Karine Bueno
Costa
(UNESPAR-FAFIUV)
“Ficções, artifícios são os nomes mais honestos que
a literatura pode assumir”.
Blanchot
“Somos
dois e somos o mesmo.”
Borges
Resumo: Com plena
consciência da insuficiência linguística que a linguagem possui com o real, em O falso mentiroso, Silviano Santiago
apresenta literariamente a problemática que envolve a representação mimética do
real na escrita. A partir do jogo entre verdade e mentira estabelece-se toda a
narrativa do livro. Perscrutar-se- á, portanto, como esse texto envolto por uma
camisinha de Vênus coloca em xeque a questão emblemática que existe entre vida
e obra do escritor.
Palavras
chave:
O falso mentiroso, despersonificação, performance.
A impossibilidade de representação de um
eu perpassa todas as páginas do livro O
falso mentiroso, de Silviano Santiago. O escritor carioca constata no
romance que quando se pretende
através da linguagem literária fazer cópia de uma exterioridade um abismo se
faz. O real é sempre incomunicável. Contudo, seus resquícios podem ser
abstraídos por meio de imagens. É em meio a essa complexidade que a obra se
constrói. O personagem principal desafia a impossibilidade e deseja
saber sua origem, busca responder a pergunta edipiana: Quem sou eu?
Na ilustração da
capa apresenta-se a imagem de um bebê, fotografia esta do próprio autor,
Silvino Santiago, o que nos leva a pensar que se trata de uma autobiografia.
Como o subtítulo aponta, de memórias
do autor. Na contracapa, há uma breve explicação, retirada de uma enciclopédia,
para o paradoxo do título. O qual é atribuído a Euclides de Mileto (século IV
a. C.), que dizia: “se alguém afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a
afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por
isso, novamente falsa”. Diante de tal
dilema, perguntamo-nos: Quando alguém diz “eu minto” está sendo mentiroso ou
verdadeiro?
É a partir desse
jogo entre verdade e mentira que se estabelece toda a narrativa do livro. O
personagem-narrador inicia seu relato de vida afirmando que é um ser sem
origem, pois diz: “Não tive mãe, não me lembro da cara dela. Não conheci meu
pai. Também não me lembro da cara dele” (2004, p. 9). Logo em seguida, afirma
sua maior verdade: “Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade” (2004,
p.9). Sendo assim, sobra ao leitor acreditar ou não no texto que se segue.
Blanchot, em O livro por vir, diz que: “Ficções e
artifícios são os nomes mais honestos que a literatura pode assumir” (2005, p.
138). Portanto, com base nessa afirmação nosso personagem está dizendo uma
verdade, por isso, é um falso mentiroso. Para o francês (2005, p. 138), a palavra
‘trapaça’, a palavra ‘falsificação’, aplicadas ao espírito e à literatura, nos
chocam, por isso o teórico propõe que pensemos na hipótese do gênio maligno
cartesiano: “mesmo que todo poderoso o falsificador permanece sendo uma verdade
sólida que nos dispensa de pensar para além dela” (2005, p. 139). Esse é o caso
de O falso mentiroso.
Nas
primeiras páginas é possível ainda pensar que se trata de uma autobiografia, porque
Samuel Carneiro de Souza Aguiar demora a se apresentar como dono das memórias.
Samuel não é, portanto, Silviano. Mas até que ponto isso pode ser verdade não
se sabe. Pois muitos fatos narrados pertencem ao real, como alguns dados
biográficos do escritor carioca.
Paul de Man, em
seu artigo Autobiografia como
dês-figuração, publicado originalmente em Moderm Language Notes, 94 (1979), e posteriormente na revista
Sopro, em maio de 2012, diz que todo texto que se pretende autobiográfico
desfigura-se e: “a autobiografia vela uma des-figuração da mente da qual é ela
mesma a causa” (DE MAN, 2012). Em o
falso mentiroso o jogo é entre autobiografia e ficção. Apesar de Santiago
colocar alguns dados autobiográficos o faz nas margens ficcionais, ocorre o que
podemos chamar de autoficção. Para Diana
Klinger, em Escritas de si, escrita do outro, a autoficção “surge em sintoma
com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea” e ao mesmo tempo “produz
uma reflexão crítica sobre ele” (2007, p. 44). Para ela, na autoficção o que
interessa é o “mito do escritor” e não a relação do texto com a vida do
escritor (2007, p. 50). Em suas palavras: “A autoficção participa da criação do
mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a ‘mentira’ e a
‘confissão’” (2007, p. 51). Santiago coloca exatamente essa questão em sua
obra, o que interessa não é a vida do escritor, mas o mito deste que se
constrói na leitura de um relato em primeira pessoa. A pesquisadora, para
ilustrar sua teoria utiliza-se da obra de Silviano Santiago. Diz ela sobre O falso Mentiroso:
Este
romance me interessa especialmente porque considero que o texto autoficcional
implica uma dramatização de que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco
teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem (KLINGER, 2007, P. 54).
O personagem Samuel
não sabe quem o gerou. Saber sua origem é o maior dilema de sua existência e o
motivo de seus torcicolos. Apresenta várias possibilidades para seu nascimento,
a primeira é que pode ser filho de pais desconhecidos e, adotado por Donana e Dr.
Eucanaã – os quais ele chama de pais falsos. Nessa mesma versão pode ter sido
doado ou sequestrado da maternidade e criado pelos pais falsos citados. Em
outra versão ele aponta como sendo filho do próprio Dr. Eucanaã, o falso, com
uma amante, pois sua mãe, a falsa, Donana, era uma mulher estéril e desejava
ter muito um filho homem. Nesta possibilidade de origem surgem várias
possibilidades de mães, como a Senhora X e a secretária do pai chamada Tereza,
enfim. A terceira versão é um tanto absurda, pois ele nasce de uma almofada que
Donana colocava na barriga para simular uma gravidez. É uma possibilidade
duvidosa ser gerado de uma falsidade, mas Samuel não a descarta porque apesar
de ser mentira pode ser verdade pelo fato de que milagres acontecem. Na quarta
versão, ele pode ter ficado órfão e foi adotado pelos pais falsos. Dentre as
versões de sua origem, a quinta é reconhecida como a mais inverossímil e por
isso ele nunca quis explorá-la, a data desse nascimento coincide com a do
próprio Silviano Santiago, 29 de setembro de 1936, com pais residentes em
Formigas, como os do próprio autor. Perguntamo-nos: a mais inverossímil não
seria então a mais verdadeira? Quiçá.
Impossível
saber, a menos que se rompa o preservativo e um “espermatozoide” possa romper a
barreira de real e ficção e mostrar a verdade.
Constituído de
vários eus, coloca em dúvida sua própria existência: “será que existo?” (2004,
p. 59). O personagem perde-se no labirinto que é ele mesmo, e carrega o leitor
junto nessa floresta de espelhos: “tudo perfazendo um único corpo. Este corpo
aqui de carne e osso, que me escreve pelo uso e abuso da mão direita. Esqueci
que era canhoto” (2004, p.180). Jogo de espelho borgiano. O escritor que se
olha para o espelho da folha em branco, de canhoto, torna-se destro. Quem
afinal é o escritor destas falsas memórias? Silviano canhoto a um passo do
espelho ou Samuel destro? É Silviano que escreve Samuel ou Samuel que escreve
Silviano?
Como o um
espelho. Não se pode atingir, tocar a imagem produzida, o mundo é o livro e
este é o mundo, um refletido no outro. Escrever é uma tentativa de conhecer a si mesmo, porém, não
de reconhecer-se, pois por ser um ato de representação, o que se tem do
processo mimético é um outro como constituinte e que está disperso no campo da
linguagem, dependente de outro para sua realização e interpretação. No texto,
“Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’Angola”, publicado em O
cosmopolitismo do pobre, Silviano Santiago faz uma abordagem sobre seu eu
nos seus escritos literários em primeira pessoa:
Sem identidade,
sem rosto e sem nome próprio estável, qual é a minha primeira pessoa
que, para se exprimir neste preciso momento, devo invocar e convocar? Seria a
primeira pessoa que, como querem Jacques Lacan e os psicanalistas, é a primeira
na ordem cronológica, ou seja, a primeira pessoa que reconhece a si no
‘estágio do espelho’? Aquela que me colocou de cara no jogo da vida pela imagem
do duplo de mim mesmo, isto é, pelo reconhecimento meu de mim no outro
especular. Isso a que chamo de ‘minha experiência de vida’ e isso a que chamo
de ‘meus escritos’, não seriam uma sucessiva e sempre interrompida e sempre cadeia
de escolhas narcísicas de objeto, de manufatura de manequins que,
pela leitura e pela identificação a posteriori e, agora, neste meu
corpo, são eu não sendo eu? (SANTIAGO, 2008, p. 245). (grifos do autor)
O eu narrativo
das memórias segue dizendo: “dizem que sou mentiroso. Não sou. Não vale dizer
que sou mentiroso. Provem que sou! Evidências. Não uma série de hipóteses mal-ajambradas
pelo olhar da observação cartesiana e maldizente” (2004, p.180). Mentir é o que
mais faz Samuel, ou será que diz a verdade? A cada versão que apresenta de sua
origem faz o interlocutor da obra acreditar. Envolto por tantas mentiras o
leitor fica confuso e perdido no labirinto que se constrói.
Blanchot ao
meditar sobre o “Aleph”, de Borges, nos diz que: “A literatura não é uma
simples trapaça, é o perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela
infinita multiplicidade do imaginário” (2005, p. 140). Sem do assim, a
teatralização, o fingimento de Samuel está no campo da verdade, pois é fruto da
imaginação, da literatura.
A obra de Santiago está repleta de encenações.
Dr. Eucanaã, por exemplo, finge ser um advogado, porém, é um grande empresário
de camisinhas de Vênus, fabrica preservativo e esconde tal fato de sua família
e da sociedade, devido às concepções contrárias pregadas pela igreja. É um ator
de sua própria vida. É ficção dentro de uma ficção, faz da vida um teatro. Uma
figura de grande importância para a filosofia de Dr. Eucanaã é Gabriel Falópio.
O qual foi inventor de uma espécie de camisinha peniana, embebida de ervas
curativas, precursora da camisinha de Venus, chamada de De Morbo Gallico. Segundo Samuel, este inventor: “Trazia o destino
no próprio nome. Estampado nas quatro primeiras letras do sobrenome, f-a-l-o, que poderiam ter sido
desmentidas pelas três letras finais, p-i-o,
e nunca o foram. Vejam que contra-senso: um falopio!” (2004, p.79-80). Falo
e pio, termos voltados para o órgão sexual masculino. Membro gerador de vida e
propício à contaminação, porém pode ser impedido de criar e de se contaminar
envolto pelo preservativo. No entanto, para criar é necessário contaminar-se
com o mundo não existe origem sem entrar em contato com o real. Porém, na arte
essa contaminação é mascarada. Protegida pelas palavras.
O preservativo, no livro, não só
representa a proteção das doenças venéreas acentuadas nos anos vinte e trinta,
como a gonorreia e a sífilis, mas representa uma metáfora para o que separa o
real do irreal. Barthes, em O neutro,
teoriza sobre o grau zero da escrita. Para Blanchot, o grau zero da escrita de
Barthes seria o momento em que a literatura poderia ser agarrada: “Mas, nesse
ponto, ela seria somente uma escrita branca, ausente e neutra; seria a própria
experiência da ‘neutralidade’ que jamais ouvimos”. Para Barthes é esse neutro,
“esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto
em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”
(2004, p.57). O que está entre o real e o ficcional, a recusa de si, sair pela
tangente, seria o neutro. Enfim, as fronteiras entre autor, obra e leitor. Diz
ele: “O problema do neutro não é de fato não ter nome, mas ter vários nomes”
(BARTHES, 2003, p. 247).
O desejo do artista é decifrar esse neutro,
recusar a camisinha, porque é impossível fazer arte sem imitar o real,
e é impossível também este ser pensado sem que seja ficcionalizado, Sem
contaminação não sobra legado, resta apenas uma família a menos. Samuel não é a
favor da camisinha, despreza-a. Porém, discute a ideia de que a criação nunca
será uma verdade, e sim, uma representação, uma cópia, apenas uma tentativa de
ser.
O livro sempre será ficcional mesmo que
almeje representar o real. Para Blanchot, a diferença entre real e irreal é que:
“há menos realidade na realidade, pois ela é apenas a irrealidade negada,
afastada pelo enérgico trabalho da negação, e pela negação que é também o
trabalho” (2005, p. 040). Por mais que se deseje contaminar para criar, a
literatura não rompe a pelica que a separa do real, e será sempre uma realidade
negada. E sendo assim, mais real que o próprio real, mais verdadeira: uma falsa
mentirosa.
O
livro de Santiago é envolto pelo preservativo. O texto é só texto, não é pele,
não entra em contato, não sente. Contudo, essa impossibilidade de contato faz
com que se delire, se tenha prazer. Samuel possui um colega na escola, chamado
Betinho, que diz para ele: “A camisinha é a foda. (...) A falta de contato da
pele com a própria pele – a interposição entre elas da borracha vulcanizada –
leva-me ao delírio” (2004, p. 117- 118). E Samuel concorda com a visão do
companheiro, diz ele: “Betinho estava certo, era outra pessoa que o arrastava
para o gozo e o prazer” (2004, p. 118). Metáfora fascinante para a literatura,
pois o real ao tornar-se texto literário torna-se outro, não pode ser o mesmo.
Voltando-nos novamente a Blanchot:
Se
o mundo pudesse ser exatamente traduzido e duplicado num livro, perderia todo o
começo e todo fim, tornar-se-ia o volume esférico, finito e sem limites, que
todos os homens escreveram e no qual são escritos: não seria mais o mundo,
seria, o mundo pervertido na soma infinita dos possíveis. (Essa perversão é
talvez o prodigioso, o abominável Aleph) (BLANCHOT, 2005, p. 140).
Portanto, sempre
haverá uma barreira, um abismo entre a vida e obra, entre mundo real e mundo
fictício. A literatura é sempre será uma
transa com preservativo, onde infinitas possibilidades de realizações são
impedidas de tornarem-se concretas, que
permanecem no campo imaginário do de vir a ser.
Por baixo dos
panos Dr. Eucanaã atuava, o que fazia, como diz seu filho falso era: “encobrir-se.
Deixar encobrir-se. Passar por outro. Passar por ninguém” (2004, p. 102). Esse
pai faz o que o próprio autor faz no livro. Seria Santiago o pai de Samuel? Grande
possibilidade metafísica. A figura paterna é central na obra, um herói, porém a
partir da invenção da penicilina ele passa a ser um anti-herói. Com essa
descoberta cientifica a camisinha foi rejeitada e cai em desuso. O pai é então
fica pobre, e o herói de “carne e osso” de Samuel passa a ser o cientista
inventor da penicilina: “Um homem. Vestido de homem. Pensando como homem. Fazia
ciência. Salvava a humanidade. Sir Alexander Fleming” (2004, p. 125). Seu novo
super-herói trazia a cura para a contaminação, excluía o uso do preservativo.
Embora, no fundo Samuel sabe que seu pai falso foi um visionário, porque anos
mais tarde, o uso da camisinha vem à tona, com a contaminação em massa pela AIDS.
E: “Falópio, o desgraçado! Seu nome permaneceria ligado às trompas” (SANTIAGO, 2004,
p. 125).
Samuel espelhado nos modelos familiar
também atua em sua própria vida, que por ironia do destino também é encenada
pela mão canhota de Silviano Santiago. No palco da folha, diz ao pai que cursa
Arquitetura para agradá-lo, à mãe diz que cursa Direito, mas na verdade, faz
Belas artes. Faz da vida um palco de teatro e na faculdade aprende a desenhar o
que está em torno, em volta, das figuras. Aprende a arte da xilogravura e passa
a imitar os desenhos de Osvaldo Goeldi. Samuel é a favor da cópia. Aprendeu a ser
falso com o pai e a ser imitador com a mãe.
Donanda é oposto de Eucanaã, vivia na
igreja e mimando seu filho adorado. Sem querer, ensina Samuel a ser artista,
ensina-lhe a arte de camuflar-se, de maquiar-se, enfim, de fingir ser. De usar preservativos. Nietsche, em o
nascimento da tragédia diz que em face dos estados artísticos da natureza “todo
artista é um ‘imitador’, e isso quer como artista onírico apolíneo, quer como
artista extático, dionisíaco” (NIETZSCHE, 2007, p.29). Samuel não percebe a
transformação para imitador:
Quando me dei
pela troca, já tinha virado cego, sustentado pelo bastão da pícara-mãe. Ela me
conduzia pelas ruas e avenidas da imaginária vida cotidiana. Passei a ser como
ela. Totalmente contra a coisa real. A favor de algo extra que você acrescenta
à coisa real para que ela, sem se tornar irreal, seja mais bonita, frajola e
fofa do que já é” (2004, p.141).
Na tentativa de
parafrasear Baudelaire, no texto “Elogio
da Maquilagem”, incluso em O pintor
da vida moderna, dizemos que tudo o que é natural tende a ser monstruoso, e
tudo que é artificial está ligado ao sublime. Para o poeta francês tudo que se
encontra nas ações e desejos do puro homem natural é o horror. E tudo o que é
belo, nobre, é o resultado da razão e do cálculo, do que não provem da natureza
(1996). Como exemplo dessa artificialidade, aponta as práticas femininas, dando
ênfase à maquiagem. É como se a mulher, com isso, esforçasse-se para parecer
mágica e sobrenatural: “Pouco importa se que a astúcia e o artifício sejam
conhecidos por todos, se o sucesso está sempre assegurado e o efeito é sempre
irresistível” (BAUDELAIRE, 1996, p. 64). Donana foi a primeira professora:
Desde
criança espreitava Donanda diante do espelho da penteadeira. Do lado de fora da
suíte paterna. Minha mãe primeira e legítima professora.
Ensinou-me
a gostar mais do panqueique do que do rosto limpo.
Mais
da cor transparente. Avivada artificialmente pelo ruge e pelo batom.
Mais
da transparência do que da cor acabrunhada e baça, oferecida de mão beijada
pela natureza.
Mais
do uso de esponjas de passar pó-de-arroz e de pincéis que acentuam com rímel a
curvatura dos cílios, do que de água e sabão.
Mais
de me vestir, do que de me desnudar. Mais de calçar meias e sapatos, do que
tirá-los.
Mais
da representação do que da realidade. (p.140-141)
Para o autor de Folhes do mal, as mulheres possuem uma
centelha desse jogo sagrado, e os verdadeiros artistas são aqueles que sabem,
como as mulheres, dourarem-se. Vale a citação longa:
Quem
não vê que o uso do pó-de-arroz, tão totalmente anatematizado pelos filósofos
cândidos, tem por objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as
manchas que a natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata
na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima
imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior?
Quanto ao preto artificial que circunda o olho e ao vermelho que marca a parte
superior da face, embora o uso provenha do mesmo princípio, da necessidade de
suplantar a natureza, o resultado deve satisfazer a uma necessidade
completamente oposta. O vermelho e o preto representam a vida, uma vida
sobrenatural e excessiva; essa moldura negra torna o olhar mais profundo e
singular, dá aos olhos uma aparência mais decidida de janela aberta para o
infinito; o vermelho, que inflama as maças do rosto, aumenta ainda a claridade
da pupila e acrescenta a um belo rosto feminino a paixão misteriosa da
sacerdotisa (BAUDELAIRE, 1996, p.64)
Em A
antinatureza: elementos para uma filosofia trágica, Clément Rosst diz que:
“Por definição, todo empreendimento artístico separa-se da natureza e remete-se
ao artifício para criar, isto é, para acrescentar um novo objeto à soma das
experiências presentes” (1989, p.87). Perdido de amor edipiano, Samuel copia
Donana, faz copias de cópias, sendo no fim, apenas uma cópia. Encontramos nesta
ideia de cópia um forte diálogo sobre a tradição para a criação de uma arte, semelhante
à antropofagia de Oswald, ou à “vampiragem” que Maria Lucia de Barros, em sua
tese Atrás dos olhos Pardos, aponta
para a obra de Ana Cristina Cesar[1]. Diz Samuel: “Não gosto de criar nada a partir
do zero”. (p.138). Dentro de sua defesa faz uma reflexão do papel do autor na
contemporaneidade, de que é preciso sempre recorrer ao que já foi dito, ao que
já foi criado para criar, e recriar o novo a partir do velho:
Século 20,
século da invenção. Uma pinoia! Ainda irão reconhecer que, por baixo da crosta
aurividente da inventividade a todo custo, existe o miolo, assim como por baixo
da casca, a polpa do fruto e, ao meio dela, a semente. Essa semente metafórica
é o fundo comum que une os artistas brasileiros da nossa época aos de todos os
tempos. A semente é única assim como, dizem os teólogos, só é único o Deus
verdadeiro. A semente da produção artística é uma planície por onde planam os
olhos à cata dos pequenos relevos que sobressaem, se repetem, se repetem, se
repetem (SANTIAGO, 2004, p. 219).
Por mais que provenha do já inventado
uma cópia não deixa de ser algo novo. Samuel é uma cópia, não é original desde
seu nascimento, é cópia de cópia de cópia, como todas as artes, e por esse
motivo é original. Diz:
Não sei quando a
troca de personalidade se deu. A personalidade do mímico autodidata pela a do
embelezador da realidade. Só eu sei o que é ter personalidade zero. Só eu sei o
que é ter cegueira falsa, a que constrói a verdade de minhas personalidades
postiças. Foram milhares e ainda são. (...) Não podia não ser a favor da cópia.
Era a salvação da lavoura” (2004, p.141).
Muitos de seus quadros foram atribuídos
ao próprio Goeldi e foram parar nas grandes galerias de artes plásticas como
parte de um período obscuro da fase de Goeldi por não conterem assinatura, como
se o pintor estivesse em conflito com sua própria personalidade. E na verdade, o real pintor sempre esteve
nesse conflito. Com essa prática Samuel ganha muito dinheiro e passa a
sustentar seus pais falsos e sua família, Esmeralda e seus dois filhos.
Há três
personagens que possuem um papel fundamental para a formação do pintor e
escritor de memórias: Zé Macaco, seu amigo de escola, Esmeralda, a namorada
muda e futura esposa, e Mário o mentor. Zé macaco, era com quem o narrador praticava
música com puns no banheiro da escola, o amigo era perfeito, era original,
tinha melodia, a condição financeira é que o impedia de brilhar. Samuel aprendeu
muitas coisas com seu amigo que morreu precocemente, uma delas foi que: “Nenhum
homem é perfeito. Somos todos cópias do original que se desfez” (2004, p.35).
No capítulo reservado para falar de Zé Macaco, está a parte do livro de cunho mais
erótico, há troca de segredos entre os dois. Zé Macaco revela o caso que tem com
o barbeiro, diz ele a Samuel: “Afino o instrumento pelo prazer e o afio pelos
trocados” (2004, p.37), é um dos personagens mais picarescos da narrativa.
A namorada
Esmeralda é também uma figura importante. Podemos encontrar nela uma alusão a
Mario de Andrade, quando Macunaíma diz: “Não vim ao mundo para ser pedra”. (1984,
p. 131). A namorada representa a arte, a lapidação que ocorre no que é
considerado artístico. Para Samuel a história de Esmeralda é a história de uma
pedra em estado bruto e que aos poucos foi se lapidando pelos problemas da vida
enfrentados. Esmeralda é sua pedra no meio do caminho. Pergunta: “Será que os
pais ao lhe darem o nome na pia batismal, souberam que a filha seria pedra para
o resto da vida?” (2004, p.199). Põe assim, em dúvida a existência de sua
mulher e ao mesmo tempo coloca a mulher como uma arte em estado de
transformação.
Samuel também
teve um mentor, que o incentivava em sua arte, este sabia de suas mentiras, mas
a relação dos dois era fria, sem muito contato. O mentor parece ser mais um
fluxo de consciência, um jogo borgiano com seu outro diante do espelho.
Traumatizado
por não saber de sua verdadeira origem, Samuel tem ataques de torcicolo, dores
no pescoço e faz terapia. Decide escrever suas memórias aos sessenta e três
anos com base em anotações de seu diário íntimo. Em sua escrita não há uma sequência
cronológica e muito menos delimitações de espaço dentro do livro, levando o
leitor pra lá e pra cá, como Mário de Andrade em Macunaíma. Seria então, o
mentor Mário, Mário de Andrade? Eis a
contaminação sem uso de preservativo.
Traumatizado
por não saber de sua verdadeira origem, Samuel tem ataques de torcicolo, dores
no pescoço e faz terapia. Decide escrever suas memórias aos sessenta e três
anos com base em anotações de seu diário íntimo.
Nesse fato
encontramos um dos pontos cruciais para pensarmos o que separa o real e a
ficção. Em “O diário íntimo e a narrativa”,
inserido na obra O livro por vir, Blanchot
(2005) diz que: “Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua salvação à
escrita, que altera o dia” (BLANCHOT, 2005, p. 275). Ao tornar-se linguagem o
que era a vida real torna-se uma vida imaginária. O visível torna-se invisível
ao ser dado como literatura. Um preservativo. Samuel narra em primeira pessoa
do singular querendo narrar no plural:
Não
sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do singular. E não
pela primeira pessoa do plural. Deve haver um eu dominante na minha
personalidade. Quando escrevo. Ele mastiga massacra os embriões mais fracos,
que vivem em comum como nós dentro de mim (2004, p.136).
É muitos, é
milhares de “espermatozoide” dentro de um preservativo. Há várias vozes na narrativa,
às vezes, é alguém que fala sobre Samuel, aparentemente parece ser Samuel
falando de si próprio, mas pode ser também Silviano como autor intrometendo-se
na obra. O narrador mesmo explica esse jogo borgiano:
Às
vezes fala o outro de mim. Às vezes o terceiro de mim e ainda o quarto- aquele
cuja biografia escamoteei, lembram-se? E até o quinto – o inverossímil
formiguense, antes referido. A lei nunca fez o cidadão. Sempre refutei as
provas levantadas contra a minha sinceridade. Apresentadas e rebatidas no tribunal
da consciência (ele existe! E ela também) (2004. p.180-181).
Como
trabalha com memórias os clássicos brasileiros deste gênero não poderiam ficar fora
de sua obra. Com personagens picarescos que se assemelham a Leonardo, de Memórias de um Sargento de Milícias, de
Manuel Antonio de Almeida. O livro também é cheio de recortes e feito de
fragmentos, à la Oswald de Andrade, dialogando com o lado cinematográfico das Memórias Sentimentais de João Miramar. E
como não poderia faltar com estilo extremamente machadiano: “meu camaradinha e
irmãozinho de fé...” (2004, p.192). Conversa com o leitor: “Não adianta me
maltratar. Maltrate o livro. Espere pelo pior. Daqui a dois capítulos te reencontrarei
com duas pedras na mão e com língua afiada” (2004, p. 151). Prossegue com a
conversa mais duvidosa da literatura contemporânea:
O
escrito que você lê, caro leitor, é a mensagem esperançosa que jogo ao mar
envolto por esta camisinha inflada, a que chamo livro. Ela protege as folhas e
as palavras impressas das águas do tempo que, sem direção predeterminada, bóiam
a caminho de mãos caridosas. As tuas (2004, p.215).
Samuel faz o
inverso de Brás Cubas, não inicia pelo fim de sua vida suas memórias, pois se quer
tem origem. Por isso inicia pelo fim do próprio livro de Machado de Assis, pois
Samuel não provém de nenhum legado, é sem origem, sem família, resultado das
últimas palavras de Brás: “- não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura
o legado da nossa miséria”. (1992, p.176). Alguns capítulos antes da revelação
de sua verdadeira origem desculpa-se com o leitor:
Peço-lhe desculpa,
caro leitor, por tê-lo feito sucumbir ao feitiço da linguagem. Por tê-lo feito
escravo do próprio e do figurado. Por fazê-lo acreditar na língua portuguesa
(...). Neste livro. Paisagens linguísticas comoventes foram montadas contra o
pano de fundo de requintados cenários de musical da Broadway. (...) A linguagem
figurada se descortina pela janela do trem que viajamos. (...) Que as paisagens
linguísticas encham os olhos e os ouvidos de entusiasmo. E o paladar de
delicioso e refrescante sabor de hortelã-pimenta. Que nos façam esquecer
cenários e salões (2004, p.176).
E na última página do livro a verdade é
revelada. Mas será possível ainda acreditarmos nela? Toda a história narrada não
passa de uma mentira, e por ser assim, torna-se uma das maiores verdades. Pois
é uma verdade poética. Diz Samuel, quer dizer, Silviano, ou melhor, ambos
talvez. Tudo nos é revelado por uma desconstrução catártica do real, com uso de
preservativo:
Desde
meu duplo (triplo, quadrupolo e até quíntuplo) nascimento, soube que tinha vindo
ao mundo com um propósito- o de botar no mundo uma família a menos.
Chega
de mentiras.
Não
serei um pai falso, como o doutor Eucanaã.
Não
me casei com esmeralda. Não tive filhos com ela.
Se
me colocarem contra a parede deste relato, confessarei que tive dois filhos
virtuais.
Não
poderia tê-los tido. Não os tive. Inventei-os
Inventar não é bem o
verbo. Gerei-os em outro útero. Com a mão esquerda (sou canhoto) e a ajuda da
bolinha metálica da caneta bic. Com tinta azul lavável. Inseminação artificial.
O
resto, pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá...
Fim.
Lego
ao mundo as minhas telas.
Á
história, uma família a menos (2004, p.222).
Não há pele a
pele, foi gerado artificialmente, não provem do natural, é resultado de uma mão
canhota e da “caneta bic”. Haverá sempre o neutro na obra literária, a essência
do imaginário, o que impede Godot de chegar, K. de alcançar o castelo, Aquiles
de ganhar da tartaruga, enfim, a outra pele: o preservativo.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Ática, 1992.
ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter.
20ed. Belo Horizonte: INL, 1984.
BAUDELAIRE,
C. Sobre a modernidade: o pintor da
vida moderna. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
BARTHES, R. A
morte do autor. In ______. O rumor da
língua. Trad. Mário Laranjeira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______.
O neutro. Trad. Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BLANCHOT, M. O Livro por vir. Trad. Leila
Perrone–Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DE MAN, Paul. Autobiografia
como Des-figuração. Tradução de Joca Wolff. Sopro, Florianópolis, n. 71,
mai. 2012.
KLINGER, D. Escritas de si, escrita do outro: o
retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
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Guinsburg. São Paulo: companhia das Letras, 2007.
SANTIAGO, S. O cosmopolitismo do pobre: Crítica
literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
______. O falso mentiroso: memórias. Rio de
Janeiro: Rocco, 2004.
ROSSOT,
C. A antinatureza: elementos para
uma filosofia trágica. Trad. Getúlio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e tempo,
1989.
___________________
[1] O termo “vampiragem” é usado por Maria Lucia
de Barros, em sua tese Atrás dos olhos
Pardos, para caracterizar a escrita da poeta carioca Ana Cristina Cesar. A
obra da poeta é de extremo diálogo com a tradição, “suga” de outros escritores
o material para seus poemas.