Valdir Olivo Júnior
(Doutorando – UFSC)
Resumo: Este trabalho propõe refletir acerca da relação entre exílio,
escrita e resistência em textos de Augusto Roa Bastos. A primeira parte deste
artigo problematiza alguns aspectos da escrita roabastiana a partir da leitura
do prólogo “El Realismo profundo en los cuentos de Daniel Moyano” escrito por
Roa Bastos para a primeira edição do livro La
lombriz (1964) do escritor argentino Daniel Moyano. Ao lermos este prólogo,
y também sua reaparição (com variações) em 1974, como prólogo da primeira
edição de El trino del diablo, também
de Moyano, encontramos relações profundas entre a leitura de Moyano feita por
Roa Bastos e sua própria literatura. É nesse sentido que nos
propomos a ler Augusto Roa Bastos com
Daniel Moyano. Ler criticamente Moyano permite a Roa vislumbrar uma relação
intrínseca entre a literatura e o político a partir de sua experiência como
escritor exilado.
Palavras-chave: Augusto Roa Bastos; Daniel
Moyano; Exílio; Escrita; Resistência
Resumen: Este trabajo propone una
reflexión acerca de la relación entre exilio, escrita y resistencia en textos
de Augusto Roa Bastos. En la primera parte se problematiza algunos aspectos de
la escrita roabastiana a partir de la lectura del prólogo “El Realismo profundo
en los cuentos de Daniel Moyano” escrito por Roa Bastos por motivo de la
primera edición del libro La lombriz (1964)
del escritor argentino Daniel Moyano. A partir de la lectura de ese prólogo, y
de su reaparición (con variaciones) en 1974 como prólogo de la primera edición
de El trino del diablo también de
Moyano, encontramos relaciones profundas entre la lectura de Moyano hecha por
Roa Bastos y su propia literatura. Es en ese sentido nos proponemos a leer
Augusto Roa Bastos con Daniel Moyano.
Leer críticamente a Moyano permite a Roa vislumbrar una relación intrínseca
entre la literatura y lo político a partir de su experiencia como escritor
exilado.
Palabras claves: Augusto
Roa Bastos; Daniel Moyano; Exilio; Escrita; Resistencia
1. Augusto Roa Bastos com
Daniel Moyano
Cuando bajó del tren y comenzó a caminar por las calles del pueblo
donde él vivía, tan familiares, que eran finalmente lo que él llamaba el lugar
de su salvación, se dijo que nada podía valer un cielo para unos pocos
elegidos, porque sería un lugar lleno de remordimientos. Cómo gozar del cielo
cuando había un infierno. Y bastaba el dolor de un solo hombre para impedir la
alegría.
Daniel
Moyano, 1964.
Em 1964 publicou-se na Argentina a primeira edição de La lombriz, segundo livro de contos de
Daniel Moyano, com prólogo de Augusto Roa Bastos que desde 1947 encontrava-se
exilado no país. Para além da importância desse prólogo no que se refere ao
reconhecimento da literatura de Moyano dentro do contexto argentino e
internacional, gostariamos de ressaltar sua relevância no que concerne a
leitura dos textos do próprio Roa Bastos e sua experiência em relação à
escrita, o exílio e o poder como violência.
Ler críticamente a Moyano fez com que Roa Bastos vislumbrasse também sua literatura.
Ou melhor, a literatura de Moyano é o pretexto
que permite a Roa Bastos refletir sobre a relação intrínseca entre a literatura
e o político apartir de sua experiência como exilado e escritor. É sua condição
de exilado, de “escritor do exílio”[1]
que Roa Bastos reconhece na literatura de Moyano. Ao referir-se a unidade
temática que une La lombriz e Artista de variedades (1957), Roa Bastos
resume suas histórias nos seguintes termos:
La mayoría de sus historias se
parecen entre sí, se enlazan, se superponen o se despliegan en variantes
cíclicas en torno a este conflicto central que focaliza su sistema narrativo.
Su anécdota podría resumirse así: Un niño, por causas que no se aclaran, debe
abandonar la casa paterna y es recogido por unos parientes. Hasta su mayoría de
edad, no podrá dejar este transitorio refugio, que acaba convirtiéndose en un
lugar de confinamiento y de castigo. La espera se arrastra sobre un tiempo
imprecisable, marcado no por días ni por años sino por peripecias y desdichas,
que tampoco varían demasiado. El protagonista pasa de la infancia a la
adolescencia, pero en lugar de adelantar hacia el futuro, hacia ese límite
incierto y siempre postergado de su liberación, lo que hace es retroceder
espiritualmente a contravida [grifo
meu], buscando como único refugio a su desamparo y a su soledad el recuerdo de
su infancia, de la que nada dice pero a la que, acaso engañándose
conscientemente, se la imaginaba dichosa. No menciona jamás a la madre. No
sabemos en definitiva qué piensa de ella. Sólo recuerda al padre, a quien
supone en la cárcel o confinado también en algún lugar degradante. En la
ausencia lo ha transfigurado. Con obstinada fe espera su venida. Un día
aparece, o por lo menos él se convence de ello. Admite que se ven furtivamente,
fuera de la casa de los tíos. El protagonista afirma que le ha prometido
llevarlo consigo, pero el día en que ha de venir a buscarlo, falta a la cita.
Desaparece otra vez para siempre y todo sigue como antes. Cuando por fin se
cumple el plazo, el muchacho se marcha de la sórdida casa. Al cabo de los años,
sin embargo, volverá. Es un intruso en
todas partes [grifo meu]. Regresa, ya adulto, al miserable poblacho porque,
después de todo, allí vivió y amó; y por lo menos ese recuerdo lo protege
contra la absurdidad del mundo. ROA BASTOS in MOYANO, 1964, p. 09).
Nesse trecho podemos indentificar o gérmen de alguns elementos centrais na
literatura roabastiana e que só seriam efetivamente elaborados anos depois. São
eles: a condição da existência como existência exilada, o conceito de “poética
das variações” e a concepção de uma literatura que se constrói como um itinerário da memória a contravida[2],
um regresso como imaginação, ou melhor, como imaginário, entendido como um
conjunto de imagens inventadas e exiladas.[3]
Mais do que recorrentes estes
elementos são uma obssessão na literatura roabastiana. Essas histórias que “se
parecem, se enlaçam, se superpõem, etc.” que Roa Bastos encontra em Moyano é o
que ele denomina, no contexto de sua obra, “poética das variações”.
O arquivo roabastiano composto
por peças de teatro, romances, poemas, contos, roteiros, músicas, ensaios e
artigos de jornais e revistas espalhados entre Paraguai, Argentina, França e Espanha,
inicia-se com o livro La carcajada,
uma peça teatral datada de 1930. Nenhuma escrita é estática e está sempre em movimento,
se expandindo, deslizando e sendo deslocada. No entanto, o arquivo roabastiano
está composto pelo retorno frequente de personagens, temas, motivos e imagens
através de uma tessitura complexa e mutante. Seus textos estão sempre em
relação, podendo ser conjugados de forma rica e variável. Este fenômeno é o que
ele denomina “poética das variações”. No prólogo da edição francesa de seu
romance Hijo de hombre (1960) ele
dirá:
Esta “poética de
las variaciones”, una de mis invenciones retóricas, tiene su justificativa en
el hecho, no comprobado, de que lo absolutamente original seria ilegible e
incomprensible. Solo se puede variar-reinventar lo ya dicho, lo ya visto, lo ya
existente. Crear es creer en lo nuevo, en lo dicho de otra manera, de una
manera de decir que dice por la manera. La justificación es débil, lo
reconozco; pero aún así, la poética de las variaciones se sostiene desde el
ángulo del sujeto-autor que trabaja en el universo no infinito pero sí
transfinito de los significados y los signos (ROA BASTOS, 1995, apud COURTHÈS, 2007, p. 01).
É em Hijo de hombre que essa poética das variações começa a se articular
mais claramente em seus textos, mas suas primeiras manifestações se encontram já
no livro El baldio de 1966. Por mais
que ele desenvolva e dê um título a esse mecanismo narrativo não se trata de
uma invenção sua, mas sim de uma forma de montagem. Uma montagem que opera por
deslocamentos e através de uma “reciclagem” de trechos de textos e filmes
inseridos em um novo contexto. Nesse sentido é bastante significativo o fato de
que ele tenha começado a fazer uso desse mecanismo no exílio e após ter
trabalhado como roteirista na Argentina. De forma que é a experiência do exílio
e o contato com o cinema que permitem a ele vislumbrar esse mecanismo e
aplicá-lo em seus textos.
Em Roa Bastos relatos breves dão
origem a relatos longos e vice-versa; seu primeiro conto intitulado Lucha hasta el alba será a semente de
seu romance Yo el supremo (1974). Existem
células em cada relato ou até relatos inteiros que permeiam direta ou
indiretamente todo seu labor criativo, montando e remontando sua obra e a
própria história.
Em Mis
reflexiones sobre el guión (1993), livro no qual ele narra sua experiência
com o cinema durante seu exílio na Argentina, Roa dá outro nome a “poética das
variações”. Ele denomina “relato parasita” um projeto de romance (intitulado Mi reino, el terror) que teria surgido
no processo de criação de Yo el supremo,
como “um pesadelo dentro do pesadelo” (ROA BASTOS, 1993. p. 14), mostrando outra face do ditador
paraguaio, desta forma teríamos já três relatos relacionados, desde seu
primeiro conto até este último “relato parasita”.
Dez anos após o prólogo de La
lombriz, e portanto dois anos antes do golpe de estado que expulsou Roa
Bastos, Daniel Moyano e muitos outros intelectuais da Argentina, surgia El trino del diablo, também com prólogo
de Roa Bastos que na verdade nada mais era do que uma reprodução, e portanto
variação, de trechos do prólogo escrito anteriormente. E novamente o conceito
de “poética das variações” volta a aparecer de forma embrionária. Roa Bastos dirá:
El autor no interviene, comenta,
interpreta ni explica nada; se limita a disponer la presencia de las cosas, de
los seres, de las sucesos, según la perspectiva de una mirada como abstraída en
otra inquietud, en otra visión. Gradualmente, a medida que la receptividad del
lector se acomoda a la difracción, se le revela otra perspectiva, mucho más
rica y completa, a la manera como sucede en algunas narraciones de Melville o
de James. Las dos irán desarrollando un sordo contrapunto sosteniéndose e
impregnándose hasta engendrar una tercera dimensión, hecha a la vez de
presentimiento y de memoria. Aquí se desarrollan otros acontecimientos que no
se narran pero que acaban contaminando la atmosfera de los relatos con un soplo
sereno y ominoso. (ROA BASTOS in
MOYANO, 1974, p. 07).
Essa autor que dispõe textos e
imagens com a perspectiva de um olhar abstraido em outra visão talvez seja a
melhor definição para a “poética das variações”, mas também de uma “escrita do
exílio”, ou melhor, uma escrita que se constrói a partir das marcas (estigmas)
do exílio.
Essa condição do homem “intrusos
em todas as partes”, imerso em um meio degradante, que Roa Bastos encontra na
literatura de Moyano, é um elemento constante também em seus textos e nos filmes
roteirizados por ele. O isolamento é a condição dos personagens de “El
aserradero”, ilhados pela selva interminável que os serralheiros, como Sísifo,
vão serrando e talhando maquinalmente. Mas é também o lugar das plantações de
erva-mate ou de cana-de-açúcar, perdidas em meio à selva para impossibilitar a
fuga dos trabalhadores escravizados, refiro-me aos contos “El trueno entre las
hojas”, “Carpincheros” além do romance “Hijo de hombre”, entre outros. No caso
dos filmes, esse isolamento fica mais claro em Sabaleros (1959), segundo
filme dirigido por Armando Bó com colaboração de Roa, também com a presença de
Isabel Sarli[4],
e Alias Gardelito (1961) dirigido por Lautaro Murúa. Em ambos os filmes
a condição de exilados se dá através da imagem do baldio que perpassa ambas
narrativas. Tanto Gardelito em Alias Gardelito quanto Bruno em Sabaleros
são jogados um terreno baldio enquanto agonizam após tentarem confrontar-se com
a realidade que os envolve.
Em Roa Bastos o exílio não é
dialético, não é uma falta a ser perdoada através de uma redenção, protótipo do
cristianismo, tampouco busca localizar dentro ou fora, expulsão e reencontro. O
exílio é a condição de existência dos personagens. Mas é também a condição da
existência moderna, ou melhor, o exílio é a característica principal do sentido
moderno da existência. Não é só o exílio político de Roa, mas sim um exílio ao
qual toda a humanidade está fadada. Não se trata de um exílio no interior de si
mesmo, mas como sendo o próprio “si mesmo”. O baldio é uma imagem que fere,
como toda imagem vinda do passado; a memória é essa imagem que, vinda do
passado, impõe uma ferida que quanto mais se revela mais se mostra distante e
inalcançável. É também o lugar das ruínas do passado revisitado que será
reconstruído miticamente. Enquanto a vida segue linearmente rumo ao futuro cujo
fim último é a morte, a contra-vida, a memória, segue rumo à infância que já
não será reencontrada, mas reinventada como território mítico.
De forma que a existência humana
se assemelha mais ao sentido romano do exílio[5]
como uma expulsão sem retorno ou cujo retorno não é nada além de um regressar
para a morte, de forma que o exílio é a constituição mesma da existência. A
partir da qual a poética roabastiana se constitui como retorno da memória feito
dentro do texto de forma que imagens isoladas ficcionais e “não-ficcionais” se
encontram rumo a uma origem sempre perdida e jamais alcançada, “sin lograr otra
cosa que tejer el reverso de lo que nunca ocurrió” (ROA BASTOS, 1995, p. 71).
2. Imagens-vaga-lumes
É nesse sentido que nas linhas iniciais do conto “Lucha hasta el alba”,
considerado por Roa Bastos seu primeiro relato, nos deparamos com o personagem
Jacó, protagonista da estória que, na escuridão da casa, escreve furtivamente
em seu quarto sob a luz de uma garrafa repleta de vaga-lumes aprisionados. Tal
artimanha seria, segundo o narrador, para burlar as proibições paternas e as
intrigas de seu irmão Esaú. A proibição feita por seu pai ocorreu porque certa
noite, lendo a luz de lapião, ele teria adormecido e derrubado o lampião que
por pouco não incendiou a casa, além de ser castigado, seu pai proibe então as
leituras noturnas.
Me acuerdo de la noche cuando se metió un
muá dentro de una botella, en el patio, y me dio la idea de una lámpara que no
fuera como las otras y que alumbrara con otra luz, la luz de los bichos que
alumbran el aire de la noche. (ROA BASTOS, 2008, p. 519).
Está anedota, considerada autobiográfica por Roa Bastos, volta a se
repetir em outras duas ocasiões. Uma delas no livro Contravida de 1994, de sua autoria, e a outra no filme El portón de los sueños, dirigido por
Hugo Gamarra, lançado em 1998, cujas filmagens começaram também em 1994. Este
processo de corte e repetição, que mais bem poderíamos identificar como corte e
variação[6],
pois tal anedota aparece de forma distinta em cada relato –imersa em uma teia
totalmente diferente de relações e contextos–, marca um gesto importante tanto
na produção literária como cinematográfica de Augusto Roa Bastos. Não se trata
aqui de um “desaparecimento dos vaga-lumes”, para falarmos com Pasolini em seu
“Artigo dos vaga-lumes” de 1975. Neste artigo, como lembra Didi-Huberman[7], o
poeta, diretor e pensador italiano vai contra o que ele denomina um novo tipo
de fascismo, pior que o anterior, que tem como alvo, “os valores, as almas, as
linguagens, os gestos, os corpos do povo”. Nesse sentido, o desaparecimento dos
vaga-lumes, para Pasolini, é também o desaparecimento do povo em suas
singularidades e enquanto humanidade que dá lugar a “singulares engenhocas que
se lançam umas contra as outras”. Para ele, os vaga-lumes desaparecem diante
das luzes enceguecedoras da sociedade de espetáculo.
Então, sem
dúvida, sim: esse mundo é fascista e ele o é mais do que o precedente, porque é
o recrutamento total até às profundezas da alma; ele o é mais do que qualquer
outro, porque não deixa mais nada fora de seu reino despótico sem limite, sem
referência e sem controle. [...] Hoje [...] essa característica, que se tornou
exorbitante nos poderes à época do totalitarismo mercantil, foi a tal ponto
assimilada por todos que a produção artística é, primeiramente, uma competição
sem piedade para ganhar a possibilidade de ser recuperada. (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p. 40).
No entanto, em Roa Bastos não há, como em Pasolini, uma crítica ao fim
dos vaga-lumes, pelo contrário, ele anunciava a identificação de sua literatura
com a luz intermitente dos vaga-lumes. Se eles morrem é para que nasça a
literatura embebida de sua luz. “Ya
por entonces me preguntaba si era inevitable y necesario que la escritura tuviera
que nacer de la muerte de la naturaleza viviente.” (ROA BASTOS, 1995, p.
71).
O conceito de imagem-vaga-lume seria para Didi-Huberman, na esteira de
Benjamin e Warburg, assumir a imagem como operador temporal de sobrevivências. Ele se nega a aceitar a
visão apocalíptica da história, que prevalece no último Pasolini, assim como em
Agamben e Guy Debord, segundo a qual a sociedade do controle contemporânea já
não permite que nada escape as luzes intensas e incessantes dos holofotes e da
sociedade de espetáculo. Para Didi-Huberman, Agamben empobrece tanto a noção de
imagem como de povo ao assumir a imagem como veículo de propaganda, em outras
palavras, pura e simplesmente como anestética, e basear-se em uma noção de povo
que tem como herança nada menos que o legado do nazista Carl Schmitt[8].
Para Didi, em Agambem a noção de povo está reduzida à unificação de uma
essência, sem multiplicidade ou singularidades. Contra esta postura, que afirma
a impossibilidade da experiência na contemporaneidade (Infância e História), Didi-Huberman regressa a Benjamin para
corrigir Agamben e ressalta o fato de o pensador alemão falar em declínio da
experiência é não em destruição, como propõe o filósofo italiano. Poderíamos a
fim de reforçar a posição de Didi-Huberman, afirmar que nada é destruição total
para Benjamin que vê nas ruínas, nos pequenos detalhes, toda a potencialidade
de se rearmar a história, base de todo seu pensamento e do conceito de “imagem
dialética”.
A urgência
política e estética, em período de “catástrofe” – esse leitmotiv corrente em
toda obra de Benjamin –, não consistiria, portanto, em tirar conclusões lógicas
do declínio até seu horizonte de
morte, mas em encontrar as ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo
das imagens que aí se movem ainda,
tal vaga-lumes ou astros isolados (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 124).
De forma que não se trata de negar a experiência, mas encontrá-la nos
pequenos lampejos das imagens, a experiência entendida no sentido de Bataille,
como experiência interior.
A experiência
é, nesse sentido, fissura, não saber, prova do desconhecido, ausência de
projeto, errância nas trevas. Ela é não poder (impouvoir) por excelência, notadamente com relação ao reino e à sua
glória. Mas ela é potência –
Nietzsche assombra todo esse vocabulário – de outra ordem: potência de
contestação, diz Bataille. “Eu contesto em nome da contestação que é a própria
experiência (a vontade de chegar ao fim do possível). A experiência, sua
autoridade, seu método não se distinguem da contestação” (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p. 143).
Bataille configura assim seu
pensamento da negatividade e do não-saber, lugar destinado as artes. O que se
encontra na escuridão profunda é um inquietante desejo de ver. Nesse sentido,
voltemos ao episódio com o qual demos início a esta conferência. O narrador do
relato Contravida (1994), um dos últimos textos de Roa
Bastos, referindo-se ao sutil e singular ato de resistência frente à
proibição paterna de escrever à luz de vaga-lumes, afirma: “Los lámpiros pronto
morían. Las borras azules de sus
cadáveres no servían ya para escribir. Todo lo más, para pensar qué lejos está
uno de su deseo. El deseo sólo es deseo mientras no se cumple.” (ROA BASTOS,
1995, p. 71).
De forma que o desejo gira sempre ao redor de uma falta irreconciliável
com o simbólico. A literatura roabastiana nasce como monumento do desejo
insatisfeito, o vazio que faz a roda girar sem tapar completamente o buraco.
Vazio que é também vazio da linguagem, do significante que não possui
significado natural, mas uma demanda de significados, condição que fica
evidente nas palavras citadas, na ambiguidade entre os vaga-lumes que permitem
que se escreva sobre a sua luz, ou que se escreva com seus corpos, nesse
sentido não se trata de uma lámpara,
mas sim de um lámpiro, como papiro de
luz. Uma das formas do vazio (da ferida) na escritura roabastiana é a do
exílio.
É desde o exílio que ele se torna roteirista, seu interesse pelo cinema e
seu trabalho como roteirista começam quando é exilado pela primeira vez na Argentina,
em 1958 escreve seu primeiro roteiro e mantém uma produção prolífica de
roteiros pelo decorrer da década de 1960, mas também é o exílio que sela seu
destino como escritor já que suas obras mais relevantes foram compostas no
exílio. Quando é obrigado deixar a Argentina e marcha rumo à França, Roa queima
todo seu material de cinema, inclusive seus roteiros, além de algumas cópias
originais de contos que nunca chegaram a ser publicados. Roa refere-se ao fato afirmando: “de todos modos,
desde mi lejano refugio en Tolouse suelo pensar con nostalgia en estos despojos
que son las inevitables mutilaciones de los exilios forzosos.” (ROA BASTOS, 2008. p. 25)
Frente aos holofotes, câmeras e
propagandas da ditadura a fogueira de Roa Bastos é o pequeno vaga-lume que
agoniza, mas cuja luz se projeta para o futuro, como ato de resistência,
pequeno foco que se projeta como apelo ao futuro. Dejetos que nunca foram verdadeiramente
perdidos ou abandonados, mas que continuam a brilhar apesar de toda
catástrofe.
Tal seria,
para finalizar, o infinito recurso dos vaga-lumes: sua retirada, quando não se
tratar do fechamento sobre si mesmo, mas “força diagonal”; sua comunidade
clandestina de “parcelas de humanidade”, esses sinais enviados por
intermitências, sua essencial liberdade de movimento; sua faculdade de fazer
aparecer o desejo como indestrutível por excelência (e me vêm a memória as
últimas palavras escolhidas por Freud para sua Traumdeutung: “esse futuro, presente para o sonhador, é modelado,
pelo desejo indestrutível, à imagem do passado”). Os vaga-lumes, depende apenas
de nós não vê-los desaparecerem. Ora, para isso, nós mesmos devemos assumir a
liberdade do movimento, a retirada que não seja fechamento sobre si, a força
diagonal, a faculdade de fazer aparecer parcelas de humanidade, o desejo
indestrutível. Devemos, por tanto, – em recuo do reino e da glória, a brecha
entre o passado e o futuro – nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar
novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de
danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em
descrever o não da luz que nos ofusca.
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 154).
Em lugar do mundo inundado de luz os textos roabastianos se movem nas
margens escuras, entre povos-vaga-lumes, distantes dos projetores do reino e da
glória, que é o mesmo que estar distante da história do vencedor (como monumento da
barbárie). Em seus textos prevalecem as imagens do limiar do desaparecimento e
ressurgimento, da resistência.
3. Referências:
COURTHÈS,
Eric. “Lo transtextual en Roa Bastos”.
Disponível em: <
http://eroxacourthes.wordpress.com/2007/09/01/lo-transtextual-en-roa-bastos-presentacion-por-eric-courthes-del-24-de-julio-de-2007-universidad-catolica-asuncion/
>. Acesso: 26 agosto 2013.
DIDI-HUBERMAN,
Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes.
Belo Horizonte: UFMG, 2011. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex
ROA BASTOS,
Augusto. Contravida. Buenos Aires:
Norma, 1995.
ROA BASTOS, Augusto. Cuentos completos. Barcelona: Debolsillo,
2008.
ROA BASTOS, Augusto. Mis reflexiones sobre el guión
cinematográfico y el guión de Hijo de hombre. Asunción: RP ediciones, 1993.
ROA BASTOS, Augusto. El Baldío. Buenos Aires: Losada, 2005
ROA BASTOS, Augusto. El fiscal. Buenos Aires: Sudamericana. 1993
ROA BASTOS,
Augusto. Vigilia del almirante.
Buenos Aires: Sudamericana, 1997.
[1] De
exílios e desarraigos também se compõe a trajetória de Roa Bastos. Abandonou
Assunção no final da década de 1940 estabelecendo-se em Buenos Aires. Em 1976
empreendeu seu segundo exílio rumo à França. É o exílio que o faz nascer como
roteirista, seu interesse pelo cinema e seu trabalho como roteirista começam
quando é exilado pela primeira vez na Argentina, mas também é o exílio que sela
seu destino como escritor, já que suas obras mais relevantes foram compostas no
exílio.
[2] Contravida é um dos últimos romances de Roa Bastos, publicado
em 1994. Em Roa o nascimento assume uma consistência bastante particular como
se existissem dois nascimentos. O primeiro é o da vida que se inicia com o
nascimento físico e prossegue linearmente. O segundo é o nascimento como
escritor desde o exílio, este é como se navegasse na contracorrente, ou melhor,
a “contra-vida” que vai do fim ao início, um nascimento como memória, pois
“recordar es retroceder, desnacer, meter la cabeza en el útero materno, a
contravida.” (ROA BASTOS, 1997, p. 19).
[3] A
ideia do exílio como condição moderna do homem seria formulada com mais
contundência no romance El fiscal publicado
em 1993; o conceito de “poética das variações” seria elaborado somente em 1982
no prólogo da edição francesa de Hijo de
hombre; já a ideia da literatura como fluxo de memórias à “contravida” retornaria
para ser melhor desenvolvido no livro Vigilia
del Almirante de 1992 e posteriormente seria título de um dos últimos
textos escritos por Roa Bastos, publicado em 1994.
[4] O
primeiro foi El trueno entre las hojas
(1958).
[5] Assim
como o sagrado e suas ambivalências, o exílio também traz em si, desde a Grécia
e a Roma antigas, as marcas de uma imprecisão acerca de suas definições. Esta
imprecisão está na oscilação entre uma condenação e um direito. Ao mesmo tempo
em que a vida fora da polis é
considerada como um castigo pelos gregos e tudo o que seja estrangeiro tenha um
significado de ameaçador, é nesse sentido que se dirigem as críticas feitas por
Platão ao estrangeiro em sua Republica,
o intruso é todo aquele órgão que compromete o funcionamento das leis e da
identidade de uma determinada comunidade e que por isso deve ser rejeitado e
expulso. Em Roma o exílio prefigura geralmente como um direito, um refúgio, de
forma que o condenado a uma pena capital pode optar por abandonar sua cidadania
e exilar-se, e dessa forma escapar a condenação.
[6] Como
já vimos Roa Bastos denomina “poética fas variações” esse fenômeno de corte, repetição e variação, que se dá em grande parte
de seus textos e sob infinitos aspectos –que envolvem fábulas que se
complementam e dialogam, personagens que aparecem em diferentes narrativas,
elementos como o baldio e a guerra que permeiam muitos de seus contos.
[7]In Sobrevivência
dos vaga-lumes (2009).
[8] “Em
1967, com diagnóstico cuja justeza nos parece hoje evidente, Guy Debord
constatava a transformação em escala planetária da política e da economia
capitalista em uma “imensa acumulação de espetáculos”, onde a mercadoria e o
próprio capital tomam a forma midiática da imagem. Se aproximarmos as análises
de Debord da tese de Schmitt sobre a opinião pública como forma moderna da
aclamação, o problema da atual dominação espetacular das mídias, em todos os
aspectos da vida social, aparece sob um novo olhar.” (AGAMBEN apud DIDI-HUBERMAN, 2011).