Maria Célia (UNIR)[1]
Elton Emanuel Brito Cavalcante
(UNIR)²
RESUMO: O discurso mitológico advém da fusão entre o real e o
fantástico. Essa mescla aparece no romance “Órfãos do Eldorado” de Milton Hatoum,
pois nesse texto não se sabe ao certo onde se iniciam as impressões pessoais
dos personagens e onde começam as representações fenomenológicas dos mitos. Os
símbolos e signos expostos pelo autor coadunam com a noção de alteridade e de
memória, numa espécie de impressionismo, pois nem sempre o que está posto em
seus livros representa o que a coisa é em si mesma. O objetivo deste trabalho,
portanto, é analisar como os mitos apresentam-se no texto, tanto do ponto de
vista fenomênico quanto histórico-dialético, e averiguar se representam de fato
os interesses políticos e econômicos das minorias políticas na sociedade. Para
tanto, deve-se ter claro que se usará aqui o conceito de mito na vertente tradicional, que se subdivide em duas
perspectivas: como uma explicação ontológica e cosmológica para a realidade
fenomênica; e, também, como um discurso que carrega em seu bojo uma moral
atrelada aos interesses do Estado.
Palavras-chave: Mito tradicional; mito pós-moderno; conflitos
sociais.
ABSTRACT: The mythological
discourse comes from the fusion of the real and the fantastic. This mix appears
in the novel "Orphans of Eldorado" Milton Hatoum, because this text
is not known for sure where begins the personal impressions of the characters
and where they begin the phenomenological representations of myths. The symbols
and signs exhibited by the author are consistent with the notion of otherness
and memory, a kind of impressionism, it is not always what is put in their
books is what the thing is in itself. This study, therefore, is to examine how
the myths are presented in the text, both from the point of view of phenomena
as historical-dialectical, and ascertain whether in fact represent the
political and economic interests of political minorities in society. Therefore,
it should be clear that it will use here the concept of myth in traditional
strand, which is divided into two perspectives: as an ontological and
cosmological explanation for the phenomenal reality, and also as a discourse
that carries in its wake a morality tied to state interests.
Keywords: Myth
traditional, postmodern myth; social conflicts.
- INTRODUÇÃO
A literatura na
Amazônia vive uma querela: alguns afirmam ser ela ideológica e limitada a uma
perspectiva regionalista; outros alegam ser ela mera cópia daquilo que é
produzido nos centros econômicos mais desenvolvidos do Brasil. Essa polêmica
deixa entrever outra, de caráter econômico: grupos hegemônicos, representantes
do capital, pressionam para que os recursos naturais da região sejam convertidos
em riquezas; e um outro grupo, que busca a preservação da floresta e dos povos
tradicionais que nela residem, insinua que o caráter desenvolvimentista adotado
na Amazônia destruirá o imaginário coletivo tradicional, formando um povo que
não se reconhece a si mesmo nem a sua cultura.
Milton Hatoum aborda esse tema.
Quando se trata da temática regional na Amazônia, impossível não se referir aos
mitos da tradição oral; e Hatoum aborda-os bem; de fato, em seus romances, as
personagens vivenciam-nos substancialmente. Entretanto, o discurso mitológico
aí advém de uma espécie de fusão entre o real e o fantástico, a tal ponto de se
questionar se os personagens estão inseridos em uma realidade transcendental ou
numa representação realística do mundo.
Nos romances de Hatoum, não se sabe ao certo onde se iniciam as
impressões pessoais dos personagens e onde se começam as representações
fenomenológicas dos mitos. Compreender, portanto, o que é insinuado nesses
romances é tarefa que tem como pressuposto uma análise do discurso histórico,
que beira a uma aproximação entre o psicológico e o cultural. Afinal, os
símbolos e signos expostos pelo autor coadunam com a noção de alteridade e de
memória, numa espécie de impressionismo, pois nem sempre o que está posto em seus
livros representa o que a coisa é, mas sim como as pessoas relembram-na ou
gostariam de vê-la. Enquanto o mito exposto nas sociedades tem valor objetivo,
válido para todos, os mitos em Hatoum têm um quê de subjetivismo típico das
análises psicológicas dos romances pós-modernos.
Essa visão impressionista aparece incisivamente em Órfãos do Eldorado, romance publicado em 2008, cujo enredo tem como
pano de fundo os mitos tradicionais. O objetivo deste trabalho é analisar como
tais mitos apresentam-se no texto tanto do ponto de vista fenomênico quanto
histórico-dialético. Para tanto, deve-se ter claro que se usará aqui o conceito
de mito na vertente tradicional, a
qual se subdivide em duas perspectivas: como uma explicação ontológica e
cosmológica para a realidade fenomênica; e, também, como um discurso ideológico
que carrega em seu bojo uma moral e uma ética
atreladas aos interesses do Estado. Então, por esse ângulo, pode-se questionar
se os mitos que aparecem no enredo de Órfãos do Eldorado representam de fato os
interesses políticos e econômicos das minorias políticas na sociedade.
2. OS MITOS TRADICIONAIS E OS PÓS-MODERNOS
O vocábulo “mito” advém do grego “mytos” e significa contar algo. Na
linguagem coloquial, entre os gregos, tinha também o significado de mentira,
engodo. Turchi (2003) afirma que entre os gregos antigos o termo mito era
sinônimo de coisa absurda, enganosa, pois se constituía de narrativas
inverossímeis, geralmente atribuídas às façanhas dos deuses; sendo usado também
como argumento falacioso, corrompendo assim o logos, a razão. Por causa disso,
“Platão se propõe a manifestar seus próprios mitos, novos mitos: da alma, do
esquecimento e da recordação, do nascimento e da vida no além. Em sua obra, o
pensamento racional parece constantemente emergir de um sonho mítico” (TURCHI,
2003, p. 14).
Portanto em Platão há uma transição de um mundo grego, que ainda via no
mito um fundamento de explicação para as coisas, para outro baseado na reflexão
filosófica. Os mitos, assim, podem ser tipificados em dois segmentos: a) os de
cunho tradicional, ligados mais a realidades rurais e campesinas, que, por sua
vez, podem ser subdivididos em dois quanto aos objetivos intrínsecos: o de
serem uma explicação ontológica dos fenômenos físicos e espirituais; e um outro,
que pode até explicar, todavia tem como escopo a fundamentação de um valor
moral e social; b) e outros de um caráter mais contemporâneo, surgidos nos
grandes centros urbanos e relacionados diretamente com o processo de
industrialização. Estes foram abordados por pensadores como Adorno e Horkheimer
(2006), embora afirmem que os mitos pós-modernos são reflexos não da
contemporaneidade em si, mas de um longo processo evolutivo.
2.1. O mito tradicional como explicação ontológica
Historicamente, o mito tradicional
é algo ancestral e universal a toda cultural humana, pois o homem tenta
entender as causas dos fenômenos, nesse sentido, o mito é uma explicação para a
origem das coisas particulares e gerais. Por essa perspectiva, mito tradicional
é, portanto, uma explicação ontológica próxima das explicações que a religião,
a metafísica e a ciência procuram dar aos fenômenos, pois todas estas têm em
comum com ele a tentativa de entender e justificar a existência de algo. Mircea Eliade (1972), sabendo da dificuldade
de encontrar uma definição para os mitos, descreve-os como uma história sagrada
sobre as peripécias dos entes sobrenaturais em um tempo primordial que traz em
si uma explicação para os fenômenos, “seja uma realidade total, o Cosmo, ou
apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano,
uma instituição (...). Ele relata de que forma algo foi produzido e começou a
ser” (ELIADE, 1972, p. 09).
Além disso, o mito tradicional é uma narrativa, sendo a linguagem oral o
seu veículo primordial de transmissão. Conforme Eliade: “O mito é uma realidade
cultural extremamente complexa que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.” (ELIADE, 1989, p. 11). Assim, ele vai depender de determinada
interpretação, de como o observador o entende; é uma perspectiva de caráter
subjetivo, na qual o conteúdo a ser transmitido é mais importante do que a
forma. É por isso que muitos fenômenos,
como a morte, a chuva, por exemplo, são interpretados, em termos de mitológicos,
diferentemente em muitas culturas.
O mito tradicional poderia ser entendido como prolegômenos para a
iniciação filosófica e depois para a científica, sendo, pois, uma espécie de
estágio ancestral do saber tecnológico moderno. Essa perspectiva é combatida
veementemente por Lévi-Strauss (2008), em O
Pensamento Selvagem, quando diz que não se deve aceitar a tese de que o
mito tradicional seria apenas uma forma ancestral do saber científico, pois
para ele o “pensamento mágico forma um sistema bem articulado; independente
(...) desse outro sistema que constitui a ciência (...). Portanto, em lugar de
opor magia e ciência, seria melhor colocá-las em paralelo, como dois modos de
conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos” (LÉVI-STRAUSS,
2008, p. 28).
Assim, não se subestime o mito, pois pode não ser ele científico, contudo
é a expressão de toda uma coletividade, de um acúmulo, muitas vezes ancestral,
de informações, reflexões, erros e acertos que devem ser levados em
consideração.
2.2 O mito tradicional como valor moral
Além do conceito ontológico, o mito também possui um valor de
consolidação de uma ideologia ou de uma moral implícita ou explícita. Para
Werner Jaeger (1995), o mito tradicional por essa perspectiva tem valor de
norma educativa: “O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela
o orador (...). Não têm um caráter meramente fictício, embora originariamente
seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que
alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição. (JAEGER, 1995, p. 4).
O mito assim é entendido “como sendo a narrativa daquilo que se pretende que
seja, enquanto expressão do pensamento de uma dada sociedade” (ROSSI, 2007, p.
37). Nesse sentido de “significado normativo”, passa a se aproximar da lenda e
da fábula, pois tem como objeto o convencimento e a consolidação de valores
morais. Esse papel, entretanto, não pode ser considerado excludente daquilo que
Mircea Eliade (1972) propôs, ou seja, o mito como explicação cosmológica e ontológica.
Jaeger (1995) afirma que o grande educador por meio do mito na Grécia
antiga foi Homero, embora este, segundo o autor, tenha abordado o mito de forma
crítica, relacionando-o com a arte e a epopeia, grande veiculadora do mito;
entretanto, para ele, o mito é ferramenta que por si só tem valor educativo,
independente da realidade a que se refere: “Ele não é educativo pela comparação
de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe
corresponde no mito, mas sim pela sua própria natureza” (JAEGER, 1995, p. 4).
Assim, o essencial no mito não seria sua função de explicação ontológica, mas o
seu valor de fundamento moral que tiraria da explicação ontológica apenas um
suporte para sedimentar valores educativos em uma sociedade.
Aristóteles, na Poética (1966), usa o termo mito com a conotação de uma
verdade representada, colocando-o como a base da tragédia. O mito seria a
consequência de uma construção logicamente concebida sob um fundo de pequenas
histórias fornecidas pela tradição, as quais se transformam em mito por meio da
tragédia. É o gênero trágico que moldará o mito. O objetivo da tragédia e do
mito é a sublimação por meio da catarses, autoconhecimento que só a visão da
dor alheia pode proporcionar. Nesse sentido, o mito continua a ser, pois, uma
forma de educar.
3. OS
MITOS TRADICIONAIS EM “ÓRFÁOS DO ELDORADO”
O enredo do romance Órfãos do
Eldorado ocorre em algumas cidades da Amazônia, a primeira é Vila Bela,
povoado no interior do Estado do Amazonas, e a cidade de Manaus, durante os
dois ciclos da borracha. Os personagens principais são: Edílio Cordovil,
patriarca da família; Amando Cordovil, sucessor dos negócios do pai; Arminto
Cordovil, narrador-protagonista; Dinaura, amante de Arminto; Florita, índia e
ama seca de Arminto; Estiliano, advogado
da família e melhor amigo de Amando Cordovil. O romance é narrado em primeira
pessoa e tem como principal personagem, Arminto Cordovil. Os fatos narrados
referem-se a dois momentos: o primeiro ciclo da Borracha (1850 a 1912), época
de esplendor em Manaus, cujo progresso e ostentação eram reconhecidos até mesmo
na Europa; neste período, o narrador é jovem e vive suas aventuras amorosas; o
segundo ciclo da borracha (1942 a 1945), época em que o protagonista reencontra
seu grande amor.
3.1. Da mentira ao mito em Órfãos
do Eldorado
A formação cultural de Arminto
Cordovil se deve basicamente à Florita, índia que foi morar ainda criança na
casa de Amando:
a tarde em que
Amando se embrenhou na floresta para trazer de volta uma família empregados
fugidios. Voltou de mãos vazias. Quase vazias: uma moça malvestida e descalça
vinha atrás dele. Tinha sido capturado por Almerindo, que depois foi ser
caseiro em Vila Bela. Pobre e corajosa, dizia Amando. Não quis fugir com os
preguiçosos, largou a família para trabalhar e viver melhor (...). Em Vila Bela
ela estudou e ganhou um nome, com batismo cristão, festejado. Amando dizia que
era uma cunhamatã de confiança (...). Essa moça me criou. A primeira mulher na
minha memoria. Florita. (Hatoum, 2008, p. 69).
Quem garante que Florita não foi sequestrada como tantas outras índias da
época? Fato: Florita adaptou-se à realidade urbana; entretanto manteve alguns
traços marcantes de sua cultura originária. A prova disso é que falava a
“língua geral” e compreendia bem os mitos e fábulas de seu povo. Além disso, Florita tinha presságios:
“Florita sussurrou com ódio: Vais voltar de Belém com o demônio no coração”
(Hatoum, 2008, p. 74-5). Tais presságios abalam o psicológico de Arminto: “e,
como eu me impressionava com o que me dizia, ficava sem fala diante dessa
mulher que cuidou de mim como uma mãe” (Ibidem, p. 37-8). Florita, por ciúmes,
ou para protegê-lo, muitas vezes inventava-lhe histórias que lembram o processo
de formação dos mitos, como é o caso da índia tapuia que se lançou ao rio:
Uma índia, umas
das tapuias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro o desenho da pintura
no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo de urucum. (...) Florita
foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em língua indígena;
traduzia umas frases e ficava em silêncio desconfiada. Duvidava das palavras
que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia
caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na aldeia. Até o dia em que foi
atraída por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das
aguas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava
sem olhar os carregadores da rampa do Mercado, os pescadores e as meninas do
colégio do Carmo. Lembro que elas choraram e saíram correndo e só muito tempo
depois entendi por quê. De repente a tapuia parou de falar e entrou na agua. Os
curiosos ficaram parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava como
calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, aí
alguém gritou: a doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram até a ilha, mas
não encontraram a mulher. Desapareceu. (Hatoum, 2008, p.11-12).
Florita mentira, é o que, já velha, declara:
No fim da
tarde, quando a gente andava pela beira do Amazonas, pensei na mulher: a tapuia
que ia morar como o amante no fundo do rio. Lembrei do céu esquisito, com o
arco-íris que parecia uma serpente no espaço. Florita se lembrava daquela
tarde? Ela (Florita) entrou na água e,
de costas para mim, disse:
Não foi isso
que ela contou, não.
Mas ela falava
em língua geral, e tu traduzias.
Traduzi torto.
Tudo mentira.
Mentira?
E eu ia contar
para uma criança que a mulher queria morrer? Dizia que o marido e os filhos
tinham morrido de febres, e que ela ia morrer no fundo do rio porque não queria
mais sofrer na cidade. As meninas do Carmo, as indiazinhas, entenderam e saíram
correndo. (Hatoum, 2008, p. 90).
Florita dissera que a mulher fora atraída por um ser encantado e que iria
morar com o amante. O eufemismo usado foi necessário para não chocar o menino.
Essa mentira lembra o processo de formação dos mitos. O tempo dos mitos gregos
pode ser dividido em duas eras: a heroica e a pós-heroica. A primeira, momento de incertezas e
imprecisões, durante o qual a tradição oral foi criada e mantida. O principal
objetivo do discurso mitológico nessa era foi a formação e a manutenção de uma
identidade que garantisse uma consciência coletiva e assegurasse um orgulho
pan-helênico. Na segunda era, o que marcou foi o interesse na preservação do
passado remoto e mítico, o qual não dispunha de registro escrito, por isso foi
preservado por meio da oralidade.
O mito, pois, era criado por um interesse coletivo. Embora o interesse de
Florita fosse individual, a estrutura inventada por ela segue o mesmo processo.
Ela modifica uma história com intenção de afastar Arminto de uma situação
insegurança. Algo parecido faz a coletividade preservando da dor precoce os
seus descendentes. O humano frente a realidades que não consegue explicar tenta
amenizar a dor das gerações futuras, inventado histórias que a tradição usará
como verdades consolidadas, eis então o mito em sua forma mais pura.
Alguns grupos indígenas fazem diferença entre “mitos verdadeiros” e
“mitos falsos”. Os “mitos verdadeiros” seriam as cosmogonias e estariam ligadas
ao sagrado. Já as histórias falsas apareceriam ligadas ao profano, tendo, por
fim, cunho moral educativo e não explicativo de realidades ontológicas. Eliade
(1989) exemplifica:
Os Cherokees
distinguem entre os mitos sagrados (cosmogonia, criação das estrelas, origem da
morte) e as histórias profanas, que explicam, por exemplo, certas
peculiaridades anatômicas ou fisiológicas (...). A mesma distinção é encontrada
na África. Os Hererós consideram "verdadeiras" as histórias que
relatam a origem dos diferentes grupos da tribo, porque narram fatos que realmente aconteceram, enquanto que os
contos mais ou menos cômicos não têm qualquer fundamento. (Eliade, 1989, p.
10).
É essa “crença verdadeira” que, segundo Benjamin (1996), está a se
extinguir, pois com o advento da informação jornalística, o homem passou a
refletir sobre aquilo que ouve e vê, e isso não lhe permite mais aceitar o mito
como verdade inquestionável; e, sendo o mito o elemento primordial das
narrativas tradicionais, Benjamin deduz que a forma de narrar tradicional
deixou de existir. Restaram as “histórias falsas”, que na contemporaneidade se
aproximam das lendas; pois nestas há resquícios do maravilhoso das eras
primordiais, porém sabe-se que apenas contêm uma moral implícita, que pode ser
ou não aceita.
Entretanto, o mito tradicional ainda ecoa em zonas rurais e pequenas
cidades. Era esse o caso de Vila Bela. Os mitos lá se confundem com superstições
e boatos. Quando Dinaura e Arminto se encontravam na praça do “Sagrado Coração
de Jesus”, rumores apareceram de que a moça transformar-se-ia numa cobra
gigante:
No porto de
Vila Bela, alguém espalhou que a órfã
(Dinaura) era uma cobra sucuri que ia me devorar e depois me arrastar para um
cidade no fundo do rio. E que eu devia quebrar o encanto antes de ser
transformado numa criatura diabólica. Como Dinaura não falava com ninguém,
surgiram rumores de que pessoas caladas eram enfeitiçadas por Jurupari, deus do
Mal.” (Hatoum, 2008, 34,35).
Dinaura é tida como moça sombria não porque fosse um monstro mitológico,
mas porque as condições sociais exigem que ela aprenda a aceitar as imposições
das classes abastadas. O preconceito é notório: embora a Igreja recolha as
crianças indígenas órfãs, recolhe-as com imposições e distinções, é o que
revela o narrador durante a festa da Padroeira:
As órfãs e as
internas entraram na praça do Sagrado Coração de Jesus em fila indiana. (...)
Vi as filhas de famílias ricas separadas das órfãs, e uma roda de meninas
tapuias encolhidas pela timidez e pobreza. Todas gostavam da festa da Padroeira
porque era o dia mais livre do ano. (Hatoum, p. 43,44).
Dinaura é associada a algo sombrio porque a vida dela é uma incógnita. O
narrador diz que foi trazida por Amando Cordovil e que ela poderia ser tanto
amante como filha deste. Mas o povo parece não saber dessa situação. E mais
curioso fica ao saber que ela mora em uma casa isolada das outras órfãs,
possui, pois, regalias e privilégios. Como explicar isso? O mito parece ser a
resposta, mito este que se confunde com a boataria local. A personalidade de
Dinaura ajuda a criar uma áurea de misticismo sobre si. E é essa situação meio
mágica que vai alimentar os desejos de Arminto Cordovil: “Às vezes, eu escutava
a voz de Dinaura nos sonhos. (...) falava de um mundo melhor no fundo do rio.
De repente, ela ficava muda, assombrada com alguma coisa que o sonho não
revelava” (Hatoum, 2008, p. 41).
No fundo, há duas Dinauras: a real e a idealizada pelo protagonista. A real sente-se amedrontada pelo namoro com
Arminto, não só pela pobreza, como também pela sua raça; sua raça é empecilho
para que se casem, constituam uma família sociavelmente aceita à época. Dinaura
não se sente bem naquela cultura que a vê como um bicho. Assim como ela, muitas
não se enquadram naquilo que a Igreja quer para suas pupilas: “As mais afoitas
escapavam (das festas da Padroeira) e se enxeriam para os rapazes de Manaus e
Santarém. Diz que três ou quatro órfãs engravidavam na noite de devoção à
Virgem...” (Hatoum, 2008, P. 44). Era a sina das que se revoltavam.
3.2
mito, religião, erotismo e o choque entre as culturas em Órfãos do Eldorado
Os mitos são como faca de dois gumes: podem ser de fato uma tentativa de
explicação sobre os fenômenos do mundo, mas podem ser também uma forma de
dominação, é o que diz Rossi ao analisar os mitos entre os gregos antigos:
Deve-se pensar
o mito, portanto, enquanto veículo de informações, uma necessidade das verdades
encarregadas da manutenção do status quo das polis gregas e, por analogia, da
categoria dos cidadãos. (...) A função dos mitos na formação do cidadão grego é
a de incutir no imaginário da polis a credulidade (...) [em] uma pequena
parcela da população (Rossi, 2007, p.41).
Em Vila Bela, igualmente, há os povos “dominados”, os
indígenas: muitos de sues mitos foram suplantados por mitos de tradição
europeia. Esse conflito não é meramente um mito destruindo outro, mas sim uma
cultura sendo deglutida por outra. Muitos indivíduos indígenas sofreram crises
psicológicas que os levavam à loucura. A Igreja quase sempre considerou isso
manifestação do mal. Sobre isso, o narrador dá o exemplo de outra órfã:
Não me lembro
das outras penitências, só da última. (...) O nome da penitente era Maniva.
Magrinha e baixa, diz que veio de muito longe para trabalhar na casa de um
vereador e acabou no orfanato. Ela havia estudado nas missões do Alto Rio
Negro, por isso falava português. Antes de morar no orfanato de vila Bela, não
parava de sonhar com sangue. Meu sangue era um pesadelo, disse a penitente.
Tinha uns doze anos e já era órfã quando viu sangue escorre de sua vagina e
tomou um susto. O primeiro sangue. Sentiu a cabeça latejar, e gritou tanto de
dor que seu tio levou a coitada para ser curada por um pajé da aldeia. (Hatoum,
2008, p. 45)
Observe que ela não foi levada a um médico, mas a um curandeiro da tribo,
aquele que para a cultura branca faz apenas “beberagens” enganosas, ou seja, um
charlatão. O narrador continua falando sobre a ida de Maniva ao pajé:
Maniva foi
proibida de entrar na casa, porque o sangue da menstruação era maléfico para os
pajés. Sangue sagrado. Proibido. Era
enviado pelos espíritos da natureza: trovões, as águas, os peixes e até o
espírito dos mortos. Então o pajé contou que o criador do mundo chupou o
rapé-paricá da vagina de sua sobrinha que estava menstruada, dormindo. Uma
parte do pó caiu na terra dos povos da Amazônia e se espalhou por toda a
floresta, mas só os pajés podem cheirar o pó do cipó e ver o mundo, eles têm o
poder de abrir a visão e depois transformar, criar e curar os seres. A moça
ouviu isso: quando o pajé chupa o sangue, o pó, ele morre; quer dizer, a alma
dele sai do corpo e viaja para o outro mundo, mais antigo, o começo de tudo.
Ele abre os braços para as nuvens, abraça o céu e canta; senta e cheira várias
vezes paricá com o osso da perna de um gavião, e aí traz o outro mundo para o
nosso. Quando o pajé olhava as nuvens em
movimento, dizia que estava no mundo
sagrado e eterno, e assim ele podia agir no mundo humano. Ele via o que eu não via, o que
nenhum de nós vê , disse Maniva. Via os osso do próprio corpo, via a alma
viajar par muito longe, ate chegar à boca
do rio qu corre no fundo da terra. Depois ele continuava a subir por uma
escada, caminho para o outro céu. O pajé mais antigo mora lá em cima, na última
escada. Um céu todo branco e prateado. Um novo mundo. Céus sem doença (Hatoum,
2008, p. 45).
Esse mito é comum a várias culturas e, de certa forma, está no próprio cristianismo. Mesmo assim, a reação do catolicismo a esse
mito é de contestação. E por que isso? Porque os mitos são próximos às
religiões; e estas têm em si a ideologia da classe dominante. Maniva se curou,
mas teve uma consequência inesperada:
Quando o pajé
parou de falar, a cabeça de Maniva não latejava mais. Nunca mais ela sentiu
dor. Mas os pesadelos com sangue atormentavam sua vida. E, quando o tio morreu,
ela viajou para Manaus, depois veio com um regatão para Vila Bela. Viajando e
sonhando com sangue até encontrar madre Carminal (freira responsável pelo
convento em vila Bela) e rezar com ela para apagar o pesadelo. Não queria mais
recordar as palavras do pajé. Fez os sinal-da-cruz, se ajoelhou e chorou,
sacudindo o corpo; depois estendeu os braços para o céu e gritou o nome de Deus
e da Virgem do Carmo. Os romeiros e as órfãs aplaudiram com muita zoada, e eu
fiquei pensando na penitente e nos pesadelos de sangue. Maniva, os romeiros, as
órfãs, as religiosas, todo mundo estava enlouquecendo? (Hatoum, 2008, p. 45,46).
A índia deixou de crer naquilo que lhe foi ensinado. Ela, mesmo sendo
curada pelo pajé, renegou-lhe devido aos pesadelos. Se o contar e o ouvir as
narrativas é o que possibilita às novas gerações o aprendizado de uma cultura,
como fica tal índia que se aterrorizou com a sua própria cultura? E o que tais
sonhos no mito acima significam? Pode ser o simples temor de uma adolescente ao
ver o sangue menstrual, pode representar o sangue de sua raça sendo dizimada,
ou pode, ainda, representar o sangue simbólico que ela terá que verter sempre
para se adaptar à nova realidade social em que se encontra, órfã em um lugar
onde o “sangue de Jesus” é a sublime ferramenta de limpeza de todos os pecados.
O inconsciente está a dizer-lhe algo.
O narrador, vendo a moça e a plateia em êxtase, se indaga: “todo mundo
estava enlouquecendo?” Esse ritual meio pagão era aceito e incentivado pela
Igreja, por quê? Porque esta precisava permitir esse ritual à parte, pois é a
partir dele que as índias iriam publicamente reconhecer que suas crenças e
mitos eram coisas malignas. O lado sensual precisa ser exposto para que a
sociedade veja o quanto os ritos pagãos e indígenas levam à luxúria e a orgias,
e que somente pela aceitação dos valores cristãos é que se encontrariam os
equilíbrios sexual e espiritual.
Muitas das índias participantes dos rituais, de forma até meio
revolucionária, não permitiam que o sexo lhes fosse expurgado como algo
doentio. A Igreja perdia nesse tópico: esconder o desejo carnal, combater o
lado místico e sensual das histórias mitológicas não acabava de fato com o
desejo real, tanto que a própria madre Carminal diz, entristecida: “Rezam com
devoção (as órfãs indígenas) e não acreditam em nada.” (Hatoum, 2008, p. 40).
Não acreditam em nada do que é pregado pelo cristianismo, pois estão ali no
orfanato porque não têm para onde ir, precisam se adaptar, ou melhor, fingir
que se adaptam à nova realidade. E a festa da padroeira é o dia para poderem se
soltar, deixar a sensualidade florir, de renegar, por meio dos atos sensuais,
aquilo que para elas é moralismo excessivo da Igreja.
A igreja combateu os mitos pagãos, mas a liberdade que eles
proporcionavam era difícil de regular, pois mexe com os desejos e necessidades
naturais dos humanos. A festa da padroeira foi, assim como o é carnaval, a
maneira de as moças se soltarem um pouco, de deixarem extravasar os seus
desejos, proibidos pela Igreja:
Dinaura
apertava meu braço com a mão suada; a coxa tremia, os pés batiam no chão. De
repente me largou, correu até o coreto e começou a dançar. Foi uma gritaria, e
não eram gritos de devoção. (...) os ombros ficaram nus, e não olhava para mim,
e sim para o céu. Acho que não enxergava nada, ninguém. Cega para o mundo,
possuída pela dança. (Hatoum, 2008, p. 46)
Ela está “possuída” e “não eram gritos de devoção”; não se pode negar a
semelhança tom de orgia em pleno ritual católico. A dança até parece ser uma
preparação para primeira relação sexual entre Arminto e Dinaura. Relação de
“bicho”, animal sem freios:
Numa tarde de
dezembro, cheguei mais cedo à praça (onde ambos se encontravam regularmente),
deitei no banco morno e dormi. Quando as cinco badaladas me despertaram, o
rosto de Dinaura surgiu contra o sol. Não tive tempo de perguntar sobre a
dança, nem para me erguer: vi os olhos pretos, grandes e assustados. Podia ser
um sonho? Mas eu não queria sonho, desejava a mulher ali, sem ilusões. Então
acariciei com os dedos a boca de Dinaura, senti a respiração inquieta, o tremor
e o suor nos lábios abertos que roçavam meu rosto. No prazer do beijo, senti
uma dentada feroz. Soltei um grito, mais de susto que de dor. Tentei falar,
minha língua sangrava. Na confusão, Dinaura escapou. (Hatoum, 2008, p. 47).
O narrador se questiona: “por que ela escondia
o passado, por que a dança, o beijo oferecido, a dentada feroz que sangrou?”
Uma das respostas é dada por Florita, pois esta diz que Dianura usa suas armas
de “mulher” para enlouquecer a libido de Arminto. Há outra
interpretação: a mordida é sim de desejo, mas o sangue que jorra dos lábios de Arminto
está a simbolizar aquele que foi jorrado dos povos indígenas ao longo dos
séculos. O narrador demonstra que há um mescla de desejo e ódio na atitude de
Dinaura, ela quer Arminto, mas sabe que entre ambos há uma barreira social de
preconceito que nem o sangue lavará... Dinaura
mostra simbolicamente o que ele terá no futuro se ambos se casarem: desejo e
dor.
Depois da mordida, Arminto ficou sabendo que Dinaura “queria viajar para
a cidade submersa.” (Hatoum, 2008, p. 47). Essa viagem é sinônima de morte. Por
que Dinaura queria morrer? Arminto não pode ter Dinaura como esposa, ela sabe
disso, mas ele não. Ela sofre, e o mito é a única maneira de amenizar o
sofrimento de ambos, é a saída que ela tem para fugir da opressão sem
prejudicar o seu amado. O problema é que Arminto passa a idealizá-la após o
sumiço dela. Não se sabe mais ao certo se ele está apaixonado por uma mulher de
carne e osso ou por um ser onírico, místico, em suma, por um mito: quanto mais
dizem que ela é mística, feiticeira, mais lhe aguça a curiosidade e o desejo.
Ele busca nesse amor idealizado talvez a redenção para aquilo que sua
família fez de mal para as mulheres indígenas; ele mesmo fez Florita sofrer. No
decorrer do romance se vê um homem a definhar e empobrecer. E o pior de tudo é
que Arminto não sente remorso por perder todo o dinheiro do pai em luxo e
desperdícios. Parece que o dinheiro é amaldiçoado para ele. Empobrece, mas em
momento algum se esquece de seu amor juvenil. É o que se nota quando pede para
que Florita vá morar com ele:
A voz de
Florita não me recriminava, não queria me culpar. E nem era voz de ameaça.
Insisti mais uma vez: que morasse comigo, deixasse de ser orgulhosa.
E tu lá moras
sozinho? Moras com uma visagem. (Hatoum, 2008, p.91).
Arminto vive o mito: acredita que
sua amada foi para uma cidade mística e que a encontrará. Uma aura mística passou
a rondar o namoro de Arminto e Dinaura, a partir do momento em que Florita, com
ciúmes, diz ter sonhado com Dinaura:
Tive um sonho
ruim. Alguma coisa com a tua mulher encantada.
Olhei
desconfiado para Florita, e esperei outras palavras sobre o sonho, mas ela saiu
em silêncio. Os sonhos de o acaso me levavam para um caminho em que Dinaura
sempre aparecia. Lembro de ter visto na veira do rio uma mulher parecida com ela.
Muito cedo, manha sem sol, com neblina espessa. A mulher caminho na margem, até
sumir na neblina. Podia ser Dinaura. Ou invenção do meu olhar. Lembrei da
tapuia que foi morar numa cidade encantada, corria até a margem. Ninguém.
(Hatoum, 2008, p. 33).
Arminto, desde criança, viveu uma realidade propícia ao mito. Eis um
exemplo em que ele, querendo apagar as lembranças paternas, afirma que:
Não era o lugar que me perturbava: era a lembrança do
lugar. (...) Naquela noite tentei dormir no quarto dos meus pais; de madrugada
um chiado me despertou. (...) Acendi a lamparina, o vulto de um homem armado
apareceu na parede. Não era o prático da lancha. Ninguém. Apenas o rifle e o
chapéu do meu pai. Sombras. (...) Joguei o rifle e o chapéu no chão, não queria
sombras no quarto. (...) Cavei dois buracos entre a sumaumeira e o rio, e num
deles enterrei a caixa com a papelada; no outro, o chapéu, o rifle e as botas.
Ia enterrar também a fotografia de Amando, o rosto voltado para o fundo da
terra. Mas Florita quis guardar o retrato. (...) [Florita] Aprendeu a gostar
dele, apesar da baixeza. O Amazonas todo aprendeu. Dei a fotografia para
Florita e olhei a Boa Vida como quem olha um lugar que não deve mais ser
lembrada. Na viagem de volta para Vila Bela, pensei na mãe que não conheci
(Hatoum, pp. 68,70,71).
Por que enterrar a fotografia do pai voltada para o fundo da terra,
senão devido à superstição? Ele quer apagar o passado, e é devido a isso, já
velho, que afirma: “Eu, sozinho, era o passado e o presente dos Cordovil. E não
queria futuro para homens da minha laia. Tudo vai acabar neste corpo de velho”
(Hatoum, 2008, p. 94). Mas tem como os mitos e lendas que giravam em torno do
avô e do pai se extinguirem com a morte de Arminto? Não. Os mitos e lendas
entraram para o folclore e tradição de Vila Bela, o que Arminto poderia fazer é
extinguir suas próprias lembranças, nada mais.
3.3. Os mitos do Eldorado e da Cidade Encantada
O mito principal que, de certa forma, dá o título à narrativa é o do
Eldorado, e este permeia todo o romance. Helena Friediche fala sobre isso:
o mito do
Eldorado ou da cidade encantada está em toda a narrativa. Não apenas a mítica
cidade submersa que se denomina Eldorado; também o navio cargueiro que muita
riqueza e lucro traz (...); e, similarmente à cidade mítica, ele também
naufraga, iniciando um período de decadência matéria e de pobreza. Desse modo,
o mito do eldorado (...) desdobra-se: há o Eldorado fictício, um lugar ideal,
mas desaparecido, e outro eldorado real, que, naufragando, causa uma tragédia
material. (Friediche, 2009, p. 3).
Tal mito está, na Amazônia,
mesclado a outro, o do paraíso terreno:
Muitos nativos
e ribeirinhos da Amazônia acreditavam – e ainda acreditam – que no fundo de um
rio ou lago existe uma cidade rica, esplêndida, exemplo de harmonia e justiça
social, onde as pessoas vivem como seres encantados. Elas são seduzidas e
levadas para o fundo do rio por seres das aguas ou da floresta (geralmente um
boto ou uma cobra sucuri), e só voltam ao nosso mundo com a intermediação de um
pajé, cujo corpo ou espírito tem o poder de viajar para a Cidade Encantada,
conversar com seus moradores e, eventualmente, trazê-los de volta ao nosso
mundo. (Hatoum, 2008, p. 106).
Observe-se que o narrador usa o verbo “acreditavam” e, logo em seguida,
nega o que disse ao pôr “e ainda acreditam”. Essa indecisão é o reflexo da
Globalização e da urbanização sobre a cultura dos caboclos da Amazônia, pois é
raro hoje estes não terem acesso a algum tipo de mídia.
O primeiro mito que aparece acima
é o da cidade de ouro; ele está ligado à existência de uma suposta cidade grega
de nome Atlântida, destruída por uma erupção vulcânica e submersa. Manaus
aparece no romance como essa cidade do ouro:
Estiliano abriu uma folha de papel e me mostrou um
mapa com duas palavras: Manaus e Eldorado. (...) Já foram sinônimos, disse ele.
Os colonizadores confundiam Manaus ou Manoa com o Eldorado. Buscavam o ouro do
Novo Mundo numa cidade submersa chamada Manoa. Essa era a verdadeira cidade
encantada (Hatoum, 2008, p. 99).
É provável que os indígenas locais não tenham tido originalmente um mito
da cidade encantada, toda rica e esplêndida, mesmo porque o conceito de riqueza
exposto pelo mito é comercial, de cunho capitalista; foi provavelmente colocado
pelo europeu durante sua busca pelas riquezas minerais em terras americanas. O
indígena apropriou-se de tal mito e adaptou-o para a realidade local. Essa
teoria é viável, pois antes do período áureo do Mercantilismo, autores como
Thomas Morus, em “A Utopia”, Campanella, em “A Cidade do Sol”, Swift, em “As
Viagens de Gulliver”, escreviam sobre a existência de uma cidade utópica,
provavelmente na América, onde a sapiência e o equilíbrio espiritual eram reais
e deveriam servir de exemplo para os centros urbanos europeus. Eram utopias
críticas do Absolutismo e tinham como base a forma de governo de muitas tribos
indígenas, cujas leis eram votadas sempre pensando no bem-estar coletivo. Esse
suposto paraíso terreno incomodava não só a nobreza e o rei; também desagradava
a Igreja. Isso porque, a Europa culta, depois da revolução copérnica, passou a
crer que o paraíso divino descrito no Gênesis poderia ser conquistado neste
plano material.
Essa busca de um paraíso terreno influenciou a literatura dos centros
urbanos, os quais se voltaram para os mitos gregos e para o bucolismo dos
pastores da Arcádia, região mitológica da Grécia, onde os pastores viviam em
harmonia com a Natureza. Essa era a filosofia de homens de cidades grandes, já
movimentadas, com problemas sociais muito próximos ao que se vive hoje. Homens
que de um lado eram inspirados pelo Iluminismo a usarem sempre a razão e a crer
na ciência como chave para a salvação. Paradoxalmente, esses homens, já vendo
os efeitos nocivos da Revolução industrial, buscavam se afastar desses males
numa fuga fictícia para o campo. Esse período histórico, em literatura, é
chamado de Arcadismo. No Brasil, esse Arcadismo muitas vezes se volta para a
vida amena e tranquila dos indígenas, mostrando os mitos e lendas indígenas para
um homem letrado das cidades, exemplo disso é o Caramuru e Uraguai, poemas
épicos onde a figura do índio é idealizada e seus mitos são considerados pela
primeira vez como expressão nacional.
O desejo de fugir dos problemas urbanos e a busca por um lugar ameno para
viver, de certa forma aparecem em “Órfãos do Eldorado”. De alguma maneira
Hatoum reflete esse desejo neoárcade. A Manaus onde o romancista vive
atualmente é a megalópole da Zona Franca; então não é errado que talvez esse
seja um desejo inconsciente ou não de Hatoum de voltar a uma Amazônia mais
bucólica. Ele, no supracitado romance, compara o progresso de Manaus com a
tranquilidade de vila Bela e mostra como o homem capitalista é atormentado por
sua própria necessidade de consumo. Até a filosofia do “Carpe Diem” aparece no
romance, pois a atitude do protagonista, Arminto Cordovil, é a de rejeitar os
negócios da família e viver intensamente o presente, aproveitar os prazeres da
vida. Os mitos do Eldorado e da cidade
Encantada talvez sejam o grito de um romancista que vê o progresso como
inevitável, mas ressente-se pela incapacidade de o homem preservar a natureza.
A cidade pode ser interpretada como uma metáfora da própria Amazônia, destruída
aos poucos pelos ideais de progresso da sociedade burguesa ocidental.
A ideia de um ser mitológico e belo, que seduz as pessoas para levá-las
para o fundo do mar encontrou aqui entre os indígenas um mito semelhante: o do
boto e da sucuri. Originalmente o boto tenta explicar do sumiço de mulheres
entre os indígenas. Estes criaram o mito de uma figura de incontrolável beleza
que seduziria mulheres, as quais seriam levadas para um lugar submerso. Como
explicar a morte de uma pessoa ou a fuga ou rapto de uma mulher para os filhos?
O boto é esse grande eufemismo explicativo desse sumiço.
A cobra sucuri é outra lenda que possui cunho de realidade. Se há um
animal que mexe com os nervos dos ribeirinhos e dos indígenas é a sucuri. É
comum nos noticiários na Amazônia relatos de pessoas que são engolidas por
sucuris. Índios, pescando, de repente sumiram travados por tais cobras. Então,
o medo real tornou-se um pavor coletivo, e como a cobra mergulha em aguas
profundas, diz-se que ela tem acesso à cidade encantada. Seria ela, pois, o elo perdido para encontrar a cidade
submersa.
No entanto, a sucuri e o boto enquanto entes mitológicos possuem uma
contradição. Ambos levam as pessoas para uma cidade encantada, espécie de
paraíso, onde teoricamente todos desejariam ir. Porém levam de maneira brusca,
há o encantamento e nunca mais se vê a pessoa. Essas histórias são contadas
para acalmar o ânimo das pessoas que tiveram seus entes queridos devorados pelo
rio ou por animais predadores. As pessoas se contentam, pois sabem que seus
entes estarão numa espécie de céu submerso. Mas os seres, a sucuri,
principalmente, que as levam causam pavor aos indígenas e ribeirinhos, da mesma
forma que representação simbólica da morte para os ocidentais, ser magro, com a
foice na mão, e que lembra uma anjo negro, aterroriza muitos até hoje. Lembra também
Caronte na mitologia grega, o qual leva as almas dos mortos para o Hades. O
boto e a sucuri passam a ser então essa espécie de “anjo da morte” que levam as
pessoas para uma cidade de paz e riqueza.
Entretanto, a ideia de cidade encantada pode ser usada para outros
objetivos. Um amante inconsolado com a
fuga de sua amada busca de todas as formas encontrar uma explicação para o
sumiço da moça. Ulisses Tupi, o prático contratado por Arminto Cordovil para
procurar Dinaura, crê de fato no mito e repassa para o seu chefe aquilo que
ouviu entre os caboclos durante a procura, eis o que o narrador nos conta:
Jurou que
Dinaura estava viva, mas não no nosso mundo. Morava na cidade encantada, com
regalias de rainha, mas era uma mulher infeliz. Ele ouviu isso nas palafitas de
beira de rio, nas freguesias mais distantes; ouvia dos caboclos solitários, que
vivem com suas sombras e visões. Dinaura foi atraída por um ser encantado,
diziam. Era cativa de um desses bichos terríveis que atraem as mulheres para o
fundo das aguas. E descreviam o lugar onde ela morava: uma cidade que brilhava
de tanto ouro e luz (...) (Hatoum, 2008, p. 64).
Mas o mito do boto aqui muda um pouco em relação ao comentado alhures,
pois antes o boto era um sedutor que levava alguém à cidade encantada, agora o
mito transfigura-se, e o boto é um “desses bichos terríveis que atraem as
mulheres para o fundo das aguas”, sendo cativas deles. O mito aqui se
transfigura de acordo com o interesse do narrador. É o eufemismo, não da morte,
mas da fuga ou por intenção, ou por adultério, ou por qualquer outro motivo,
que não necessariamente a morte. Neste caso o mito é apenas uma explicação para
um fenômeno social e não cosmogônico.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito de mito pode ser entendido sob duas perspectivas distintas, a
tradicional e a pós-moderna. Aquela é uma explicação ontológica para a
existência dos fenômenos ou uma tentativa de educar socialmente através de uma
moral implícita. A segunda perspectiva é a do mito enquanto fruto de uma
sociedade industrializada; nesta, a crença nos mitos tradicionais praticamente
inexiste, sendo eles vistos apenas como algo exótico, incapaz de se chegar a
uma verdade válida sobre os fenômenos físicos e sociais. Assim, a função dos
mitos tradicionais é questionada em prol de uma nova moral, a da sociedade
industrial.
As duas perspectivas podem ser estudadas em Órfãos do Eldorado, entretanto o foco deste trabalho foi averiguar
até que ponto os mitos tradicionais representam de fato os interesses das
minorias políticas descritas no romance. Assim, buscou-se responder à seguinte
pergunta: quais são os mitos tradicionais que se visualizam no romance e o que
representam de fato? Os mitos tradicionais no livro citado são abordados não
como coisas em si, de uma realidade objetiva, mas como representações de uma
cultura em extinção (a agrária, com base na agricultura familiar), basicamente
a cultura dos povos tradicionais da floresta, em especial os indígenas. Os
mitos e lendas advindos desses povos sofreram perseguições e foram sendo aos
poucos substituídos por outros de matizes europeias. Buscou-se aqui provar esse
fato, demonstrando que os mitos expostos no livro são criticados pelas classes
mais abastadas e que muitas vezes o choque cultural entre as raças distintas
reverbera na luta entre os mitos tradicionais pré-colombianos e os europeus.
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¹ Mestranda em Estudos Literários pela Universidade
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76800-000. mariacelli1967@hotmail.com.
2 Mestrando em
Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia. UNIR. Porto Velho-
RO. Brasil. 76807490. Elton400@hotmail.com.