Maytê Regina Vieira
(MESTRANDA UDESC[1])
RESUMO
Adaptações
literárias sempre foram utilizadas pelo cinema e sempre geram discussões a
respeito da fidelidade da obra. Afinal, o livro é ou não é melhor que o livro?
Depende do livro, depende do filme. O fato é que literatura e cinema são
linguagens diferentes e não há como transpor um livro exatamente como escrito
para as telas e vice-versa. Entrevista
com o vampiro publicado em 1976 gerou uma adaptação homônima mais de 20
anos depois, em 1994, mesmo com a distância temporal, filme e livro mantiveram
sua similaridade e lançaram um marco, em suas épocas, na forma de representação
do vampiro que são seguidas na atualidade pelos novos filmes, livros e séries
televisivas, além disto, lançaram questões que ainda buscamos responder.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Cinema. Literatura.
O LIVRO OU O FILME?
O cinema sempre se serviu da
literatura como provedora de roteiros, por isto uma generosa parte dos filmes
são adaptações de livros, sejam eles romances, ficção, terror, suspense. Lançado
no cinema em 1939 ...E o vento levou é
considerado um grande clássico e foi adaptado da obra de Margaret Mitchell
publicada também em 1939. A obra O senhor
dos anéis escrita por J. R. R. Tolkien entre os anos de 1937 e 1949 foi adaptada
e lançada nos cinemas em forma de trilogia entre os anos 2001 e 2003; após isto
o livro se tornou um grande sucesso de vendas em todo o mundo.
A mais recente onda de adaptações
envolve as histórias em quadrinhos – entre elas Thor, Capitão América, Lanterna Verde, Homem de Ferro – e livros de ficção que atingem o público infanto
juvenil como as aventuras do bruxo Harry
Potter escrita por J. K. Rowling entre 1997 e 2007 e adaptado para as telas
entre 2001 e 2011 tornando-se sucesso como filme e como livro. Estas poucas
obras que apontamos comprovam que, mais do que nunca o cinema tem usado a
literatura em suas mais diversas formas.
Brito (2006, p. 148) defende uma
vantagem da adaptação cinematográfica é despertar o interesse na leitura levando
uma nova camada a buscar o livro após a exibição e sucesso como filme, gerando
a procura pelo livro; há também os filmes que são baseados em livros
desconhecidos que se tornam grandes best
sellers na esteira do filme ou um livro de sucesso é transformado em filme
por ser um best seller.
Entretanto
as adaptações sempre foram alvo de controvérsia. Em geral, saímos do cinema
comentando que o livro foi melhor que o filme. Contudo, o erro inicial é
visível no próprio conceito de adaptação. Em todos os dicionários que
procuramos o conceito de adaptação é o mesmo: mudar, transformar em algo
diferente do original, modificar. Para Garanha (2007, p. 26) a adaptação deve
recriar, deve fazer nascer um novo objeto filmado, de um objeto escrito. Sendo
assim, porque esperamos uma transposição exata das páginas na tela?
São gastos
milhões para transformar as palavras de um livro em imagens, enquanto o leitor
faz isto gratuitamente ao ler, nisto já temos uma primeira dificuldade; cada
leitor imagina o cenário e os personagens a sua maneira, baseado em seus
critérios, enquanto no filme a equipe de produção que decide como devem ser os
ambientes, as cenas, quem devem ser os atores, tudo de acordo com seus próprios
critérios.
De acordo
com Brito (2006, p. 143-144) as adaptações cinematográficas de romances superam
em número a quantidade de roteiros originais e sempre causaram controvérsias,
as criticas sempre foram imensas e em sua maior parte por conta da dificuldade
da imagem em passar os sentimentos que no livro são tão descritivos. Ele
sustenta que estas críticas escondem desprezo pela imagem visual e suas
representações.
O que não
podemos deixar de lado é que literatura e cinema e são linguagens diferentes e nisto
reside a dificuldade em fazer uma transposição fiel de uma obra escrita para as
telas, não existe possibilidade de fidelidade por inúmeros motivos.
Um problema, geralmente é o
tamanho: como transformar um livro de 500, 1000, 2000 páginas em um filme com
cerca de 2 a 3 horas de duração? Torna-se inevitável que sejam feitos cortes,
reduções, supressões, condensações. Os roteiristas normalmente excluem
descrições longas de ambientes ou paisagens, reflexões abstratas dos
personagens ou transformam dois, três personagens em um só, fundindo suas
características.
E tão
importante quanto isto, as descrições de ambientes, cenários, roupas,
paisagens, detalhes como mobílias e ornamentos estão na cena do filme como
estão no livro, a diferença é que são mostradas junto com o personagem, no
desenrolar da cena; ao serem retirados da imaginação do leitor para serem
postas a ver ao espectador, podem passar despercebidas pela velocidade própria
da imagem em movimento. Um filme não é pausado para que o espectador observe
cada detalhe, ele tem um ritmo próprio.
É inegável a influência da
literatura no cinema. Vários objetos e gêneros cinematográficos têm suas
origens nela, como os monstros dos romances góticos e fantásticos, entre eles
os vampiros, que foram transformados por ela durante o século XVIII e XIX e apropriados
pelo cinema do século XX.
COMO A LITERATURA APROVEITOU AS LENDAS
Conforme Argel e Moura Neto
(2008, p. 20), os vampiros originários das lendas não seriam convidados por
ninguém para o convívio em sociedade. Eram seres repugnantes, cadáveres
reanimados, inchados, vermelhos, com unhas sujas e compridas, cheirando mal e,
em alguns casos, com o corpo em princípios de decomposição. Eram mortos vivos e
não tinham nada de atraente ou sedutor, coube à literatura modificar isto. O primeiro poema moderno de vampiros
foi escrito por Heinrich August Ossenfelder e se chama Der Vampir.
Publicado em 1748, a história é narrada pelo vampiro que conta como invade o
quarto de uma jovem cristã e a seduz, enquanto sua mãe a educa nos preceitos do
cristianismo. Nele o vampiro é colocado como o antagonista da inocência e dos
princípios religiosos cristãos. Bem como é incluída a sensualidade que se torna
inerente ao vampiro.
Em 1797 é publicado a Noiva
de Corinto, um poema de Goethe, o autor de Fausto, inspirado nos antigos
escritos de Flávio Filostrato[2], filósofo grego que conta
a história de Menipo e sua noiva, uma empusa – uma variação do vampiro nas
lendas gregas. No poema de Goethe também é utilizada a temática religiosa, pois
a noiva é uma morta que volta para seduzir jovens depois de seus pais haverem
trocado de religião, substituindo os deuses gregos pelo deus único cristão. (ARGEL
E MOURA NETO, 2008 p. 22)
Estes são apenas alguns dos
escritos literários, não teríamos como descrever todos, portanto nos limitamos
a alguns que são considerados em consenso como os primeiros a surgir dentro da
temática vampírica e dentro da poesia. Para fechar, em 1780 é publicado Christabel
por Samuel Taylor Coleridge, considerado o primeiro poema sobre vampiros em
inglês.
Segundo
Costa (2002, p. 12) somente em fins do século XVIII e início do XIX é que no
encontro do modelo milenar com a estética da época – a dos contos de terror, da
gothic novel que nos deu os grandes clássicos como Drácula, O médico e o monstro
e Frankenstein, além das telas de
Goya e os contos e poemas de Goethe – o vampiro ganhou o status literário.
No ano de 1819 foi publicado The
Vampyre, um conto escrito por John Polidori, inspirado em Lord Byron, seu
patrão, por quem nutria uma secreta antipatia, dando origem a Lord Ruthven, um
aristocrata viajante “de olhos cinzentos e frios e tez lívida, que parece
querer provocar angústia nas criaturas mais frívolas” (LECOUTEUX, 2005, p. 20),
atraia mulheres inocentes para se alimentar de seu sangue, tem força sobre
humana e à luz da lua pode curar-se. É considerado por muitos como a base da
ficção moderna sobre os vampiros, foi a primeira obra completa de ficção sobre
vampiros escrita em inglês.
Polidori reuniu alguns elementos
que seriam utilizados mais tarde, num texto literário coeso, transformou o
monstro dos relatos folclóricos num aristocrata sedutor e perverso, um ser que
podia conviver em sociedade e escolher suas vítimas nos mais diversos países
por onde viajava. “[...] estabeleceu de uma vez por todas o protótipo para o
vampiro da literatura, do teatro e posteriormente do cinema.” (ARGEL E MOURA
NETO, 2008, p. 28).
Alguns
anos depois de 1845 a 1847, é publicado Varney,
the Vampire do inglês James Malcolm Rymer, em publicações de folhetins
seriados que era uma expressão de cultura de massa. Na Inglaterra daquele
período estes folhetins atingiam a classe trabalhadora e os vampiros deixaram
de ser um produto somente ao alcance de poucos. Varney também possuía alguns elementos de Polidori. Pelo grande
público que atingiu acabou por transmitir e fixar os estereótipos que ficaram
ligados ao vampiro, como a força sobre humana, os poderes hipnóticos. Mas
contribuiu também “com a característica mais contundente ao vampiro: seus
longos e afiados caninos que perfuravam o pescoço das vítimas para obtenção do
sangue.” (BRITES, 2007, p. 15)
Houve mais
alguns acréscimos fundamentais à imagem do vampiro, entre eles o conto Carmilla,
de Sheridan Le Fanu, publicado em 1872 e que trazia a ambientação em uma
atmosfera gótica e, uma grande mudança: o vampiro era uma mulher. Outro
enriquecimento essencial foi dado por um autor anônimo que escreveu o conto O
estranho misterioso em 1860, foi através dele que surgiram outros aspectos
indissolúveis da imagem vampírica: seu personagem dormia durante o dia em um
caixão numa cripta da capela de seu velho castelo em ruínas, não comia e não
bebia com os humanos, havia sido uma pessoa má e cruel em vida e dominava os
lobos ferozes.
Mesmo tendo sido produzidos uma
série de histórias e contos de horror no século XVIII, poucos foram sobre
vampiros, numa comparação com as outras temáticas sobrenaturais e, menos ainda,
em comparação com a produção literária atual. A mudança viria em 1897 quando o
vampiro finalmente se tornaria imortal pela pena de Bram Stoker. Conhecendo as
características dos vampiros anteriores, ele juntou todos os ingredientes em
seu vampiro, que ser tornou o padrão para todos os posteriores. (BRITES, 2007,
p. 16).
Para completar, Stoker
acrescentou mais algumas numa mistura de conhecimento das lendas antigas e
invenção. Ele criou o vampiro vilão, um ser diabólico, ligado a Satã e temente
a Deus e aos símbolos católicos, é a partir dele que o vampiro passa a temer o
crucifixo. Ele cria também a sensualidade no relacionamento entre o vampiro e
sua vitima, o elo profundo que se forma com a vítima que bebe o sangue do
vampiro.
De acordo
com Melton (2003) igualmente são criações suas o fato do vampiro precisar
descansar num caixão com sua terra nativa, a necessidade de convite para entrar
nos locais privados (residências), a habilidade da transformação em morcego e
pequenos animais, em névoa, o controle das tempestades e não ser refletido em
espelhos. Tudo isto criou o conde Drácula, o Príncipe das Trevas, inspiração do
vampiro moderno. A partir dele centenas de romances, contos e histórias em
quadrinhos desenvolveram o conceito de vampiro. A literatura moldou e transformou o monstro até o
século XIX. A partir do século XX o cinema assumiu o processo de criação do
vampiro e consolidação da imagem do vampiro, transformando-o sempre e cada vez
mais.
Em 1922, o cineasta alemão Friederich Murnau adapta a
obra de Stoker – por motivos de direitos autorais – e a lança com o nome de Nosferatu, retomando a imagem do antigo
vampiro horripilante e medonho anterior a literatura, para causar um impacto
diferenciado. Lembremos que os recursos da época, tais como película, cores (no
caso, preto-e-branco), cenário, e dinâmica de produção influenciavam
diretamente a construção da trama, criando os efeitos de impacto psicológicos
necessários à caracterização de um filme do gênero Terror que é como
geralmente são classificados os filmes sobre vampiros. Ele se desprendeu do
gênero fantástico que incluía narrativas sobre eventos sobrenaturais e passou a
designar os filmes em que aparecem vampiros, lobisomens, monstros, possessões
demoníacas, etc. Os roteiros deles são baseados e roteiros macabros e
aterrorizam pelas maquiagens e efeitos especiais utilizados a partir dos anos
1960. O gênero é uma ferramenta do cinema - oriunda da
literatura – usada para a classificação de filmes. Ao dividir ou determinar um
filme dentro de um determinado gênero o público pode fazer a escolha de que
filme quer assistir e saber que dentro dele haverá um tipo específico de
narrativa, de tema e qual final ele pode esperar.
Nosferatu foi produzido no período
entre guerras, em que a sociedade européia estava se recuperando deste trauma.
Conforme Buican (1993, p. 131-133), o filme superou o horror da experiência
apavorante da guerra recente. O personagem, Conde Orlock (Drácula), é uma força
sobrenatural contra a qual nenhuma barreira ou obstáculo pode. Ele vence a
ciência do professor Bulwer (Van Helsing),e é inútil tentar bloquear seu
caminho. Chegando a Winsburg, ele dissemina a peste na cidade, e somente a luz
do sol é capaz de destrui-lo - ainda assim por um descuido, pois ao tentar
atacar Helen (Mina), o vampiro perde a noção do tempo e é surpreendido pelo
amanhecer. A dicotomia da luz contra a escuridão, do bem contra o mal, é
evidente.
As adaptações na imagem do vampiro surgiriam em
produções das décadas de 1950 e 1960, nas quais os vampiros têm um aspecto
sedutor, mas ainda são criaturas malévolas. Os vampiros destes filmes, como o Drácula (1931), com Bela Lugosi – ator
que introduziu a capa nos figurinos do vampiro e que, por ironia, ele próprio
usava cotidianamente – são os protagonistas centrais da película, mas não são
os heróis. O mesmo se dá com o Drácula
(1958) representado por Christopher Lee, em que o vampiro continua sendo
representado por uma figura monstruosa, animalesca, que não fala, tem medo de
símbolos cristãos e somente pratica atos malévolos – seus poderes, no entanto,
são limitadíssimos, em relação a outros vampiros.
Em Drácula, o príncipe das trevas de 1966, o conde retorna dez anos
depois de ter sido destruído por Van Helsing. Na visão de Buican (1993, p.
131-133) o filme traz um elemento histórico interessante: quando, para reviver
Drácula, seu servo usa um homem para lhe dar um banho de sangue, ao estilo da
condessa húngara Elizabeth Bathory, o cineasta inclui – mas também funde –
elementos de narrativas tradicionais, porém, de fontes diferentes.
Drácula,
dirigido e produzido por Francis Ford Copolla, em 1992 foi considerada a versão
mais fiel ao romance escrito por Bram Stoker em 1897. Copolla manteve do
romance o combate entre o bem e o mal. O filme começa com a danação de Drácula,
que ao retornar da guerra encontra sua noiva morta. Como ela havia cometido
suicídio por achar que ele havia perecido em combate, sua alma está condenada a
não ter descanso, segundo a tradição católica ortodoxa. Drácula se revolta e
enfia a espada na cruz, amaldiçoando Deus e se autocondenando às trevas. Alterando
a lenda original, Copolla mostra Vlad, o Empalador (personagem histórico
mencionado por Stoker) como um homem perseguido pelo destino.
Em 1976 a escritora Anne Rice lança
a obra Entrevista com o vampiro que é
adaptado em 1994 para o cinema sob a direção de Neil Jordan. Lançando uma nova
luz sobre o vampiro tradicional, Rice transforma-o novamente: ele pode
desenvolver paixão e compaixão por sua vítima. Louis, o personagem principal,
se inspira em outros vampiros e procura o conhecimento de si e do mundo para se
beneficiar. Mantendo, em alguns casos, a sua aura negra sobrenatural, os
vampiros parecem se banalizar, desaparecer na escuridão comum dos mortais.
Ao invés de um castelo místico na Transilvânia, se
fundem nas ruas burguesas das grandes cidades, onde muitas vezes são ignorados.
Esta vulgarização dos vampiros certamente tem relação com a banalização da
violência, dos massacres, dos genocídios comuns e transmitidos pela televisão
em todo o mundo.
Em Entrevista
com o Vampiro, os vampiros são figuras atormentadas, belas, e dotadas de
sentidos morais – este último elemento, algo absolutamente ausente na
literatura vampiresca. O “vampiro-herói”
Louis é atormentado por sua consciência moral, tendo como pano de fundo os
séculos por que passa, acompanhando a transformação das sociedades e dos
costumes até a contemporaneidade em que os vampiros são esquecidos, não causam
medo e são considerados seres míticos e personagens de fábulas. Para resgatar
sua identidade e mostrar sua existência, ele decide dar uma entrevista a um
jornalista contando sua história, fato este que dá nome ao filme. Lefait (2005)
compreende a exposição da figura vampírica como uma metáfora da necessidade de
exposição do indivíduo na contemporaneidade, meio de auto-afirmação na
sociedade.
O século XIX descobriu o gosto pela literatura
fantástica que demonstra as questões existenciais dos homens, sua obsessão pelo
desconhecido e pela morte; a literatura fantástica, considerada um subgênero
fora dos cânones da considerada arte literária pela academia em geral, sempre
demonstra as inquietações de sua época e exerce um grande fascínio pelo público
em geral.(JARROT, 1999, p.11).
Desde o século XIX os
romances consagrados ao vampiro nunca cessaram de ser escritos, sobretudo
depois do sucesso de Anne Rice em 1976 - sucesso consagrado pela adaptação
cinematográfica feita por Neil Jordan para Entrevista com o vampiro (1994) - só
aumentaram. Neste fim do século XX, os romances são numerosos em resposta a uma
forte midiatização dos vampiros como conseqüência da adaptação do romance
Drácula (1897) de Bram Stoker por Francis Ford Coppola em 1992 e a celebração
do centenário do famoso romance."(JARROT, 1999, p. 13)
O vampiro tradicional foi
modificado pela literatura do século XIX e o cinema no século XX difundiu o
modelo literário; o resultado é comprovado pelos milhares de livros, séries
televisivas, filmes e outras produções que tem o vampiro como objeto.
ENTREVISTA COM O VAMPIRO: O LIVRO E O FILME
O livro Entrevista com o vampiro foi o primeiro de uma série denominada As crônicas vampirescas nela a escritora
Anne Rice modificou a imagem que os vampiros tinham até então. A maior parte
dos livros tratava os vampiros como antagonista, ele é sempre o vilão que deve
ser detido, uma força do mal que deve ser derrotada, num maniqueísmo sempre
presente e absoluto.
Anne Rice rompe com isto ao criar um
romance onde o vampiro é o protagonista, ele não é mais aquele de quem se fala,
mas aquele que fala. A narrativa é feita de maneira autoconsciente, a história
é contada do ponto de vista do vampiro, de sua perspectiva. Louis, o vampiro
protagonista quer contar sua história para reviver seu passado e refletir sobre
ele e suas decisões. Produzido em 1994
por Neil Jordan, o filme manteve o mesmo nome do romance e o mesmo enredo,
inclusive a adaptação do livro para o filme contou com o auxílio da própria
Anne Rice.
Entrevista com
o vampiro trata
de Louis de Pont Du Lac, um vampiro solitário com cerca de 200 anos. Ele decide
dar uma entrevista a um repórter iniciante que o segue pelas ruas da cidade de
San Francisco. Nela ele fala de sua existência como um morto-vivo, suas
angústias e apreensões, demonstra ser uma criatura sempre em busca de
entendimento de si e do mundo a sua volta. Foi transformado por Lestat de Liancourt,
um vampiro tipicamente literário, que não tem moral, nem qualquer preocupação,
vive apenas para satisfazer seu desejo por sangue e diversão. Em seu caminho,
eles encontram Claudia, uma órfã que transformam numa criança vampiro. Louis,
Lestat e Claudia têm finais diferentes e sua convivência se passa entre amor e
ódio, frustrações e tentativas de fazer parte do mundo passando despercebidos
entre os mortais através dos séculos, vendo a sociedade modificar-se e buscando
seu espaço nela.
O livro inicia com o vampiro Louis,
protagonista da história, na cidade de San Francisco (Estados Unidos) nos dias
contemporâneos a sua publicação, ele não menciona datas, mas fala no presente.
Considera-se um ser vazio e sem propósito e ao encontrar um repórter em um bar,
decide lhe contar sua história. Ele inicia pelo ano em que foi transformado em
vampiro, 1791 – podemos supor que sua narrativa cobre uma passagem de 200 anos.
O filme começa com uma tomada aérea
da cidade e de sua ponte durante a noite, passando por um letreiro que indica o
porto de San Francisco, deixando clara a intenção de situar o espectador no
espaço da cidade. A câmera parece sobrevoá-la, aterrissando em uma calçada e,
após alguns passos entre a multidão, parece subir pela parede em direção a um
quarto do hotel San Martin. A impressão é que o espectador está sobrevoando a
cidade, entrando pela janela do hotel e se pondo num canto do quarto, para
observar a conversa de Louis e do repórter como se estivesse dentro do quarto.
Temos uma indicação mais clara do ano numa cena próxima ao final do filme
(01:42:53); Louis está saindo de uma sessão noturna no cinema e o cartaz indica
Tequila Sunrise que foi lançado em
1988 – são os mesmos 200 anos.
O livro tem cerca de 300 a 400 páginas, conforme a
edição e foi originalmente lançado em 1976. A história foi dividida em quatro
partes diferenciadas pelo espaço: New Orleans, Europa Central e Oriental, Paris
e San Francisco. Já o filme tem duração de 122 minutos e é possível observar
três partes distintas: New Orleans, Paris e San Francisco.
Algumas partes do livro foram suprimidas, assim como
alguns personagens, porém a essência continuou a mesma: um vampiro que não é
mais somente um ser maligno, é também parte da sociedade em que vive, tem
dúvidas, receios, medos, frustrações. Ao ler o livro ou ao assistir o filme o
leitor/espectador se identifica com o monstro, pois ele foi humanizado.
A trama é centrada em Louis, um vampiro que foi
transformado em 1791. Ele era um fazendeiro em New Orleans responsável pelo
sustento de sua mãe, sua irmã e irmão mais jovens. O irmão, religioso convicto,
desejava se tornar padre e ir para a França lutar contra o ateísmo e as
conseqüências da Revolução Francesa – lembremos que esta parte da história
acontece em 1791 e a queda da Bastilha, marco da Revolução, ocorreu em 1789 –
ao ter sua idéia rejeitada por Louis, seu irmão se suicida. Sentindo-se culpado
pela morte do irmão, ele deseja morrer também e faz o que pode para atrair a
morte, até que atrai o vampiro que o transforma, Lestat.
Passei a beber o tempo todo e a ficar em casa o mínimo
possível. Vivia como um homem que queria morrer, mas não tinha coragem para
fazê-lo sozinho. Andei em ruas e vielas escuras, estava sempre em cabarés.
Escapei de dois duelos, mais por covardia e apatia, pois na verdade queria ser
morto. E, então, fui atacado. Poderia ter sido qualquer um – eu era um convite
para marinheiros, ladrões, maníacos, qualquer um. Mas foi um vampiro. (RICE,
1992, p. 19).
No filme a situação é a mesma, a
diferença é que são retirados seus familiares e quem morre é sua esposa e seu
filho durante o parto. Ao invés da culpa, o desespero com resultados similares:
a desistência da vida.
Louis passa todo o seu relato se
dizendo amaldiçoado, se perguntando se é uma criatura de Deus ou do diabo,
tentando entender seu lugar na Criação. O temor dos vampiros aos símbolos
religiosos é iniciado por Bram Stoker em Drácula,
até então não era relevante. Seguindo Stoker os romances posteriores e logo
após o cinema passaram a tratá-los como seres amaldiçoados por Deus, tementes à
ele que não podiam entrar em igrejas ou locais sagrados, eram repelidos por
crucifixos ou pelo sinal da cruz. (MELTON, 2003, p. 185). Anne Rice foi uma das
primeiras a modificar esta questão, seus vampiros não têm problema religioso,
pelo contrário. Há um momento em que Lestat[3] encontra Louis num esgoto
se culpando por ter que matar seres humanos para sobreviver e o consola com uma
visão muito própria sobre o mal, Deus e os vampiros.
- O mal é um ponto de vista - sussurrava agora. - Somos imortais. E o que
temos à nossa frente é o rico festim que a consciência não pode julgar e que os
homens mortais não podem conhecer sem culpa. Deus mata, assim como nós;
indiscriminadamente. Ele toma o mais rico e o mais pobre, assim como nós; pois
nenhuma criatura sob os céus é como nós, nenhuma se parece tanto com Ele quanto
nós mesmos, anjos negros não confinados aos parcos limites do inferno, mas
perambulando por Sua terra e por todos os Seus reinos. (RICE, 2003, p. 88).
Toda a
construção da narrativa se concentra no sentimento de culpa que Louis carrega;
este é o grande diferencial de Entrevista
com o vampiro. Em alguns pontos o filme atenua falas e comportamentos. O
próprio Louis, no filme, decide se alimentar apenas do sangue de animais para
não matar seres humanos, pois respeita a vida e não acha que possa tirá-la, ao
contrário de Claudia e Lestat que não só se alimentam de humanos, como os
envolvem.
Pois assim era. Alimentava-me de estranhos. Aproximava-me somente o
suficiente para perceber a beleza pulsante, a expressão única, a nova e
apaixonada voz e depois matava antes que aqueles sentimentos de repulsa
pudessem se elevar, aquele medo, aquela pena.
- Cláudia e Lestat
conseguiam caçar e seduzir, passar muito tempo em companhia da vítima
ludibriada, saboreando o esplêndido humor de sua amizade traiçoeira com a
morte. Mas eu ainda não conseguia suportar isto. E assim, a população
crescente, era, para mim, uma floresta na qual estava perdido, e incapaz de
parar, rodopiando bem rápido para afastar pensamentos ou dor, aceitando
repetidamente o convite da morte. (RICE, 1992, p. 88).
No livro,
entretanto, Anne Rice é mais livre em suas palavras, Louis se alimenta de
humanos e diz que os considera como alimento apenas, assim não tem culpa. Ele
não é totalmente mal, como também não é totalmente bom, age dentro de suas
próprias regras. E anda pelo mundo como se este lhe fosse indiferente. De certa
forma, a forma como os personagens se comportam no livro é uma interessante
metáfora do período em que ele foi escrito, um momento em que o mundo estava em
plena transformação, os valores estão sendo testados, as revoluções juvenis e
femininas, as guerras haviam quebrado as velhas regras e normas. A vida já não
era tão regrada e tão previsível, como fica bem claro na leitura e no filme.
Ao terminar
de ler o livro ou ver o filme entendemos que é uma forma totalmente nova de
mostrar os vampiros, antes apenas monstros sugadores de sangue, agora seres que
buscam seu lugar e que também tem seus próprios problemas. A humanização do
vampiro com a identificação concomitante do leitor põe alguns questionamentos:
será que a sociedade atual aceita melhor as diferenças ou foi o homem moderno que
se tornou monstruoso? (JARROT, 1999). Ainda buscamos esta resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A idéia
inicial deste artigo era escrever somente sobre adaptações, por fim a escrita
tomou um ritmo próprio e acabou se transformando, como o próprio livro/filme
analisado. O fato é que Entrevista com o
vampiro suscita muitas interpretações diferentes e uma infinidade de pontos
para serem analisados: a falta de sexualidade, muito interpretada como
homossexualidade entre os vampiros; a transformação de uma criança em vampiro e
seu conseqüente aprisionamento no corpo de uma criança. No filme, Claudia é
representada como uma menina de 10 anos, após 30 anos ela se dá conta que sua
mente amadureceu, seu corpo não, portanto jamais será uma “mulher”
efetivamente. Já o livro a retrata com 5 anos, tomando consciência de sua
condição aos 65; a busca pelo sentido da existência, por um deus ou um diabo
que justifique a vida; a contraposição clara entre o novo e o velho
representados por Lestat e Louis pois, após 200 anos Louis está totalmente
inserido no mundo contemporâneo, Lestat esta escondido com medo da luz noturna
e da modernidade ainda vestindo seus velhos trajes do início do século XIX;
entre outros tantos pontos.
- Os anos transcorreram assim. Anos, anos e anos. Mas precisei de muito
tempo para que me ocorresse algo óbvio a respeito de Cláudia. Pela sua expressão,
suponho que você já adivinhou e me pergunto por que eu demorei tanto a fazê-lo.
[...]
- O corpo dela! - disse o rapaz. - Nunca cresceria! O vampiro assentiu.
- Deveria ser um demônio
infantil para sempre - disse, a voz baixa, como se pensasse a respeito. - Assim
como continuo a ser o mesmo rapaz da época em que morri. E Lestat? O mesmo. Mas
sua mente era uma mente de vampiro. E fui obrigado a ver como se aproximava da
vida adulta. Começou a falar mais, apesar de nunca deixar de ser uma pessoa
introspectiva que podia me ouvir pacientemente durante uma hora sem me
interromper. E cada vez mais seu rostinho de boneca parecia possuir dois olhos
totalmente adultos e conscientes, e a inocência parecia perdida em algum lugar,
junto com brinquedos esquecidos e a perda de uma certa paciência. [...]
Transformara-se numa sinistra e poderosa sedutora, com sua voz tão clara e doce
como sempre, apesar de ter uma ressonância que às vezes era tão adulta e seca e
que surpreendia. (RICE, 1992, p. 130).
O fato é que Anne Rice, de
maneira mais visível no livro que no filme, quebrou com as regras dos chamados clichês
melodramáticos da literatura que perduram desde o século XVIII. Estes eram
baseados no maniqueísmo total: o combate entre o bem – representado pelo grupo
virtuoso em busca da felicidade – e o mal representado pelo grupo sem
escrúpulos em busca do benefício próprio; cenários suntuosos; vinganças;
mortes; maldições e finalmente, a vitória da virtude. (BOTTON, 2007, p. 98).
Em Entrevista com o vampiro não há redenção
pela virtude, Louis se considera vazio, sozinho, um estranho a vagar num mundo
onde não pode ser aceito; não há maniqueísmo absoluto, apesar de se compadecer
dos seres humanos e ter compaixão, ele não deixa de matá-los para garantir sua
sobrevivência e, principalmente, não há final feliz. Em ambos, filme e livro,
após deixar Louis, o repórter é atacado por Lestat que busca um novo
companheiro para sua existência. O filme representou este final de forma bem
sugestiva: ao atacar o repórter que esta dirigindo pela ponte de San Francisco,
Lestat toma a direção do carro e liga o rádio. Enquanto ele atravessa ponte a
câmera vai se afastando cada vez mais e ouve-se a música Simpathy for the devil da banda Rolling Stones[4]. Em compensação, no livro
o final também é sem nenhuma vitória, mas é o repórter que vai em busca de
Lestat.
- [...] Queria um lugar que não tivesse nada familiar Nada mais
importava. E este é o fim. Não há mais nada.
O rapaz continuou sentado e mudo, fitando o vampiro. [...]
- Não - falou, respirando fundo. E depois repetiu mais alto. - Não!
[...] Não tinha de terminar assim! - disse o rapaz, inclinando-se para a
frente.
[...] - Digo e repito que não poderia ter terminado de qualquer outro
modo.
- Não posso aceitar - disse o rapaz, cruzando os braços no peito e
sacudindo a cabeça enfaticamente. - Não posso!
[...]
- Não vê em que transforma tudo? Foi uma aventura que jamais conhecerei na
vida! Fala de paixão, de saudades! Fala de coisas que milhões de nós nunca experimentarão
nem chegarão a compreender. E depois diz que termina assim. Digo-lhe... - agora
estava na frente do vampiro, as mãos estendidas.. - Se me desse este poder! O
poder de ver, sentir e viver para sempre!
Os olhos do vampiro começaram a se arregalar lentamente, seus lábios se entreabrindo.
- O que? - perguntou baixo. - O quê?
[...] - Transforme-me agora num vampiro! - falou, enquanto o vampiro o
fitava estupefato. [...]
- Deus - balbuciou o vampiro e, se afastando, quase fez o rapaz perder o
equilíbrio [...]
- Fracassei - suspirou, sorrindo calmamente. - Fracassei inteiramente...
[...]
[...] E rapidamente o rapaz anotou:
- Lestat... perto da avenida St. Charles. Casa velha em urnas...
vizinhança pobre. Procurar grades enferrujadas. [...] (RICE, 1992, p. 320).
Bram Stoker
criou o mito do vampiro moderno e deu nome a criatura: Conde Drácula, contudo foi Anne Rice que colocou as bases para os
vampiros que fazem parte da atual onda de filmes, séries televisivas e livros,
eles são jovens, belos e apaixonados.
A literatura e o cinema incorporaram
o vampiro ao imaginário moderno, o fascínio exercido por eles tem raízes na sua
peculiar habilidade de fugir à morte e driblar o tempo, na maior parte dos
casos eles mantêm a juventude e a beleza eternizadas. Seres com incrível
capacidade de se adaptar às mais diversas épocas, os vampiros fazem com que
nosso interesse se mantenha sempre oscilando entre altos e baixos níveis, mas
nunca desaparecendo totalmente. A possibilidade de ter vida, juventude e beleza
eternas é tão sedutora quanto assustadora.
REFERÊNCIAS:
ARGEL, Martha e MOURA NETO, Humberto (org.). O vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2008.
BOTTON,
Fernanda. Melodramaticamente Almodóvar. In: HÖFFLER, Angélica (org.). Cinema, literatura e história. Santo
André: UniABC, 2007. p. 98.
BRITES, Claudio. (Org.) O livro negro dos
vampiros. São Paulo: Andross, 2007. p. 15.
BRITO,
João Batista de. Literatura no cinema.
São Paulo: Unimarco, 2006. p. 148.
BUICAN, Denis. Les métamorphoses de Dracula: l’histoire et la légende. Paris: Editions du Félin, 1993. p. 131-133.
COSTA, Flávio Moreira da. (Org.) 13
melhores contos de vampiros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
ENTREVISTA COM O VAMPIRO. Título original: Interview with the vampire. Direção: Neil Jordan. Produção: David
Geffen e Stephen Wooley. EUA: Geffen Pictures, 1994. 1 DVD (122 min.). son.,
color.
GUARANHA,
Manoel Francisco. Da palavra â imagem: adaptação e recriação. In: HÖFFLER,
Angélica (org.). Cinema, literatura e
história. Santo André: UniABC, 2007. p. 26.
JARROT, Sabine. Le vampire dans la littérature
du XIXe au XXe siècle. Paris: L'Harmattan, 1999. p. 11.
LECOUTEUX, Claude. História dos
vampiros – Autópsia de um mito. São Paulo: Unesp, 2005. p. 20.
LEFAIT,
Sébastien. Comment
peut-on être vampire? : jeux de miroirs dans Entretien avec un vampire de
Neil Jordan. In : FIEROBE, Claude. (éd.).
Dracula : mythe et
métamorphoses. Villeneuve d’Ascq : Presses universitaires du
Septentrion, 2005. p. 201-211.
MELTON, G. J. O livro dos
vampiros – A enciclopédia dos mortos vivos. São Paulo: M. Books do Brasil,
2003.
RICE, Anne. Entrevista com o
vampiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. (originalmente publicado em 1976). p.
19
STOKER, Bram. Drácula. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2002. (originalmente publicado em 1897).
[1]
Universidade do Estado de Santa Catarina
[2]
Por volta do século II d.C. o escritor Flávio Filostrato escreve a obra “A vida
de Apolônio” como biografia deste filósofo grego.
[3] Lestat de Liancourt, vampiro que
transformou Louis de Pont du Lac. Louis aparece somente no primeiro
livro das Crônicas Vampirescas. O interessante é que Lestat, um vampiro
tipicamente literário, passa a ser o “protagonista” da série, tendo vários
outros volumes consagrados a ele ou com seu envolvimento na trama.
[4]
A música é uma composição da banda inglesa Rolling Stones, mas no filme o que
se ouve é a versão da banda norte-americana Guns N’Roses.