Karina
Paraense de Souza[1]
Resumo: Mário de
Andrade, Câmara Cascudo e Monteiro Lobato viveram, produziram no século XX, e,
possuem uma pesquisa que alcança o folclore brasileiro. Além dessas
singularidades, me chama a atenção nas obras desses autores, a presença da
narrativa A madrasta. Porém, este
conto manifesta-se com divergências. Deste modo, este artigo objetiva fazer um
estudo da narrativa A madrasta nas
obras dos escritores mencionados à luz dos estudos de Arquivo e Tradução. Para
isso, utilizo uma metodologia essencialmente bibliográfica e fundamento-me em
Jacques Derrida, para compreensão de Arquivo, e de Jorge Larrosa para discutir
acerca de Tradução. Como resultados, a pesquisa apreendeu que, talvez, o
projeto literário dos escritores tenha influenciado nas traduções que estes
fizeram das versões da narrativa quando as retiraram dos arquivos populares e
as verteram para suas obras.
Palavras-chave: Arquivo.
Tradução. A madrasta.
1
Considerações iniciais
Para
que o leitor inicie o caminho deste artigo esclarecido, julgo necessário começar
fazendo uma contextualização acerca do meu alvo de análise, a narrativa A madrasta. Tudo principiou quando lendo
Macunaíma, do escritor modernista
Mário de Andrade, identifiquei um conto português que conhecia há bastante
tempo, porém, este não estava na obra tal como é encontrado no imaginário
popular, mas sim de forma transformada, então fui em busca de outra versão, e,
a encontrei em Literatura Oral no Brasil,
do Câmara Cascudo e em Histórias de Tia
Nastácia, do Monteiro Lobato. Comparando as três versões, percebo que a
variação do Mário de Andrade apresenta diferenças maiores, enquanto que as
versões dos dois últimos escritores se aproximam.
Farei
um breve resumo da narrativa em questão, para melhor entendimento do leitor
sobre o objeto de estudo deste artigo. A
madrasta conta a história de duas - ou três meninas, dependendo da versão -
que tinham uma madrasta muito má que as mandava, como escravas, reparar uma
figueira para que os passarinhos não bicassem os frutos da árvore. Porém, de
vez em quando uma ave conseguia morder um figo, e, por conta disso a madrasta
das crianças colocava-as de castigo. Certo dia, o pai das meninas foi fazer uma
viagem e ao retornar soube, pela esposa, que suas filhas haviam morrido. O homem
ficou triste. Um dia, o capineiro do homem, ao cortar capim para os animais,
escutou uma canção vinda do bonito capinzal, e com medo foi avisar ao patrão.
Este cavou no lugar de onde saia a música e encontrou suas filhas vivas por
milagre de Nossa Senhora que era madrinha delas. Quando o homem chegou em casa
com as filhas, a mulher estava morta. Agora que o leitor já conhece o enredo da
narrativa, posso avançar.
Esta
pesquisa é importante, pois me auxiliará a compreender parte de alguns de meus
questionamentos a respeito das diferenças entre as versões do conto. Além de,
contribuir para a minha formação como pesquisadora da Literatura, haja vista
que trabalho com Mário de Andrade, especificamente Macunaíma, desde a graduação. E mais, esta pesquisa auxiliará a
desenvolver minha dissertação, posto que A
madrasta é meu alvo de estudo no mestrado.
Para
ancorar minha análise, fundamento em alguns estudos de Jacques Derrida, para
entender sobre Arquivo, e Jorge Larrosa que me dá suporte para discutir acerca
de Tradução.
A
metodologia deste trabalho é essencialmente bibliográfica na esfera de Arquivo e
Tradução, mas também tocará nas ideias de Memória e Leitura.
Este
artigo está organizado da seguinte maneira: primeiro farei uma discussão acerca
de Arquivo, em seguida tecerei uma abordagem sobre Tradução, e, depois tentarei
enlaçar esses dois conceitos no recorte de análise já mencionado. Para findar o
trabalho, farei umas considerações finais para expor minhas percepções do que
foi analisado e exibir possíveis conclusões.
2
Sobre o Arquivo
Ainda
nas primeiras páginas de Mal de arquivo:
uma impressão freudiana, Jacques
Derrida (2001), diz que a palavra arquivo advém de Arkhê e possui dois significados: comando e começo. Mais adiante o
estudioso explica que o sentido de arquivo vem do grego arkhêon, que era uma casa onde os magistrados superiores chamados
de arcontes comandavam os documentos
oficiais que ficavam ali depositados.
Assim, os arcontes foram os
homens que principiaram a guarda dos documentos, e, dispunham de poder e
autoridade reconhecidos publicamente. Além disso, esses homens eram responsáveis
pela interpretação dos arquivos. Cito:
(...)
vem do arkhêon grego: inicialmente
uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores,
os arcontes, aqueles que comandavam. (...) Levada em conta sua autoridade
publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles (casa particular, casa de família ou
casa funcional) que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes eram os seus primeiros
guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do
suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos. Tinham o
poder de interpretar os arquivos.
(DERRIDA, 2001, p. 12-13).
O
filósofo continua afirmando que foi nessa “domiciliação,
nesta obtenção consensual de domicílio, que os arquivos nasceram” (DERRIDA,
2001, p.13). No entanto, antes de avançar o debate, advirto que na página
anterior a dessa última citação, o pensador alerta que o conceito de arquivo é
difícil de situar: “(...) ao contrário daquilo que geralmente se imagina, tal
conceito não é fácil de arquivar. Temos dificuldade em estabelecê-lo e
interpretá-lo no documento que nos entrega; aqui, no nome que o nomeia, a
saber, ‘arquivo’ (...) ” (DERRIDA, 2001, p.12). Portanto, DERRIDA (2001),
elucida que é difícil comportar o conceito de arquivo em uma caixa fechada.
O
autor cita essa complexidade de conceituar arquivo por todo o livro, e, afirma
que nem mesmo Sigmund Freud conseguiu vencer esta tarefa:
Ora,
quanto ao arquivo, Freud jamais conseguiu formar um conceito digno deste nome.
Nós também não. Não temos um conceito, apenas uma impressão, uma série de
impressões associadas a uma palavra. (DERRIDA, 2001, p. 43).
Mais
adiante, DERRIDA (2001) expõe, categoricamente, que
“Arquivo” é somente uma noção, uma impressão associada a uma palavra e para qual Freud e
nós não temos nenhum conceito. Temos somente uma impressão, uma impressão que
insiste através do sentimento instável de uma figura móbil, de um esquema ou de
um processo in-finito ou indefinido. (DERRIDA, 2001, p. 43-44).
Assim,
temos, nessas duas últimas citações, informações importantes: primeiro que não
há um conceito fixo de arquivo, segundo, que Freud, também não conseguiu
conceituá-lo, e, por fim, arquivo pode ser entendido como uma noção, como um
norte de uma categoria fluida que está em processo.
Além
dessas discussões, DERRIDA (2001) trata de outro ponto interessante: pulsão de
morte. O filósofo explica que Freud
refletiu sobre, e, para o psicanalista, se trata de uma necessidade que trabalha
em silêncio para destruir o arquivo sem deixar rastros: “a pulsão de morte, é
acima de tudo, anarquívica,
poderíamos dizer, arquiviolítica.
Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo” (DERRIDA, 2001, p.
21). Essa destruição do arquivo provoca o esquecimento, a amnésia, a
aniquilação da memória.
A
pulsão de morte é importante porque toca em dois pontos: memória e mal de
arquivo. Para elucidar que nos remete à memória destaco:
(...)
o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação,
não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e
interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar no lugar da falta originária e
estrutural da chamada memória. (DERRIDA, 2001, p. 22).
Ou
seja, o arquivo possui um espaço quando não há a possiblidade de lembrança, de
memória, de guardar, posto que não há interesse em guardar algo que possa ser
destruído, morto, apagado. Deste modo, arquivar condiciona a pulsão de morte e
o mal de arquivo:
(...)
Não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a
possibilidade de um esquecimento (...) não haveria mal de arquivo sem a ameaça
desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição. (DERRIDA, 2001, p.32).
Assim,
o desejo de arquivar é consequência da pulsão de morte e da possibilidade do
esquecimento, haja vista que a memória falha, borra e não é capaz de conservar
o objeto de memória tal como é ou foi.
Trato
de memória ancorada em Freud quando este diz em seu famoso artigo Uma nota sobre o ‘bloco mágico’, escrito
em 1924, que finalmente encontrou algo que possa ser comparado com a memória: o
bloco mágico. O estudioso, defende que o aparelho perceptual da mente é
constituído por camadas, assim como o pequeno invento que registra e guarda,
ainda depois de apagadas, informações. No entanto, o bloco mágico não é capaz
de resgatar as informações quando é estimulado, ao contrário da mente humana.
Freud
associa a memória ao bloco mágico para dizer que assim como a mente registra
informações, o bloco mágico também, e que ambos se assemelham por borrar os
informes na medida em que recebem outros.
Voltando
para a ideia de arquivo, DERRIDA (2001) defende que mal de arquivo é o desejo
de chegar até a origem, é ser portador de um mal, e, continua defendendo que
sofrer de mal de arquivo:
(...)
É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente
procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se
há bastante, alguma coisa ele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo
compulsivo, repetitivo, de retorno à origem (...). Nenhum desejo, nenhuma
paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum
“mal-de”, nenhuma febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está
já com mal de arquivo. (DERRIDA, 2001, p. 118-119).
Deste
modo, neste belíssimo trecho assinalado, DERRIDA (2001), explana que sofrer de
mal de arquivo é padecer de um anseio de ir em busca ao começo. O filósofo
continua, e, nas páginas seguintes associa arquivo e arqueologia, posto que
assim como o arqueólogo o portador do mal de arquivo escava, corre para encontrar
seu objeto perdido que o levará até a origem.
Com
base em toda a discussão traçada sobre arquivo até este momento, acho oportuno
fazer uma pequena síntese: arquivo é, ao mesmo tempo, lugar de guarda e de
perda, posto que não se pode lembrar, memorizar tudo, pois, como vimos a
memória é falha, borra, e essa condição de perda faz com que haja o desejo de
arquivar o que pode ser perdido e esquecido. E mais, essa perda que o arquivo
sofre permite o mal de arquivo, desejo de chegar até a origem.
Antes
de encerrar esse ponto do artigo, desejo esclarecer que, como disse
anteriormente, DERRIDA (2001), não conceitua o arquivo, pelo contrário, diz que
a palavra arquivo é obscura, no entanto, apesar de não haver uma definição do
termo, o estudioso, permite entender que arquivo não é somente um lugar físico
que guarda e protege documentos, mas o lugar da memória, o lugar que detém uma
história e cultura. Portanto, no momento da análise, tratarei de arquivo
partindo dessa concepção de arquivo: como um espaço não-físico. Avancemos!
3
Sobre a Tradução
Alguns
estudiosos, ao longo da história do conhecimento humano, detiveram-se em
investigar a tradução, entre eles está Walter Benjamin, Jacques Derrida, Paul
Ricoeur e Jorge Larrosa. Benjamin em A
tarefa do tradutor trata da tradução focando sua reflexão no papel que o
tradutor exerce. DERRIDA (2002), em seu livro Torres de Babel faz uma leitura de Benjamin e do mito bíblico da
Torre de Babel para discutir acerca de tradução onde filósofo a distingue por três
tipos: intralingual, interlingual e intersemiótica, mas apesar de diferenciá-la
em categorias, o foco do seu livro está na tradução entre línguas. RICOEUR
(2011), faz uma leitura de Derrida, e, discorda do mesmo defendendo que a
tradução é possível. RICOEUR (2011), diz ainda que entende a tradução em dois
sentidos: de uma língua para outra, e, como interpretação. No entanto, faz uma
abordagem de tradução de uma língua para outra no decorrer de seu livro.
Todos
esses autores tiveram uma pesquisa sobre tradução, mas me interessa a
investigação que Jorge Larrosa faz a respeito do conceito porque me permite
pensar tradução não apenas de um idioma para outro. Convido o leitor para
avançar o texto e entender um pouco do pensamento que LARROSA (1996) tem do
termo em questão.
LARROSA
(1996), ainda no primeiro capítulo do seu livro La experiência de la lectura: estudios sobre literatura y formación trata sobre o papel formativo da leitura, e,
desenvolve o seu pensamento até chegar
nas metáforas de leitura, que segundo ele são três: leitura como
fármaco, leitura como viagem, e, leitura como tradução. Para este artigo,
inclino-me pela última metáfora, tradução.
LARROSA
(1996), defende que a tradução pode ser entendida não apenas como algo mecânico
de uma língua para outra, mas também pode ser aplicada dentro de um mesmo
idioma, cito:
La
tradución, por tanto, es inerente a la compreensíon humana, y hay tradución de
una lengua a otra, de un momento a otro de la misma lengua, de un grupo de
hablantes a otro y, en límite de cualquer texto (oral o escrito), a su
receptor. Leer es traducir. Interpretar es traducir. (LARROSA, 1996, p.38)
Deste
modo, essa citação me permite dizer que ao ler um texto, oral ou escrito, e, ao
fazer uma interpretação deste, o leitor o traduz, deste modo, é possível fazer
uma tradução de um texto oral ou escrito no seio de um mesmo idioma, posto que
a leitura e a interpretação são traduções.
Essa
ligação entre interpretação e tradução, também aparece em outros capítulos do
livro de Larrosa, como no capítulo três, em que o estudioso, apropriando- se do
pensamento de Heidegger diz:
(...) todo traduzir es un interpretar
(Auslegen) y que toda interpretación (Auslegung) es un traduzir (Übersetzen), y
eso independientemente de que la
tradución-interpretación se haga entre dos lenguas o en el de una sola lengua.
(HEIDEGER apud LARROSA, 1999, p. 366)
Assim,
nessas duas citações, pode-se depreender que leitura e interpretação são
traduções. LARROSA (1996) possui ainda, pensamentos que julgo pertinentes para
o trabalho. O estudioso defende que toda tradução acarreta em mudanças, em
novidades de significação: “Y toda tradución es producción de novidade de
sentido (...)” (p. 38). Ou seja, o objeto traduzido não é mais o mesmo após ser
lido e interpretado, ele muda, altera-se, pois acopla em si novos caminhos de
possibilidades de significação. O autor continua essa ideia dizendo que
traduzir é re-significar.[2]
LARROSA
(1996), enaltece ainda que leitura e tradução é, no mesmo instante, transporte
e transformação, e, continua elucidando que:
tra-ductio
acarreta toda la imagineria del transporte, de la conducíon de algo de un sitio
a otro sitio, del traslado (...) de la transferencia, de la transposición (...) y también de la transmisión (...). Algo
se hace passa de un lugar a otro (...). (LARROSA, 1996, p. 301).
Assim,
tentando unir as pontas do pensamento de Jorge Larrosa, toda leitura e interpretação
são traduções que acarretam em uma transformação do texto, posto que este
conquista novos sentidos e significados para si. E mais, a tradução ocasiona,
no mesmo tempo, transporte e significação. Deste modo, traduzir implica mudar,
transformar o texto fonte.
4
Tentando enlaçar ideias: Arquivo, Tradução e A madrasta
Agora
que o leitor já está a par do que se
trata Arquivo e Tradução, e, qual o objeto de estudo deste artigo, chego ao
ponto central do trabalho: tentar estabelecer uma relação desses conceitos com
a narrativa-alvo.
Para
isso, inicio esta tarefa fazendo um pequeno panorama das obras dos três
escritores em que o conto se encontra. Macunaíma,
do Mário de Andrade, é uma obra literária onde se fazem presentes vários mitos,
lendas, provérbios, ditados e crendices populares, no entanto, tais
manifestações da cultura brasileira não se encontram tal qual como é no
imaginário popular, mas se de maneira totalmente transformada. Essas
transformações foram feitas propositalmente, com intenção, conforme confessou
Mário de Andrade a Câmara Cascudo, em carta datada de 1 de março de 1927[3]:
Minha
intenção foi esta: aproveitar o máximo possível lendas tradições costumes
frases feitas etc. brasileiros. E tudo debaixo dum caráter sempre lendário
porém com lenda de índio e negro. O livro quase que não tem nenhum caso
inventado por mim, tudo são lendas que relato. (...) Um dos meus cuidados foi
retirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como
tem sido minha preocupação desde que intentei em abrasileirar e trabalhar o
material brasileiro. (MORAES, org., 2010, p. 123).
Assim,
neste trecho recortado, Mário sinaliza o propósito que tinha com Macunaíma: misturar, mudar, alterar,
transformar. Por sua vez, Câmara Cascudo, em seu livro Literatura Oral no Brasil, faz um grandioso estudo acerca da
Literatura Oral em solos brasileiros, das influências étnicas que esta sofreu
ao longo dos anos, dos elementos que esta apresenta, e mais, CASCUDO (1984)
apresenta diversas narrativas, entre elas A
madrasta. É válido ressaltar que, esta obra do escritor nordestino não é
literária, mas sim resultados de longas pesquisas e dados culturais.
E,
Histórias de Tia Nastácia, do
Monteiro Lobato, é uma obra literária, voltada para o público infantil que
apresenta várias narrativas contadas pela velha e preta Nastácia para Emília,
Pedrinho, Narizinho, D. Benta e Cia.
Como
disse ainda na introdução deste trabalho, a narrativa em questão apresenta
diferenças nas três obras em que ela se encontra, no entanto a divergência
maior ocorre em Macunaíma, e as
versões de Câmara Cascudo e Monteiro Lobato se aproximam, a título de exemplo
cito algumas aproximações e distanciamentos entre as variantes desses dois
autores: em Cascudo são duas crianças, em Lobato são três. No texto do escritor
nordestino há menção de que quando as meninas não conseguiam impedir que os
passarinhos bicassem os figos eram castigadas, e, em Lobato diz que a madrasta
batia nas meninas. Em Cascudo o funcionário do pai das meninas é mencionado na
história como um capineiro, e, por sua vez em Lobato o personagem é dito como
Negro tratador de animais. No final da
narrativa, a madrasta é nomeada na versão de Cascudo como mulher e em Lobato
como peste.
Assim,
nesses recortes mencionados é notório a diferença e o discurso de ambas as
versões, pois, como se pode perceber nesses pequenos exemplos, apesar de o livro
de Monteiro Lobato ser voltado para o público infanto-juvenil, há expressões
que sugerem violência e preconceito, como: “aparecia um ou outro figo bicado e
a madrasta batia nas três (...)”, “o negro obedeceu”, “Um castigo do céu tinha
caído sobre a peste”.[4] A
versão de Câmara Cascudo, menciona, também, esses episódio, no entanto, de
forma mais suave, sutil. Deste modo, pode-se entender que a tradução de que
Monteiro Lobato fez nos permite atribuir outros significados, como racismo e
violência infantil.
Anteriormente,
disse que a versão da narrativa em Macunaíma
se difere e se distancia muito das outras duas variantes, e, para elucidar
isso, faço um pequeno resumo do episódio onde o conto aparece no capítulo XV da
obra: tudo inicia quando Macunaíma acompanhado de seus irmãos está saindo de
São Paulo para retornar a sua terra de origem. Em certo momento da viagem o
herói, correndo do bicho Oibê tentar esconder-se do mesmo utilizando folhas de
um caramboleiro, a árvore lamenta em forma de canção, cantiga esta muito
similar a das versões da narrativa em discussão. Macunaíma se compadece da árvore
a transforma em princesa, com ela enamora-se e vive uma pequena história.
Mais
uma vez, ao comparar as três versões de A
madrasta é perceptível as diferenças, no entanto, a disparidade maior
encontra-se na versão de Mário de Andrade. E, o que tem haver Arquivo e
Tradução meio a essas variações todas? Poderia me questionar um leitor mais
exigente e ansioso. Responderia que tem tudo haver, em vista que os conceitos
se relacionam com os objetos, pois todos os escritores fizeram uso de arquivos
para realizarem suas pesquisas e produções. Explico.
Mário
de Andrade e Câmara Cascudo dedicaram-se com afinco a pesquisar o folclore
brasileiro, para isso viajaram, foram a campo, recolheram muitas tradições e
narrativas populares, porém, ambos fizeram usos distintos desses materiais,
pois tinham interesses diferentes. O primeiro tinha um empenho literário, e
como tal, não possuía amarras para ser fiel às narrativas que recolheu e leu
quando as fosse verter para sua obra. Enquanto que o segundo dispunha de uma
preocupação em manter a cultura brasileira viva antes que a modernidade
chegasse de vez e acabasse com tudo, por isso Cascudo deveria ser o mais fiel
possível das narrativas que ouvia. Cito, para ilustrar o interesse de Cascudo,
uma carta que ele endereçou a Mário de Andrade, em 22 de fevereiro de 1944:
Fiquei
e ficarei aqui justamente cascavilhando e anotando toda essa literatura oral,
renunciando a tudo que a ambição humana e idiota pudesse coçar a imaginação,
pensando em reunir e salvar da colaboração deformadora o que será deformado
pelo tempo. (MORAES, org., 2010, p. 331)
Na
citação, fica evidente a preocupação de Cascudo: manter, salvar, no entanto,
como esclareci anteriormente, a memória borra e é constituída de falhas que o
escritor e/ou leitor preenche. Já Monteiro Lobato, também dispunha de certa
liberdade, não era preso, no entanto, ao verter a narrativa para sua obra,
manteve a essência dela, de modo que esta vai ao encontro das versões que
encontram-se na cultura brasileira.
Reforçando
e enaltecendo, os três escritores usufruíram de arquivos para comporem suas
obras e pesquisas, e, cada um deles fez uma tradução própria da narrativa, e,
isso vai ao encontro de LARROSA (1996) quando este diz que “leer es ver” (p.
94), e, continua afirmando que “no hay visión sin interpretación que no implique la singularidade de una
mirada.” (p. 94). Portanto, cada leitor, ler e interpreta de maneira distinta e
impondo sua particularidade, sua singularidade.
E
mais, quando os escritores utilizaram o/ os arquivo (s) para verter A madrasta para suas obras,
inevitavelmente, transformaram a narrativa, pois como destaquei mais acima,
LARROSA (1996) defende que toda tradução acarreta na transformação do texto
lido ou ouvido. Assim, mesmo que, como confessou Mário de Andrade, se tente
misturar, alterar, essa alteração vem muito antes dessa intenção, pois traduzir
é transformar, conforme LARROSA (1996).
E
mais, ainda que Cascudo tente ser fiel em manter uma cultura, memória, em criar
um arquivo que contenha as manifestações orais populares, nem ele, nem ninguém
jamais conseguiria, pois a memória não é perfeita, ela falha, mancha, borra.
Perde-se, por exemplo, a expressão que o narrador deu a determinado momento da
narração, perde-se um gesto, há um apagamento de alguma ênfase produzida pelo
informante. Lidar com arquivo e memória é conviver, ao mesmo tempo, com guarda
e perda, é um conflito constante, é uma guerra incansável.
Para
findar este momento espinhoso do trabalho, é válido explicitar que Mário de
Andrade, Câmara Cascudo e Monteiro Lobato, fizeram uso de um arquivo folclórico
e popular ao traduzirem A madrasta
quando a trasladaram para suas obras. Digo tradução como bem demarca LARROSA
(1996), tradução como ato de leitura, tradução, como interpretação singular que
ocasiona a transformação do texto fonte. Pouco importa a intenção dos autores,
todos traduziram e alteraram a narrativa de tal modo que esta ganhou novas
significações. O arquivo foi transformado, teve perdas, e, está impresso em
várias versões, destaquei três. Três traduções e modos de ver a manifestação
popular brasileira e a narrativa A madrasta.
5
Considerações finais
Este
artigo teve como objetivo fazer um estudo da narrativa A madrasta, tendo como base os estudos de Arquivo e Tradução,
discutidos por Jacques Derrida e Jorge Larrosa, respectivamente. O trabalho,
inevitavelmente, tocou na ideia de Memória, posto que este conceito, estudado
por Freud, relaciona-se com Arquivo. Deste modo, penso que consegui alcançar a
finalidade traçada inicialmente, pois, como mostrei, as noções de arquivo e
tradução respondem as mudanças ocorridas nas versões da narrativa presentes nas
obras de Mário de Andrade, Câmara Cascudo e Monteiro Lobato.
Além
disso, a análise permitiu perceber que o projeto literário dos três autores
pode ter influenciado nas traduções feitas por estes da narrativa estudada,
pois, como discuti, apesar dos escritores terem interesses e papéis distintos
diante da Literatura Brasileira e cultura popular, vimos que há um convergência
entre os estudiosos: todos, independente de intenção, trabalho e pesquisa,
fizeram um tradução de A madrasta
quando a trasladaram para seus livros.
Como
a ciência e a ética acadêmica recomenda expor, nas conclusões de um artigo, as
limitações da pesquisa realizada, confesso que gostaria de ter um pouco mais de
espaço para tratar sobre a pesquisa e projeto dos três escritores haja vista
que, penso que isso influenciou, nas traduções que cada um fez do conto.
Explanei isso rapidamente, o leitor, possivelmente, recordará. Também, gostaria
de ter tratado um pouco mais sobre o contexto histórico em que os escritores
produziram. No entanto, essa falta de espaço foi positiva, pois me motivou a
realizar um trabalho que contemple esses pontos.
Estudar
Arquivo, Memória e Tradução, foi um desafio imenso, pois ainda não havia tido
contato com os dois conceitos primeiros. Conhecia o último, pois, desde a
graduação tento estabelecer-me como investigadora de Leitura e Tradução, porém
foi muito engrandecedor debruçar-me sobre os livros e conseguir relacionar as
teorias novas com o meu objeto de estudo. Mais recompensador, foi ver este
artigo concluído, confesso.
Esta
pesquisa contribuiu muito para a minha formação, e para o desenvolvimento da
minha dissertação, haja vista que A
madrasta é alvo da minha investigação no mestrado. No decorrer da
construção desse trabalho, mas sobretudo no final dele, percebi que preciso entender mais sobre arquivo, memória
e tradução, pois são ideias que norteiam a minha ambição acadêmica.
Referências
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. 2ª ed. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio
de Janeiro: PUC-Rio, [s.d]. Título original: Die Aufgabe Überseterz.
CASCUDO, L. C. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1984.
DERRIDA,
J. O mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
_______,
J. Torres de Babel. Belo Horizonte:
Editora da UFMA, 2002.
FREUD, S. Uma nota sobre o ‘bloco mágico’. In: Uma neurose demoníaca do século XVII (Edição
Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1976.
LARROSA, J. La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura y formación. 2
ed. Barcelona: Laertes, 1996.
LOBATO, M. Histórias de Tia Nastácia. 32 ed. São Paulo: Brasiliense, 2002.
LOPEZ, T. P. A. (org.). Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.
Brasília: CNPQ, 1988.
MORAES, M. A. (org.). Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas
1924-1944. São Paulo: Global, 2010.
RICOEUR, P. Sobre a tradução. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
[1] Possui graduação em Letras-
habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará. Mestranda
em Linguagens e Saberes na Amazônia pela mesma instituição.
[2] Cf. Jorge Larrosa. La experiencia de la lectura: estudios
sobre literatura y formación. 2 ed. Barcelona: Laertes, 1996, p.39.
[3] Mário de Andrade e Câmara Cascudo
trocaram, intensamente, cartas. Essas epístolas foram recolhidas, reunidas,
estudadas e publicadas pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob a
organização de Marcos Antonio de Moraes. O livro Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas 1924-1944 proporciona ao
leitor entender o projeto literário de ambos os escritores, além de encantar
com tamanha amizade e cumplicidade expressa entre os folcloristas, em vinte
anos de cartas.
[4] Cf. Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. 32 ed. São
Paulo: Brasiliense, 2002. p. 40-41.