O PODER DO LIVRO NA ‘MENTE DA FLORENÇA PERDIDA’



Alam Cristian Arezi
Graduado em História (FAFIUV)
Pós-Graduado em Filosofia e Sociologia (FAMPER)


Resumo: Esse pequeno artigo aborda interdisciplinarmente questões sobre o livro, a literatura, a leitura e o leitor; tendo como background a cidade de Florença em fins da Idade Média, e seus processos estruturantes: religiosidade, política e economia – tendo ainda, como contraponto, o pensamento humanista e a expressividade epopeica de Dante Alighieri e sua “Divina Comédia”. 
Palavras-Chave: Leitor; Idade Média; Dante Alighieri

Abstract: This short article discusses interdisciplinary questions about the book, literature, reading and reader, having as background the city of Florence in the late Middle Ages, and its structuring processes: religion, politics and economics - and yet, as a counterpoint, humanist thought and expressiveness epic literature of Dante Alighieri and his "Divine Comedy."
Keywords: Reader; Middle Ages, Dante Alighieri

            
Toda leitura exerce um poder abstrato pra quem lê. É indiscutível a importância desse fator que na história representou mudanças na vida cotidiana e, de certo modo, pode ter influenciado revoluções populares – tomando por empréstimo um conceito da física: toda ação gera uma reação; se entende que mentalidades, visões de mundo podem ser coagidas por tais práticas, pelo uso de seus conjuntos.
            Escrever a luz da contemporaneidade visando ver um passado distante é algo indiscutivelmente difícil e, passível de erros. Entretanto existem fontes a quais se podem recorrer, a fim de que sejam analisadas e processadas diminuindo, portanto, essa margem de atemporalidade.
            Certamente, ‘o pai da História’, Heródoto, não imaginou que os progressos se dariam de maneira tão desorganizada; que o fascínio de escrever a história se tornaria incompatível a tantas memórias e escritos influenciados por tempos de indiferença social e política. Nesse aspecto, pretende-se justificar que o presente momento da história que se vislumbra nesse trabalho, era escrito para os reis e os grandes acontecimentos. E, que também a religiosidade era fator de interferência na escrita da história – tanto quando hoje o tempo nos separa dela.
            Segundo Megale (1940), no período pré-renascentista o pensamento, a expressão do sentimento é voltada para o religioso. A evolução essencial se estrutura com as cruzadas; a conservação da memória. Têm-se a coleta e o armazenamento de documentos, a escrita pelas línguas vulgares, a justificativa pelo passado, o interesse pelo político e geográfico. Os historiadores parecem impressionados demais com as cruzadas e com a nobreza pra se preocuparem com o exubere cotidiano medieval (sendo essa uma preocupação da história marxista com sua característica de ‘história das bases’). Enquanto isso, a Literatura se situa num processo transitivo entre o Trovadorismo (que se baseia na nobreza e no clero), na ideia de teocentrismo - concepção segundo a qual Deus está no centro; ele é o foco e a medida de todas as coisas - que provoca um forte moralismo religioso. Em oposição, encontra-se o Humanismo, caracterizado pela decadência da estrutura vertical feudal composta pela nobreza, clero e povo, devido à ascensão da burguesia, pelo teocentrismo mitigado e pelo início do estudo das obras greco-latinas - por uma busca das condições humanas.
            Notoriamente, Megale subdivide os fatores que levam ao renascimento. Expondo (de maneira sintética) fatores pré-renascentistas. Esses fatores são essenciais para se entender como a literatura se desenvolve. A ‘ressurreição’ das obras Greco-latinas é um fator de extrema importância. Tem-se em mente que na Europa medieval – até o presente momento de estudo -, pouco se produziu acerca de contos e epopéias, as relações livro/leitor não eram de suma importância, as poucas pessoas que tinham o real acesso a leitura, se importavam em saber das difusões empregadas pelas cruzadas.
            Em discussão a isso, a ‘Florença perdida’ tinha como principal assunto o comércio que se dava de maneira mercantil. Associando-se assim, a principal fonte de inspiração provinha dessa Florença agitada, por negócios e pelo cotidiano. Se, a Idade Média é um período em que existe uma demasiada afeição com temas sacros e econômicos, a produção artística ficava a parte de tudo isso, com apenas algumas significâncias a serem ressaltadas.
            Como exposto por Megale, a maioria dos trabalhos escritos estavam voltados para as cruzadas. Entretanto, essa literatura, que tanto agradava a nobreza – tida hoje em dia como noticias do submundo ou de uma guerra qualquer -, era escrita pelas mãos daqueles que tinham o olhar voltado para o grandioso, para uma história total; queriam perpetuar seus nomes assim como Aquiles.

 A corte real sempre foi um meio de convergência cultural privilegiado; as evoluções dos séculos XII e XIII iriam, contudo, afetar profundamente o conteúdo de tal cultura que, aos moldes da cultura aristocrática, laicizou-se – em parte – e historicizou-se. A partir do século XIV, descobrimos até uma forma burocratizada da cultura da corte, seguindo o modelo italiano: notários e juristas cada vez mais numerosos a serviço das monarquias ou das grandes cidades formavam um meio erudito, de onde sairia o humanismo e, em particular, as melhores produções históricas. (CADIOU [et al.], 2007, p. 40).

            Só que ‘onde há poeira há gente’. Havia alguns personagens da época que voltavam seus olhos para a vida, o cotidiano, a poesia; A guerra que se travava por preceitos indefinidos não lhes era fonte de inspiração. Mas, notoriamente, ambos os olhares dependiam de um fator maior; a educação. Segundo Cadiou: “As universidades multiplicam-se nos séculos XIII e XIV” (2007, p. 40), trazendo profundas mudanças de pensamento na Europa politizada fazendo com que muitos filhos herdeiros de mercadores ‘remassem’ em busca do conhecimento.
            Um desses herdeiros, merecidamente reconhecido, é Dante Alighieri; cuja obra mais famosa que circulava pela Florença do século XIV era “A comédia” que mais tarde por menção de aspectos do livro, recebera o adjetivo de “Divina”. Tal obra em que resumidamente Dante tenta alcançar o seu amor (Beatrice) indo do inferno ao céu, foi justificada como pura e santa – mesmo que Dante reservasse papéis a pessoas religiosas no inferno -, afirmava-se o conceito de purgatório e, para os teólogos que estudaram a fundo sua obra; ela era uma viagem sobrenatural do poeta pelo desconhecido. Mas, presume-se que o que Dante mais quis foi enaltecer seu nome e vulgarizar o latim – ajudando a criar o italiano que conhecemos hoje e, certamente foi um poeta que ‘viveu a frente de seu tempo’.

Dante deu simplesmente o nome de Comédia à sua obra principal, mas seus admiradores, durante a Renascença Italiana, sempre se referiam a ela como Divina Comédia, e foi esse o título com que chegou até nós [...] Dante era, sob muitos aspectos, um humanista. Experimentava o mais vivo prazer com o convívio dos autores clássicos; quase adorava Aristóteles, Sêneca e Virgílio. Preferiu Virgílio a qualquer teólogo cristão para personificar a filosofia e deu a outros pagãos ilustres um lugar muito confortável no purgatório. Por outro lado, não hesitou em colocar no inferno vários papas eminentes. (BURNS, 1978, p. 385).

Bandeira (1960) complementa que sobre a vida de Dante (1265 -1321), dizendo que sua educação fora regida pela Igreja; que participou de guerrilhas quando moço e exerceu cargo de representante da cidade quando adulto. Devido a essa ultima afirmação – o aspecto político -, Dante teve de se ausentar de sua amada cidade já que os “Prêtos” assumiram o poder em Florença, levando-o a se ‘refugiar’ em Ravena onde terminou a sua “Divina Comédia”.

Florença era naquela época dividida por uma renhida rivalidade entre duas facções conhecidas como os “Prêtos”, que defendiam os velhos direitos da nobreza, e os “Brancos”, que falavam em nome da classe média em ascensão. Dante era partidário da plebe. (HAUSER, 1968, p. 51)[1]

            Entretanto, essa citação de Hauser não propõe que a literatura de Dante fosse destina as massas, apenas se esclarece os motivos politícos que englobavam a  “Florença perdida”; vendo Dante como um humanista  que nunca usou de seu ‘status’ de burguês para obter satisfação, ao contrário, lutou com o povo pelo direito de igualdade.

Dante se situa naquela pequena nobreza mercantil que se opôs, social e ideologicamente, a aristocracia fundiária pré-comunal e feudal, desempenhando, assim, um papel capital no inicio do desenvolvimento da civilização comunal florentina. (BEC, 1982, p.38)

            Segundo Bec (1982), Dante nunca se interessou intensamente pelos negócios da família. Teve uma educação que de inicio se dedicava a estudos literários e filosóficos, “assimila a retórica clássica e medieval, a cultura francesa, a poesia cortês e sículo-toscana.” (BEC, 1982, p. 36). Isso de muito pode ter influenciado na visão de um ‘humanista social’; e nos trás a tona a pergunta: Dante realmente escreveu a “Divina Comédia” a favor de princípios religiosos?
            Não se sabe. Ultrajar a religião num período conturbado como o século XIV, não era algo inteligente de se fazer, além disso, as informações acerca de do Dante que chegaram até nós, nunca o referiram como um pagão ou algo do gênero. Ser um humanista no período da baixa idade média não significava ir contra os preceitos religiosos, apenas, evoluir. Essa evolução humanista se dava de diferentes maneiras, mas a principal, sem duvida, era: pensar o homem e a arte.
            Tal arte que, Dante, Petrarca e Boccaccio conseguiram expressar na literatura.

REFERÊNCIAS:

BANDEIRA, M. Noções de história das literaturas. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de cultura, 1960.
BURNS, E. História da Civilização Ocidental. v.1. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978.
CADIOU, F [et al.] Como se faz a história. Petrópolis: Vozes, 2007.
GRANDES VIDAS, GRANDES OBRAS. Seleções do Reader´s Digest. Rio de janeiro: Ed. Ypiranga, 1968.



[1] Artigo In: GRANDES VIDAS, GRANDES OBRAS. Seleções do Reader´s Digest. 1968.