Renata Ferreira da Silva
Mestre em Educação - UFSC
Professora do Curso de Artes- Filosofia – UFT
Quando as palavras morrem os gestos
sobrevivem? No conto Os Gestos de
Osman Lins o velho André, protagonista da história, se diz para sempre exilado,
pois perdeu a voz. “Esquecer todas as palavras. Resignar-se ao silêncio” (LINS,
1975, p. 12). Seguimos alguns instantes do seu dia, percebemos sua febril impaciência
e agitação diante de sua ruína. “Sua voz estava morta. Quando pereciam os
olhos? Quando seria a morte da memória?” (Idem,
p.15-16) A filha mais nova, Lise, lhe traz uma folha de papel com o alfabeto
para que indicasse as letras dos nomes que procurava dizer. André decide não
escrever “Eu pensava nos gestos. Em não falar, não escrever. Gesticular,
apenas. Eu pensava nos gestos.” (Idem,
p. 18) O que resta? O protagonista revela: “Só os gestos, pobres gestos...” (Idem, p.11) A percepção da sobrevivência
do gesto, por parte de André, parece aludir num primeiro momento que resta quase
nada, que os gestos não são capazes de exprimir muita coisa, atestando assim a
pobreza dos mesmos. Mas o que desejo assinalar é a afecção que sofre André no
decorrer do conto, sua “iluminação” ao perceber o gesto do outro, no caso, o de
sua outra filha Mariana. André vê no gesto da filha seu próprio gesto, vê que o
gesto fala tanto ou mais que as palavras e valora sua ruína.
O velho André abriu os olhos. Mariana estava de costas
para a janela, os cotovelos no peitoril e as mãos cruzadas sobre o ventre. Por
trás dela na linha exterior das fasquias, cintilavam gotas de água; cresciam
trêmulas, deslizavam, uniam-se, caíam. Uma claridade opalina subia do pescoço,
tocava o queixo da moça, banhava sua face direita e extinguia-se na penugem da
fonte. O resto das feições, mal se percebia; mas era evidente que algo se
anunciava, um evento único, secreto – e ele conteve a respiração. A parte do
colo sobre que incidia a luz pálida fremiu, palpitou, os lábios se
entreabriram, estremeceram as narinas. Soprou um vento forte, que agitou seus
cabelos e precipitou o tombar das gotas de água. Ela moveu a cabeça em direção
à luz, lenta, com um suspiro ansioso. O rosto era belo e se renovava, como um
ser adormecido que enriquecesse no deslumbramento de um sonho. O pai não se
enganara, aquele era um momento único, ele cruzava um limite: quando se
afastasse, os últimos gestos da infância estariam mortos. É inexprimível – pensou. E que não o é? Meus
gestos de hoje talvez não sejam menos expressivos que minhas palavras de antes.
Fechou os olhos, para conservar durante o maior tempo possível aquela visão.
Quando tornou a abri-los, Mariana se fôra, a chuva passara e ele viu que
estivera dormindo, sem haver sonhado (LINS, 1975, p. 20-21).
Um gesto pode ser intenso, significativo,
amplo e tão expressivo quanto a palavra. Foi desta ruina apontada na primeira
parte do conto, das sobras da comunicação – do resto como gesto, que André fez
brotar a natureza expressiva do gesto. Viu para além da ausência e do resíduo,
viu o que brotava – expressão viva.
Giovanni Battista Piranesi - Vista dos restos do segundo
andar das Termas de Tito (1776)
Talvez
isto me afete por me dar conta da mesmice e do engessamento dos gestos na
contemporaneidade e, especialmente, no espaço tempo da sala de aula, lugar que
diante da eloquência do discurso verbal o gesto pareceu tornar-se mudo e
impraticável devido à civilização a que estamos imersos, tecnicista e
inteiramente voltada ao principio da utilidade.
Nisto
me parece que Osman Lins é também magistral, evidencia os gestos em pequenos
instantes cotidianos de vida de seus personagens. São coisas pequenas que viram
contos. São contos que iluminam gestos. São gestos traduzíveis em experiências
e vice-versa. O ato de debruçar-se a janela de Mariana, seu movimento em
direção a luz despertou atenção, foi descrito e tornou-se gesto, pois foi
captado e percebido no seu desenrolar. O gesto se revelou no cotidiano da
personagem da mesma forma que Piranesi revela o que brota em uma ruína.
Anteriormente
a industrialização, a matéria prima da experiência era justamente este cotidiano
que cada geração transmitia com a autoridade de quem experienciou à seguinte. A
experiência não estava no extraordinário, mas no cotidiano de uma vida.
Atualmente, a experiência encontra o seu correlato no conhecimento mais do que
na autoridade, “o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência” (AGAMBEN,
2005, p. 21). A pessoa seja a que nascia e morria no mesmo lugar, a nativa, ou a
que viajava a outros lugares, a andarilha, tinha a autoridade da experiência,
do que lhe acontecera tanto no seu lugar como fora dele. [...] o homem contemporâneo não contém quase
nada que seja ainda traduzível em experiência (Idem, p. 22), pois apesar da
profusão de eventos a que nossa existência cotidiana é submetida o que se
transforma em experiência?
“Ficamos pobres”, enfatiza Walter Benjamim no
seu ensaio sobre a experiência e a pobreza confessando que essa pobreza não é
apenas no âmbito privado, mas também em experiências de humanidade. Uma nova
barbárie que devora tudo da cultura, tudo do ser humano. [...] isso não deve
ser compreendido como se os homens aspirassem a novas experiências. Não, eles
aspiram a libertar-se de toda a experiência, aspiram a um mundo em que possam
ostentar tão pura e claramente sua pobreza.
(BENJAMIM, 2012, p.125) Ao contrário, o que caracteriza o tempo presente
é que toda autoridade se funda sobre o que não pode ser experimentado, “o que
não significa hoje que não existam mais experiências. Mas estas se efetuam fora
do homem” (AGAMBEN, 2005, p. 23). Isto nos incita a pensar não o fim da
experiência, mas valorá-la, ou seja, dar-lhe ainda mais importância. Talvez
para algumas experiências de nossas vidas tenhamos sempre buscado as palavras,
traduzi-las em palavras, torná-la palavras, mas me pergunto se as experiências
têm palavras.
É
na autoridade da experiência do nosso protagonista André, do que lhe aconteceu,
de sua ruína, e de extrair vida deste resto descobrindo a potência do gesto que
surge o “objeto” de interesse deste ensaio - o próprio gesto. Talvez a educação
pudesse reabilitar o gesto no ato de dar aula.
“O gesto nada mais é que o ato considerado na totalidade do seu
desenrolar, percebido enquanto tal, observado, captado”. (GALARD, 2008, p.27) O
gesto se revela em aula, mesmo que sua intenção seja pratica e interessada,
focada em resultados fazendo com que o ato de dar aula se resuma a seus
efeitos, já “o gesto é a poesia do ato”. (idem)
O
que pode uma aula?
O
que pode um gesto?
O
que pode uma aula agenciada ao gesto?
Todos
os nossos atos são constantemente suscetíveis a se tornarem gestos. Esse
conjunto de atitudes cotidianas desenroladas a todo instante não requereria um estudo?
Num primeiro momento, podemos pensar a palavra gesto a partir de uma
ambivalência, a palavra pode tanto designar os movimentos do corpo, os usos
corporais portadores de algum significado como também um tipo de gesto num
sentido figurado, a exemplo o gesto da filha mais nova de André, que traz uma
folha de papel com o alfabeto para que o pai indicasse as letras dos nomes que
procurava dizer, ou seja, o gesto entendido como ato, como por exemplo, um ato de
generosidade. Mas neste ensaio o interesse reside pelo gesto que não se reduz
aos seus resultados esperados. No ato de dar aula poderíamos pensar que o
esperado seja sua eficácia comunicativa. O interesse é pensar o gesto que se mostra,
que tem seu sentido [...] ao marcar um tempo de pausa no encadeamento dos atos (Idem,
p.59). O que o gesto deixa em suspenso? O que repercute? O que pode
interromper?
Ligar
a aula ao gesto. Não pensar nela em si, mas na ligação dos termos. Talvez não
haja nada, nem no gesto ou na aula quando tomados isoladamente, talvez não seja
possível antecipar as relações que se possa fazer entre gesto e aula a partir
da ideia ou qualidade destes termos. Com quantas coisas podemos “juntar” a
aula?
Interrupção
Ao
pensar o gesto como interrupção o interesse desliza para o que tem no gesto seu
material – o teatro épico. No teatro épico a interrupção da ação esta em
primeiro plano. “Quanto mais frequentemente interrompermos o protagonistas de
uma ação, mais gestos obtemos”. (BENJAMIM, 2012, p.85) O narrador se move escolhendo os momentos a serem narrados de
forma autônoma, retrocedendo e avançando a narrativa. “Cada momento tem seus
direito próprios”. (ROSENFELD, 2008,
p. 135) O ato de mostrar uma coisa e mostrar a si mesmo mantém essa diferença
entre o que se representa e o que se dá no ato em si da representação tornando,
por assim dizer, os gestos citáveis e atribuindo aos mesmos um valor episódico.
Quando quem mostra deve ser mostrado a relação existente entre ação
representada e ação que se dá no ato mesmo de representar são confrontadas. A razão
é evidente: naquela, tudo se move em plena atualidade; nesta, tudo já
aconteceu, é o narrador que se move, escolhendo os momentos a serem narrados. (Idem)
A montagem é dada por fragmentos, e cada fragmento é um resto sobre os quais
reconstruímos sentidos.
Bertold Brecht (1898-1956) criou a noção de
gestus social dentre outras espécies de gestos em desacordo com uma noção de
gestos que vincula atitudes entre si. O gestus é aqui compreendido [...] como o
desenvolvimento das atitudes nelas próprias e, nessa qualidade, efetua uma
teatralização direta dos corpos, frequentemente bem discreta, já que se faz
independentemente de qualquer papel. (DELEUZE, 2007, p. 231) Somos constantemente advertidos do que
se passa por gestos, pois são eles que nos convidam a um olhar duplo. Deparamo-nos
com um desencontro, uma interrupção. Esta
interrupção do gesto épico rompe com o passado e refuncionaliza o gesto do
ator, diretor e ator no presente. [...] as personagens constituem-se gesto a
gesto e palavra por palavra [...] elas se fabricam a si próprias (Idem, p. 231)
Este desencontro, esta interrupção é a dimensão teatral do gesto que nos
desperta e faz pensar.
Walter
Benjamim (2012) destaca que Brecht estava interessado em pensar o teatro pelo
palco e não pelo drama, em fazer desaparecer o abismo entre atores e publico,
em transformar o palco em tribuna alterando fundamentalmente as relações
funcionais entre palco e plateia, texto e representação, diretores e atores.
Para ser publico o palco não precisa ser um espaço magico. Para ser palco o
publico não é mais hipnotizado e sim visto como pessoas interessadas que devem
ser satisfeitas. Para ser texto a representação não é mais virtuose e sim
controle. Para ser representação o texto não é mais fundamento, mas
roteiro. Para seus atores o diretor não
instrui buscando efeitos e sim teses em função das quais eles têm que tomar
posições.
O
gesto, ainda que faça parte de um fluxo é menos falsificável se o comparamos
com a ambiguidade entre nossas ações e falas, especialmente se for um gesto
habitual. O gesto também tem começo e fim determinados, ou seja, está
circunscrito a uma sequência, uma partitura. Quando a fluxo real da vida é
representado, imobilizado, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo:
o assombro é esse refluxo. Talvez possamos pensar as montagens de Brecht como
uma cena que salta para fora de sua condição histórica.
Na
peça Homem é homem (1926) Brecht parece introduzir pela primeira vez
comentários dirigido ao publico no meio da peça de forma a interromper a ação,
sem que os mesmos se configurem como prólogos ou epílogos. O palco começa a narrar. Para Rosenfeld
(2006) Brecht se opõe ao teatro aristotélico porque percebe que o drama não se
ajusta mais ao mundo e intenciona eliminar a ilusão do teatro burguês elevando
as emoções ao raciocínio.
Na
forma dramática do teatro o espectador esta envolto numa ação cênica, se
emociona e identifica-se com uma personagem que representa seres humanos que
vivem uma sequência de cenas lineares até um desfecho final. Na forma épica do
teatro, o teatro passa de uma atuação para uma narração, o espectador se torna
um observador, é colocado em face de algo. A peça não se passa de forma linear,
faz curvas, trabalhando sob a concepção de montagem na qual cada cena tem valor
por si. “Esta estrutura em curvas permite entrever, em cada cena, a
possibilidade de um comportamento diverso do adotado pelos personagens, de
acordo com situações e condições adversas.” (ROSENFELD, 2006, p. 150). Este
valor episódico, que monta por fragmentos e torna os gestos citáveis descobre
condições pela interrupção dos acontecimentos. Tais fragmentos são as ruínas
sobre as quais se reconstroem as coisas, são as citações por onde o sentido
passa.
Abrir,
fazer uma fissura e uma interrupção no tempo de forma a reelaborar o dado, a
buscar outras possibilidades de reelaboração do que já está no dado. O dado é
dado de novo. O que o dado não disse ainda?
Para
produzir este choque Brecht propõe um efeito de distanciamento, no qual o
espectador estranha o que pelo habito já se tornou familiar. “O que há muito
tempo não muda, parece imutável”. (Idem, p. 151) Um olhar épico é proposto pela distancia, levando-nos através do
choque do não conhecer ao choque do conhecer, ou seja, tornado o conhecido
estranho, e, ao mesmo tempo, conhecido novamente.
A
experiência moderna é compreendida por Walter Benjamim a partir do choque. A
arte pós-aurática está vinculada à atrofia da experiência; o que corresponde a
um constante exercício de cruzamento dos choques. No ensaio de Susan Buck-Morss (1996), a autora revisita a obra de Walter
Benjamim para pensar o quanto bloqueamos nosso sistema sinestético, isto é,
nosso circuito sensorial tornando-o uma espécie de para-choques. Nós estamos no
mundo por meio de nossos sentidos. Mas como se comportam nossos sentidos diante
da sobrecarga de estimulações?
Nosso
sistema sinestético é um sistema aberto no seu sentido extremo. É aberto ao
mundo através dos órgãos dos sentidos. É parte de um sistema de percepção que
passa através do nosso corpo e do nosso ambiente, da mesma forma que é aberto
dentro do próprio corpo, já que as células nervosas formam uma rede aberta e
descontínua e afetam-se por sinapses.
De
certa forma, é como que na modernidade nós tenhamos aprendido a bloquear a
abertura deste sistema. “Os choques cotidianos do mundo moderno, o ter que
responder a estímulos sem pensar tornou-se uma necessidade de sobrevivência”. (BUCK-MORSS,
1996, p. 11) Seria possível viver
respondendo a todos os estímulos cotidianos? Acredito que não. Diante desta
impossibilidade vemos e ouvimos demais e nada registramos. É por meio de uma
ideia freudiana que Benjamin se baseia para falar que o entendimento da
experiência moderna está centrado no choque. A ideia é a de que a consciência
protege o organismo contra os estímulos vindos de fora, impedindo, assim, a sua
retenção, a sua impressão em forma de memória. Acontece que a percepção
torna-se experiência apenas quando se conecta com memória. E assim, “sem a
dimensão da memória, a experiência se empobrece.” (Idem, p. 22).
“Ficamos
pobres” novamente. Podemos pensar que a partir da modernidade as percepções tornaram-se
fontes de impulsos de choques dos quais a consciência começou a se esquivar, fazendo
do choque a essência mesma da experiência moderna. Assim sendo, o trabalho fica
isolado da experiência, a memória substituída pela resposta condicionada e pelo
aprendizado mecânico e repetitivo. O sistema sinestético inverte seu papel - torna-se
um sistema de anestética. E retomando Agamben, “O homem moderno volta para casa
à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes,
banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes -, entretanto nenhum deles se tornou
experiência” (AGAMBEN, 2005, p. 22).
O
gesto Brechtiano interrompe esta anestesia, esta sequência sem memória. Está ai
posta uma possibilidade de ruptura, de descontinuar uma tradição que repete o
mesmo o tempo todo, uma sequência de causas e efeitos. Brecht refuncionaliza a
absorção do choque na modernidade.
Benjamin
interessa-se por esta possibilidade de ruptura, por uma origem que esta no
próprio presente. Interromper esta transmissão conformista da história, partir
do instante de perigo, fazer o passado fulgurar, operando-o a contrapelo. Articular
historicamente o passado não significa conhece-lo “tal como ele foi de fato”.
Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um
perigo (BENJAMIN, 2012, p. 243).
Pode
um gesto mudar o tempo?
Qual
o gesto em aula?
Como
a experiência em aula se situa dentro dessas relações?
Retomo
gesto e educação, a problemática de sua significação e intensidade no evento
aula. Suspeito que o gesto é compreendido como o que deixa a comunicação clara
na fala docente, o que a reitera o já dado.
Projeções
Um
fugitivo, condenado à prisão perpétua, rema de Caracas até uma ilha abandonada
no Pacífico que “dizem ser assolada por uma peste”. Lá dificilmente alguém o
encontraria e, ainda que a peste lhe
concedesse uma sentença de morte, ele prefere morrer em liberdade.
A
ilha é tomada por marés que nos seus movimentos de vaivém fazem funcionar uma
espécie de “equipamento de projeção” que reproduz figuras humanas. O medo de ser pego pelos intrusos do nosso
protagonista reverte-se em certa alegria: “Exagero: contemplo, com alguma
fascinação — há tanto tempo que não via gente”! (CASARES, 1986, p.16)
Observando
encoberto os supostos intrusos nosso condenado acaba se apaixonando por um
fantasma, Faustine. Obviamente a mulher pouco
lhe dá atenção e segue sua sequência de cenas repinto o mesmo dia a dia. O
fugitivo não suspeita de imediato que sua amada é uma imagem e trata de
segui-la. “Faustine dirigiu-se para as rochas. Incomoda gostar tanto desta
mulher (e é ridículo: nunca nos falamos).” (Idem) Mas como poderia acontecer se
ela é mera reprodução?
Destecendo
o emaranhado de mistérios o apaixonado descobre a Invenção de Morel:
Tive uma surpresa: depois de muito trabalho, ao congregar
esses dados harmonicamente, encontrei pessoas reconstruídas, que desapareciam
se eu desconectava o aparelho projeto, viviam apenas os momentos passados em
que se gravara a cena e, ao terminá-los, voltavam a repeti-los, como se fossem
partes de um disco ou de um filme que, uma vez terminado, tornasse a começar,
mas que ninguém poderia distinguir das pessoas vivas (CASARES, 1986, p.84-85).
No
âmbito da educação, para o qual se dirige o presente ensaio, a investigação
sobre o sentido do gesto em aula – concerne, de fato, a poética do ensino. A
educação, a escola, as rotinas, a aula, tem algo de repetitivo. Algumas cenas
gravadas que voltam a repetir-se reiterando um passado dado, que não
necessariamente seja um dado novo.
Desespera-me
a anestesia, o mesmo reiterado pela repetição dos gestos. Estaremos vivos ou
mortos no cotidiano de uma escola? Será que dá para desligar o projetor? “Agora,
não: penetrei nesse mundo; já não se pode suprimir a imagem de Faustine sem que
a minha desapareça”. (Idem, p. 120).
A escolha do fugitivo, movido pela paixão, é por substituir os discos, ser
incorporado a máquina e fazê-la projetar, eternamente, a nova semana.
Minha
paixão aqui neste texto é desligar a máquina, a pequena máquina da sala de
aula. Não ser incorporada a ela, não substituir seus discos habitais e
mecânicos e nem projetar eternamente as mesmas novas semanas.
A
chamada. O entrar, sentar e esperar. Pedir silêncio, atenção, pouco movimento,
ordem, organização e o impossível de que tudo ocorra da forma prevista, no
espaço previsto, no momento previsto. Insistir nestes impossíveis. Ter tudo
planejado. Os timbres.
A
escola esta cheia: cheia de coisa para fazer, cheia de assuntos para dar conta,
cheia de lugares com comportamentos previstos. Cheia de ementas. Cheia de
modos.
O
evento aula como vestígio deste processo poderia ser pensado como interrupção
numa dimensão gestual que nos desperta e faz pensar.
Neste
evento articulo historicamente o passado para fazer relampejá-lo no momento presente,
partindo do próprio presente. Passado lido pelo presente, anacrônico.
Procuro
então um espaço vazio, empilho carteiras e cadeiras para des-habituar,
des-mecanizar e escovar a contrapelo. Então esse gesto que interrompe não é
preparatório para uma ação futura, não é repetível, fixável, previsto. Este
gesto que vai do contemporâneo ao arcaico revela-se uma pratica de montagem, um
novo estilo de saber.
Agenciar
aula e gesto é propor menos um caminho do que um descaminho para a poética da
educação. Por que não combinar elementos? Propor novos arranjos e perceber a
potência do resultado de uma nova disposição?
A integração de potenciais divergentes do gesto tido aqui como
interrupção, e aula tomada aqui como reiteração do mesmo, nos coloca a coexistência
de duas dimensões heterogêneas que revela o aspecto da ressonância interna
desta relação. O que se da aí? Um programa. Um tipo de ação calculada – não ensaiada,
mas aberta ao imprevisto que cria dissonâncias diversas. O gesto aqui não é um
exercício que prepara uma ação futura, é ação em si mesma. São gestos que [...] não formam o meio de uma
finalidade exterior, mas tem em sua própria realização sua razão suficiente
[...]. (GALARD, 2008, p.61) Ao agir meu programa, des- programo e suspendo - ainda
que temporariamente - a projeção estabelecida, experienciando como a aula, a
vida pode ser vivida de outra maneira.
Aula
então, nesta perspectiva passa a ser não uma coisa “que se dá” para um espaço –
tempo no qual “se ativa” uma experiência. Então meus gestos não estão
necessariamente preocupados com a eficácia comunicativa em prol de uma
transmissão clara, automática e sem ruídos que reitera o mesmo, mas com um [...]
programa, motor de experimentação (DELEUZE & GUATARRI, 1999, p.12).
Diferentemente
de se planejar a aula com objetivos gerais e específicos, e de a tomarmos a
partir de um pressuposto metodológico e uma estratégia de avaliação em torno
dos objetivos traçados tenho um programa, um conjunto de ações.
A
performance do grupo americano Living Theatre[1]
realizada em 2008 na estação central de Nova York me ajuda a desenhar uma
proposição em torno do que seria um programa. O grupo toma como motor de
experimentação uma ação calculada: um grande número de pessoas deve congelar ao
mesmo tempo. As duzentas e sete pessoas que participaram desta ação congelaram
ao mesmo tempo no período de maior movimento da Grand Central Station – a
rush hour. Desenha-se a pausa na
máquina, uma dissonância é criada na paisagem pela interrupção. A suspensão
momentânea da eterna projeção da “nova semana” se dá pelo ruído da ação.
Pequenos
programas no interior do evento aula poderiam suspender o tempo cronológico,
extenso e repetitivo por uma experiência anacrônica e intensa? A experiência em
aula como gesto de interrupção produziria ruído e dissonância ao invés de
reiteração? Talvez este texto configure-se como exercício de descaminho, da
procura por descaminhar a educação e encontrar outras poéticas que não a
salvem, fechem, resolvam ou circunscrevam,
mas, pelo contrario, a tencionem
por combinações heterogêneas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2005.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e politica:
ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras escolhidas I) São Paulo:
Brasiliense, 2012.
BUCK-MORSS, Susan. “Estética e anestética: o ‘Ensaio
sobre a obra de arte’ de Walter Benjamim Reconsiderado”. Travessia – revista de
literatura, Florianópolis: Editora da UFSC, n. 33, p. 11-41, ago./dez. 1996.
Tradução: Rafael Lopes Azize.
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. Trad. Vera
Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs.
Vol.3.São Paulo: Editora 34,1999.
GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das
condutas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
LINS, Osman. Os gestos. São Paulo: Melhoramentos,
1975.
ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
ROSENFELD, Anatol. O Teatro épico. São Paulo
Perspectiva, 2006.
[1] The
Living Theatre é uma companhia de teatro Off Broadway norte-americana fundada
em 1947 em Nova York. É um dos mais antigos grupos de teatro experimental ainda
existente nos Estados Unidos. Luta pelo fim das fronteiras entre palco e
plateia, das fronteiras entre arte e vida, e atores e público, chamando o
público a participar ativamente na cena.