OS VIAJANTES DA AMAZÔNIA: MÁRIO DE ANDRADE E THEODOR KOCH-GRÜNBERG



Mêrivania Rocha Barreto[1]

Resumo: É sabido que o principal ponto de partida para a composição do livro Macunaíma, de Mário de Andrade, foi a leitura que o autor fez da obra Von Roraima Zum Orinoco, sobretudo o segundo volume que trata dos mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás, recolhidos pelo viajante alemão Theodor Koch-Grünberg como resultado de suas pesquisas em tribos indígenas do Brasil, Venezuela e Guianas. Assim como Theodor Koch-Grünberg, Mário de Andrade também foi um viajante. Deste modo, o que pretendi foi discutir o papel dos viajantes e das viagens que contribuíram para o processo de composição do livro Macunaíma. Para tanto, achei necessário fazer um cotejo entre as viagens realizadas por Mário de Andrade e Theodor Koch-Grünberg, a fim de fazer uma releitura e verificar qual o verdadeiro objetivo destes viajantes, bem como averiguar a contribuição destas viagens para a composição do livro Macunaíma, verificar até que ponto os viajantes foram fiéis em suas anotações, além de traçar uma discussão sobre Macunaíma como sendo um texto pragmático ou ficcional.

Palavras-chave: Macunaíma, Theodor Koch-Grünberg, Mário de Andrade.

 INTRODUÇÃO
O livro Macunaíma, de Mário de Andrade, foi composto a partir da mistura de vários elementos da cultura e do folclore brasileiro. Tais dados foram retirados dos registros feitos pelo viajante alemão Theodor Koch-Grünberg, sobretudo da sua obra Vom Roraima Zum Orinoco, especificamente do segundo volume, o qual trata dos mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás e, também, dos apontamentos feitos pelo próprio Mário de Andrade ao fazer uma expedição pelo norte e nordeste do Brasil a qual culminou no livro O Turista Aprendiz.
A pesquisa foi essencialmente bibliográfica, pois, diferentemente de Mário de Andrade e Theodor Koch-Grünberg, não fui a campo, deste modo, estou trabalhando somente com a memória destes pesquisadores sobre o objeto.
Neste trabalho busquei fazer um cotejo entre as viagens realizadas por Mário de Andrade e Theodor Koch-Grünberg na Amazônia, as quais contribuíram para o processo de composição do livro Macunaíma, bem como traçar uma discussão a respeito do que seria pragmático ou ficcional neste livro, além de colocar alguns questionamentos sobre fidelidade e traição nos textos produzidos pelo etnógrafo alemão e por Mário de Andrade que resultaram em Macunaíma.
Tem-se como corpus o livro Macunaíma de Mário de Andrade e a obra Von Roraima Zum Orinoco do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, especificamente o primeiro e o segundo volume que tratam do diário de viagem do naturalista e dos mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás, respectivamente.
Vale lembrar que não pude traçar uma discussão sobre até que ponto Mário de Andrade foi fiel ou não nas observações presentes no livro O Turista Aprendiz e nos outros manuscritos resultantes de sua viagem porque não foi possível ter acesso a tempo dessas referências as quais se encontram no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros).

 A TRAJETÓRIA DE THEODOR KOCH-GRÜNBERG.
O alemão Theodor Koch-Grünberg nasceu em Grünberg no ano 1872, foi um grande estudioso de etnografia, etnologia e folclore. Dedicou sua vida fazendo expedições nas tribos indígenas da Amazônia, enfrentando vários sacrifícios e obstáculos que resultaram em sua morte por malária no ano de 1924 aos 52 anos quando passava por Roraima.
O que provavelmente deve ter despertado o interesse do pesquisador pelas expedições nas tribos indígenas, e consequentemente torná-lo um viajante, foi o fato de que, desde criança, Theodor Koch-Grünberg acompanhava as aventuras dos viajantes pelo mundo afora, uma vez que seu pai era assinante da revista Globus, a qual trazia os relatos de viagens que eram feitas em muitas partes do mundo.
Theodor Koch-Grünberg via a Amazônia como uma região rica e que deveria ser explorada, principalmente os seus habitantes indígenas por meio de estudos de sua cultura, sua língua, seus costumes e modo de viver. Material esse, segundo o pesquisador, valiosíssimo.
O pesquisador alemão chegou a fazer quatro viagens à Amazônia. Na primeira, ainda muito jovem, nos anos de 1898 a 1900, foi apenas acompanhante de Hermann Meyer em uma viagem ao Brasil Central; a segunda foi realizada nos anos de 1903 a 1905 onde foi feita sua primeira expedição ao noroeste amazônico; a terceira aconteceu no período de 1911 a 1913 na América do Sul; e a ultima foi realizada em 1924 com o intuito de explorar em detalhes as nascentes do Rio Orenoco e Negro, contudo, não foi concluída uma vez que Theodor Koch-Grünberg chegou a falecer no povoado de Vista Alegre, no médio Rio Branco em Roraima, vítima de malária.
Apesar de não ter chegado ao objetivo final da expedição de 1911 a 1913[2], que seria às nascentes do rio Orinoco, pela falta de recursos e de uma equipe mais estável do que, segundo o etnógrafo, os guias e remeiros índios, foi graças à sua expedição que o conhecimento sobre as populações indígenas no Brasil progrediu consideravelmente, uma vez que o pesquisador publicou a obra Vom Roraima Zum Orinoco a qual foi retirada de seu roteiro de viagem e dividida em cinco volumes, são eles: observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913; mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás; ilustrações culturais e espirituais; dados linguísticos e um Atlas biotipológico[3]. As pesquisas de Theodor Koch-Grünberg também contribuíram para o enriquecimento da nossa literatura, visto que muitos escritores buscaram as pesquisas realizadas pelo alemão para criarem suas obras, em especial Mário de Andrade para compor Macunaíma, sua obra prima.
A viagem de 1911 a 1913 foi patrocinada pelo Instituto Baessler de Berlim, a fim de que o pesquisador formasse uma coleção de materiais[4] indígenas para o instituto. As pesquisas abrangeram desde o Roraima, na divisa entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, até o Orinoco, por meio de uma região, até então, em grande parte inexplorada.
O primeiro volume da obra trata-se de um diário de campo, visto que nele Koch-Grünberg relata minuciosamente todo o seu trajeto, descrevendo em mínimos detalhes todos os acontecimentos, fazendo com que os leitores sintam-se como se estivessem participando, junto com ele, da expedição. Assim, parece que o pesquisador fez etnografia de acordo com a de Malinowski, pois teve que efetivamente virar um “nativo” convivendo entre os indígenas a fim de conhecer a sua cultura e desenvolver um bom trabalho de pesquisa.
Nas suas observações de viagem, Koch-Grünberg narra que teve contato pessoal com várias tribos indígenas, até então desconhecidas por ele, mesmo ele tendo acumulado um extenso conhecimento bibliográfico acerca dessas populações, principalmente sobre as Sul-americanas.
No segundo volume da obra, o qual trata dos mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás, que foi a principal fonte de Mário de Andrade, Koch-Grünberg teve dois informantes indígenas que narraram as lendas de suas tribos, Akúli (índio Arecuná) e Mayuluaípu (índio Taulipangue) Porém, ambos ofereciam versões próprias da mesma história, de modo que o pesquisador escreveu todas as versões que lhe foi narrado, totalizando no geral 50 narrativas.
De fato, verifiquei que o livro Macunaíma foi composto por pesquisas realizadas tanto por Mário de Andrade pelo Brasil, quanto por outros pesquisadores, sobretudo por Theodor Koh-Grünberg nas tribos indígenas da Amazônia. Assim, Mário de Andrade transformou temas karib em temas nacionais, uma vez que o principal ponto de partida para a criação da obra Macunaíma foi a leitura que o autor fez dos mitos e lendas que pertencem aos índios Taulipangues e Arecunás [5]que fazem parte da grande família Karib as quais são tribos pertencentes à região de Roraima e que tem aproximadamente 220 falantes.

 MÁRIO DE ANDRADE
Mário Raul de Moraes Andrade era filho de Carlos Augusto de Moraes Andrade e Maria Luísa Leite de Moraes Andrade; nasceu em São Paulo, no dia 9 de outubro de 1893 e morreu de ataque cardíaco aos cinquenta e um anos de idade, em sua cidade natal no dia 25 de fevereiro de 1945.
Desde cedo o autor se inseriu no mundo artístico, em especial no literário, tendo iniciado sua carreira como crítico de arte em jornais e revistas. A partir de 1922, tornou-se professor de história da música; foi professor de estética da Universidade do Distrito Federal no Rio de Janeiro, além de ser um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, bem como o poeta de maior importância do Modernismo, como de fato afirma Nelson Werneck Sodré (1995).
Com o objetivo de “olhar para dentro” do Brasil e empenhado em entender a realidade brasileira, Mário de Andrade fez várias viagens pelo país, passando por Minas Gerais, pelo norte - nos estados do Amazonas, Pará e a capital de Rondônia, Porto Velho, até chegar em Iquitos, no Peru, e na fronteira com a Bolívia - e pelo nordeste do país, visitando Alagoas, Rio Grande do norte, Paraíba e Pernambuco. Essas viagens forneceram ao autor uma grande quantidade de materiais sobre o folclore brasileiro e sobre a cultura e os costumes dos povos indígenas, bem como sobre os elementos que representassem valores ou características nacionais, como a fauna, flora, instrumentos musicais, cachaça, negros, práticas medicinais, mitos, lendas, expressões indígenas, entre outros, além de informações de interesse cultural como poemas, modinhas, canções populares, ritmos, festas religiosas e de folia, músicas indígenas, objetos de arte, etc.
Além do interesse pela literatura, Mário de Andrade tinha grande empenho pelo folclore, pela antropologia, pela música, pela etnografia, pela psicologia e por outras áreas do conhecimento humano, as quais contribuíram para enriquecer suas atividades essenciais enquanto escritor, músico e folclorista, bem como ampliar seus conhecimentos em relação á cultura brasileira.
Mário de Andrade foi um folclorista de renome do modernismo brasileiro, pois conseguiu atender aos objetivos de tal movimento, “Mário de Andrade foi um folclorista adulto, capaz de sondar a mensagem e os meios expressivos de nossa arte primitiva nas áreas mais diversas (música, dança, medicina): algumas intuições suas nesse campo foram certeiras.” (BOSI, 1994, p.352). De acordo com Darcy Ribeiro, Mário de Andrade conseguiu criar obras que atendessem aos preceitos Modernistas:

O Modernismo paulista explodindo, exausto de uma literatura pelejada de europeidade e circunspeção, entra no desvario antropofágico. Mas fica nisto, fazendo roda na busca de si mesmo, até que Mário cai no ínvio mato bravio. Aí posto, encontra a amplitude de que precisava para, fantasiando livre, alcançar a originalidade selvática e inocente que jamais tínhamos atingido. Misturando mitos e sacanagens, etnografias e invencionices semânticas e galamatias, Mário expressa os brasileiros tal como ele, e só ele então, os via, nos via. (RIBEIRO in LOPEZ, 1988, p.XXI).


Em suas viagens, com o intuito de conhecer a fundo o Brasil, Mário de Andrade não tinha um diário de campo tradicional, anotava suas observações em caderninhos, nos cantos dos jornais, em papeis de cartas, versos de contas, entre outros. De acordo com o autor, ainda não existia um finalidade para aquelas anotações, de modo que somente depois que retornasse a São Paulo decidiria o que iria fazer com elas.
As viagens etnográficas que contribuíram para a composição de Macunaíma foram feitas durante os anos 20. A saber, a de 1924 quando Mário vai juntamente com outros modernistas para Minas Gerais, e a que foi realizada entre os anos de 1927 a 1929 a qual foi dividida em dois momentos distintos: em 1927 e depois entre os anos de 1928 e 1929. Esta viagem de Mário de Andrade foi feita em companhia de Olívia Guedes Penteado, uma das grandes patrocinadoras do Modernismo, de Dulce Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral e de sua sobrinha Margarida Guedes Nogueira.
 A segunda viagem do autor modernista resultou na realização da obra O Turista Aprendiz a qual é fruto das anotações que Mário fez nas viagens pelo norte e nordeste do Brasil e que foi publicado pela pesquisadora Telê Porto Ancona Lopez.
O vasto conhecimento adquirido sobre a cultura brasileira por Mário de Andrade, através de anos dedicados a viagens, contribuiu em vários fatores, em particular, na atividade literária do autor. Pois Mário aproveitou esse repertório para criar algumas de suas principais obras, dentre elas, Clã do Jabuti e Remate dos Males, as quais representam o início de um período de grande fertilidade, do qual surgiria Macunaíma.

 COTEJO ENTRE AS VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE E THEODOR KOCH-GRÜNBERG. 
E notório que as viagens realizadas tanto por Mário de Andrade quanto por Koch-Grünberg foram feitas em momentos, em tempos e em lugares diferentes, contudo elas tinham objetivos parecidos que seria conhecer mais a cultura brasileira, seja através das tribos indígenas, como fez o pesquisador alemão, ou em meio aos “brancos”, como fez Mario de Andrade. No entanto, o que diferenciou as viagens de cada um foi a finalidade dada a elas. Mário queria conhecer o Brasil para fazer literatura e Koch-Grünberg pretendia fazer um estudo da cultura indígena para o Instituto Baessler.
 O elo maior entre as viagens feitas por Mário de Andrade e Theodor Koch-Grünberg foi o livro Macunaíma, o qual representa a união do trabalho dos dois viajantes.
Theodor Koch-Grünberg tinha interesse em encontrar “a cor local,” representada pelos indígenas, a fim de captá-la para a etnografia e para o romantismo alemão que ainda estava na moda, por meio de estudos a respeito dos primeiros habitantes do Brasil. Mario de Andrade, por outro lado, pretendia recolher o maior numero de elementos que representasse a cultura brasileira para inseri-los em suas obras.
Partindo destas observações, a discussão que traço aqui seria saber até que ponto Mário de Andrade, como folclorista e literato, foi fiel às suas pesquisas, já que aparentemente tinha o livre arbítrio de inventariar, uma vez que iria produzir literatura, de modo que esta não tem compromisso com a realidade, apesar de muitas vezes refleti-la; ou até que ponto Theodor Koch-Grünberg foi leal com as observações que fez em seu diário, ou com as narrativas que recolheu, as quais foram escritas em alemão, visto que teria que produzir “ciência” uma vez que seu trabalho era de caráter etnográfico.
 O naturalista alemão não entendia a língua indígena e nem era um bom falante do português, mas visivelmente não demonstrou nenhuma dificuldade em relação à interferência cultural ou linguística para compreender o que estava sendo narrado. As narrativas eram feitas primeiramente em língua Arecuná pelo índio Akúli, traduzida para o português pelo índio Mayuluaípu, o qual falava a língua Taulipangue e que, provavelmente, não dominava o português padrão.  Somente depois de terem sido traduzidas por Mayuluaípu, é que Theodor Koch-Grünberg finalmente as entendia e as traduzia para o alemão.
Antes de prosseguir com esta discussão, achei interessante fazer um parêntese e falar um pouco sobre tradução, uma vez que Mário de Andrade e Theodor Koch-Grünberg, em suas viagens, foram tradutores da cultura amazônica. E, também, para compor o livro Macunaíma, Mário de Andrade teve que ler o livro Mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás, o qual estava em alemão, deste modo, Mário de Andrade ainda foi tradutor de Koch-Grünberg, apesar de entender pouco a língua germânica.
De acordo com Paul Ricoeur existe um paradigma no qual a tradução está envolvida, pois de um lado ela significa “sentido estrito de transferência de uma mensagem verbal de uma língua em uma outra” (RICOEUR, 2011, p. 33) e de outro, em sentido amplo, a tradução seria sinônimo de interpretação dentro de uma mesma comunidade linguística. Neste sentido, Mário de Andrade, ao fazer suas viagens pelo Brasil, fez uso da tradução em seu sentido amplo, pois interpretou a cultura brasileira. Mas, ao ler as narrativas recolhias por Theodor Koch-Grünberg para compor Macunaíma fez tradução em sentido restrito, isto é, de uma língua para outra.
A tradução está envolvida no dilema fidelidade versus traição o qual venho tratando neste artigo. Segundo RICOEUR (2011) não existe nenhum critério que defina o que seria uma boa tradução, cabendo ao leitor julgar se o tradutor foi fiel ou não em seus escritos. Mas como saber se os escritos de Mário de Andrade ou Theodor Koch-Grünberg foram fiéis ao original?
Em se tratando de Theodor Koch-Grünberg, não saberei se, de fato, ele fez uma tradução fiel das narrativas dos índios Taulipangues e Arecunás já que não tive acesso às narrativas no “original”, isto é, não estive lá nas tribos indígenas. Porém, tudo leva a crer que, por mais que ele tenha tentado preservar “o original”, como afirma Walter Benjamin ao dizer que a relação “ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado” (BENJAMIN, 1994, p.211) ele não conseguiu, de fato, preservar o original, logo, não foi totalmente fiel, pois não entendia a língua indígena na qual as histórias eram contadas pelo índio Akúli da tribo Arecuná – que não entendia nada de português - e traduzida pelo índio Taulipangue Mayuluaípu para o português - sabe-se lá de qual forma - e que muitas vezes conhecia versões diferentes das lendas narrada por Akúli.
Somente o fato dos dois indígenas pertencerem a tribos diferentes e conhecerem versões distintas de uma mesma narrativa já houve traição, pois, apesar do etnólogo ter escrito a versão de cada um, não sei qual é a verdadeira, ou seja, a “original”.
  É fato que uma narrativa nem sempre é contada da mesma forma, uma vez que a memória é falha e por conta disto, ela seleciona os elementos que quer lembrar por meio da rememoração, mas sempre vai haver a falta de algo.
Segundo GEERTZ (2009), o fato dos pesquisadores estiverem estado lá, isto é, de terem ido à campo, é um elemento importante para convencer o leitor de que seus estudos foram fidelíssimos uma vez que “se houvéssemos estado lá, teríamos visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram” (GEERTZ 2009, p. 29). Contudo, discordo deste autor, pois somente isso não é suficiente, uma vez que dependendo do objeto, objetivo da pesquisa, dos ouvintes e do que o viajante queira transmitir, ele poderá colocar suas impressões, acréscimos ou supressões em seus livros ou manuscritos. Desta forma, haverá uma traição ao “original”.
Seja qual for o sentido dado à tradução, o próprio RICOEUR (2011) afirma que a tradução perfeita é utopia, portanto, não existe é um sonho. Deste modo, a tradução por melhor que seja jamais se compara ao “original”. Neste sentido, tanto Mário de Andrade, quanto Theodor Koch-Grünberg não foram fiéis tradutores da cultura amazônica.

O FICCIONAL E O PRAGMÁTICO EM MACUNAÍMA
As pesquisas realizadas por Theodor Koch-Grünberg, no geral, tinham o caráter pragmático, tanto para o instituto Baessler, o qual foi seu patrocinador, quanto para os índios, uma vez que os livros publicados como resultados de seus estudos tinham um compromisso com a realidade indígena. Mas, em se tratando do 2º volume da obra que diz respeito aos mitos e lendas dos índios Taulipangues e Arecunás, percebi que este pode ser pragmático ou ficcional, pois irá depender de quem o está lendo, de modo que para os indígenas ele terá caráter pragmático, uma vez que eles acreditam na veracidade das coisas que narraram, inclusive na existência de Makunaíma[6], o qual era tido como um Deus ou um semi-deus para eles[7]. Muitos indígenas acreditam nas explicações dadas através dos mitos para origem das frutas, das caças, dos fenômenos da natureza entre outros, desta forma, os mitos, tem caráter pragmático para eles, portanto são reais:

Todas as cousas, vegetais, animais, estrelas, fenômenos meteorológicos, enfeites, utensílios de trabalho, técnica de fazer uma ubá, cortar uma árvore, remar, tirar o couro da anta, preparar uma armadilha para a onça, matar um veado, arranjar uma aparelho de pesca, reconhecer a vinda da piracema, os hábitos dos peixes, todas têm uma história religiosa, hierárquica, e uma literatura folclórica adjacente, explicando pormenores que atestam a velhice do motivo. (CASCUDO, 2006, p.93).

Ao se apropriar das pesquisas feitas por Theodor Koch-Grünberg, Mário de Andrade fez uma leitura de forma consciente e entendeu-as de forma ficcional, uma vez que teve o livre arbítrio para fazer as mudanças e as interpretações necessárias para a composição de seu livro, portanto não houve somente uma interpretação, isto é, somente uma tradução.  Tem-se como exemplo a lenda das Amazonas a qual foi retirada das narrativas indígenas e transposta para Macunaíma:

[...] Ulidján, as mulheres sem homens [...]. Quando um homem chega na  sua maloca e pede licença para ali dormir, as mulheres permitem que ele durma com elas. Depois elas deixam o homem voltar para casa. Se nasce um filho varão elas o matam. Só deixam viver as filhas. Não são casadas. Fazem todos os trabalhos masculinos [...]. (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.148)

No livro Macunaíma, as Amazonas pertencem a uma tribo de mulheres sozinhas, as quais parecem que não possuem uma vida sexual ativa e aquele que, segundo PROENÇA (1987), se casar com uma delas vira o imperador do mato virgem, como de fato aconteceu com o herói Macunaíma ao unir-se com Cí, a mãe do mato. Outro ponto de divergência em relação á obra do alemão é o fato de Cí, ter tido um filho do sexo masculino e tê-lo aceitado.
Se os descendentes dos índios onde Theodor Koch- Grünberg fez suas pesquisas lerem o livro Macunaíma e identificarem esta lenda em suas páginas eles irão entendê-la como ficção uma vez que irão relacioná-la a seu horizonte externo, pois conhecem a lenda “original” e irão perceber que ele é diferente da narrativa que é contada em sua tribo.
O primeiro relato que existe a respeito da lenda das Amazonas foi feito pelo cronista Frei Gaspar de Carvajal, o qual acompanhava a expedição do espanhol Francisco de Orellana, no ano de 1542, ao rio Amazonas. Em suas crônicas, Frei Gaspar de Carvajal, relata a existência de mulheres guerreiras as quais não possuíam parceiros do sexo masculino, possuíam cabelos enormes, eram brancas, altas e muito bravas.
Quando o relato das Amazonas chegou à Espanha, chamou muita atenção, de modo que atraiu vários curiosos para a região amazônica, dentre os quais se destacam o padre Cristóbal de Acunã, Walter Rayleigh, La Condamineau e Alexander Von Humboldt. Contudo, nunca chegaram a vê-las.
Há quem diga que a lenda das Amazonas tenha sido inventada por Frei Gaspar Carvajal, pois de acordo com o historiador Auxiliomar Ugarte há uma possibilidade de que o cronista tenha se deixado influenciar pela busca do maravilhoso em terras amazônicas, ou até mesmo que ele tenha confundido estas tais mulheres guerreiras com os indígenas da tribo Guacaris, os quais possuíam características bastante comuns com as descritas pelo cronista, principalmente em relação ao porte físico.
Parece que não existia uma intencionalidade pragmática no livro de Mário de Andrade, inclusive o autor chegou até a afirmar em uma carta endereçada a Manuel Bandeira observando que não pretendia, por meio de Macunaíma, criar uma identidade do povo brasileiro, “assim pondo os pontos nos is: Macunaíma não é símbolo do brasileiro [...]” (ANDRADE apud LOPEZ, 1998, p.398), mas o livro tomou caminhos diferentes, pois há quem diga que Macunaíma representa sim o povo brasileiro, uma vez que não é mau, porém não é totalmente bom, é uma personagem dual, visto que reúne em si o bem e o mal, espelha qualidades e defeitos; é leal e, ao mesmo tempo, mentiroso, trapaceiro e otário, católico, espírita e simpatizante da macumba.
Mário de Andrade afirma que sua obra não é arte é ação, e uma das caraterísticas do texto pragmático é o fato de possuir uma ação:

[...] sou o homem mais antipatizado e mais irritante da literatura moderna brasileira. Mas sou também dos mais uteis se não for o mais útil. E eis também porque a crítica mais lúcida que se fez até agora de mim foi a que eu mesmo fiz quando falei que minha poesia, minha obra toda não é arte, é ação. (ANDRADE apud AMARAL et.al. 2003, p.251).

Com estas palavras “minha obra não é arte é ação”, será que Mário de Andrade quis dizer que sua obra não é ficção e sim realidade? Será que Mário quis representar o brasileiro por meio de Macunaíma, uma vez que o próprio autor afirma que o brasileiro não tem caráter porque não existe uma identidade própria, assim como o seu Macunaíma.
As respostas para estes questionamentos são de responsabilidade de cada leitor, pois por meio de seus horizontes de expectativas, historicamente condicionados, ele poderá tirar suas próprias conclusões a respeito do que seria realidade ou ficção dentro do livro de Mário de Andrade, uma vez que o leitor, a partir da teoria da recepção, passou a ser considerado como um elemento que também está presente no texto, portanto, somente a partir de um relacionamento dinâmico entre autor, obra e leitor é que se chegará a uma conclusão a respeito do real e do fictício na obra de Mário de Andrade. Embora STIERLE (2002) oriente que para entender um texto literário o leitor deva atentar para sua constituição interna.
Em relação às narrativas recolhidas por Koch-Grünberg, acredito que quando os alemães a leram eles a tomaram como ficção, uma vez que elas se afastaram de seu lugar de origem – tribos indígenas amazônicas -, assim como o livro Macunaíma, pois apesar de existirem uma infinidade de narrativas em suas páginas houve um deslocamento delas, de modo que não estão mais presas às tribos indígenas onde foram recolhidas, ou no norte e nordeste do país aonde Mário fez suas viagens. Mas, vale dizer que a literatura pode sim representar a realidade, podendo ratificar e produzir o “mundo real”, no entanto não tem compromisso com este real. Deste modo, fica à cargo do leitor acreditar ou não na veracidade do texto que está lendo, seja no diário de Mário de Andrade, em Macunaíma ou nos livros de Theodor Koch-Grünberg.   

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, pude observar que o livro Macunaíma foi composto, sobretudo, a partir das narrativas recolhidas pelo etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg em tribos indígenas da Amazônia, bem como de histórias coletadas nas viagens realizadas por Mário de Andrade ao norte e nordeste do Brasil, embora existam outras narrativas presentes no livro como a lenda do curupira retirada de Barbosa Rodrigues, a lenda do guaraná de Roquete Pinto, a da boiuna das narrativas de Raimundo Moraes e até mesmo a história de João e Maria dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, no entanto, neste trabalho, não cabiam ser discutidas.
 Percebi que Theodor Koch-Grünberg, mesmo sendo etnólogo e tendo que fazer trabalhos com objetivos pragmáticos, não reproduziu fielmente as narrativas que lhe eram contadas, além disso, quando elas foram transpostas para Macunaíma passaram por grandes mudanças, visto que foram interpretadas de diferentes maneiras por Mário de Andrade. Ademais, o fato de Mário ter feito tradução de quarta mão distanciou ainda mais as narrativas do “original”, pois o autor modernista traduziu o que o índio Akúli havia traduzido das narrativas de sua tribo, as quais foram traduzidas para o português pelo índio Mayuluaípu, e retraduzidas para o Alemão por Koch-Grünberg, sendo que Mário teve acesso somente à tradução em Alemão e, segundo ele, não tinha um bom domínio da língua germânica.
Discuti também que quem tem o papel de julgar se o livro Macunaíma é um texto pragmático ou não, ou se os viajantes foram fiéis ou não com suas anotações são os leitores.
Vale lembrar que não foi possível alcançar todos os objetivos propostos neste trabalho, pois não tive condições de levantar uma discussão a respeito de fidelidade e traição nas anotações de Mário de Andrade, uma vez que não tive acesso às anotações feitas pelo autor em suas viagens ao norte e nordeste do país, e nem no livro que resultou das suas observações pelo Brasil que foi o livro O Turista Aprendiz, de modo que deixarei para discutir isso em outro momento, quando tiver em mãos todo os dados necessários.

 REFERÊNCIAS
AMARAL, Emília et. al. Novas Palavras. 2ª Ed. São Paulo: FTD, 2003.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
___________________Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ed. Crítica (coord.) Telê Porto Ancona Lopes: Paris, 1988.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 36ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CASCUDO, Luís da Câmara.  Literatura oral no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Global, 2006.
GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas – O antropólogo como autor. Trad. Vera Ribeiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. 
JAUSS, Hans Robert et.al. A literatura e o leitor: Textos de estética da recepção. Trad. Org. Luiz Costa Lima, Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Mitos e lendas dos índios Taulipangue e Arekuná. Tradução de Henrique Roenick e revisão de M. Cavalcante Proença, In: Revista do Museu Paulista, Nova série, vol. VII, São Paulo, março de 1953. Transcrito na nova edição, revista por Sérgio Medeiros em colaboração com Rafael Lopez Azize, publicada em Sérgio Medeiros, Makunaíma e Jurupari, cosmogonias ameríndias, São Paulo: Perspectiva, 2002.
_____________________________Do Roraima ao Orinoco, v.1: (observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913). Tradução Cristina Alberts-Franco - São Paulo: UNESP, 2006.
PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Trad. Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
UGARTE, Auxiliomar Silva. O mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na
visão dos cronistas ibéricos (século XVI e XVII). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como requisito para obtenção do título de Doutor em História, na área de História Social. São Paulo – 2004.



[1] Graduada em letras – habilitação em Língua Portuguesa pela UFPA, mestranda em Linguagens e Saberes na Amazônia pela mesma instituição.
[2] Esta expedição será meu corpus principal, uma vez que contribuiu para a composição de Macunaíma.
[3] Neste trabalho irei me deter somente no primeiro e no segundo volume da obra Vom Roraima Zum Orinoco: observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913; mitos e lendas dos índios Taulipángues e Arecunás, respectivamente.
[3] Como este artigo irá fazer parte de um trabalho ainda maior, que é minha dissertação, ainda não foi possível fazer as análises de todo o corpus que contribuíram para a composição de Macunaíma, de modo que irei me deter somente na obra Vom Roraima zum Orinoco, especificamente no primeiro e no segundo volume, deixando os elementos recolhidos por Mário, que em grande parte estão em seu livro O Turista Aprendiz e as demais anotações, que se encontram em seu arquivo no Instituto de Estudos Brasileiros, para analisa-los depois, uma vez que ainda não tive acesso a esses documentos.
[4] Vale lembrar que existe uma pequena parte de objetos etnográficos dos povos indígenas coletados por Theodor Koch-Grünberg, em suas viagens, no Museu Emílio Goeldi em Belém do Pará, o qual publicou duas cartas do etnógrafo, e outra parte no Real Museu de Etnologia de Berlim, na Alemanha.
[5] É importante lembrar que o nome Arecuná era a forma que muitos indígenas se autodenominavam, porem todos fazem parte da tribo Taulipangue.
[6] Era um personagem muito comum nas narrativas indígenas recolhidas por Theodor Koch-Grüunber
[7] Não sei se atualmente eles acreditam na existência de Makunaíma.