A MORTE EM VENEZA: UMA TRAVESSIA



Karine Bueno Costa
(FAFIUV)

O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim. (BARTHES, 2003, p. 159).

Resumo: A partir dos conceitos nietzschianos, apolíneo e dionisíaco, propor-se-á uma leitura da obra A morte em Veneza, de Thomas Mann. O percurso realizado pelo personagem Gustav Von Aschenbach representa uma travessia, a passagem de um estado governado pela ordem e autocontrole a um de total estranhamento e perda se si mesmo. Portanto, busca-se a reflexão sobre a visão da arte inserida nesse contexto, assim como analisar a questão da decadência da arte na modernidade, esta regida praticamente por conceitos e não por questões.
Palavras chave: A morte em Veneza, apolíneo e dionisíaco, travessia.


A obra de Thomas Mann, A morte em Veneza, a partir de imagens-questões[1] faz defrontarmo-nos com problemas caros a nós seres humanos. Faz-nos pensar sobre os mistérios da vida e da arte e, em até que ponto vivemos a vida e não a negamos, em até que ponto entregamo-nos ao prazer de viver. O conflito interno de não poder escrever do personagem Gustav Von Aschenbach desencadeia uma história marcada pela angústia de obter respostas a sua arte e a sua vida. Trata-se, portanto, de uma busca, de uma procura (pro-Cura), uma passagem: a travessia para o mistério, a fuga da decadência moderna.

Há questões que sempre angustiaram o ser humano, e desde os primórdios do pensamento, questionamo-nos sobre tudo e formulamos conceitos para resolvermos os enigmas do mundo. Manuel Antônio de Castro, ao abordar as questões da arte em Heidegger, em A arte em questão: as questões da arte, no diz que: “Buscar o sentido do ser é abandonar toda pretensão conceitual e se abrir para o livre, aberto das e pelas questões. É o se abrir para o livre da arte” (2005, p. 10). Sendo assim, é preciso renunciar os conceitos e ir de encontro às questões para obter o sentido do ser, o enigma de seu destino está no encontro com a arte. O caminho é então o de questionar e por tudo em questão, mas isso exige, consequentemente, uma experienciação de vida.

Aschenbach é um escritor que trata a arte, e a vida em si, resolvidas em conceitos, de maneira racionalizada, obtida a partir da disciplina e da técnica. Para assim: “ter aos pés da cruz todo um povo arrogante, prostrado aos seus pés; a gentil atitude no serviço vazio e severo da forma; a falsa e perigosa vida” (MANN, 1971, p. 99). Em sua escrita literária abusou do “conhecimento”, com seus cinismos sobre a “questionável” natureza da arte e dos artistas. Renunciou a simpatia pelo abismo pela frase compassiva de que: “tudo compreender queria dizer tudo perdoar” (MANN, 1971, p. 100). Seu nome foi propagado socialmente devido ao arrebatamento da vontade e pela inteligente administração. Era o poeta de todos os moralismos da produção, baniu de sua linguagem toda palavra vulgar, guiado pela moral social. Cabe aqui reportarmos os questionamentos de Nietzsche em sua tentativa de autocrítica para O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo: “A moral não seria ‘uma vontade de negação da vida’, um extinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim?” (NIETZSCHE, 2007, p. 18). Sem dúvidas, sim.

Mas para que serve então a vida regida pelo aniquilamento de si? Para dizermos que temos autodomínio? E de que vale esse autodomínio impulsionado pelas forças guiadoras de toda a vida contemporânea: a lógica, o racionalismo e a ciência? Para viver-se mais ou menos? Na tentativa de prolongar nossa pobre existência deixamos de viver. Para manter as pequenas conquistas que temos buscamos o estável, o que incomode menos. Fazemos da vida a luta contra o incômodo. Somos voltados para a conservação das coisas e como consequência disso, não temos e não sentimos prazer ao viver. Eis toda a angústia da modernidade: a decadência da existência humana. Aschenbach é, portanto, o poeta decadente, como o significado de seu sobrenome em alemão nos diz: riacho de cinzas.

A felicidade é, entenda-se aqui como sentir prazer pela vida, impossível sem qualquer tipo de sofrimento, sem qualquer “correr o risco”, sem qualquer “abrir-se para o livre da arte”. E o maior dos problemas é que sem uma experienciação de vida não existe arte, precisa-se que o artista ludibrie-se de paixão. A arte exige uma grande questão, exige colocar os mistérios da vida em questionamento e não adotar conceitos resolutos pré-estabelecidos pela razão. Portanto, é como nos coloca Antônio de Castro (2005, p.15), a arte vive de questões, a ciência é que se faz de conceitos, sendo assim, os conceitos silenciam a arte e é esse silêncio que se apodera do literato Gustav Von Aschenbach, aos cinquenta anos de idade, ao se ver  sem arte, angustiado por não conseguir produzir uma obra literária.

Nessa angústia Aschenbach sai para fazer um passeio em Munique e ao esperar o ônibus na frente de um cemitério e de uma capela mortuária – primeiras imagens de seu destino: a morte – ele vê um senhor estranho. Ao se deparar com esse homem de imagem estrangeira que o olha de maneira belicosa sente uma necessidade de viajar: “intensificado até a paixão, sim até a alucinação” (MANN, 1971, p. 92). A imagem de um estrangeiro o perseguirá durante toda a obra, como se fosse o deus Dionísio a conduzi-lo até seu destino final. Referindo-nos aos conceitos de Nietzsche, em A morte em Veneza apresenta-se então uma travessia que Aschenbach faz de uma visão da arte-vida regida pelo apolíneo, ou seja, pelo racionalismo matemático e da inteligência a uma visão dionisíaca, dominada pela embriaguez, pela febre da paixão:

Na arte apolínea, o indivíduo atinge um estímulo sublimado: um andante sacerdotal pleno de dignidade. Na dionisíaca, a massa atinge a excitação estática: o instinto se expressa imediatamente. (...) é o esquecimento da individualidade, aparentado da autorrenúncia através da dor e do pavor (NIETZSCHE, 2006, p. 46-47).

O que faz o instinto de Aschenbach ser expresso é o sentimento que se apodera dele, o amor. Na busca do sentido de seu ser e de sua arte o personagem deixa-se dominar por Eros. Entrega-se ao delírio do amor e da dor, o que leva à  autodestruição de seu ser.

A necessidade de viajar é provocada pelo espanto [Tò thaumázein], que causa o desejo de viver, de sentir a paixão, tenta controlar esse impulso, mas sabe muito bem por que razão a tentação se apodera dele: “Era ímpeto de fugir; o que confessou a si mesmo, esta saudade para a distância, para a novidade, esta ânsia por libertação, exoneração e esquecimento” (MANN, 1971, p. 93-94). Desejo de escapar da angústia de não viver, de uma vida dominada pela solidão, de sentir-se livre, fugir da conservação e desfazer-se dos conceitos e dos valores.

A viagem representa a travessia a ser percorrida. Viajou para uma ilha adriática onde a relação com o mar era aberta, mas sentiu que errara o caminho de seu destino, pois sentia falta de uma praia arenosa com efusiva relação com o mar. De relação mais intensa, a praia é o entre a Terra e o mistério, é também o “deleite” do mar. É a passagem. O mar está presente na obra como o que abrange o desconhecido. Clarice no conto “As águas do mundo” caracteriza-o como: “a mais ininteligível das existências não humana” (LISPECTOR, 1998, p.146). Representa então o mistério, o enigma. A água também significa origem da vida, de uma nova vida, é o meio de purificação, de regenerar-se. O poeta Aschenbach amava o mar por fortes motivos:

Por um anseio pelo silêncio do artista que trabalha muito e que, perante a exigente multiplicidade das aparições, deseja acolher-se no seio do simples e imenso; por toda uma tendência proibida, oposta a sua tarefa e, justamente por isso, tentadora; para o desligado, desmedido, eterno, para o nada (MANN, 1971, p. 121).

O mar é o caminho a ser percorrido para a morte. De um dia para o outro desejou alcançar “o incomparável”, “o quimérico diferente”, e de uma maneira surpreendente e natural percebeu que seu destino era ir para Veneza. Para esse lugar mítico, simbólico e erudito. Na embarcação para a cidade desejada, Aschenbach sente-se arrepiado, uma espécie de horror se apodera dele ao observar entre um grupo de jovens um “jovem falso”, um velho maquiado: “Pareceu-lhe que nem tudo era como de costume, que começava a alastrar-se uma estranheza sonhadora, uma desfiguração do mundo para o esquisito” (MANN, 1971, p. 106). A partir daí as coisas apresentam-se fora do costume, fora dos conceitos sociais e isso é de difícil aceitação para o protagonista. Contudo, o importante a frisar nessa visão é que mais tarde ele fará o mesmo, sem repúdio, maquiando-se e adornando-se: (des- figurando-se). Na chegada e despedia, Aschenbach observou o velho janota de novo, que estava agora embriagado e: “novamente foi possuído de um sentimento de perturbação, como se o mundo mostrasse uma leve, porém não detível inclinação para desfigurar-se em estranho e grotesco” (MANN, 1971, p.108). Aschenbach caminha para a sua des-figuração, para deixar de ser e assim, quem sabe poder ser no estranho e grotesco que é a própria atmosfera da modernidade racional e moralista que o cerca.

Entra então em uma gôndola veneziana, que é descrita como um caixão, para ir até o Lido. Ele deseja que a viagem dure para sempre, o que com certeza durará, afinal, a viagem eterna para a morte não tem volta. O gondoleiro possui características semelhantes as do senhor estranho de Munique, com aspectos de estrangeiro. Este não faz o que Aschenbach pede o que causa a sensação de que controla o seu destino. Seria Caronte a levá-lo para o Ades? Mas esse Caronte acaba não cobrando a viagem.

Ao chegar ao hotel do Lido, ficou olhando pela janela do quarto a praia deserta e o mar. Em constante diálogo interior, diálogo consigo mesmo. A refutar pensamentos que: “se aprofundam no silêncio, tornam-se importantes, acontecimentos, aventura e sentimento” (MANN, 1971, p.114).  No silêncio as coisas transformam-se, as questões da vida são levantadas, as máscaras impostas pelas convenções são arrancadas. Castro, no texto já citado, nos diz que:

Cada palavra, por ser poética, é o núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das imagens poéticas. Uma imagem é sempre um ditar sonoro-visual do silêncio (2005, p. 18).

No silêncio há o encontro consigo mesmo, e a imagem-poética é sempre uma questão e a solidão desse silêncio: “acarreta o original, o ousado, o estranhamente belo, o poema. Mas a solidão também acarreta o errado, o desproporcional, o absurdo e proibido” (MANN, 1971, P. 114). Assim, fica o personagem a saudar o mar e a refletir entre dualidades sobre as aparições da viagem que eram de natureza profundamente esquisita: o velho janota e o gondoleiro que não cobra a viagem, mas diz que Aschenbach pagará.  

É durante o jantar que a visão de nosso “riacho de cinzas” começa a mudar. Quando percebe a existência de Tadzio, o menino polonês por quem se apaixona. A partir desse sentimento tudo se transforma na mente do escritor. As questões são levantadas. Tadzio é a imagem-questão de força aterradora para colocar Aschenbach diante das questões da existência. Sente-se diante da beleza pura, pois ele: “lembrava esculturas gregas dos mais nobres tempos e da mais pura perfeição de forma; era de tão rara atração pessoal que o observador julgou nunca ter encontrado na natureza ou no mundo artístico uma obra tão bem sucedida” (MANN, 1971, p.115).

O amor por Tadzio o domina por completo, estava preso ao fascínio da paixão. Ao observar Tadzio na praia consegue escrever novamente. O amor desperta-o para a criação, liberta-o das amarras, lhe dá vida, uma nova vida. Durante a sua existência Aschenbach fugia de tudo o que lhe dava prazer: “não amava o prazer” (MANN, 1971, P. 134). Mas em Veneza foi enfeitiçado, afrouxou o seu querer, não conseguia mais controlar seus desejos ardentes. Estava tomado pelo phátos, tomado por todos os sentimentos e principalmente pelas questões e não mais pelos conceitos.

Quando sente que a cidade está doente devido ao aspecto lúgubre e que isso não lhe fará bem deseja fugir, mas o destino o impede, sua bagagem é extraviada e ele precisa ficar. Aliás, é o que ele mais deseja, pois percebe que sem Tadzio não consegue mais viver.

Esse sentimento o transforma, Tadzio é tudo o que ele deseja ser, o que deseja possuir. Ao observar o menino parado à beira-mar percebe que se trata de uma obra divina: “Uma estátua e espelho!”. Com êxtase entusiasta: “acreditou compreender o belo em si”. Embriagado pela admiração e adoração do belo: “sua cultura entrou em efervescência, sua mente levantou pensamentos transmitidos desde sua juventude e que até então não tinham sido avivados pelo próprio fogo” (MANN, 1971, p. 137). Em conflito interior, na sua solidão de admirador do belo, pensava, indagava, imaginava, criava.

A narração é entrecortada pelos diálogos de Platão. Lições de Sócrates a Fédon: “Assim, a beleza é o caminho do homem sensível ao espírito – só um caminho, um meio somente, pequeno Fédon (...), pois o amante é mais divino que o amado, porque nele está o deus e no outro não (MANN, 1971, p. 138). A beleza é o caminho, ela é que faz Aschenbach pensar. A arte é o único caminho para que o fardo da existência seja leve e para isso é preciso de Eros. O pensamento domina a obra: “a felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento” (MANN,1971, p.138). Escrevia agora dominado pelo sentimento.  Sentia: “nunca sentiu mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra” (MANN, 1971, P. 139).  Vivia a escrita, sentia o sabor dela. Aliás, Platão, em O banquete, nos lembra que para Hesíodo Eros está ligado à geração do mundo, como uma força primordial para a criação. E ardendo de amor Aschenbach: “repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado para isso. Mas neste ponto da crise a exaltação do atordoado era dirigida à produção” (MANN, 1971, p. 139). O amor o fazia criar, o fazia sentir a propulsão da arte até a exaustão.
Aschenbach nunca dirige a palavra a Tadzio, nunca o toca, o máximo que obtém é um sorriso do menino: “era o sorriso de Narciso que se debruça sobre o espelho de água, (...) um sorriso ligeiramente desfigurado, desfigurado pela inutilidade de seu desejo” (MANN, 1971, p. 145). Mas que lhe toca tanto que o faz delirar, sentir-se percorrido por arrepios, mesmo sendo um amor impossível, absurdo, abjeto, percebe-o como sagrado, digno e murmura a “eterna fórmula do anseio”: “Eu te amo” (MANN,1971, p. 145). Tadzio pertence ao mundo das ideias platônicas, é a imagem do belo inatingível, que escorre por entre os dedos como imagem refletida na água, aliás, tudo que não está ao alcance é desejado, é amado.

Não havia mais volta, o caminho dessa travessia não permite voltar, por isso, mergulha no delírio do amor, e entrega lhe a vida. Ou melhor, desafia a própria morte.  Mesmo quando descobre que Veneza está tomada pela cólera, não parte e procura manter segredo para que a família polonesa de Tadzio não descubra e parta também. Até pensa, por um segundo, contar a mãe do menino a descoberta, com a esperança de passar a mão nos cabelos do amado como despedida, mas oculta, pois sem ele não saberia mais viver. Assim, Veneza ficava cada vez mais vazia devido a epidemia da doença, aliás, de sintomas semelhantes aos da paixão. Porém, Aschenbach ficou: “que lhe diziam ainda arte e virtude comparadas às virtudes do caos? Calou-se e ficou” (MANN, 1971, p. 162). 

A embriaguez do amor, ainda que tardia o encorajava, até o ponto de encostar a cabeça na porta do quarto do menino e se demorar, sem se preocupar em ser apanhado em situação tão louca. Possuído pelo phátos, pensava em que caminhos estava. Dominado pela moral, pensava o que diriam seus pais já falecidos. Mas, o que diriam também de uma vida de autodomínio? Em conflito entre dualidades Aschenbach questionava a sua existência, ainda que no horizonte da morte. Aschenbach é o ser em transição, o ser-do-entre [Dasein], entre a realidade da existência e uma outra oculta. E o percurso traçado para uma “tranvalorização dos valores”, como desejava Nietzsche, é no caminho para a própria morte. Representa também a decadência da humanidade e da arte em si na modernidade. Na travessia percebe que conter a vida é já estar morto, que fugir das incertezas é deixar morrer o fogo da vida.

Outra figura estrangeira bizarra e grotesca que aparece na obra destaca-se entre um grupo de músicos que se apresenta em frente ao hotel do Lido. Com características semelhantes ao desconhecido em Munique e do gondoleiro que o traz para a praia, também aparenta ser estrangeiro, perigoso e divertido, com cheiro forte de ácido fênico, que nos faz lembrar a imagem do diabo com seu cheiro forte de enxofre. A imagem perturba-o, a risada bizarra do músico lhe atordoa, como se a figura decadente fosse mais um aviso de seu destino.

Durante à noite teve um sonho orgíaco, de “experiências físico-espirituais”, como se estivesse em um culto a Dionísio, a descrição é semelhante ao culto das bacantes de Eurípides[2]. Com toque de flauta, acende-se uma chama, como no túmulo de Semele, com dança vertiginosa, mulheres gemendo, segurando serpentes, homens de chifres sobre a testa, com bastões envolvidos em folhas, abrigados em peles. O sonhador, o apolíneo, estava submisso ao “deus estranho”, dominado pelo dionisíaco: “e sua alma experimentou a luxúria e a loucura da decadência” (MANN, 1971, p. 164). Depois do sonho sentia-se fraco, “à mercê do demônio”. Podemos dizer que por negar a vida Dionísio vinga-se de Aschenbach, como se vinga de Penteu por não aceitar os cultos das bacantes em Tebas.

No outro dia, o escritor alemão vai ao barbeiro do hotel e deixa este pintar seus cabelos e maquiá-lo, como o velho que encontrou na embarcação a Veneza. Aqui não há como deixarmos de remetermo-nos ao ensaio de Baudelaire “Elogio da maquiagem”, em que o poeta francês nos diz que a maquiagem é a necessidade de suplantar a natureza. O natural para ele representa o mal, e o bem o que é artificial: “a virtude é artificial, sobrenatural, (...) o mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre o produto de uma arte” (BAUDELAIRE, 1996, p.62). Mesmo Tadzio que representa a beleza natural é de uma beleza frágil, possui aparência doentia e de que viverá pouco, é pálido e os dentes são pontiagudo, sintomas de quem é anêmico. O que seduz Aschenbach são também os adereços que o menino utiliza. Como o lenço vermelho em seu terno de marinheiro, objeto da cor da sedução. E ainda mais, não se pode afirmar que ele realmente exista, pois pode ser apenas uma ficção, arte criada pela imaginação do escritor, já que nunca é tocado, ele é inatingível, inalcançável como as imagens ilusórias.

Nietzsche nos diz que a aptidão dos filósofos é considerar os homens como puros fantasmas e imagens oníricas e segue dizendo que assim também: “se comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente, pois a partir dessa imagem interpreta a vida com base nessas ocorrências exercita-se para a vida” (NIETZSCHE, 2007, p.35). Nessa óptica, é como se Aschenbach personificasse o mistério, o mistério seria a phýsis, no sentido geral do termo, é natureza, mas para os gregos era também tudo o que se cria no mundo, tudo o que representa origem, o que se revela, o próprio ser, por exemplo.

Na visão baudelairiana a natureza não é um sinônimo de perfeição como convencionalmente é proferido, o artificial para ele é que está ligado ao sublime, e utiliza-se da maquiagem e dos artifícios femininos para exemplificar sua teoria, diz: “quem não vê que a maquiagem (...) aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é de um ser divino e superior?” (BAUDELAIRE, 1996, p. 64). Para o poeta a mulher ao se maquiar esforça-se para parecer mágica e sobrenatural, e assim, consolidar e divinizar sua frágil beleza. Nesse sentido, o texto de Baudelaire salva a obra de Thomas Mann de um total niilismo e da total ruína e decadência humana, pois ao mesmo tempo em que a arte exige experienciação de vida ela também exige transformação, ela exige a criação e nisso está o (re) velar-se, o vir a ser. A arte salva o ser da decadência. Toda arte é pois, um artifício para Baudelaire, assim como a maquiagem, quer exibir-se:

Assim, se sou bem compreendido, a pintura do rosto não deve ser usada com a intenção vulgar, inconfessável, de imitar a bela natureza e de rivalizar com a juventude. Aliás, observou-se que o artifício não embelezava a feiura e só podia servir a beleza. Quem se atreveria a atribuir à arte a função estéril de imitar a natureza? A maquiagem não tem por que se dissimular nem por que evitar se entrever; pode, ao contrário, exibir-se, se não com afetação, ao menos com uma espécie de candura (BAUDELAIRE,  1996, p.65).

O apaixonado Aschenbach sente necessidade de transformar-se, assim como Baudelaire, ele percebe que para criar na modernidade é preciso ir de encontro com o anormal, estranhar-se a si próprio, aliás, a arte é o resultado do estranhamento do ser com as grandes questões, e revela-se no estranho e grotesco.

A maquiagem é um jogo de esconder e revelar, de sedução e encantamento como o mistério da existência. Maquiado Aschenbach percorre Veneza labiríntica atrás de Tadzio, dominado pela febre da cólera e do desejo ardente queria perseguir “o objeto que o incendiava”. Mas ao mesmo tempo em que quer revelar-se, se oculta. Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, diz que “a paixão é por essência, feita para ser vista, é preciso que o esconder seja visto” (BARTHES, 2003, P.159).  Tadzio percebia o obediente seguimento de seu admirador, mas não o denunciava aos seus, e Aschenbach embriagado pelo olhar do amado, levado pela paixão ficava ludibriado com a contemplação. Ficava em êxtase puríssimo, transtornado pelo paradoxo de ao mesmo tempo querer revelar-se e não querer. Isso é explicado por Barthes:

Tal é o paradoxo ativo que devo resolver: é preciso que isso seja ao mesmo tempo sabido e não sabido: que saibam que eu não quero mostrar: é esta a mensagem que dirijo ao outro. Larvatusprodeo: avanço mostrando minha máscara, mas com um dedo discreto (e astuto) designo essa máscara. Toda paixão tem finalmente seu espectador no momento de morrer (BARTHES, 2003, p. 159).

Tornar-se persona para revelar-se é o que faz Aschenbach ao maquiar-se. Pois tudo o que é ocultado torna-se mais sensual e sedutor. Na busca de respostas à pergunta edipiana por excelência: quem sou eu? tenta-se a representação de si. Mas nunca conseguimos nos representar para nos conhecermos, sem ou com maquiagem somos sempre máscaras de nós mesmos. Ocultado pela máscara que criamos é possível apenas seduzi para poder revelar-se. Mas revelar o que? Para os gregos nesse velar-se e desvelar-se estaria o que denominaram alethéia, (a verdade). Heráclito em seu fragmento 123 escreve o seguinte “enigma”: “Phýsis krýptesthai phílei”. Antonio de Castro em seu texto “A questão e os conceitos”, publicado em Caderno do Seminário Permanente de Estudos Literários, utiliza a seguinte tradução: “O desvelar-se apropria-se no velar-se” (2007, p. 09). A partir dessa frase praticamente oracular entendeu-se que a phýsis ama esconder-se e para que se tenha o surgimento é necessário encobrir-se, apropriar-se do velar-se. Poderíamos dizer então que o amante e o artista ao entregarem-se ao objeto de veneração velam-se em “maquiagem” para desvelar-se em alethéia.   

O mundo sempre é aberto para o desconhecido, a obra de arte sempre é aberta ao ser, este só se compreende em linguagem, em arte, e somente na travessia é que compreende seu ser. Por isso, Aschenbach em sua travessia deixar de ser para poder ser, livra-se da máscara imposta pelos padrões sociais, para perceber o sentido da arte e da vida, para mostrar-se em “espécie de candura”, ou melhor, em arte literária, em poiésis. Envolve-se no mistério, não para se ocultar, e sim para revelar-se. Aliás, “a beleza é o caminho” e “o amante é mais divino”. Ao se maquiar o artista torna-se mistério. Vai de encontro à questão e torna-se questão.

Ao perder a imagem de Tadzio entre os muros labirínticos de Veneza em seu velar e des-velar Aschenbach entra em delírio. Percebe que a cidade está em declínio como ele parece estar, e novamente a narrativa é entrecortada pelos diálogos de Sócrates com Fédon: “Porque a beleza, Fédon – tome bem nota disso – só a beleza é divina e visível ao mesmo tempo e assim é também o caminho do sensual, é o caminho do artista para o espírito, pequeno Fédon” (MANN, 1971, P. 169). Aschenbach está dominado por Eros, está “morrendo de amor”.

Diz a narrativa socrática da obra: “que se deve saber que nós artistas, não podemos seguir o caminho da beleza sem que Eros se associe e se arvore em guia” (MANN, 1975, p. 169). A paixão devora o ser, transforma sua mente, lança-o no abismo, o amor faz com que não se tenha mais medo da morte, afinal, desafia-a, é a entrega total do ser para mistério. Este ser que é e não é ao mesmo tempo, quer e não quer: é ser maquiado. Dominado pelo amor, pela ficção de Tadzio, a beleza nunca é alcançada pelo artista Aschenbach, por isso se sente incompleto, por isso cria, por isso se maquia.

Dias depois Aschenbach percebe que a família polonesa está de partida, vai até a praia silencioso e senta-se em sua cadeira, vê Tadzio brincando com os colegas, este num desentendimento com um dos amigos se afasta para o mar, para o “nebuloso e ilimitado”. O menino entra na água e apontando para a imensidão, em pose apolínea, com seus olhos “cinza-alvorada” retribui o olhar ao seu espectador e admirador que: “como tantas vezes levantou para segui-lo” (MANN, 1971, p. 172). Esse foi o fim de Aschenbach, cai ao lado da cadeira, morre obcecado pela imagem cultuada com sintomas da cólera, os mesmo do amor. E assim, o personagem faz a travessia para o horizonte do desconhecido, em delírio diante da imagem inatingível do amado: Morre. Eros possui forte ligação com Thanatos (a morte). No conto de Monteiro Lobato “Meu conto de Maupassant”, incluso na obra Urupês, um personagem diz: “A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico” (LOBATO, 2009, p. 83).

A morte é o último grão de areia que vai fina e silenciosa escorrendo pela ampulheta do tempo para o abismo.  Não há mais tempo para Aschenbach viver e ter prazer por viver, faz sua travessia da vida para a morte: “O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim” (BARTHES, 2003, p. 159). Mas esse fim não seria uma saída? Uma infinita travessia? Quiçá. O caminho é a questão. Fim da travessia: silêncio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDELAIRE, C. Elogio da maquiagem. In. ______. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
BARTHES. R. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CASTRO, M. A. A questão e os conceitos. In. Caderno do Seminário Permanente de Estudos Literários / CaSePEL – Nº 4.  Dezembro, 2007. Rio de Janeiro: Publicações Dialogarts, 2007.  71 p. ISSN 1980 – 0045.
______. Heidegger e as questões da arte. In. ______. (org.) Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
LISPECTOR, C. As águas do mundo. In. ______. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LOBATO, M. Meu conto de Maupassant. In. ______. Urupês. 2 ed. São Paulo: Globo, 2009.
MANN, T. A morte em Veneza. Trad. de Maria Deling. São Paulo: Abril, 1971.
NIETZSCHE, F. W. Introdução à tragédia de Sófocles. Trad. Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
______. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PLATÃO. O Banquete. Trad. Albertino Pinheiro. 3ª ed. São Paulo: EDIPRO, 2009.

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[1] Denominação criada por Manuel Antônio de Castro para fugir da terminologia-metafísica, representa uma questão que não temos mas que nos tem. São as imagens de força propulsora de uma obra que nos propõe grandes questões sobre o ser.
[2] As Bacantes, tragédia grega de Eurípides, na qual é representada a vingança do deus Dionísio a Penteu, pois este recusava-se a aceitar os cultos das mulheres vindas da Índia para Tebas, as bacantes , ao deus estrangeiro, Dionísio. A descrição do culto das bacantes feita pelo Primeiro Mensageiro da peça a Penteu é muito semelhante ao sonho de Aschenbach. Ver: EURÍPIDES. Ifigênia em Aulis – As fenícias – As bacantes. Trad. Mário da Gama Kury. 5 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 234 – 238.