Karine
Bueno Costa
(UNESPAR-FAFIUV)
“Somos
dois e somos o mesmo.”
Borges
“Je est un
autre.”
Rimbauld
RESUMO:
A
partir da leitura do texto “Borges e eu”, de Jorge Luis Borges propor-se-á uma
análise sobre o eu - outro que se constrói na escrita subjetiva e
autobiográfica. O real e fictício ao apresentarem-se como linguagem
confundem-se. Portanto, perscrutar-se-á sobre a tensão que se estabelece entre
a vida e a obra do escritor. O ponto nevrálgico posto em xeque é se existe a
possibilidade de representar-se nas palavras ou se nessa tentativa mimética o
eu torna-se outro, ou seja, dois em um.
palavras
chave:Real,
ficção, Jorge Luis Borges, eu-outro.
RESUMEN: A partir de la lectura del texto “Borges y yo”, de Jorge Luis Borges propondráse
una analice sobre el yo - otro que se construye en la escrita subjetiva y
autobiográfica. El real y fictício al apresentarense como lenguaje confundense.
Sin embargo, investigaráse sobre la tensión que se establece entre vida y la obra
del escritor. El punto neurálgico puesto en jeque es si existe la possiblidade
de representarse en las palabras o si en esa tentativa mimética el yo tornase
otro, o sea, dos en un.
Conhecer-se é um
desejo latente de todos os humanos, “demasiados humanos” e é o cerne de muitas
reflexões filosóficas. É um tema que perpassa o tempo histórico e permanece sem
uma resolução definitiva, pois subentende que para conhecer algo, deve-se estar
fora de si, ausente de seu ser. No entanto, como representar a si mesmo para
conhecer-se se é impossível ausentar-se de si? Talvez é por causa dessa
impossibilidade metafísica que não é possível nos conhecermos e tornarmos
aquilo que somos como desejava Nietzsche.
Borges tentou concretizar seu ser, tentou encontrar-se
consigo mesmo, representando-se na escrita, porém, o que encontrou foi outro
Borges. À sua imagem e semelhança, contudo, outro Borges e não seu eu real.
Portanto, perguntamo-nos, quem é afinal esse ser que escreve? É possível
representar-se nas palavras quando se está pactuado com o pronome eu ou ao
fazer essa tentativa a imagem que se constrói é de outro?
A reflexão a que
nos propomos incide que façamos algumas ponderações a cerca da imagem do
escritor. Um estudioso de suma importância para análise da questão do autor é o
teórico francês Roland Barthes. Para ele, saber se é o próprio autor que está
sendo retratado ou apenas uma personagem sendo construída na obra é impossível.
O mestre do saber com sabor ao fazer semelhantes interrogações a respeito da
obra Sarrasine de Balzac, em seu
artigo A morte do autor, diz que
“jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição
de toda voz, de toda origem” (2004, p. 57). Em sua visão, o autor deixa de
existir, sua voz primordial se anula ao finalizar a obra. Outro texto seu que
vem corroborar com a mesma ideia é Da
obra ao texto, nele o teórico diz que o escritor ao remeter-se à própria
vida fará com que esta já não seja a origem das suas fábulas, mas uma fábula
concorrente com a obra; há uma reversão da obra sobre a vida, e não mais o
contrário. (BARTHES, 2004). O “eu” real torna-se um “eu” de papel, para usarmos
a expressão de Barthes quando se refere a Proust e a Senet, cuja obra nos
permite ler suas vidas como texto (2004). Portando, trata-se de escrever uma
vida, “bio-grafia”, no sentido etimológico, e não reproduzi-la realmente:
Linguisticamente, o autor nunca mais é do que aquele que escreve, assim como ‘eu’ outra coisa se não ‘eu’: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para ‘sustentar’ a linguagem, isto é, para exauri-la (BARTHES, 2004, p.60).
Assim, o
escritor real é expulso da obra, ou melhor, morre na visão barthiniana. Em Fragmentos de um discurso amoroso,
Barthes diz que: “escrever sobre alguma coisa é corromper esta coisa” (2003, p.
159). Em síntese, não é possível transcrever em palavras um sentimento, ou
então o próprio ser escritural. Toma como exemplo o amor, que para ele é
intraduzível, que este até tem certo “pacto com a linguagem”, mas que não pode
alojar-se na escrita. (BARTHES, 2003, p.159). O que se obtém dessa tentativa é
apenas a imagem, nada além de uma imagem que depende de outro para existir. Pode-se
afirmar, assim, que ao escrever sobre si o eu real é corrompido e o que se
registra é uma similitude de um “eu”.
Maurice Blanchot
é outro estudioso que faz algumas reflexões a cerca do ser que escreve sobre
si. Para ele o que se constrói na obra são metamorfoses do escritor e não o
próprio que escreveu. Em seu texto “A experiência de Proust”, incluso no em O livro por vir, diz que:
Embora ele diga ‘Eu’, não é mais o Proust real nem o Proust escritor que tem o poder de falar, mas sua metamorfose na sombra que é o narrador tornado ‘personagem’ do livro, o qual, na narrativa, escreve uma narrativa que é a própria obra e produz, por sua vez, as outras metamorfoses dele mesmo que são os diversos ‘Eus’ cujas experiências ele conta (2005, p. 21).
O autor
apresenta-se na obra através de metamorfoses, constrói “eus” a partir das suas
experiências. Blanchot segue dizendo que “Proust tornou-se inacessível porque
ficou inseparável da metamorfose quádrupla” (2005, p.21). Em outras palavras, não
se pode obter a imagem real de Proust. No texto “O livro por vir”, incluso no livro
que leva o mesmo nome, diz que “o livro é sem autor porque se escreve a partir
do desaparecimento falante do autor. Ele precisa do escritor, na medida em que
este é ausência e lugar da ausência” (BLANCHOT, 2005, p. 335). Em sua visão, o
autor está presente mesmo não estando realmente. Obter a imagem do próprio
autor é uma impossibilidade metafísica e, seguir nessa busca é perder-se num
labirinto sem saída e sem o fio de Ariadne para guiarmo-nos.
Seguindo por esse viés, Giorgio Agamben, em Profanações, mais especificamente no
texto “O autor como um gesto”, faz uma análise da teoria formulada por Foucault
em seu célebre estudo O que é um autor.
Neste, o teórico francês diz que se tratando de escrita a grande marca do
sujeito está em sua ausência. Não se trata, nessa visão, da amarração de um
sujeito em uma linguagem, mas da abertura de um espaço, onde o sujeito que
escreve não para de desaparecer. Agamben aponta que o autor se apresenta na
obra como um gesto e que: “o mesmo gesto que nega qualquer relevância à
identidade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade” (2007,
p. 55). Por essa óptica, as marcas do sujeito escritor permanecem na escrita,
pois para escrever uma obra ele parte de sua subjetividade, de um gesto. E este é o que “possibilita a expressão na
mesma medida em que nela instala um vazio central” (AGAMBEN, 2007, p. 59). Diz
ele:
O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada, não expressa, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso (AGAMBEN, 2007, p. 61).
Ideias essas que
se contrapõe às de Barthes, porém, mesmo ele que declara a morte do autor acaba
trazendo-o, mais tarde, de volta à escrita, como em Roland Barthes por Roland Barthes. Mesmo que não realizado e não dito
o escritor está na obra, suas marcas, seus gestos, gostos e preferência de
alguma maneira transcorrem pelas linhas escritas, pois está sempre voltado para
sua subjetividade, para seu interior, dado como personagem. Ao analisar uma
escritura a partir desse ponto não se pode fugir da vida real do escritor, da autobiografia.
Quando o autor coloca
seu nome próprio, dados de sua existência real na obra, não há como deixar de remeter-se
ao próprio escritor, à própria vida, ou seja, à autobiografia. Quando a vida do
próprio autor faz parte da obra, ou até mesmo quando o nome que assina o livro
faz parte da escrita literária ocorre o que Phillippe Lejeune propõe como pacto
autobiográfico.
Assinalemos,
brevemente, alguns conceitos proposto pelo crítico. Le Pacte Autobiographique é um dos mais notórios estudos sobre a
autobiografia, publicado em 1975. Nesse
livro, o estudioso francês diz que a autobiografia e os escritos de um eu têm
como tema comum contar a vida de alguém e é definida como: “narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade” (2008, p. 14). Esse pacto é “selado pelo nome próprio” (2008, p.
33). Todavia, a imagem escritural construída cai no campo de uma grande problemática
e, a autobiografia torna-se impossível ser afirmada, pois a literatura abrange
a ficção e não a realidade.
Lejeune (2008) assume
o conflito existente no que propôs analisar, percebe a impossibilidade de
representar-se nas palavras, que o escritor ao tornar-se linguagem está sujeito
a múltiplas interpretações. Mas quem seria então este que diz eu? Ou melhor, é
possível saber quem afinal é o escritor? Será que existe realmente uma
fronteira entre o eu que escreve e o eu que a literatura constrói, ou será que
não passam de um só sob ângulos diferentes? Saber as respostas fica a mercê de
uma das maiores complexidades da teoria literária.
O teórico (2008) faz, como ele mesmo diz, uma “conclusão
modesta”, ao reler tudo que escreveu em O
pacto autobiográfico percebe que é impossível afirmar que exista
autobiografia: “Errei- mas como tive razão de errar! Talvez a autocrítica, tal
como a autobiografia, seja um empreendimento impossível” (2008, p. 69). A partir
dessa reflexão é notável que o eu factual ao torna-se literatura será outro na
visão de outro. Derrida, em A escritura e
a diferença, faz a seguinte afirmação:
A escritura é a saída como descida para fora de si em si do sentido: metáfora- para- outrem- em- vista- de- outrem- neste- mundo, metáfora como possibilidade de outrem neste mundo, metáfora como metafísica em que o ser deve ocultar-se se quisermos que o outro apareça. Escavação no outro, em direção do outro em que o mesmo procura o seu veio e o ouro verdadeiro do seu fenômeno (DERRIDA, 2009, p. 40-41).
O grande trunfo
é encontrar seu veio e ouro verdadeiro, para tal, é necessário um processo
alquímico: deixar de ser para poder ser. Nessa perspectiva, podemos incluir o
texto de Borges Luis Borges, “Borges y yo”,
de El Hacedor, no qual o autor reflete
justamente sobre essa tensão, deixa de ser para poder encontrar seu veio. O
escritor argentino inicia o texto com um narrador em primeira pessoa, o qual
diz que é ao outro Borges que ocorrem as coisas, enquanto ele caminha por
Buenos Aires demoradamente observando, e desse outro, ele tem notícias pelo
correio e vê seu nome em um dicionário biográfico. Segue o texto dizendo que o
Borges real gosta de relógios de areia e as suas preferências são as do outro
também, porém, este as toma de modo vaidoso e as transforma em atributos de um
ator. O Borges real fala sobre o seu outro que se constrói na escrita, mas
ocorre que para falar isso ele utiliza-se da linguagem, e este campo pertence
ao outro Borges, portanto, ele acaba sendo o outro, e então, não sabemos mais
qual dos dois faz a narrativa, ou ainda se realmente existe dois, ou até três,
quem sabe?
Diz: “Sería
exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir,
para que Borges pueda tramar su literatura e esa literatura me justifica” (2001,
p. 186)[1]. A arte justifica a vida, contudo,
para isso ele deixa de ser, porém ao mesmo tempo está sendo, mesmo que sem ser.
Ideia confusa, mas criar paradoxos é um dos maiores trunfos de Borges.
Continua dizendo
que alcançou certas páginas válidas, porém, não podem salvá-lo porque talvez o
que escreveu já não seja de ninguém: “ni siquiera
de otro, sino del lenguaje o latradición” (2001, p. 186) [2]. O
escritor doa-se para a literatura, diz ainda que está destinado a perder-se
definitivamente: “y sólo algún instante
de mí podrá sobrevivir nel otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su
perversa costumbre de falsear y magnificar” (2001, p. 186) [3]. O Borges factual desaparecerá, o
que permanecerá é a linguagem, a literatura. Por isso ele cede tudo para seu
outro, mesmo sabendo que este finge e magnífica a realidade, pois, afinal, tem
esperança que um pouco de si, algum instante, poderá perpassar o tempo. Cita
Spinoza, segundo ele o filósofo acredita que todas as coisas querem preservar
seu ser, a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre (2001): “Yo he de quedar en Borges, no en mi (si es que
alguien soy)” (2001, p.186) [4]. Permanecerá no Borges
e não em si, ou seja, o que o faz ser eteno é a literatura, no entanto,
reconhece-se menos neste Borges dos livros do que no “laborioso rasgueo de una guitarra” (2001) [5]. Afirma que tentou livrar-se
desse outro, contudo os jogos que ele criou agora pertencem a este, resta-lhe imaginar
outras coisas. Percebemos que nunca Borges
real terá algo na linguagem, apenas o outro. Borges conclui seu texto dizendo: “Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y
todo es del olvido, o del otro.” (2001, p. 186) [6]. E o momento mais catártico ocorre na última frase
do texto: “No sé cuál de los dos escribe
esta página” (2001, p. 186) [7] . Impossível saber. Constrói-se um
labirinto mental que não tem saída, são dois e um ao mesmo tempo. O escritor
tenta reproduzir sua imagem, porém existe um ponto nevrálgico nessa tentativa,
ele torna-se duplo, e descobrir quem fala cai nas malhas da impossibilidade,
talvez fosse este o real desejo de Borges, não se distinguir da literatura, ser
literatura.
Diana Irene Klinger, em Escritas de si, escritas do outro, diz que a escrita de si não é um
aspecto moderno, nem um produto do Romantismo, mas que faz parte de uma
tradição já bem estabelecida, como exemplo, a crítica cita as Confissões de Santo Agostinho, (2007). E,
remete-se a uma síntese foucaultiana: “na Antiguidade greco-romana o “eu” não é
apenas um assunto sobre o qual escrever, pelo contrário, a escrita de si contribui especificamente para a formação de si” (KLINGER, 2007, p. 27).
(Grifos da autora). Portanto, desde os primórdios, é certo que o ser humano
possui uma necessidade extrema de conhecer-se, outro exemplo clássico para essa
afirmação é o mito de Narciso. O texto “Borges y yo” é de puro ato narcísico, o
escritor observa-se e deseja-se, quer saber quem ele realmente é, mas isso lhe
foge eternamente. Paulo Leminski, em Metaformose, aponta como início de tudo
o olhar de Narciso para si sobre a água:
Posso me ver, Narciso, a flor translúcida de Creta, brilhando entre os nenúfares do palácio de Minos, em Cnossos, refletida no tanque, para sempre. Assim pudesse morrer, do rude golpe de me transformar em mim mesmo (LEMINSKI, 1998, p. 37).
Como Borges, seu
eu morre para transformar-se em si mesmo, ele em si faz parte do esquecimento,
enquanto o outro permanecerá refletido para sempre na literatura.
O eu borgiano é
como se estivesse olhando para o espelho, vê seu reflexo, porém de destro,
torna-se canhoto, sua imagem é ao contrário de si. Barthes, em O neutro, fala que o espelho é aquele
“que está em si mesmo sem que as coisas fiquem nele, as coisas se mostram tais
quais são; seu movimento é apático, igual ao da água”, e que “sua resposta é a
do eco”, “há ação (responder), mas não apropriação (querer agarrar)” (BARTHES,
2003, p.374). Não se pode atingir, tocar a imagem produzida, a mesma coisa acontece
no texto de Borges, ele não consegue materializar sua vida real, atingir seu
eu, pois deste ele apenas obtêm em ecos: “notícias do correio”, só uma imagem,
enfim, outro.
Dessa
forma, é necessário pensarmos que escrever é uma tentativa de conhecer a si
mesmo, porém, não de reconhecer-se, pois por ser um ato de representação, o que
se tem do processo mimético é outro como constituinte e que está disperso no
campo da linguagem, dependente de outro para sua realização e interpretação.
Na
verdade, saber realmente quem escreve é impossível, jamais saberemos realmente
qual dos Borges fala no conto “Borges y yo”, pelo fato de um constituir o outro
e este realizar o primeiro.
Neste
contexto, o texto representa o Borges real falando de seu outro, mas falar
sobre algo da realidade é, de alguma forma, corrompê-lo, contudo ainda, fica a
tentativa real de eternizar-se. Por isso a autobiografia está ligada tanto à
vida como à morte, já que ao escrever sobre o “eu” é desmantelar-se e tornar-se
outro. O literário perpassa o tempo,
porém, a cada leitura será diferente, um novo Borges sendo reconstruído, e a
narrativa só conhecerá o presente, ou seja, o Borges eterno.
Até mesmo um texto histórico, apesar de buscar
retratar um fato ocorrido, não consegue sair do campo da ficção que a linguagem
submete-o. Faz parte de uma
representação ficcional, cria ilusões, pois parte de um ponto de
vista, esse tema é abordado por Hayden White, em Metahistória, não nos interessa, é claro, de todo ao nosso estudo, porém
serve como gancho para que percebamos que ao se tratar de linguagem tudo está
no campo de um fingimento pessoaniano.
A
presença- ausência do escritor faz com que o que é de natureza real pertença ao
ficcional, o escritor Borges não se vê como dono de sua escrita, nada mais lhe
pertence, embora sua existência presente faça parte do corpo textual e sendo
assim, permanecerá por todos os tempos, como um pós-scriptum. A sua imagem permanecerá “jogada na obra e não
realizada”, ao ler seus textos subjetivos ocorre o reconhecimento do seu eu, é
um Borges, porém há também o estranhamento, é outro Borges que não o
verdadeiro, fato que afasta o ser escritor real e ao mesmo tempo aproxima a sua
imagem, e cada receptor da obra terá a imagem apenas de um ser, jamais
identificado como puro real e também não somente como ficcional: eu-outro.
Indubitavelmente,
nessa busca de conhecer-se o eu torna-se arte e perde-se nela, seu eu fica
preso na cripta escritural porque confia sua existência à escrita, a qual o
altera constantemente, a cada nova leitura. E também porque a linguagem não dá
conta de retratar a subjetividade, a escrita sempre corrompe o que se deseja
expressar. O escritor ao falar de si percebe que je
est un autre, como nos
diria Rimbaud. Porém, nada impede que as marcas do sujeito escritor permaneçam
na escrita, pois este parte de suas de suas vivências, de sua subjetividade, algo
do Borges permanecerá no outro Borges, pois afinal, esse outro tem os mesmos
gostos, mas de maneira mais magnífica, ou seja, encenada.
O “outro em mim” ganha vida
própria e possui todos os subsídios para existência eterna. Borges permanecerá
por conta do seu outro, este o anula e ao mesmo tempo é quem o afirma. Quando
Borges diz que ficará no Borges (outro) e não nele (real) coloca logo em
seguida a dúvida se ele (real) realmente existe, se é alguém. Nota-se que
talvez ele não faça parte de um real e que o que vive pode ser ficção também,
há uma inversão dos mundos. O leitor fica sem saber se existem afinal dois ou se
ambos já estão tão metamorfoseados que é impossível separá-los e distingui-los.
Deste modo, na tentativa de se conhecer, Borges descobre que é outro e
que é para esse outro que as coisas acontecem, por mais que ele tente
revelar-se o outro sempre insistirá em tomar seu lugar na escrita. Em
síntese, “Borges y yo” é um questionamento do ser que vive pela literatura, na
literatura e morre também por esta arte que o salvará do esquecimento perpétuo,
em outras palavras, é a descoberta da fonte da eternidade, mas apenas como
imagem, um reflexo na água dessa fonte.
Assim, essa glosa de reflexões nos leva a pensar que
ao escrever o autor sobrepõe sob sua face escritural uma máscara, ele
interpreta-se e reinventa sua vida, tudo o que diz sobre si deve ser
considerado como algo ficcional, de caráter teatralizado, pois tudo não passa
de similitudes na escrita, de performance.
O que se
obtém de uma escrita de si mesmo é um personagem do “eu”, trata-se de uma
autoficção e não somente autobiografia. Para Klinger, a autoficção considera
que: “o sujeito da escrita não é um ser pleno”, mas sim: “resultado de uma
‘construção’ que opera tanto dentro do texto ficcional quanto fora dele, na
vida mesma” (2007, p. 55). Abrange o paradoxo entre vida e obra, real e
ficcional, pois o autor não consegue nunca ser e representar-se ao mesmo tempo.
Para a estudiosa: “essa ambivalência é insalvável” e situa-se em dois polos: “o
da atuação e o da representação”. (KLINGER, 2007, p.55). Porque o autor de uma
obra: “nunca poderá estar somente ‘atuando’, mesmo que ele represente a si
mesmo, nem poderá estar completamente possuído pelo personagem” (KLINGER, 2007,
p. 55). O escritor borgiano ficará então perdido no complexo eu-outro e
permanecerá encenando em frente ao “espelho de prata” com uma “máscara de ouro”
sobre a face e uma “adaga na testa” decretando sua morte e vida eterna em si
mesmo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, G. Profanações.
Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
BARTHES, R. A morte do autor. In ______. O rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Da obra ao texto. In ______. O rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Fragmentos de um discurso amoroso.
Trad. Hortência dos Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. O neutro. Trad. Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BLANCHOT, M. O
Livro por vir. Trad. Leila Perrone–Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BORGES,
J. L. EL hacedor. In ______. Obras Completas de Jorge Luiz Borges, vol. 2.Barcelona: Emecé
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DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Trad. Maria
Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Lopes e Pérola de Carvalho. 4ª ed. São
Paulo: Perspectiva, 2009.
KLINGER, D. Escritas
de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2007.
LEJEUNE, P. O
pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria Gerhein
Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
LEMINSKI, P. Metaformose. 2ª ed. São Paulo:
Iluminarias LTDA., 1998.
_______________________________
[1] “Seria exagerado afirmar que nossa relação
é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua
literatura e essa literatura me justifica” (2001, p.186).
[2]
“Nem sequer do outro, sim da linguagem ou da tradição” (2001, p. 186).
[3]
“e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou
cedendo-lhe tudo e, ainda me consta seu perverso costume de falsear e
magnificar” (2001, p. 186)
[4]
“Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que alguém sou)” (2001,
p.186).
[5]
“laborioso rasqueado de uma guitarra” (2001 p.186).
[6]
“Assim minha via é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou de
outro.” (2001, p. 186).
[7]
“Não sei qual dos dois escreve esta página” (2001, p. 186).