Alam Cristian Arezi
Graduado em História (FAFIUV)
Pós-Graduado em Filosofia e Sociologia
(FAMPER)
Resumo:
Esse breve artigo anseia a percepção de encontros entre o
sofrimento psíquico criado nos universos ficcionais em contraponto para com o
que se pode entender como realidade, vista de um tempo presente. A partir de
semelhanças entre o real e o ficcional, se reconhecem verdadeiros vínculos para
com a melancolia, tristeza e solidão; na análise de elementos externos
imaginativos que existem nos livros: “Inferno” de August Strindberg, e “A
Metamorfose” de Franz Kafka.
Palavras-Chave:
Sofrimento; Strindberg; Kafka
Abstract: This brief article looking the perception of
encounters between psychological distress in fictional universes created as a
counterpoint to what can be understood as reality - view of a present tense.
From similarities between real and fictional, to recognize true bonds with
melancholy, sadness and loneliness, the analysis of external elements that
exist in imaginative books: "Hell" by August Strindberg, and
"The Metamorphosis" by Franz Kafka.
Keywords:
Suffering, Strindberg, Kafka
A percepção de que
realmente existe um vazio em cada íntimo é um problema indiscutível se for
tomado, simplesmente, como exemplo disso, todos os conflitos de paradigma
filosófico, médico, psiquiátrico e psicanalítico que podem ser observados ao
longo de toda a história da humanidade, principalmente a partir da idade
moderna. As versões sobre essa ‘coisa’ – que parece refutar uma denominação -,
seja ela chamada de melancolia, tristeza, depressão ou loucura, são corretas e
estão, de certo modo, interligadas conceitualmente nas severas manifestações e
ações dos indivíduos que a possuem. Talvez, realmente faça sentido a afirmação
de que: “a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da criação”
(FREUD, 2010, p. 30) ou ainda, conforme as considerações breves de um
respeitável filósofo que pensou e escreveu que: a felicidade seria apenas um
fenômeno – episódico (VOLTAIRE, 1959).
Fato é que não existem certezas sobre a culpabilidade de um ‘criador’ ou
até mesmo da sociedade nesta ação de separar-se da felicidade. Viver é, pois,
um eterno questionamento sobre a natureza e sobre o meio envolvente – um
processo continuo de conceber ‘coisas’ e de subvertê-las.
Nesse sentido, é
sensata a afirmação ambígua de que o universo da ficção é criado como espaço
inexistente dentro dos patamares da existência, mas, entretanto, se é
perceptível que mesmo dentro desse ‘lugar’ inventado, as tramas muito condizem
com os sentimentos, sensações e emoções de uma realidade – na transfiguração de
entendimento acerca do que é real por quem inventa e detalha minuciosamente
tais mundos ficcionais.
À
parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque
nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade
é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro (ECO,
2010, p. 97).
Mas
o que poderia ser sensato concluir com a leitura do mundo ficcional “Inferno” (1897) de
August Strindberg? Seria coerente atribuí-la o status de um “Elogio da loucura”
[1]
modernista?
Strindberg vivenciou e
relatou a sua percepção de mundo ao escrever “Inferno”. O universo ficcional
que se pode observar em tal livro condiz (e muito) para com um sentido
extremamente empírico de realidade; quase como que a escrita de um diário sobre
o sofrimento psíquico ao qual o autor era submetido – disfarçadamente roupado
com o uso de personagens, um enredo confuso e tempos narrativos desconexos. A
‘melancolia’ de Strindberg pode ser assemelhada a de Saul[2],
devido a sua natureza de culpa e a um ‘estado de espírito’ conturbado por
‘forças’ sobrenaturais.
A
‘loucura’ não existe: existe uma condição humana que é particular em relação à
‘normalidade’, a qual, por sua vez, tampouco existe. Qual é então a
particularidade da condição humana em Strindberg? [...] a relação trágica com a
mãe (de quem Strindberg nunca fala no
livro), que era judia (de seu sangue parcialmente judeu Strindberg também nunca fala); a misoginia (da qual
Strindberg fala de modo incoerente, aproximando-a não se sabe se à ideologia de
sua revolta juvenil ou à ideologia reacionária falida no momento em que escreve
– quarenta e oito anos); o homoerotismo (que o faz viver quase sempre entre
moços) [...]; a necessidade do exílio e do isolamento como gratificação
dolorosa do próprio narcisismo. Tudo isso criou sintomas de esquizofrenia, mas
não é suficiente para explicar a forma psicótica que ela chegou a assumir
(PASOLINI, 2009, p. 223-224).
Portanto,
algumas obras literárias podem ser compreendidas como um modo intencional e
rebuscado de despejo da realidade – medos e insatisfações – num mundo paralelo,
mas que continuará presente e sendo interpretado, logicamente, por leitores
habitantes do ‘mundo real’.
Nesta
perspectiva reflexiva quanto à criação literária e seus autores é, também,
necessário destacar uma das principais obras – e talvez a mais conhecida - de
Franz Kafka: “A metamorfose” (1912). Qual seria o motivo empírico que fez com
que Kafka transformasse seu personagem Gregor Samsa numa coisa lucidamente
indefinida? Como se pode notar ao longo do tempo histórico que Kafka desenvolve
em “A metamorfose”, antes da transformação de Gregor – que também pode ser
entendida como uma transgressão subjetiva – havia uma ‘normalidade’. O
personagem principal da história tinha uma vida estável; um emprego como
caixeiro viajante e uma família tipicamente normal (pai, mãe, irmã) – família
qual, Gregor era responsável por sustentar. Todo esse mundo ficcional criado
por Kafka parece ir, justamente em oposição a ‘normalidade’ exacerbada que
havia na vida de Gregor. Sem motivo aparente, o personagem equilibrado da
história se torna algo que Kafka, por intenção racional, não deixa transparecer
a aparência definida[3]
e, cada vez mais, percebe-se a inutilidade de ‘coisa’ que Gregor virou (KAFKA,
2011).
Em
pressuposto, entende-se que “A metamorfose” é uma metáfora para a solidão e
para a tristeza, na medida em que Gregor aceita a sua ‘nova’ expressão de
aparência e tenta lidar com ela; isoladamente no escuro de um quarto, não
reagindo a perturbante situação em que se encontra e sem proferir qualquer
mínimo questionamento lógico do ocorrido. Talvez, a ‘coisa’ na qual Gregor se
transformou seja um eufemismo de um pensamento conservador por parte de Kafka,
já que, alguns fatos sobre a vida do autor levam a crer que ele se esquivava de
mudanças quanto ao casamento – preferia, para si, a tristeza e a solidão de seu
personagem metamorfoseado.
Kafka
chegou a participar da comunidade judaica, até de manifestações socialistas,
mas foi sempre um solitário. Apesar de quatro noivados, apesar de um punhado de
amigos [...] Kafka foi avesso à convivência. Embora tenha morado boa parte da
vida com sua família, o autor sempre viveu sozinho. Kafka não era nada e era
tudo ao mesmo tempo (BACKES, 2011, p. 8).
Assim,
é eloquente a assimilação entre solidão e tristeza em alguns autores
ficcionais. Parece natural que o isolamento e a melancolia façam parte de
processos criativos complexos, na intenção de se resgatar um objeto
inconsciente que esteja perdido ou que não exista, transpondo a imagem dessa
perda em um consciente de universos mágicos manipulados em busca de satisfação[4].
REFERÊNCIAS:
BACKES, M. Prefácio. In: KAFKA,
F. A metamorfose. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
ECO, H. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
FREUD, S. O Mal-estar na civilização - novas
conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
KAFKA, F. A metamorfose. Porto Alegre: L&PM,
2011.
PASOLINI, P. Posfácio. In: STRINDBERG, A. Inferno. São Paulo: Ed. 34, 2009.
STRINDBERG, A. Inferno. São Paulo: Ed. 34, 2009.
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. São Paulo: Atena editora, 1959.
[1] Alusão ao livro de Erasmo de Rotterdam
(1457-1536) – publicado originalmente em 1508.
[2] Personagem bíblico do antigo testamento.
Sua ‘aparição’ data-se por volta de 900 a. C.. Ainda de curioso sobre tal
personagem é o fato de que lhe é atribuído a característica de melancólico, algo
entendido como anacrônico, pois, o termo melancolia só seria ‘inventado’
séculos mais tarde por Hipócrates, na Grécia Antiga – Ref. ao livro de Moacyr Scliar:
“Saturno nos trópicos”.
[3] A imagem que se pode ter de Gregor Samsa
após ‘a metamorfose’ é controversa; o personagem assemelhasse a um inseto,
possuindo muitas perninhas e um tipo de casco. Entretanto, Kafka em momento
algum do texto afirma que seu personagem é um inseto. A narrativa
abstracionista do autor sobre o personagem induz a imaginar Gregor
metamorfoseado de diferentes maneiras – sendo que nenhuma pode ser provada.
[4] Esta reflexão, em particular, sobre o
resgate de um objeto perdido refere-se a como Sigmund Freud distinguia a
‘melancolia’ do luto. Entretanto, é importante salientar que Freud não toma
como referência ‘universos ficcionais’, muito menos indaga a questão sobre
ligações entre realidade e ficção de autores e seus escritos – Sigmund Freud em
“Luto e Melancolia”, 2011.