Luis Eduardo Veloso Garcia
(UEL)
RESUMO: O
presente estudo tem por objetivo apresentar como ocorre o inquietante no conto
“Uma visita de Alcibíades”, de Machado de Assis, publicado no livro Papéis Avulsos, de 1882, procurando
detectar na estrutura textual os procedimentos registrados no conto capazes de
conduzir a esse efeito. Para tal compreensão, apontarei alguns aspectos
levantados no ensaio “Das Unheimliche” (1919),
do psicanalista Sigmund Freud, dos quais podemos destacar presentes no conto
machadiano o inquietante gerado por convicções primitivas aparentemente
superadas, mas que de repente surgem confrontando com a realidade comum; os
transtornos causados pelo símbolo da morte capazes de confundir qual o limite
entre realidade e fantasia; a concepção animista gerada por processos psíquicos
relacionados a materialização de desejo e a busca do autor na aproximação com a
realidade comum através do modelo textual da carta.
PALAVRAS-CHAVES:
Machado
de Assis, unheimlich, conto.
ABSTRACT: This study aims to present how it develops the uncanny in the short story
"Uma visita de Alcibíades", Machado de Assis, published in the book Papéis Avulsos, in 1882, aiming to
detect in the structure of text the procedures reported in the tale capable of
conducting to this effect. For such understanding, I will point out some
aspects collected in the essay “Das Unheimliche” (1919), of the psychoanalyst
Sigmund Freud, of which we can to highlight present in the short story of
Machado the uncanny generated by primitive beliefs apparently overcome, but
that suddenly arise confronting the common reality; the disorders caused by the
symbol of death which can confuse the limit between reality and fantasy, the
animistic conception generated by psychic processes related to the
materialization of desire and the search of the author in approaching the
common reality through of the textual model of the letter.
KEYWORDS: Machado de Assis, unheimlich,
short story.
No conto “Uma visita de
Alcibíades”, de Machado de Assis, publicado em 1882 no livro Papéis Avulsos, temos a narração,
através do formato de carta, da inquietante aparição do ilustre general e
político ateniense Alcibíades - imortalizado em sua biografia escrita por
Plutarco – para o personagem-narrador Desembargador X, logo após sua evocação pela
pratica espiritista.
Porém, tal aparição não
se configura como o esperado, pois o que se vê não é um espírito, mas sim o
próprio Alcibíades “redivivo”, “carne e osso”, “um morto de vinte séculos,
restituído à vida”, segundo as palavras do aterrorizado narrador, “que pedira
um espectro, não um homem “de verdade””.
Após conhecer as
vestimentas da sociedade carioca do século XIX, o homem imortalizado por
Plutarco não se conforma com tais modificações de hábitos e estilos, retratando
para ele uma sociedade melancólica e triste, e num ataque de desespero, acaba
morrendo pela segunda vez, obrigando então ao Desembargador X cumprir sua
função, mesmo que aterrorizado pela situação inacreditável pela qual acaba de
passar, de enviar a carta pedindo para que o chefe de policia da corte tome as
devidas providências com o famoso cadáver.
Logo no processo de
resumo do conto, seu caráter inquietante se faz indiscutivelmente perceptível,
por se tratar da inusitada aparição de um morto restituído à vida. Tal
aparição, ganha contornos ainda mais intensos ao se tratar de um cadáver
ilustre, como o caso de Alcibíades (451 a.C. – 404 a.C.), que é considerado uma das figuras mais
importantes, e também ambíguas da antiga Grécia, e que teve sua imagem
imortalizada por Plutarco (50 a 120 d. C.) numa das biografias de sua série
vidas paralelas.
Nesta série, que é
inclusive a leitura responsável pelo desejo do Desembargador X de invocar o
general ateniense, Plutarco construía retratos sobre figuras ilustres do mundo
greco-romanos, como imperadores, reis, príncipes, aristocratas, estadistas,
oradores, generais, e conquistadores, sempre colocados em paralelo de acordo
com a representação histórica, caráter ou determinada virtude. No caso de
Alcibíades, seu par é o general romano Coriolano, que assim como o ateniense,
teve a ousadia de levantar a espada contra a própria pátria.
Três faces importantes
do Alcibíades retratado por Plutarco são preservadas no texto de Machado de
Assis: a excelente retórica, a enorme capacidade dissimuladora e o excessivo
cuidado com a vestimenta.
Compreendido, então, o
enredo do conto e seu personagem causador da sensação inquietante, parte-se
agora para o entendimento do conceito freudiano conhecido por “Das Unheimliche”,
que será a base da análise, explorando as seguintes temáticas presentes neste
texto: o primitivo aparentemente superado que reaparece, as concepções
animistas geradoras de tais aparições, a figura central da morte e a capacidade
do autor de uma obra literária na multiplicação do efeito inquietante ao se
mover na realidade comum, todas pormenorizadas na sequência.
“Das
Unheimliche”, de Sigmund Freud
Desenvolvido por
Sigmund Freud, em 1919, no ensaio homônimo “Das Unheimliche”, este conceito
aponta duas concepções causadoras do aparecimento do efeito inquietante: a
primeira, relacionada a complexos infantis reprimidos novamente avivados, e a
segunda, gerada nas crenças primitivas superadas quando parecem novamente confirmadas.
Ambas as concepções vão ser apresentadas por Freud em dois espaços distintos,
que é o das vivências reais e o da criação literária.
No conto machadiano, a
perspectiva do inquietante é gerada pela superação de crenças primitivas que se
reafirmam no confronto entre realidade e ficção, neste caso especifico a
aparição de Alcibíades, “um morto de vinte séculos, restituído à vida”.
Tais crenças, assim
como a concepção animista gerada neste mesmo processo de aparição daquilo que
era julgado como superado serão pormenorizadas a seguir.
O
superado e o animismo
No texto de Freud, a
concepção de superado está diretamente relacionada as crenças e convicções que
nossos ancestrais primitivos carregavam, das quais com o passar dos séculos
fomos superando-as, mas não conseguindo se livrar totalmente delas, pois
subsistem dentro de nós, como podemos compreender nesta citação:
Nós
– ou nossos ancestrais primitivos – já tomamos essas possibilidades por
realidades, estávamos convencidos de que esses eventos sucediam. Hoje não mais
acreditamos neles, superamos tais formas de pensamento, mas não nos sentimos
inteiramente seguros dessas novas convicções, e as velhas subsistem dentro de
nós, à espreita de confirmação. Quando acontece algo em nossa vida que parece trazer
alguma confirmação às velhas convicções abandonadas, temos a sensação do
inquietante. (FREUD, 1996, p. 369)
Entre as velhas
convicções abandonadas das quais mais fortemente somos permeados, nenhuma é tão
intensa quanto a relação com a morte. Justamente essa convicção vai ser
explorada por Freud nos seus exemplos de superado que instiga a aparição do
inquietante, pois para ele, o homem não consegue desvencilhar dessas convicções
por alguns motivos claros, como a incerteza de que a morte seja realmente um
caminho natural ou apenas um acidente regular, convicção essa facilmente
visível em relação aos nossos esforços na ciência, por exemplo, em que estamos
sempre atrás de uma sobrevida na busca de imortalidade (ou o mais longe que se
puder ir). Nesta citação de Freud, temos todas essas convicções sobre a morte
pormenorizadas:
Mas em nenhum
outro âmbito nossos pensamentos e sentimentos mudaram tão pouco desde os
primórdios, o arcaico foi tão bem conservado sob uma fina película, como em
nossa relação com a morte. Dois fatores contribuem para essa imobilidade: a
força de nossas reações emotivas originais e a incerteza de nosso conhecimento
cientifico. Nossa biologia ainda não pode decidir se a morte é o destino
necessário de todo ser vivo ou apenas um incidente regular, mas talvez evitável
dentro da vida. É certo que a frase “todos os homens são mortais” vem
apresentada, nos manuais de lógica, como exemplo de proposição universal, mas
para nenhuma pessoa ela é evidente, e hoje, como outrora, nosso inconsciente
não tem lugar para a idéia da própria mortalidade. (FREUD, 1996, p. 361)
Destas convicções e
crenças primitivas das quais não conseguimos a superação completa, um dos
mecanismos do qual o autor também nos chama a atenção e vai ser encontrado
dentro do conto “Uma Visita de Alcibíades” é o da atividade psíquica animista,
que, segundo Freud:
se
caracterizava por preencher o mundo com espíritos humanos, pela superestimação narcísica dos
próprios processos psíquicos, a onipotência dos pensamentos e a técnica da
magia, que nela se baseia, a atribuição de poderes mágicos cuidadosamente
graduados a pessoas estranhas(mana), e também por todas as criações com que o
ilimitado narcisismo daquela etapa de desenvolvimento defendia-se da inequívoca
objeção da realidade. (FREUD, 1996, p. 359)
Tal prática do animismo
dos primitivos, sem dúvida ocorre com todos nós em alguma altura de nossa
evolução individual, e fica evidente que sua ocorrência acaba por deixar “vestígios e traços ainda capazes de manifestações, e que
tudo o que hoje nos parece “inquietante” preenche a condição de tocar nesses
restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação” (FREUD, 1996,
p. 359).
Importante
ressaltar que essas demarcações do que é superado e o animismo só podem gerar o
inquietante na obra literária quando se colocam numa posição da qual não
conseguimos discernir o que é realidade ou fantasia na trama, pois tal
fronteira é apagada.
O inquietante na obra literária
Outra importante distinção da qual o texto
freudiano trata é relacionada ao posicionamento do autor de uma obra literária
perante a geração do efeito inquietante, transitando em regras diferentes do
inquietante da realidade comum.
Freud
explica que nem tudo que é inquietante na realidade, acaba tornando-se, consequentemente,
inquietante na literatura, como pode-se observar no caso de contos de fadas,
por exemplo, da qual situações inusitadas como um cavalo falando não nos
instaura a sensação de estranhamento.
Para que o
efeito inquietante na literatura seja alcançado, o autor literário tem que
saber mover sua obra no âmbito da realidade comum, aceitando as condições
capazes de trazer o inquietante das vivências reais para o mundo da literatura,
como é o caso de nosso conto, e compreender, principalmente, que ao trabalhar
neste campo, o autor pode ir ainda mais além com o efeito inquietante que
busca, num jogo de multiplicação do efeito na denuncia de nossas convicções a
serem superadas, como percebemos nesta passagem:
Então
ele também aceita as condições todas que valem para a gênese da sensação
inquietante nas vivencias reais, e tudo o que produz efeitos inquietantes na
vida também os produz na obra literária. Mas nesse caso o escritor pode
exacerbar e multiplicar o inquietante muito além do que é possível nas
vivencias, ao fazer sobrevir acontecimentos que jamais – ou muito raramente –
encontramos na realidade. Ele como que denuncia a superstição que ainda
abrigamos e acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade
comum e depois ultrapassá-la. Nós reagimos a sua ficção tal como reagiríamos a
nossas próprias vivencias; ao notarmos o engano, é tarde demais, o autor
atingiu seu propósito. (FREUD, 1996, p. 373)
Portanto, baseando-se
no inquietante advindo do superado e de concepções animistas explicados aqui,
parte-se agora para análise das passagens que apontam a ocorrência no conto destes
pontos levantados por Freud.
Alcibíades redivivo: o superado que retorna
Como foi
destacado no resumo, a trama gira em torno da aparição do ilustre ateniense
Alcibíades, logo após o narrador-personagem Desembargador X acabar de ler e
vivenciar, em sua imaginação, as aventuras do general biografado por Plutarco.
Machado de
Assis faz questão de não deixar espaço para que busquemos alguma definição
nesta absurda aparição, pois coloca como plano imediato da história o confronto
dos modos de vestir das duas figuras localizadas em épocas tão distintas: um
Alcibíades vindo da Grécia antiga com o Desembargador X localizado no presente
da trama, mais precisamente 1875, como frisa o autor no formato de carta e
também em algumas citações do texto a fatos como a insurreição da Herzegovina,
a guerra dos carlistas e o circo Chiarini.
Tal
aparição, aparentemente desejada pelo personagem-narrador em sua prática
espiritista no intuito de responder a questão sobre qual seria a impressão do
ilustre ateniense ao nosso vestuário moderno, não evita a ocorrência do enorme
incômodo sentido pelo Desembargador. Nesse caso, a aparição esperada seria de
um espírito, não de um corpo presente, “carne e osso”, pois como salienta o
personagem, ele “pedira um espectro, e não um homem de verdade”.
Por isso um
desespero incontornável acaba tomando conta do Desembargador, pois ao defrontar
com a figura histórica de Alcibíades “rediviva”, não consegue mais ter a
certeza do limiar que separa o que é real do que é fantasia. Este incômodo da
aparição pode ser percebido no trecho a seguir presente no conto:
Juro a V.Ex.ª que não acreditei; por
mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que
tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades
redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o
efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta
de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...
— Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as
carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia
duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão
cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era
claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do
espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. (ASSIS,
1994, p. 86)
Primeiramente
então, pela ótica do texto freudiano, podemos destacar que a aparição de
Alcibíades torna-se o símbolo daquilo que há muito deveria ter sido superado,
neste caso, a presença de alguém que se encontrava morto, e, seguindo por essa
perspectiva, ao não dar espaço para que o narrador-personagem compreenda se tal
aparição está vinculada à realidade ou à fantasia, Machado de Assis instaura a
sensação do efeito inquietante no Desembargador X.
É
importante lembrar, também, o potencial inquietante que a morte possui, por ser
a convicção primitiva da qual não conseguimos nunca a superação completa, como
chamou a atenção Freud.
Portanto,
não é de se admirar o medo e assombro que a figura de Alcibíades vai causar no
protagonista do conto, principalmente porque, como nos exemplifica numa outra
passagem de “Das Unheimliche” o escritor austríaco, tal presença animista
“possui ainda o velho sentido de que o morto tornou-se inimigo do que sobrevive
e pretende levá-lo consigo para partilhar sua nova existência” (FREUD, p. 362).
Essa afirmação apresenta similaridades de significação neste trecho do conto:
Mas
eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo
possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo,
não iria eu ter com ele à eternidade. Esta idéia gelou-me. Para um homem que
acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos
sarcasmos. (ASSIS,
1994, p. 87)
O caráter
animista pode ser pertinente à própria aparição também, pois a figura do
general e político Alcibíades esta diretamente relacionada a materialização de
algum desejo interno inconfesso, inconsciente e não-verbalizado
do personagem Desembargador X.
Neste caso,
seu grande apreço e vontade por viver, mesmo que de forma imaginativa através
da literatura, as ações correspondentes a Grécia Antiga acabam nos apresentando
esse viés interpretativo, como podemos observar nesta passagem:
Hoje,
à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me
no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de
estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego;
devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia
fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se
dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da
ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente
numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático.
Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos
carlistas, a Rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida
antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária. (ASSIS, 1994, p.
85)
A realidade comum
através da verossimilhança da carta
Também é preciso levar em consideração a
capacidade multiplicadora do efeito inquietante que o autor tem em mãos ao se
mover na realidade comum. Machado de Assis, escritor hábil como bem sabemos,
não abria mão deste artifício, usando-o em diversas oportunidades de sua
extensa obra contista.
No caso de “Uma Visita de Alcibíades”, o
autor buscou colocar o conto o mais próximo possível de uma simulação de
verossimilhança com o tempo em que estava sendo escrito, usando então a técnica
textual da carta, na qual a forma de narração demarcada com remetente
(Desembargador X), destinatário (Chefe de Polícia da Corte), referências
temporárias, como uma data específica (20
de setembro de 1875) e o horário em que iria passar prestar as devidas
explicações na Corte (amanhã de manhã, antes das oito) e referências
relacionadas ao momento histórico presente no qual a carta estava sendo escrita
(a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas) acabam aparecendo.
Conclusão
Então, conforme exposto nesta análise, pode-se
observar no conto machadiano que o efeito inquietante acaba ocorrendo por causa
das seguintes frentes apresentadas: aquilo que era então superado, mas de
repente apareceu, neste caso, sendo o morto redivivo Alcibíades; a força
geradora de inquietante relacionada a morte, na qual o desembargador não
consegue discernir se o ilustre ateniense realmente está vivo em corpo
presente, pois o medo e a força destas convicções primitivas o impedem de tal
feito; a concepção animista, gerada pelo processo de materialização de algum
desejo psíquico do personagem principal, provavelmente de viver na Grécia
Antiga; e , por último, a tentativa de aproximação com a realidade comum pela
técnica textual da carta e sua proximidade com a verossimilhança.
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