“EU NÃO SEI PORTUGUÊS”: ENTÃO COMPRO UMA MULA, OU QUEM SABE TOMO UM LAXANTE

Atílio A. Matozzo
Lingüista e professor da FAFIUV


Como seres humanos, temos alguns privilégios, entre eles o de sermos os únicos capazes de usar o cérebro para (re)criarmos através da linguagem, diferentemente dos animais, que apesar de terem cérebro, não conseguem produzir uma linguagem capaz de (re)criação de coisas do mundo. Porém, esta pequena vantagem às vezes é anulada, quando ouvimos (e somos ótimos em fazer isso, principalmente quando o assunto nos interessa) o seguinte: “brasileiro não sabe falar o português”. Mas, como não! Isso dói, no coração? Não, nos ouvidos, principalmente de quem é falante do português, como nós, isso mesmo, leitor, eu e você, ou não? Se você, como eu, nasceu no Brasil, mora aqui, e entende o que está escrito aqui, com toda a certeza você é falante da língua portuguesa, e até mais do que isso, sabe ler, mas não é só isso, esse saber ler mostra que você conhece a língua. Então, que história é essa de não saber português?

Geraldo Vandré, numa das mais belas músicas da MPB brasileira, diz o seguinte: “caminhando e cantado e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não, nas escolas nas ruas, campos e construções”. Isso, somos todos iguais quando o assunto é a língua. Podemos comprovar com um simples processo lógico, vejamos: sou brasileiro, logo minha língua materna será o português, e quem melhor do que um nativo para saber a sua língua. Desta forma, não preciso comprar uma mula, talvez o pai dos burros, mas uma mula! Não. Pois não precisarei carregar nada, a não ser o conhecimento, que apesar de pouco, foi adquirido com o passar dos anos, esse é o fardo que carregarei, nele está a língua.

Mário Quintana, grande poeta gaúcho, com a suavidade de uma pena, escreveu o seguinte poema:

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
QUINTANA, Mário. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1980.

Nós leitores, falantes e, quiçá, escreventes, somos os responsáveis em dar asas às palavras, palavras da língua portuguesa. Quintana já o fez, e você, leitor? Com certeza já. Este poema nos comprova, como se ainda fosse preciso, que somos os únicos seres capazes de usar a língua (e a linguagem) para construímos o mundo, como sujeitos ativos que somos não ficamos de fora deste projeto de construção, e não é preciso ser poeta ou um grande escritor para fazer esse processo, basta ser falante, assim como eu e você. Vejamos um exemplo:

O namorado dirige-se à namorada:
- Os seus olhos são como as estrelas do céu. Meu coração chora quando estou longe de você. Ai, como te amo.

Quem nunca fez uma declaração de amor que atire a primeira rosa, somos criadores de mundos, assim como este namorado apaixonado, que com uma linguagem simples, cria um processo literário, e o mais importante, ele é, também, brasileiro, falante do português. Será que, realmente, ele não sabe falar o português?

Mário Quintana e Geraldo Vandré são brasileiros, com as palavras conseguiram representar o mundo através da arte, o namorado, do nosso exemplo, também fez isso, assim como eu e você fazemos diariamente, apesar de não sermos (grandes) artistas, criamos um mundo, só nosso, através da língua(gem). Porém, para mim, um velho nacionalista entusiasmado, que acredita em algo mais além do futebol e do carnaval, já basta para, sem constrangimento, afirmar: sabemos sim o falar português, e muito mais, sabemos usá-lo como ninguém (talvez não como Bilac, o ourives da língua).

Se os argumentos, aqui apresentados, ainda não o fizeram mudar de idéia, com certeza você, “leitor”, realmente não é falante do português, e eu escrevi este texto em alemão, por isso peço-lhe desculpas, por enchê-lo com minhas palavras. Agora se, realmente, o convenceram, pode suspender a mula e o laxante, pois, ainda, temos pernas e estômago para enfrentar o sensacionalismo multimídiatico que faz com que os que usam mulas (e talvez pernas-de-pau e olho de vidro) acreditarem, que mesmo sendo brasileiros não sabem o português. Aí nem laxante resolve, mas o purgante do Pasquale, quem sabe.

Se Vandré, Quintana e eu não conseguimos convencê-lo de que todo o brasileiro melhor do que ninguém é brasileiro, então, meu amigo da onça, que tal ajuntar-se aos piratas do olho de vidro e pernas-de-pau? Com eles você aprenderá a falar o português, o francês e até javanês, oxalá o inglês. Novamente seguindo a lógica, salve Aristóteles, se você chegou até este ponto da leitura é porque, simplesmente, você sabe português.

Peço, novamente, desculpas a você leitor legítimo, verídico e entusiasta de uma bela loucura, loucura feita de palavras, palavras do português, por ser “um sujeito chato, ridículo e limitado que só uso dez por cento de minha cabeça animal”, relembrando o inesquecível Raúl Seixas (mais um brasileiro que sabia o português), mas, a única forma (sem vir de mula e tomar laxante) que encontrei para lhe dizer, ou, simplesmente, reafirmar, que somos todos grandes conhecedores de nossa língua, com ela produzimos coisas “estupensacionais” (com a liberdade de criação, inspirado no velho Guimarães Rosa, crio um novo adjetivo, simplesmente misturando estupendo com sensacional), podendo viajar com as palavras de nossa língua, como Vinicius de Morais e Toquinho bem nos mostram:

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva

Assim é com a língua(gem), basta querermos e conseguiremos derrubar o preconceito lingüístico que nubla a nossa esperança de um país melhor. Encerro este texto sem saber o que fazer com a mula e o xarope, talvez os mande pelo correio para o “Pasquê” apresentá-los aos seus amigos sensacionalistas, “plim, plim”.