Amanda Mauricio
Pereira Leite[1]
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
Qual
a relação entre fotografia e perspectivismo em Nietzsche? O que filósofo diria
sobre a estética da fotografia (trágica) de Diane Arbus? Neste ensaio, desejo
pensar a arte e suas dimensões estéticas a partir de registros fotográficos de
Arbus buscando relação com o conhecimento sensível. Tomo a fotografia como
dispositivo de experiência/aprendizagem. Aqui, vontade é impulso de vida. A
arte, na dimensão de como lidamos com a vida, requer fazer de si mesmo obra de
arte ao passo de nossos instintos nos ajudarem a enfrentar o rebanho. Na arte
implica reconhecer o horror da vida e tomá-la, enfrentá-la a partir da tragédia
– aquilo que contradiz a beleza, que jorra de música, que se constitui de
forças... O sublime se dá na disputa de forças. Desafia a pensar. O sublime é o
trágico assim como as fotografias de Arbus. Tomo Sobrinho (2004), Aumont (1993)
e Soulages (2010) para pensar a fotografia e o perspectivismo em Nietzsche.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia;
perspectivismo; Nietzsche;
ABSTRACT
What is the
relationship between photography and perspectivism in Nietzsche? What would the
philosopher say about Diane's aesthetic (tragic) photography? In this assay I rather think about art and
its aesthetics dimensions from Arbus' photographic records seeking a relationship
with sensitive knowledge. I take photography as a experience learning tool.
Here will is life's impulse Art as the dimension which we deal with life,
requires oneself to create a masterpiece whereas our instincts have helped us
fighting the herd. Art implies in recognising life's horror, get hold of it,
face it as if it was a tragedy. Something that antagonises beauty spouts from
music which is made of strength The sublime emerges from forces dispute. It
defies to think. The sublime is tragic as well as Arbus' photographies. I
resort to Sobrinho (2004), Aumont (1993) and Soulages (2010) to think about
photography and the perspectivism in Nietzsche. It might be a dialogue destined
for few.
Key-Words: photography; perspectivism; Nietzsche;
Adentrando
o território do prazer...
Não escrevo para
cumprir tarefas.
Parto de desejos.
A tese é o lugar dos
desejos.
Pesquiso algo que
encontre densidade e prazer.
Pergunto.
Me movo...
Fotografo.
Existe limite entre os
desejos de uma tese e a escrita sobre uma paixão?
O empolgante é o
processo – o processo.
Uma artista sempre quer
mudar o mundo, criar esboços e liberá-los para uma nova ordem. Mas aviso que
correr este risco não é algo simples. Exige coragem. Requer muitas vezes,
saltar de precipícios criativos. Movimentar a câmera. Lidar com o inesperado.
Assumir-se como obra inacabada. Criar com o caos. Dar musicalidade ao texto,
como diria Nietzsche.
E qual é mesmo a
dimensão estética da vida?
Um convite!
Criar conceitos para
não repeti-los, nem mumificá-los. Entender que o corpo e a razão estão para
além da dualidade. Perceber que o mundo sensível não é só o mundo das ideias.
Se a arte trágica ajuda a compreender o mundo, ser artista é inventar sentidos
à vida.
Assim, poderíamos
perguntar: qual o sentido da arte? Talvez, encarar a expansão da vida, o
entrecruzamento entre o impulso apolíneo e dionisíaco. A arte existe para não
morrermos de verdade, sobrepõe o próprio Nietzsche.
O jogo da criança não
tem finalidade, não há um “para que”, só há um momento, um instante... Nisto, o
que me inquieta é ver como nós – criançasgrandes
– não nos aventuramos a construir bonecos de areia para nada. O que sabemos é
da existência de uma pretensa ordem no caos que deseja a tudo (ou quase tudo)
explicar.
A vontade é o impulso
de vida. A arte, na dimensão de como lidamos com a vida, requer fazer de si
mesmo obra de arte ao passo de nossos instintos nos ajudarem a enfrentar o
rebanho – ainda que para isso seja preciso reestetizar a vida e interpretar o
mundo artisticamente.
O estrangeiro mexe com
a unidade, com aquilo que aparentemente estava em ordem. Navega por oceanos
desconhecidos. Lança-se num devir constante. Aposta em múltiplas direções.
Algo trágico é
converter o conhecimento científico em arte.
Bem sei que a arte não
responde a tudo, mas nela existe expressão de forças que possibilita a vida.
Nisto implica reconhecer o horror da vida e tomá-la, enfrentá-la a partir da
tragédia – aquilo que contradiz a beleza, que jorra de música, que se constitui
de forças... O sublime se dá na disputa de forças. Desafia a pensar. O sublime
é o trágico.
A pulsão de vida nos
incita a voar/pesquisar... Este viver intensamente nasce na vontade de
potência, tomando a vida como instinto para tentar perceber o que o conhecimento
quis ou quer fazer com a vida e isto nos aproxima do grande homem em Nietzsche.
Pergunto então: quais
são as minhas pulsões? Quantas são as não-finalidades de uma pesquisa? A
filosofia não é uma paixão, confesso. Entretanto, aceito o desafio. Neste ensaio,
vou me mover a pensar dois pontos centrais: a) fotografia e b) o perspectivismo
em Nietzsche. Para tanto, opto por tomar as contribuições de Sobrinho (2004),
Aumont (1993) e Soulages (2010) como subsídios desta reflexão. Pode ser que
esta seja uma discussão para poucos. (E por que não?) Se o cientista necessita
ser artista, a tese pede bons espectadores...
A
fotografia e o perspectivismo em Nietzsche
“A arte é feita para perturbar”
(Braque)
O perspectivismo em
Nietzsche está relacionado com os modos de conhecer, com a pluralidade de
sentidos envoltos no processo do conhecimento, ou poderia dizer ainda, com uma
possível teoria do conhecimento que antecede a própria obra de Nietzsche, com
as produções de Leibniz, Kant e outros filósofos. Trata-se de uma tipologia que
toma a vida como eixo central para diversas interpretações e ponderações sobre
a própria existência, feitas por nós, humanos.
Há um embate de forças
na natureza e na vida que articula o perspectivismo
a uma multiplicidade de perspectivas ativas e reativas na vontade de potência.
Tais forças permitem ao sujeito eleger subjetivamente o “sim” e o “não” alusivo
à exterioridade moral que opera na história da humanidade. Isto significa que
estamos acostumados a julgar as coisas sobre determinado ponto de vista ou
determinada perspectiva.
[...] o homem é um animal que
mede, o seu olhar é já sempre um juízo; contudo, o seu erro originário foi
acreditar que para cada coisa particularmente deveria haver apenas um conceito
que a definiria enquanto tal, na medida em que a coisa era tida como possuindo
uma existência em si própria, uma, idêntica, essencial e eterna [...]
(SOBRINHO, 2004, p. 6)
Encontramos em
Nietzsche a necessidade de pensar o mundo sobre muitos pontos de vista e não
apenas sobre perspectivas geradas a partir de um ângulo único – o nosso.
Avançamos ao dizer que o mundo torna-se infinito ao abrir espaço e
possibilidades à infindáveis interpretações. Cabe ressaltar ainda que não há
uma definição estanque sobre o termo perspectivismo, todas as significações
decorrem dos aforismos, fragmentos e pedaços soltos de seus escritos, daí a
variedade de reconstruções possíveis desta tipologia.
Ao mesmo tempo em que
existe certa incompletude no perspectivismo nietzschiano, isto se torna uma
distinção deste para outros termos, pois faz com que o leitor busque em outras
fontes aquilo que possa vir a completar a ausência contida nos fragmentos.
Evidente que essa busca evocará o leitor a decifrar o perspectivismo de modo
insólito; criando, interpretando e reconstruindo o perspectivismo a muitas mãos
e entendimentos.
Acredito que a
polissemia contida no perspectivismo de Nietzsche, aproxima esta tipologia da
fotografia, que também tem sua natureza polissêmica. Se o perspectivismo está
relacionado ao conflito de forças dentro de um processo de escolhas, sensações
e sentidos, do mesmo modo na fotografia, o sujeito leitor interpreta e avalia a
imagem, a cena e o objeto a fim de examinar os sentimentos gerados a partir da
percepção visual.
O conhecimento, para
Nietzsche, passa obrigatoriamente pela visão, pelas lentes oculares. A visão
permite ao ser humano atribuir sentido ao mundo das coisas e suas feições.
Através da visão se representa, se encena, se memoriza, se imagina, se julga e
se conhece.
[...] aquilo que se repete no
espelho do olho são imagens que ele mesmo constrói e molda enquanto
representações ilusórias a respeito de todas as coisas [...] deve-se concluir
que: “o erro, a aparência, é portanto a base do conhecimento. Unicamente a comparação de aparências numerosas verossimilhança, que é portanto um grau da
aparência [...] (SOBRINHO, 2004, p. 7)
É certo que o processo
de conhecimento ultrapassa o sentido da visão articulando-o a outros sentidos
(tato, olfato, paladar, audição), isto fisiológica e organicamente. Entretanto,
é pela visão que Nietzsche adota a metáfora sobre o nosso movimento de colocar
sentido às coisas [...] é o que dá para nós cor ao mundo [...][2].
O conhecimento é interpretação de várias verdades – perspectivismo.
Se voltarmos à história
da fotografia veremos que desde os primórdios o valor atribuído à captura de
imagens enquanto mimese do real ou representação do autêntico era algo
incontestável. A fotografia pretendia mostrar a realidade (e não a ficção). As
capturas tornavam-se memória, permitiam a (re)construção de narrativas acerca
de um povo ou uma cultura, por exemplo.
Antes de a fotografia
ser concebida como instrumento para narrar contextos e fatos históricos, o
texto de Walter Benjamim[3], A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, publicado em 1955, evidenciava que a captura
iniciava através do olho. As lentes oculares registravam mais rápido que o
movimento das mãos, [...] pela primeira
vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das
responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao
olho [...].
A eleição do objeto ou
da cena a ser fotografada já seria um recorte perspectivistico. O interesse do
fotógrafo; o destino da publicação da imagem; o gênero fotográfico ao qual a
imagem seria relacionada, enfim, amplas razões poderiam ser listadas sobre a
produção da fotografia. No entanto, a captura fisgaria o fotógrafo por algum
motivo, depois seria produzida e lançada ao mundo para suas interpretações.
Numa leitura mais
recente, Jacques Aumont (1993) dedica um capítulo intitulado: A parte do olho, no livro A imagem, para destacar como apreendemos
o mundo e as coisas pela percepção visual. Mostra que na antiguidade, Euclides
já estudava a ciência da propagação dos raios luminosos se mostrando um dos
primeiros teóricos da visão. Depois disto, a física aplicaria diversas
pesquisas sobre o desempenho do olho enquanto sistema visual e os estudos sobre
a fotografia, especialmente, sobre as câmeras fotográficas iam compará-la ao
globo ocular.
Aumont vai mais afundo
ao abordar sobre alguns movimentos e fatores que implicam na percepção visual,
como: a cor, o tempo de exposição, o espaço, a geometria, a luminosidade, o
olhar, as perspectivas, etc. No item O
olho e o olhar (1993, p. 56) o autor destaca que [...] o olhar é o que define a intencionalidade e a finalidade da
visão. É a dimensão propriamente humana da visão. Estabelece relação com a
psicologia da percepção visual e o imaginário do sujeito leitor, mas, isto não
será abordado neste ensaio.
O que é comum aos seres
humanos é a parte do olho, do globo ocular, porém, a interpretação de
fotografias é outra coisa; está voltada a aspectos culturais, estéticos,
políticos, econômicos entre outros, portanto, subjetivos. A partir do olho,
cada individuo é levado a expandir o olhar sobre a imagem, dai este sujeito ser
considerado um leitor e/ou espectador. Logo, [...] além da capacidade perceptiva, entram em jogo o saber, os afetos,
as crenças, que, por sua vez, são muito modelados pela vinculação a uma região
da história (a uma classe social, a uma época, a uma cultura) [...]
(AUMONT, 1993, p. 77).
Embora a história da
fotografia mostre a forte resistência contida inicialmente às interpretações
imagéticas, haja vista que desejava assegurar que a captura seria então uma
representação e não uma criação a partir do real, historiadores como Kossoy
(2009), por exemplo, apresentam a fotografia e a fronteira tênue entre
realidade e ficção:
[...] o compromisso da fotografia
é com o aparente das coisas. A fotografia é certamente um registro do visível;
ela não é, nem pretende ser, um raio X dos objetos ou das personagens
retratadas. Seu fascínio reside exatamente aí, na possibilidade que oferece à
pesquisa, à descoberta e às múltiplas interpretações que os receptores dela
farão ao longo da história [...] (KOSSOY, 2009, p. 143).
Outra vez nos
aproximamos do perspectivismo de Nietzsche, já que, [...] todo conhecimento nasce na superfície do olho cuja visão se
estende pelo mundo da aparência, pois sem esta atividade de excitação visual
não haveria nem representação, nem memória, nem vontade, nem conhecimento [...]
(SOBRINHO, 2004, p. 06).
O caos se organiza
diante das perspectivas e do modo como apresenta os graus de aparência das
coisas. No entanto, é preciso considerar que o conhecimento e o perspectivismo
contido na obra de Nietzsche advêm da interpretação e dos significados dados
pela interpretação. Logo, o erro e a ilusão fazem parte do processo de
conhecimento e, por isso, é importante lembrar que o sentido atribuído à
palavra e a aparência das coisas muitas vezes se distancia de outros sentidos,
de outras perspectivas.
O sentido atribuído às
coisas volta-se ainda ao modo como nos lançamos no mundo; como nos projetamos
na vida. Quero dizer que a maneira como interpretamos cenas, imagens e o
próprio conhecimento, passa entre outras coisas, pela forma como vemos o mundo,
como enxergamos o espelho do real ou a imagem nele refletida. Tornamos ao perspectivismo
e as infindáveis intepretações sobre o mundo das aparências. O mundo das
aparências é campo de atuação de nossos instintos – jogo de ação/reação;
conservação/crescimento; energias orgânicas; disputa de forças.
Apostamos em múltiplas
direções na tentativa do Sublime –
trágico – o desejo de converter o conhecimento científico em arte. Para
enfrentar o caos interpretamos parcialmente a vida. Erramos e nos iludimos com
as perspectivas por nós inventadas a respeito das coisas. Se o olho é o contato
com o mundo, na fotografia temos o convite de expandir o olhar para além da
imagem e (re)significá-la, (re)inventa-la, procurar o dito, o não-dito, o
presente, o ausente e o impossível no mesmo enquadre.
Pode-se entender que o
saber é aparente, fruto de julgamentos e avaliações constantes impelidas pelo
arranjo de forças – relação representacional. Entretanto, é preciso indagar a
partir de quais critérios valoramos as coisas em relação à expansão da vida e
do conhecimento, pois a vida não pode ser avaliada, a vida está em disputa, é
um movimento expressivo de forças – Apólo e Dionísio, pensamento e paixão.
O tipo de lógica que
parece ser única é justamente a que Nietzsche procura enfrentar. Daí que o
perspectivismo não pode se tornar um dogma, já que existem amplas
possibilidades de interpretações para dizer algo sobre o mundo, sobre a pulsão
de vida. O perspectivismo evoca a criação de novos modos de viver e se fazer
experiência.
Diante do significado
aparente das coisas e da dinâmica de interpretações inventadas pelo ser humano,
arranjos e perspectivas são criadas para saciar a curiosidade. Este é um
processo contínuo, um jogo de forças e instintos que busca aquilo que
denominamos: conhecimento. Não podemos nos esquecer, porém, de que nossas
eleições estão envoltas ao processo de julgamento (que se da a partir de nossas
perspectivas, de nosso entendimento, de nossas experiências) – objetivando a
busca pelo saber.
Conhecer de fato as
coisas é um desafio plural. Quanto maiores forem às perspectivas, mais
possibilidades de interpretar a aparência das coisas encontraremos. Abre-se,
portanto, uma arena inacabável de perspectivas e interpretações. Deste modo, [...] o mundo, ao contrário, se tornou para
nós novamente ‘infinito:’: na medida em que não poderíamos ignorar a
possibilidade de que ele abriga uma infinidade de interpretações[4]
[...] (SOBRINHO, 2004, p. 10).
Como são incalculáveis
as sensações geradas em presença de uma fotografia, o perspectivismo em Nietzsche
se relaciona à dimensão estética do devir. As imagens que compomos sobre as
coisas, derivam do pulsar da vida; de nossos sentidos, de nossos impulsos, dos
atravessamentos que geram experiência. As subjetivações deliberadas pelo olhar
(ou pelos olhares ao se considerar nosso olhar e o olhar do Outro) não
conseguem eleger verdades totais ou absolutas sobre o grau de aparência das
coisas.
Cabe lembrar que na
metáfora de Nietzsche, nossos sentidos estão relacionados à visão, ao tato, ao
olfato e a audição, mas, poderíamos pensar em conceber as perspectivas para
além destes sentidos? Como ultrapassar os limites do corpo? O campo infindável
do perspectivismo encontraria nos limiares do corpo sua finitude?
Bem sabemos que as
leituras sobre fotografia podem ser diversas. A forma de olhar, julgar, sentir
e permitir que a imagem nos atravesse é algo que parte de cada individuo e de
seu universo subjetivo. O que você sente diante de uma fotografia de
Cartier-Bresson ou Robert Capa, por exemplo, pode ser similar e/ou oposto às
sensações e significações que estabeleço diante da mesma imagem. O
perspectivismo é parte de um processo subjetivo que convida a jogar o
pensamento e a vida, o conhecimento e a realidade oferecida.
As perspectivas se
referem a uma imensidão de impulsos existentes em cada ser humano. Estes
instintos (plurais) aludem à vontade de poder que são experimentadas pelos
indivíduos em seus processos de conhecer o mundo e as coisas. Se existe em
todos os indivíduos um gigante embate de forças e perspectivas que são postas
em julgamento, é preciso pensar que estas disputas sempre vão gerar novas
perspectivas já que se estendem à convivência entre os seres humanos – volvemos
a polissemia de sentidos.
Se, para que o
intelecto encontre o conhecimento é preciso expor os arranjos de sentidos; na
fotografia, a pluralidade de olhares abre espaço para o perspectivismo e para
as diferenças interpretativas. A finalidade talvez seja a de superar os
significados e sentidos postos à imagem, para colocar em questionamento, por
exemplo, a passagem do autêntico ao fotografado.
Diane
Arbus: o perspectivismo e a dimensão trágica da fotografia
“O que mais gosto
de fazer é ir a lugares onde nunca estive”
(Diane Arbus)
Quem foi Diane Arbus? Trata-se de uma
importante fotógrafa norte-america que viveu entre os anos de 1923 a 1971. A
partir do fotojornalismo, fotografou para The New York Times Magazine além de
outras revistas relevantes na década de 1960. Sua carreira se destacou pelo
registro do inusitado de figuras à margem da sociedade. Brincava com as
máscaras e a hipocrisia da sociedade americana. O sujeito mascarado é uma
metáfora estética trágica que quer ao mesmo tempo mostrar e esconder o lado
mórbido do ser humano em fotos.
Na captura camuflada
Arbus foca o lado oculto ou o “outro lado” que vai muito além da imagem
refletida em sua objetiva. A fotógrafa brinca com nossos sentidos, nossas
interpretações. Em suas capturas ora exibe o impostor como verdadeiro e o
verdadeiro como o falso. Cria uma espécie de jogo de espelho retorcido que
provoca outras leituras pela plasticidade de seus registros desconcentantes e
de suas perspectivas inesperadas.
Partir do trabalho de
Arbus para pensar o perspectivismo de Nietzsche talvez seja partir de um ponto
óbvio, para re-significar, sentir e novamente olhar as fotografias. A estética
de Arbus é inconfundível, trata-se de uma fotógrafa que busca revelar com o uso
do flash os elementos obscuros de cada enquadre. Aqueles e aquelas que, por
seus estereótipos destoam do rebanho, são alvo exponencial de suas lentes. Os
anormais, os marginais da sociedade – homossexuais, anões, gigantes,
paralíticos, gente bizarra – são tema das fotografias e do olhar peculiar de
Arbus. Há em seu trabalho uma dimensão estética que rompe com os estilos de
captura imagética de sua época para compor novos apólogos.
Se a fotografia
desponta o fotógrafo que a captura, enxergamos na obra de Arbus pontos
contraditórios – trágicos – transitantes entre vida e morte, loucura e sanidade,
para além de um mero dualismo. A inconformidade com o mundo caótico arremessa
Arbus para um universo conexo à alucinação (talvez esta seja característica de
artistas que não “se encontram” no caos social). É diante do não-reconhecimento
do Outro e da não-alteridade que a fotógrafa põe fim a seus conflitos e
interrompe sua vida[5].
Parece-me que o desejo de Arbus consistia em provocar o leitor diante de um
mundo conflitante, espontâneo e improvável.
A fotografia neste caso
parece sair de uma estética representativa para levar o leitor a pensar sobre
as semelhanças existentes entre o normal e o anormal, os sujeitos da loucura e
dos manicômios e a sociedade norte-america. O que a fotógrafa propõe em seus
temas perturba a moral, estabelece um novo caos que aproxima a figura marginal
da figura não alienada.
Ao tomar a estética do
trágico, Soulages (2010, p. 208-209) aponta que nas fotografias de Arbus o [...] idêntico é a morte [...]. Neste
sentido [...] como achar real a noite
nova-iorquina, quando em seus imensos edifícios todas as janelas que brilham
são idênticas. Quando seu eu parece idêntico aos outros eus? Parece-me que
o desafio é mostrar a singularidade da vida vivida aos muitos. O que se projeta
é de algum modo, a evocação por uma ação ou pelo menos uma reação diante do
exposto. Mas qual seria o mundo singular de Arbus? Este universo encontraria
eco na obra de Nietzsche?
Arbus captura o mundo
singular por perenes perspectivais. Suas fotografias dão passagem a
significados infindáveis associados às coisas existentes. A morte (da
fotógrafa) exibe o domínio sobre a vida. O suicídio abre uma janela de sentidos
que jogam com a fragilidade da vida (e que nos reaproxima dos tantos
marginais). Mesmo não capturando a morte de frente como fez Robert Capa,
Cartier-Bresson e outros fotógrafos de guerra, por exemplo, Arbus opta por uma
dimensão estética trágica da fotografia – instala-se a desordem.
Os retratos de Arbus
fogem da clemência com o ser humano. Seu olhar ácido e perspicaz revela os
“doentes de alma” e os “doentes do corpo”. Como um fuzil apontado para a cabeça
de alguém, o canhão da objetiva dispara e aprisiona num só click um recorte
temporal e espacial. Nas palavras de Soulages (2010, p. 210) [...] fotografar, como suicidar-se, é deter
a vida, gravá-la de forma grave, fixá-la na morte e na arte, é assinar com
sangue sua obra de arte e sua vida, é tentar romper com a finitude e o trágico
afirmando-se [...].
Gravar o gesto
caricato, esdrúxulo e/ou distorcido das pessoas era para Arbus um jogo
excitante. Mas um jogo que ela não gostava de expor, talvez por saber que a
crítica atentar-se-ia mais às personagens e suas histórias do que ao conjunto
da obra e sua complexidade. Não se tratava do espelho do real produzido nas
capturas, ao contrário, adentrar o submundo marginalizado respaldava em
conhecer-se a si mesma ou sua própria personagem. Uma imersão na busca pelo
avesso. Não o avesso da margem, mas o avesso de convenções, de perspectivas...
O acesso à intimidade e ao universo privado de suas figuras dramáticas a fim de
ver o Outro bem de perto.
Diane Arbus não teve
sua obra muito divulgada no Brasil, nem mesmo influenciou o trabalho de grandes
fotógrafos brasileiros, entretanto, sua obra é considerável e intrigante
(talvez por isto mesmo, não tenha encontrado espaço aqui). O que a
fotógrafa-artista fez foi uma grade revolução visual, não apenas por registrar
de modo simétrico as assimetrias de um povo, mas por usar a fotografia para
repensar o humano e, sobretudo, suas diferenças. Incontestavelmente Arbus foi
uma mulher a frente de seu tempo, que através de suas fotos, assinalava a
“sociedade do espetáculo[6]”.
O jogo criado por Arbus
carece de técnica. Isto a aproxima de um “amadorismo” posteriormente
evidenciado pela crítica. Não se sabe se a falta de foco ou o excesso de luz
são peças propositais neste jogo, mas, a composição imagética permite que a
carência de técnica desapareça lançando o leitor para um mundo enigmático. E o
que dizer da técnica que permite à fotógrafa adentrar a intimidade do humano
muito além de seus personagens? Nas capturas de Arbus quanto mais a bizarrice
se mostra distante, mas torna possível nossa aproximação com o Outro e suas
deformidades (ou já seriam as nossas deformidades?).
Diane Arbus submergia
para ver o que se escondia atrás de um segredo. Tal como o pintor René
Magritte, a fotógrafa afirmava que [...]
tudo o que vemos esconde outra coisa. Sempre queremos ver o que se oculta por
trás daquilo que vemos[7]
[...]. Todo mistério envolvido na proposta de Arbus bem como sua dimensão
estética de uma fotografia trágica, expressava num mesmo enquadre a potência de
vida e o embate de forças apresentado por Nietzsche.
A woman in a bird mask,
N.Y.C. 1967
Mulher mascarada em uma cadeira de rodas 1970
Festas de Halloween e bailes de máscaras nos
hospitais psiquiátricos também eram temas dos registros de Arbus. Numa destas
ocasiões captrou: A woman in a bird mask,
N.Y.C. 1967 (A mulher com máscara de pássaro). O olhar da fotógrafa
contrastava-se com o olhar da personagem (ou seriam das personagens)
camuflada(s) nas máscaras? Sujeitos e identidades múltiplas se escondiam e
disfarçavam os extremos (abastados) da sociedade, muitas vezes fitando a
câmera. Seriam retratos de nós mesmos? As máscaras que aparecem em suas fotos
consistiam em um tipo de denúncia quanto à hipocrisia escondida no espaço
social norte-americano? Qual o lugar das prostitutas, das drag queens, do menino segurando a granada, dos corpos e mentes insanos
fotografados por Arbus?
A ausência de piedade
ao mostrar o lado aberrante do Outro talvez remeta à exibição de Diane e sua
esquizofrenia, esta inclusive foi uma crítica feita pela fotógrafa Lisette
Model que influenciou o seu trabalho, entretanto, reconhecia em Arbus a
autoexpressão em seus retratos que provocavam à atribuição de sentidos e
significações a deriva. No entanto, Arbus afirmava [...] é impossível sair da própria pele para habitar a do outro[8]
[...].
Fecha-se as cortinas,
abre-se um mundo. Na foto Hermafrodita e
cachorro no Carnaval de 1970, Arbus, outra vez, joga com a imagem. Os tons
da escala de cinza parecem dividir a cena. No primeiro plano há detalhes de um
corpo liso, depilado, que exibe um semblante polido mesclado aos adereços da personagem.
Um leve sorriso brinca de esconder nos gestos da dama a faceta abstrusa (de nós
mesmos?). Em segundo plano vemos a sombra, a tatuagem, os pelos nos braços e na
perna esquerda onde repousa o cachorro – (O cachorro? Estaria ele ajundando a
compor um sentido outro nesta captura?). O braço estendido entrega a mão
máscula e delicada que deseja sutilmente segurar algo que escapa da foto.
Hermaphrodite and Dog in Carnival, 1970.
Talvez seja o olhar
misterioso que encara a câmera que toque a fotógrafa. O rasgo imaginário; o
desmanchar à fantasia; o registro do resto social; as sobras humanas
dissimuladas em carnavais e manicômios ou mesmo as impensadas poses que colocam
em cena uma sociedade nua e que assume um tipo de denúncia quanto as
desigualdades existentes entre aqueles e aquelas que habitam o mesmo contexto
(norte-americano, anos 60 e 70).
Em suma, Arbus
considerava o sujeito da fotografia mais complexo e importante que a própria
fotografia. O legado deixado pela fotógrafa é marcado (e marca ao mesmo tempo)
a monstruosidade humana (mascarada); a sexualidade reprimida; a curiosidade
pelo intrigante; os (seus) desejos silenciados; olhares que atravessaram a
câmera e as perspectivas...
Talvez
Nietzsche diria...
“Não há fatos eternos, como não
há verdades absolutas”.
(Nietzsche)
Adentrar o território
do desejo... Descortinar, tirar a venda dos olhos. De que pontos de vista a
fotografia é interpretada? Nietzsche nos ajuda a perceber que as avaliações e
os processos de julgamento que são atrelados à busca pela verdade, partem de Dionísio,
da razão do corpo para criar e interpretar o próprio conhecimento. Nisto não
podemos nos esquecer de que para ordenar o caos da vida criamos regras para
regular as ações no mundo, entretanto, às vezes nos esquecemos de que somos nós
os criadores dessas regras e nos punimos diante da liberdade de interpretações
e de pontos de vistas diferentes.
Seria este esquecimento
responsável pelas divergências tênues na fronteira que analisa realidade e
ficção? Não seria a existência um tipo de realidade inventada? Estaria a
fotografia exibindo a cena verdadeira ou o fato encenado? A verdade seria uma
grande mentira?
Colocar algo em
perspectiva é considerar a sua não totalidade, seu não absolutismo no mundo. É
voltar ao embate de forças para além das diferenças contidas nas inesgotáveis
perspectivas e recordar que a subjetividade é vontade de poder/potência.
Pensemos, por exemplo, nas perspectivas relacionadas à aparência das coisas. O
que estaria para além das aparências? O valor? Os sentidos? As sensações? As subjetividades?
É possível entender,
portanto, que o perspectivismo nietzschiano quer analisar com mais cautela o
procedimento como acontecem às interpretações de determinados textos –
vida/natureza/humanidade. O desejo está em examinar a origem das perspectivas
para além de representações. Daí que a filosofia de Nietzsche supera a ideia de
absolutismo contida na metafisica.
[...] Nietzsche nos aponta os
pressupostos de uma filosofia que deixaria para trás todas as hipóteses
metafisicas: o mundo da aparência é o único mundo real; o mundo verdadeira da
metafisica é o mundo do não-ser, do nada, idealmente edificado como contraponto
moral do mundo real; o estabelecimento de um mundo verdadeiro pela metafisica
carrega consigo o desprezo da vida e o espirito de vingança contra a vida;
enfim, distinguir um mundo verdadeiro e um mundo aparente é uma expressão da decadence, a que se opõe o espirito
trágico afirmador da vida, a despeito de ela ser problemática e terrível, e a
despeito de ela não ter um sentido em si [...] (SOBRINHO, 2004, p. 27).
Para além de pensar
sobre a dialética ser e não-ser; Nietzsche assinala a existência
de diferenças sobre os graus de aparência. O filósofo parece estar mais
interessado em observar como as interpretações sobre o mundo são conduzidas e
inventadas. A metafisica estaria, no entanto, na contramão do devir e do
sentido trágico da vida. Enquanto o devir se relaciona com a fluidez
perspectivista, a metafisica pelo pensamento lógico não permite o erro e a
aparência. Se na metafisica o devir é dispensável, no perspectivismo o devir é
indispensável.
É preciso pensar o
perspectivismo nietzschiano enquanto uma grande teia de relações sujeito a um
emaranhado de visões superpostoas. Significa que o foco não é fixo e que o
ponto da perspectiva nunca é estanque. O ser humano e o mundo (a aparência das
coisas) estão em relação, portanto, em perspectivas. A perspectiva em Nietzsche
é uma metáfora que parte do campo visual para o conhecimento. Mas não quer
dizer que o conhecimento se dê apenas pelo olho ou pelo olhar. Em Nietzsche, o
perspectvismo é também um jogo de forças que integra os demais sentidos do
corpo. Nisto supera Platão e a ascendência do olhar.
Podemos pensar ainda
que o corpo forma o sujeito e o sujeito está imbricado pela potência da vida e
pelo embate relacional de forças (algo fundamental para compreender o
perspectivismo). A estética trágica, por sua vez, dialoga com o perspectivismo
e deseja perceber as maselas humanas, nossa condição existencial, nosso
posicionamento enquanto ser pensante no mundo. Isto se difere do pessimismo
atribuído ao sentido trágico de Nietzsche sobre o tornar-se o que se é; o renunciar a passividade e o ativar à vida.
Como na fotografia,
morte e vida se relacionam. A morte aprisionada na captura vive nas leituras a
deriva, na pulsão de olhares plurais, ecoa a latência da imagem... O sentido
trágico imposto por Nietzsche vai assumir a vida e suas fragilidades, seus
medos, seus impulsos, mas também seu gozo, seus desejos, seus delírios... o
retorno a Apólo e Dionísio ou a arte como possibilidade de
decifrar o mundo e as coisas.
O pensamento e o
perspectivismo, portanto, fazem menção ao modo como nos tornamos aquilo que somos no mundo ou, em outras palavras, o
conhecimento passaria pela sensibilidade estética (perspectivistica) do próprio
corpo. Ser é devir; rumores,
perspectivas. O que o filófoso propõe é que o conhecimento se dê sob vários
pontos de vista a propósito de um mesmo tema. Conhecer sugeriria criar então
interpretações e realidades sobre a própria vida. (E isso também não acontece
na fotografia?)
Em síntese, o
perspectivismo de Nietzsche evidencia que para se conhecer estamos implicados
em jogos de ação/reação. Ora julgamos e elegemos infindáveis perspectivas
através de nossas lentes oculares, ora voltamos ao erro e a ilusão para
constatar que o mundo é aparência e devir de aparências. Os instintos (forças
em disputa) intensificam a aparência das coisas num sentido relacional e não
absoluto de significações. Temos ainda a plasticidade estética relacionada ao
corpo e sua sensibilidade e sentidos. Daí que o perspectivismo nietchiano no
permite criar novas possibilidades de filosofar sobre a fluidez da vida.
De uma coisa pensamos
estar certos, de que há tantos enigmas na vida, como também na fotografia. A
curiosidade que permanece é imaginar o que Nietzsche diria sobre fotografia e perspectivismo considerando a polissemia que atravessa estes
campos. Mais deleitoso seria encontrar em Nietzsche uma crítica a partir da
fotografia, de modo a contestar a metafisica, e, impulsionar o devir através de
capturas e composições imagéticas...
REFERENCIAS
BIBLIOGRAFICAS
AUMONT,
Jacques. A imagem. Campinas: SP:
Papirus, 1993.
BENJAMIN,
Walter. A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. Disponível em: http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf
KOSSOY,
Boris. Realidades e ficções na trama
fotográfica. São Paulo: Ateliê editorial, 2009.
SOBRINHO,
Noéli Correia de Melo. Friedrich
Nietzsche: perspectivismo e superação da metafísica. Comum. Rio de Janeiro
– v. 9. nº 22 – janeiro/junho 2004.
SOULAGES,
François. Estética da Fotografia: perda
e permanência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
[1] Pedagoga, doutoranda e mestre em Educação pelo
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina. Linha de pesquisa: Educação e Comunicação
(PPGE/ECO/UFSC). E-mail: amandampleite@hotmail.com - Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1813701746666927
[2]
Nietzsche, Oeuvres, IX 24 [15]683.
[3]
Disponível em: <http://www.revistas.ufg.br/index.php/fef/article/view/130/1487>
acesso em 21 de junho de 2012
[4] Nietzsche, Oeuvres, V GS 374,
p. 283.
[5]
Arbus morreu aos 48 anos ao cortar os pulsos e ingerir uma dose de barbitúricos
muito acima da quantidade terapêutica indicada.
[6]
SOULAGES, 2010, p. 214.
[7]
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/cultura/com-a-granada-na-mao/>
acesso 03/07/12.
[8]
idem