André Bueno
Prof. Dr. FAFIUV
Em algumas ocasiões de nossa vida, somos atraídos ou tentados a estudar um determinado assunto pelo puro prazer de conhecer. Creio que nisso não há nada de pragmático; na verdade, acho que estou longe de seguir uma única perspectiva teórico-metodológica, embora tenha minhas próprias linhas de direcionamento. No entanto, sei também que meus interesses diversos são um pavor para os mais ortodoxos e conservadores. Não quero ser eclético, mas tenho ojeriza a ser restrito. No mais, o que escrevo será sempre de responsabilidade minha mesmo....então, melhor que leiam aqueles que os gostam.
Voltando então aos assuntos diversos...recentemente, fui atraído por duas questões diferentes; uma é a linguagem dos quadrinhos, ao qual já abordei brevemente no outro artigo "Um pouco de (BOA) Filosofia Chinesa em Quadrinhos"; o outro é sobre o conceito de Literatura, a esfinge absoluta dos estudos literários. Como isso começou? Bem, já de cara indicaria a leitura do excelente "O Demônio da Teoria", de Antoine Compagnon, para indicar como surgiu este interesse particular. A questão é que as teorias nos servem para ler a realidade de uma certa forma; no entanto, o que deveria ser a base para nos aprofundarmos no mesmo real serve, em dado momento, de prisão para nossa capacidade de raciocinar e de se desdobrar. Esta constatação pós moderna não é absolutamente nova, mas vem a ser oportuna, atualmente, em função do estado em que se encontra a academia. Velhas escolas, preceitos antigos, preconceitos aparentemente superados, todo um escombro de história vem sendo retomado como linha teórica, justificando posturas arcaicas e neo-conservadoras (que paradoxo, este termo!). Este se trata apenas do primeiro ponto que tangencia a questão "o que é literatura?".
As discussões ocidentais sobre o tema já são demasiado extensas para dar qualquer resposta que não seja engajada em um determinado ponto de vista. Dito isso, o que significa uma "Literatura chinesa"?
Novamente, o problema se bifurca. Por um lado, não sabemos exatamente como definir que conceito de literatura poderíamos aplicar ao vasto e milenar corpo textual desta civilização; por outro, devemos buscar saber se nela, China, existe algum tipo de conceito que se aproxime disso que (no Ocidente) acabou por tornar-se dificilmente definível! Há aqui uma dessas perigosas armadilhas teóricas e de tradução que nos forçarão, inevitavelmente, a algum tipo de escolha. Eis a razão pela qual eu me entusiasmei pelo tema.
Não posso afirmar, pois, que haja a concepção problemática de literatura na China tal como existe aqui. Isso poderia significar tanto uma fraqueza - uma espécie de pobreza intelectual nesta área por parte deles - quanto um sucesso, visto a durabilidade de suas formas próprias de estudo dos textos. Deste modo, creio que somos levados a investigar o que os chineses criaram eles mesmos acerca da análise textual, e o que pode vir a ser uma "idéia" de literatura. De qualquer maneira, parece ser a única solução possível.
Os chineses tem um termo próprio para designar o estudo textual, chamado de "Wen Xue". Wen é um ideograma que significa tanto "texto" quanto "palavra", talvez algo mais próximo de "escrito". Vem a tratar-se de uma sistemática que envolve dois pontos fundamentais para a sua construção; a análise de forma e de sentido.
Até aqui isso não parece representar nenhuma novidade, exceto por ser a pedra basilar de tudo aquilo que viria a ser o trabalho de "wenxue". Desde de Confúcio, nos sécs. - 6 -5, tudo que é escrito tem (ou ao menos, deveria ter) um determinado sentido social e moral. A forma diz respeito ao veículo; prosa ou poesia? Discurso ou Ensaio? Com rima ou sem? A taxionomia textual tratar-se-á de uma grande enciclopédia de formas, de modelos, de modos de escrita que determinam o que um texto deve ser. Quanto ao seu sentido, ele deve ser decifrado; nenhum texto existe, porém, que não seja a mensagem codificada de um intuito.
Esta tensão, tão característica do pensamento chinês - a oposição complementar, do qual nada escapa - faz com que, inequivocamente, uma idéia de "estilo" se forme na adequação entre forma e sentido. A prosa se torna o veículo apropriado para os textos históricos, por exemplo, tal como a poesia tende a ser um meio de expressão íntima e individual. Estes cânones porém, nasceriam para serem desafiados. E o resultado destas discussões surge na formulação de dois textos fundamentais para a crítica literária chinesa - o Wenfu (Ensaio sobre a escrita) e o Wenxin Diaolong (O Coração da escrita e o cinzel do dragão).
O Wenfu, de Luji (+261 +303), vem a ser um tratado que explica como se deve escrever um texto. Sendo o primeiro a abordar o que poderíamos chamar de "crítica literária", ele se transforma num escrito referencial para a classificação posterior dos gêneros literários, iniciando a estruturação desta área de conhecimento. O Wenfu começa com uma declaração dos propósitos do autor;
Tenho estudado as obras dos escritores de talento e creio que consegui vislumbrar como trabalham suas mentes. Os modos de empregar palavras e formar expressões são, na verdade, de uma variedade infinita, e por isso mesmo, devem ser analisados nos diversos níveis de beleza e de êxito que alcançaram.
Logo depois, Luji começa a descrever os passos de uma meditação necessária a visualização do objeto de escrita. O autor deve invocar uma forma, deixar-se levar por ela e após, tentar apreendê-la em palavras. Esta é a busca do sentido; em outro trecho deste pequeníssimo texto, Luji passa, então, a descrever as Formas dos textos, elaborando uma lista sucinta que evoca suas características gerais, tais como "A Lírica (shi) nasce da emoção pura, é um tecido sutil trançado na mais finas das telas; o ensaio descritivo (fu), fiel aos objetos, deve ser a sua mais verdadeira encarnação; nas inscrições monumentais (pei), o discurso deve ser a cobertura dos fatos, etc..."
No fim, Luji comenta sobre o que deveria ser a função de "Wenxue"; "A literatura tem por função comunicar a verdade, expandir os horizontes até o infinito e servir como uma ponte para cruzar mil anos. Cria os modelos a serem seguidos para posteridade, e se inspira nos antigos para tal".
Algumas considerações devem ser tecidas ao texto de Luji. Em primeiro lugar, sua percepção do que é "literatura" remete-se ao ideal confucionista de captar e reproduzir uma "realidade". Mas qual é esta realidade, se a obra é uma criação do autor? Qual o limite - se é que existe - entre o ficcional e o constatável? O próprio Wenfu torna-se, assim, uma dessas obras chinesas cuja dicotomia latente da oposição complementar mais complica do que resolve a questão (se é que isso é possível). Ele delimita quais são os tipos de textos literários, engessando sua classificação - doravante, muitos quereriam destacar-se em um desses gêneros. No entanto, não é esta mesma classificação que permite criar algo novo? A partir dela, um autor brilhante sabe simplesmente o que deve burlar, ou mesclar, para produzir uma obra inédita. O Cânone torna-se, paradoxalmente, a referência mais segura para alguém inovar e ousar.
Processo semelhante encontra-se no Wenxin Dialong, de Liuxie (morto em +522), cuja estrutura do texto formaliza-se diretamente na classificação do gênero. Cada capítulo do livro corresponde a um Dao (Via) da escrita, que articulam o binômio forma-sentido. Vejamos a organização de seu livro;
1. 騷 são Poesia elegíaca
2. 詩 shi poesia lírica
3. 樂府 yuefu música
4. 賦 fu Rapsódia
5. 頌 song Odes
6. 贊 zan Pronunciamento
7. 祝 zhu Orações sacrificial
8. 盟 meng Voto
9. 銘 ming Inscrições
10. 箴 zhen Exortações
11. 誄 lei Elegias
12. 碑 bei Epitáfios
13. 哀 ai Lamentos
14. 吊 diao Condolências
15. 雜文 zawen Miscelâneas
16. 諧 xie Comédias
17. 隱 yin Enigmas
18. 史傳 shizhuan Escritos históricos
19. 諸子 zhuzi Especulações dos mestres
20. 論 lun Dissertações
21. 說 shuo Colóquio
22. 詔 zhao Édito
23. 策 ce Esquema
24. 檄 xi Proclamações de guerra
25. 移 yi Envios e despachos
26. 封禪 fengshan Sacrifícios
27. 章 zhang Memorandos
28. 表 biao Memoriais
29. 奏 zou Apresentações
30. 啟 qi Aberturas
31. 議 yi Debates
32. 對 dui Respostas
33. 書 shu Livros, cartas
34. 記 ji Notas, Recordações, Apontamentos
Liuxie chega, inclusive, a explicitar que a forma é o fluxo vital do escrito (Qi), e o seu sentido, a personalidade do autor (shen, a “alma”). Na introdução de seu livro, Liu coloca que:
Quando surge a emoção e lhe é dada forma em palavras, quando a razão intervem e se materializa o escrito, então o que estava oculto se manifesta, e uma origem interna terá sua correspondecia externa. A emoção é o fio da literatura, e a dicção é a trama da razão. Somente quando o fio está reto, tece-se bem a trama; somente quando a razão é sólida, a dicção será fluida. Este é o fundamento básico da escrita.
Liu repete o procedimento básico de Luji, tentando analisar como se dá a construção das formas textuais. Mas isso bastaria para explicar a visão chinesa de literatura? Na verdade, todas as tentativas de classificá-la são um cerceamento inútil, que dá base ao novo. Tais formatos simplesmente dão origem à novos, a mesclas criativas, a gêneros propositadamente imaginativos. E, no entanto, estes mesmos textos continuam sendo a referência que deve ser contrariada! Que civilização no mundo sacraliza aquilo que deve ser negado, e o afirma justamente por causa disso? Somente o pensamento chines pode suportar esta condição.
Por causa disso, durante a Dinastia Tang - um dos ápices da poesia chinesa - a crítica literária permite surgir um livro chamado "Os estilos da poesia" (Shipin), de Sikong Tu (+834 +908), que se destina - mais uma vez - a tentar classificar algo dentro do sistema forma-sentido, neste caso, a poesia. Uma característica deste ensaio é seu texto sucinto, mas todo escrito em formato poético, como neste exemplo:
O estilo Transcendente
Este não é um trabalho espiritual
Este não é um enigma da natureza
Este não é o caminho das nuvens brancas
retornando com o vento puro
Fique de longe do que aparenta ser
Mas mude quando você se aproximar
Quando você sentir o gosto do Dao
Então, será diferente de todo o resto
O que o autor quer dizer com isso? Que uma experiência transcendente dá sentido a este estilo? E como classificar um texto nesta categoria, sem se ter uma experiência transcendente? Ou o texto pode levar alguém a experiência transcendente?...
Algumas outras coletâneas de conselhos surgiriam, ao longo dos séculos, tentando articular a re-interpretar este problema. A literatura ganha, de qualquer modo, seu caráter dinâmico - mesmo estando presa a uma forma antiga de interpretação Esta condição parece ser única no mundo - ou, ao menos, dá a singularidade necessária ao caso chinês. Afinal, ao longo dos séculos 15-18, os chineses não veriam surgir os romances, os livros eróticos, as ficções e mesmo o teatro escrito? O demônio da teoria vira tradição; tanto inspira quanto aprisiona, mas nunca cessa de evoluir, mesmo que num sentido muito próprio.
O advento da República em 1911 tornou claro que o "Wenxue" precisava mudar, renovar-se diante da presença dos saberes ocidentais. Luxun, famoso escritor chinês deste turbulento período de transição, já havia denunciado o arcaísmo dos estilos e das grafias. Até mesmo o uso dos ideogramas antigos afastava as massas chinesas da literatura, e era preciso, por isso, mudar as formas de escrita novamente. Será que Luxun escapava, mesmo assim, ao eterno diatribe da evolução literária chinesa?
Pouco tempo depois, a chegada do comunismo determina um mudança nos temas, na prática literária, defendendo uma nova interpretação da literatura. Lu Kanru (Breve História da Literatura clássica chinesa, 1986) escreve em seu ensaio introdutório sobre a história da literatura chinesa:
Há que se perguntar o quanto isso é diferente do que Confúcio propunha, senão, pelo fato de estar travestido de um comunismo maoísta. Dizem que Confúcio recolheu as poesias do Shijing para mostrar ao mundo as angústias e sentimentos do povo; de que modo os autores da China moderna parecem absolutamente distantes disso? Lu Kanru invoca o passado para justificar tudo o que faz – na China isso é absolutamente inevitável.
Aqui, pois, a literatura chinesa - ou Wenxue, se o termo se presta a isso - dá um volta em si mesma, fecha-se, e torna quase inoperante nossa busca. Resta-nos, talvez, aceitar o que ela vê de si mesma - caminho este consolidado ao longo de séculos, mesmo em suas rupturas e transformações internas. O estudo dos textos será sempre permeado pela tensão, pelo conflito, a busca de uma centralidade que define o que é e o que irá mudar. O que não pudemos decidir sobre o que entendemos ser Literatura vale muito menos, pois, para o caso chinês. E no entanto, não há alguma sabedoria nisso? Disse Su Dongpo (1037 +1101);
Talvez o conceito de literatura precise ser escrito de um tal modo que se transforme NO conceito - se isso for possível. Mas o será?
A literatura é a forma de arte que reflete a vida através de imagens verbais. Um autor, nos seus escritos, apresenta inevitavelmente o seu ponto de vista sobre a vida e o mundo que o rodeia; os escritos bons encorajam-nos a avançar, enquanto os maus atrasam-nos. Este é o significado social da literatura. A longa e gloriosa história da China vangloria-se de muitos escritores que foram pioneiros do domínio das idéias, que além de ferirem profundamente o sentimento dos leitores, têm um profundo alcance educacional. Alguns deles obtiveram fama universal, embora a literatura realista socialista da Nova China se desenvolva fora desta herança do passado. É simultaneamente recompensador e necessário olhar para a história desta multisecular literatura, para que possamos mais facilmente compreender a tarefa dos escritores do passado, o desenvolvimento gradual da tradição literária chinesa e em que medida foi influenciada pela vida e pelos problemas do seu tempo. Isto ajudar-nos-á a vislumbrar como durante milhares de anos o povo lutou por uma vida melhor, e a parte positiva desta herança que foi deixada aos seus descendentes pode servir de suporte ao trabalho atual.
Há que se perguntar o quanto isso é diferente do que Confúcio propunha, senão, pelo fato de estar travestido de um comunismo maoísta. Dizem que Confúcio recolheu as poesias do Shijing para mostrar ao mundo as angústias e sentimentos do povo; de que modo os autores da China moderna parecem absolutamente distantes disso? Lu Kanru invoca o passado para justificar tudo o que faz – na China isso é absolutamente inevitável.
Aqui, pois, a literatura chinesa - ou Wenxue, se o termo se presta a isso - dá um volta em si mesma, fecha-se, e torna quase inoperante nossa busca. Resta-nos, talvez, aceitar o que ela vê de si mesma - caminho este consolidado ao longo de séculos, mesmo em suas rupturas e transformações internas. O estudo dos textos será sempre permeado pela tensão, pelo conflito, a busca de uma centralidade que define o que é e o que irá mudar. O que não pudemos decidir sobre o que entendemos ser Literatura vale muito menos, pois, para o caso chinês. E no entanto, não há alguma sabedoria nisso? Disse Su Dongpo (1037 +1101);
Os escritores, nos tempos antigos, escreviam, não por haverem decidido que queriam escrever, mas porque não podiam deixar de escrever. Isso é como as nuvens e as flores, que tomam forma naturalmente, em resultado de forças naturais que atuam e se acumulam nelas. Tem que se buscar uma expressão para o que existe nelas.(...) os sábios antigos diziam coisas porque tinham algo que devia ser dito.
Talvez o conceito de literatura precise ser escrito de um tal modo que se transforme NO conceito - se isso for possível. Mas o será?