agora pela imagem de Dona Yaiá, esposa do seu chefe imediato, o guarda-livros, senhor Guerreiro. Alberto passava muito tempo entretido, a “acariciar” febrilmente com os olhos o “corpo outonal” daquela mulher bonita e de sorriso educado. Já lhe conhecia, pelos prodígios da imaginação, todas as linhas exteriores e via-a mesmo quando ela estava ausente. Até na escuridão da noite, de olhos fechados, ele conseguia vê-la. Nos dias em que o guarda-livros o convidava para almoçar ou jantar em sua casa, “os seus olhos de macho buscavam a fêmea insistentemente. Sob o pretexto das charadas, demorava-se até muito tarde na galeria envidraçada, só para estar mais tempo junto do dona Yaiá” (CASTRO, 1979, p. 163).
Depois, censurava-se por isso. Entendia que não estava agindo com lealdade com o chefe que o tratava tão bem, de forma hospitaleira e desabrida, enquanto ele desejava-lhe a mulher. Mas esses pensamentos de autocensura, ou de tentativas de autocontrole, logo eram suplantados pela avassaladora luxúria que o dominava. Ficava a espreitá-la nos momentos em que ela tomava banho no cercado do quintal, e saía dali ardendo em volúpia, num fogo que nem o banho frio conseguia apagar. Lavava-se, sentindo repugnância por si mesmo, sentindo-se indigno, mas a febre do sexo não arrefecia.
Como não conseguiu a correspondência de dona Yaiá, que o tratava com requintada cortesia mas não lhe dava espaços para as intimidades pretendidas, Alberto se vê, um dia, como um autômato, escolhendo um dos laços do alpendre para, à semelhança dos amigos que reprovara severamente, laçar uma fêmea qualquer do mundo animal e satisfazer seu desejo com ela. “Palpou as cordas na obscuridade,  com os dedos escolheu uma; e cá fora ensaiou-a, abrindo-a e atirando-a várias vezes para um quadrúpede imaginário” (CASTRO, 1979, p. 169). Mas do fundo da consciência vinha a autorreprovação, que causava um intenso nojo de si mesmo pela situação tão indigna a que chegara. Parecia que o superego censor estava, em certa medida, encurtando as rédeas dos instintos indomáveis.
Mas a febre libidinosa não esmaecia. Continuava a consumi-lo. Por isso, tentou seduzir nhá Vitória, uma velha sexagenária que contratara para lavar a sua roupa, quando esta estivesse a sós com ele na casa. Logo começou a pôr em prática esse plano. Mas a velha, ao perceber as intenções do rapaz, que lhe acariciava a pele engelhada, xingou-o e saiu às pressas, deixando-o em estado de estupefação. Ali ele concluiria que o meio e os instintos estavam realmente exercendo fortíssima influência sobre ele. Quanto ao meio, justificava a si mesmo que “era natural que um homem como ele, vivendo a juventude, buscasse o amor que lhe negavam” (CASTRO, 1979, p. 163).  Quanto aos instintos, procurava convencer a si mesmo de que, quando a carne açulada turvava o discernimento de qualquer indivíduo, “não havia certamente limite algum para as baixezas a que um ser humano podia descer, se o escravizavam e privavam de tudo quanto era essencial à vida” (CASTRO, 1979, p. 179).  Com esse pensamento, julgava suas próprias ações e buscava autoaprovação no que antes reprovava severamente.
Os seringueiros utilizavam a bebida e as festas domingueiras como válvulas de escape, como anestésicos para a vida de privações de toda sorte que levavam. A cachaça era um dos produtos mais requisitados no barracão do coronel. Até mais que a própria comida, inclusive porque os artigos alimentícios eram extremamente caros, sendo mais fácil adquirir um litro de cachaça do que um quilo de farinha ou de charque. “A embriaguez periódica”, consequentemente, “era a única evasão do espírito, o único facho na longa noite da masmorra verde” (CASTRO, 1979, p. 112). Premidos pelos maus tratos, pela fome, pelo cansaço, pela falta de sexo, pela ausência total de liberdade, era nas festas e na cachaça que buscavam algum momento de sublimação: “a chicha e a cachaça começavam por estimular, tornando justificáveis, nos cérebros incandescidos, todas as aberrações; depois amolengavam-nos, apresentando-lhes como facilidade vindoura o impossível e como breves certezas as mais indizíveis esperanças (CASTRO, 1979, p. 119).
Saboreavam aquele veneno até a última gota, a noite inteira, nas festas domingueiras, abandonando o lugar apenas no amanhecer da segunda-feira, quando eram obrigados a retornar à crua realidade.  Era nas festas que a lembrança da terra natal se fortalecia, pelos ritmos da música nordestina e seus instrumentos, pelas danças, pela brincadeira do boi-bumbá, pelos encontros semanais, que possibilitavam as reminiscências da terra distante, de onde a maioria deles tinha vindo.
Era também nas festas noturnas do domingo, ou do sábado, que apareciam as poucas mulheres, visão rara nos seringais, o que fazia com que os homens ficassem embriagados de lubricidade. Na dança, davam um pouco do seu contato e do seu calor perturbante. “Dilatavam-se os olhos masculinos, os lábios entumeciam-se, a lascívia ia em onda alta, abrangendo todos os movimentos e emprestando a alguns dos rostos súbita expressão de loucura” (CASTRO, 1979, p.119). Quando o estado de lubricidade se tornava assim enlouquecedor, os homens corriam para o lago contíguo e mergulhavam na água fria, tentando apagar aquele fogo incontrolável, e voltavam ainda ensopados para o meio da festa, onde “várias monstruosidades estavam ali em hipótese, em íntima admissão, e seriam imediatas realidades se a frouxa luz do farol se apagasse de vez”, e era essa ilusão que continha a ação dos famélicos. “Os seus braços, que se arqueavam, com gesto de posse definitiva, sobre o busto das cinco mulheres, acabavam por abrir-se em renúncia, sempre que o acordeão emudecia” (CASTRO, 1979, p.119).
A mistura explosiva de lubricidade com álcool empurrava aqueles homens para um abismo ainda maior, ampliando a sensação de inferno nos momentos posteriores à euforia. Um inferno cujo tormento se eternizava até na ironia do nome emprestado àquele pedaço de chão, o Paraíso. Se um paraíso de verdade era um lugar de delícias e de gozo, aquele “paraíso” parecia ser, para aqueles homens, a exata expressão do “inferno”, porque lhes era tolhido o direito de dar vazão a uma das suas necessidades mais vitais, o sexo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A universalidade e a atemporalidade da arte literária possibilitaram a Alberto Rangel e Ferreira de Castro eternizar os flagrantes de abrasamento sexual masculino nas imagens indeléveis que criaram. Relativamente ao tema, o brasileiro e o português fazem coro com dezenas de autores que trouxeram à tona as relações sociais deterioradas do submundo dos seringais, um submundo de estupidez que os propagandistas do ciclo da borracha, em geral abonados pelos governos locais, faziam questão de manter numa zona de silêncio. Propagandeavam o fausto reinante nas cidades de Manaus e Belém, que eram consideradas verdadeiras réplicas de grandes cidades europeias incrustadas na selva, cidades-cenário montadas para o espetáculo do capital estrangeiro, no dizer de Souza (2003). Mas o que acontecia no interior da floresta era cuidadosamente silenciado, até aparecerem as primeiras obras que, de alguma forma, começaram a romper com esse silêncio construído. Entre essas obras encontram-se Inferno verde e A Selva.
Tanto em “Maibi” quanto em A Selva encontramos flagrantes de uso da mulher como objeto de troca, exasperação masculina pela falta da fêmea, crime passional motivado pelo ciúme, homens em estado de enlouquecimento pela privação de sexo, dança entre homens, em razão da escassez de mulheres, estimulando desejos homossexuais, além da cobiça tresloucada da mulher do outro. Particularmente em “Maibi”, percebemos um olhar dúbio em relação à mulher, encarada ora como estorvo ora como premente necessidade. Já em A Selva são evidentes as cenas de masturbação, estupro, zoofilia e pedofilia. Também ressaltam-se variadas formas de prostituição envolvendo coronéis e mulheres “encomendadas” nos bordéis de Manaus e Belém,  tudo envolvido numa linguagem de tendência naturalista com vistas ao enfoque determinista dos fatos.
Essas cenas fortes e pungentes que trazem o homem e sua animalidade para o primeiro plano acabam deixando em segundo plano, em certa medida, a figura da mulher, em seu martírio de se ver reduzida a um campo de exercício do gozo do macho. Wolff (2011) chama a atenção para esse apagamento da presença feminina na escrita sobre a Amazônia de então, e rejeita a acepção dos seringais como um espaço vazio de mulheres. Sua pesquisa aponta que as mulheres, embora não fizessem parte das estratégias dos coronéis para a ocupação e o povoamento dos seringais, elas se fizeram presentes e desempenharam um papel imprescindível na organização e funcionamento daquele mundo, emprestando a sua tenacidade e a sua dedicação ao trabalho.
Todavia a historiografia, assim como a ficção, pondo o elemento masculino em primeiro plano, reserva à mulher o diminuto papel de objeto de desejo do homem. Daí resultarem as imagens recorrentes, como aparecem conjuntamente em “Maibi” e em Inferno verde, da menina assediada e morta pelo seringueiro desvairado, da esposa de um espreitada pelo outro,  da mulher assassinada com requintes de crueldade, da anciã aliciada e estuprada, da dedicada esposa do coronel que ficava em Manaus cuidando da família, enquanto este esbaldava-se com prostitutas, das prostitutas que serviam como objeto de troca nos barracões. E por via dessas imagens e de outras tantas da mesma natureza, glosava-se o mote do abrasamento sexual masculino no interior da hileia.
                                                                                             
REFERÊNCIAS


CASTRO,  Ferreira de. A Selva. Lisboa: Editora Guimarães e Cia., 1979.

KRÜGER, Marcos Frederico. “Grande Amazônia: Veredas”. In: RANGEL, Alberto. Inferno verde – cenas e cenários do Amazonas. 5. ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2001.

LETÍZIA, Maria Eva. “Crítica publicada na Revista Castriana em Portugal”. In: BAZE,  Abrahim. Ferreira de Castroum imigrante português na Amazônia. Manaus: Valer, 2005.

LIMA, Cláudio de Araújo. Coronel de barranco. 2. ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2002 (Resgate II).

LIMA, Lucilene Gomes. Ficções do ciclo da borracha: A Selva, Beiradão e O amante das amazonas. Manaus: Edua, 2009.

LINHARES, Erasmo do Amaral. O Tocador de charamela. Manaus: Edua, 1995.

MAIA, Álvaro. Banco de canoa – cenas de rios e seringais do Amazonas. 2. ed. rev. Manaus: Edua, 1997.

NASCIMENTO, Maria das Graças. O trabalho silencioso da mulher no interior da floresta amazônica. Revista de Educação, Cultura e Meio-ambiente. Março -N° 11, Vol II, 1998. www.revistapresenca.unir.br/artigos_presenca. Acessado em 11.09,2012.

RANGEL, Alberto. Inferno verde – cenas e cenários do Amazonas. 5. ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2001.

SOUZA, Márcio. A Expressão amazonense, do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. Manaus: Valer, 2003.

WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: outras tantas histórias. Revista Estudos Amazônicos, vol. VI, nº 1 (2011), pp. 21-40 http://www.ufpa.br/pphist/estudosamazonicos/arquivos/artigos/ acessado em 11.09.2012.





[1] O pajurá, conforme o dicionário Aurélio, é uma planta amazônica da família das rosáceas cujo fruto carnoso, doce e perfumado, apreciado pelo seu agradável sabor, tem uma cor próxima do amarelo.