Helano
Ribeiro
(Dndo.
UFSC, bolsista Capes)
Resumo:
Este
artigo arma uma conversa com dois livros do escritor Manoel Ricardo de Lima, As mãos e Jogo de varetas, pensando-os como máquinas de guerra no sentido que
é desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari na obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Essa guerra supõe uma não
conformidade da chamada literatura menor, discutida pelos pensadores franceses,
em face do discurso hegemônico existente na literatura. A literatura menor,
desta forma, penetra a maior, através de seus rizomas, fazendo-a gaguejar.
Palavras-chave:
Manoel Ricardo de Lima; literatura menor; rizoma.
Abstract: This article sets up a conversation with two books of
the writer Manoel Ricardo de Lima, Hands
and Mikado, thinking them as war
machines in the sense that is developed by Gilles Deleuze and Félix Guattari in
A thousand plateaus: capitalism and
schizophrenia. This war involves a nonconformity call minor literature,
discussed by French thinkers, in the face of the hegemonic discourse in the
literature. The minor literature, thus penetrates the largest through its
rhizomes, making it stutter.
Keywords:
Manoel Ricardo de Lima; minor literature; rhizome.
Mil
platôs, capitalismo e esquizofrenia dos franceses Gilles
Deleuze e Félix Guattari divide com o anteriormente publicado O Anti-Édipo o subtítulo capitalismo e esquizofrenia, mas não representa um
desenvolvimento linear das idéias apresentadas no livro de 1972/1973. Composto
de cinco livros, Mil Platôs é um projeto que pode ser lido em
todas as direções, independentes e múltiplas, em um plano de imanência, um
tabuleiro de xadrez imaginário, em que todos os jogos são possíveis, em que
todos os conceitos podem ser abertos e desvelados. Cada volume é desenvolvido
independentemente, rizomático – para usarmos um dos conceitos principais deste
trabalho, o conceito de rizoma, ou um sistema conceitual aberto, espalhado. Ou
seja, é um exercício, sobretudo, de pensar as multiplicidades: “Um rizoma não
cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que
remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”. (Deleuze; Guattari, 2007, p. 17.)
A escrita rizomática, nessa lógica, é operação de subtração dos pontos
de unificação do pensamento e do real, produz uma cartografia neste mesmo real
que contribui para um certo movimento – uma forma de dança
– preparando-o para a abertura necessária das multiplicidades. A
multiplicidade, em sua forma rizomática, se revela como um pensamento, até
mesmo uma ética, que rejeita qualquer forma de transcendência, modelos
teleológicos ou sistemas binários pré-estabelecidos, ou seja, é também uma
tentativa de revelar o conformismo imposto, muitas vezes, pela política e pelos
discursos da possante máquina do Estado. Resta claro que não se trata de um acordo
pacífico. Em Mil platôs, Deleuze e Guattari lembram que a guerra
é comumente associada a um poder militar, uma força legitimada pela voz do
Estado, que é a máquina de guerra por excelência que pode impor seu estado de
exceção, fundindo sujeito e objeto, reduzindo aquele a mera marionete,
reduzindo o que é bíos [vida política] em zoé [vida nua]. Neste
campo de batalha, revela-se uma figura lisa, a-preensiva, revolta –
rizoma:
[...] o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não
significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central,
unicamente definido por uma circulação de estados. O que está em questão no
rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também com o animal, com o vegetal,
com o mundo, com a política, como o livro, com as coisas da natureza e do
artifício [...].(Deleuze; Guattari, 2007, p. 33.)
Neste espaço bélico, os pensadores franceses propõem outra forma de
máquina: a escritura, “O livro-máquina de guerra, contra o livro-aparelho de
Estado” (idem, p. 18). A escrita é vista como nômade, reproduz-se, deste modo,
em linhas de fugas que vão crescendo cada vez mais sorrateiras, abandonado a
máquina do Estado. Escrita e jogo reivindicam uma literatura menor que possa
fazer balbuciar, tremer não só a língua, mas também suas leis arbitrárias.
&
Narrativas que poderiam circular entre poesia e prosa, esquivando-se, assim,
de um fechamento – clausura da lógica das sensações e sentidos. Estou falando
de As mãos e Jogo de varetas do escritor Manoel Ricardo de Lima,
obras já publicadas, mas, agora (2012), reeditadas com um novo e sensível
projeto gráfico. Sensível em seu eidos, visto que é arte, mas de
poderosa ousia, visto que é uma escritura inquieta, buliçosa. Proponho
aqui estas duas obras como máquinas de guerra, desdobramentos rizomáticos, ou,
inoperância sutil do real. Que comece, então, o jogo.
Mas que, de início, seja o Jogo de varetas, que é
um jogo do acaso, um acaso intencionado, pois é resultado propositado do
jogador/escritor. Segundo Manoel Ricardo de Lima (2012a, p. 11): “As narrativas
que compõem esse livro conversam com o jogo de varetas”.
Se pudéssemos representar o rizoma através de um jogo, poderíamos
sugerir o jogo de varetas. Em sua modalidade tradicional, consiste em várias
varetas coloridas e uma vareta preta, podendo ser jogado por mais de dois
jogadores. No início do jogo, o feixe de varetas é jogado ao acaso na
mesa, para que os jogadores tentem pegar as varetas de sua respectiva cor. Cada
jogador deve, no seu turno, tentar retirar quantas varetas puder sem que
nenhuma das outras se mova. Quando essa tentativa falhar, passa a ser a vez do
próximo jogador. As varetas são pontuadas de acordo com as cores e há uma
vareta especial, de cor preta, que quando apanhada, pode ser utilizada para
ajudar a retirar as demais.
O que aparentemente parece caos, desordem, naquele emaranhado de cores,
nada mais é que um novo arranjo, uma nova forma de organização, uma
multiplicidade de olhares, que possui regras, mas que, no entanto, não limita a
criatividade do arranjar das partidas, em forma de fragmentos. Fica claro que
no Jogo de varetas não há centro(s), nem ramificações arbóreas – assim
como a ideia de rizoma – cada narrativa pode ser lida como a dinâmica do jogo
de varetas, as peças podem ser retiradas em todas as direções, irá depender da
intenção e destreza do jogador e sua vontade de vencer a partida/guerra:
A solução sem general aparece para uma multiplicidade a-centrada que
comporta um número finito de estados e de sinais de velocidade correspondente,
do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma lógica da guerrilha, sem
decalque, sem cópia de uma ordem central. (Deleuze; Guattari, 2007, p. 27-28)
Isso é a escritura de Manoel Ricardo de Lima, um trabalho atravessado
de feixes rizomáticos. Nesse sentido, suas narrativas dialogam nessa lógica
tempo-espacial – nesse plano de imanência – provocam uma experiência que,
embora efêmera, é necessária para o desmonte do real, são narrativas curtas,
mas que discursam num tempo kairológico[1],
ou seja, um tempo de intensidades paroxísticas, em detrimento do cronológico. Suas
narrativas uma máquina de guerra, podem ser lidas em sua forma fragmentária, em
todas as direções, guerreiam pelo jogo. O aviso é bem claro logo na primeira
página, cujo título da apresentação é “Ameaça”. Ou seja, há perigo de
desarticulação da linguagem, que é atravessada por rizomas e disseminações de
sentidos.
Jogo de varetas revela-se, desse modo,
como uma escritura nômade da memória. Sua primeira narrativa, “O elefante”, já
sugere uma experiência mnemônica. Que animal é o elefante? Sobretudo, é aquele
que é conhecido por jamais esquecer nada, em toda sua grandeza, doçura, guarda
a memória como algo de afeto:
A história que ouvi é silêncio. Um silêncio enorme, sem tamanho sem
justiça. Falou algo sobre uns objetos perdidos perto de uma memória e mesmo sem
cutucar a minha saúde tão gasta, já, me provocara um encanto muito grande
naquele pedaço de campo que conseguia tocar com o olho. (Lima, 2012a, p. 18)
Não há um elefante na
narrativa, mas um devir-animal, que opera menos como lamento infundado do que
potência do silêncio. Essa memória é, sobretudo, uma máquina sutil, silenciosa,
nada óbvia, contudo, é política:
Alguém vomita
com medo e explode bem aqui, do lado.
Do
meu lado.
Isto
é, um corpo e uma máquina. Isto é, um animal.
E
isto é político.
Este
lugar é impensável.
Mas
é preciso pensar noutra coisa, outro jeito. (Lima, 2012a, p. 83)
Pensar
noutra coisa, pode ser também lido como um apelo de
sua escritura para apontar para algo que pouco vemos na literatura contemporânea,
que é a necessidade de jogo, mas a necessidade de tornar o risco [quem sabe
político] uma prática do próprio fazer literário. Em entrevista cedida ao Suplemento Pernambuco, Manoel Ricardo de
Lima afirma:
A minha
preocupação é que meus textos possam se manter longe dessa literatura permitida
e possam expandir os usos autônomos da palavra até o ponto mais violento de sua
dilaceração. Gosto de imaginar que, com eles, posso montar um cinema, rasgar
uma parede e expandir uma imagem; gosto de mover meu trabalho numa
a-funcionalidade entre as formas de vida do mundo presente e a vida das formas
como uma aventura. (Taketani, [s/d])
Habitada por
personagens sem nomes, suas narrativas poderiam também figurar ao lado dos
contos de Kafka, através de um experimentum
linguae que seja capaz de fazer
gaguejar toda uma língua maior, em nome de uma língua menor. Por que isso? A
língua menor consegue através deste campo de fuga desviar-se da atração que passa
pelo poder e pela dominação, não dar nomes significa falar de personagens que
não conseguem ser captados pelo mainstream,
ou até mesmo pelas leis, pelo Estado. A língua menor, segundo Deleuze e
Guattari, é dotada de novas potências gramaticais ou sintáticas, faz a língua
maior refletir sobre si mesma; dito de outra forma, impõe certo desconforto à
língua maior, tirando-a de sua zona de conforto, no momento em que extrai dela
suas verdades pré-estabelecidas: a língua menor faz a maior gaguejar,
balbuciar, revela-se em sua constante tensão em relação a língua maior.
Contudo, não se trata aqui de hierarquizar uma língua menor e outra maior, mas
sim de ver a menor como um devir louco, rizoma.
Quando a menor vê, ela
é, de volta, flechada pelo olhar da maior. Não é a maior que interpela a menor,
mas sim, o rizoma arbóreo que se espalha e não se deixa cooptar. A língua
menor, nessa lógica do rizoma, opera dentro do campo da desterritorialização,
ou seja, a língua menor se reterritorializa na maior que ao mesmo tempo se
desterritorializa em função da menor, numa espécie de amálgama difícil de
separar.
Não menos problemática
é a noção de minoria e maioria. A maioria se apresenta em sua potência como
paradigma do poder, do certo, da norma padrão, assim como dizem Deleuze e
Guatarri: “É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema
homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir
potencial e criado, criativo”. (Deleuze; Guattari, 2008, p. 52). As línguas
menores penetram, assim, a língua maior através de seu devir; levam-na para a
dimensão do devir minoritário, de modo que tenhamos o devir menor da língua
maior.
Já no livro As mãos,
Manoel Ricardo de Lima não cansa de expandir seu território bélico. As
narrativas, se não tratam de desapegos, procuram armar um desencantamento de
mundo, de uma língua maior que representa a máquina dos grandes nomes, dos
conceitos inabaláveis. Não dar nomes, escorregar pela linha de fuga literária,
essa é sua tática de inoperância do real, através de personagens melancólicos,
desencantados, solitários, quase afônicos, sujeitos que vivem em um mundo que
lhes é totalmente alheio, quase personagens kafkianos.
É uma máquina de guerra, encabeçada pela linguagem: “Este lugar de areia e
escombro cheira mal. E está em guerra. As pessoas também têm um cheiro muito
ruim, sujam tudo com suas mãos e com dinheiro.”. (Lima, 2012b, p. 17) Que lugar
é esse? Um deserto do real? Quem são essas pessoas? Pouco importa, o mais
importante é lembrar, com ajuda de Kafka e Manoel Ricardo de Lima, que existe
um Estado que tenta nos cooptar, um sistema autoritário que tenta roubar nossa
memória e subjetividade, um mercado editorial que dita as regras do jogo
literário. A inoperância pode ser pensada a partir da retirada dos nomes. Kafka,
ao semi-nomear seu conhecido personagem do O processo, Josef K. se viu obrigado a eliminá-lo. Sua escritura, uma
literatura menor, continua a desarticular o idioma de Goethe. As duas obras de
Manoel Ricardo de Lima seguem também essa trilha com a artilharia chamada
linguagem.
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Vol.1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed.
34, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Vol.2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo:
Ed. 34, 2008.
LIMA, Manoel Ricardo. Jogo de varetas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012a.
LIMA, Manoel Ricardo. As mãos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012b.
TAKETANI, Yasmin. A literatura como uma armadilha a
ser construída. Suplemento Pernambuco.
Entrevista concedida por Manoel Ricardo de Lima. Recife, [s/d]. Disponível em
<
http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/component/content/article/8-entrevista/828-a-literatura-como-uma-armadilha-a-ser-construida.html>. Acesso em
15 de maio de 2013.
[1] Mesmo que chrónos tenha
sido a palavra comum entre nós, não é a única para designar o tempo entre os
gregos. Outra é kairós, que significa ‘medida’, ‘proporção’, e, em
relação com o tempo, ‘momento crítico’, ‘temporada’. Uma terceira palavra é aión,
a mesma que Platão usa para se referir à eternidade no diálogo Timeu.