A HOSPITALIDADE DO (AO) INTRUSO


Rafael Alonso
(mestrando Literatura-UFSC)

Resumo: Este ensaio discorre sobre o conceito de hospitalidade a partir do que falou sobre o assunto o filósofo francês Jacques Derrida. Para tanto, apoia-se no livro de Jean-Luc Nancy, El intruso, no qual Nancy versa sobre o transplante de coração a que foi submetido. A proposta do ensaio é pensar os conceitos de hóspede e hospedeiro enquanto categorias instáveis e que se contaminam mutuamente. A chegada do intruso balança a propriedade do hospedeiro. Mas tal movimento não é absoluto, deixa resto. Mas esse resto não mais é capaz de recompor a propriedade perdida, que possivelmente nunca existiu, limitando-se a expor essa perda. O que resta de mais íntimo é a própria dessubjetivação.

Palavras-chave: intruso, hospitalidade, Nancy.

O presente ensaio relaciona o livro de Jean-Luc Nancy, El intruso (2006), no qual o autor trata do transplante cardíaco a que foi submetido, com os comentários de Jacques Derrida a respeito da hospitalidade, registrados em Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade (2003). Aproximação que permite desestabilizar alguns conceitos (hóspede, hospedeiro, sujeito) e abre caminho para problematizações diversas, entre elas a dos conflitos entre sujeito e subjetividade, linguagem e mundo, hóspede e hospedeiro. A reflexão que esse trabalho propõe é a da fronteira – a localização do ponto onde as categorias mostram-se instáveis ou não se essencializam.
A primeira versão do texto de Nancy é publicada em 19991. No ano seguinte, ele publica o livro, com o título de El intruso (segundo a tradução em espanhol citada neste trabalho. O título original é L’intrus). Ele se propõe a escrever sobre o transplante de coração a que havia sido submetido anos antes, quando sofria de uma miocardiopatia de origem enigmática. Segundo conta Nancy, os médicos desconheciam a causa da patologia e se limitavam a dizer que seu coração estava programado para durar apenas 50 anos – idade exata em que Nancy passa pelo transplante. Mesmo tendo êxito na operação, a previsão de acréscimo de vida (ou de adiamento de morte) era de menos de 10 anos. No post-scriptum de El intruso, datado de 2005, Nancy comenta a superação do prazo previamente estabelecido pelos médicos. Aliás, Nancy segue vivo, e produtivo, até os dias atuais. Toma-se, como ponto de partida, as palavras com as quais Nancy abre o livro (NANCY, 2006, p. 11-12):

El intruso se introduce por fuerza, por sorpresa o por astucia; en todo caso, sin derecho y sin haber sido admitido de antemano. Es indispensable que en el extranjero haya algo del intruso, pues sin ello pierde su ajenidad. Si ya tiene derecho de entrada y de residencia, si es esperado y recibido sin que nada de él quede al margen de la espera y la recepción, ya no es el intruso, pero tampoco es ya el extranjero. Por eso no es lógicamente procedente ni éticamente admisible excluir toda intrusión en la llegada del extranjero. Una vez que está ahí, si sigue siendo extranjero, y mientras siga siéndolo, en lugar de simplemente “naturalizar-se”, su llegada no cesa: él sigue llegando y ella no deja de ser en algún aspecto una intrusión: es decir, carece de derecho y de familiaridad, de acostumbramiento. En vez de ser una molestia, es una perturbación en la intimidad… Recibir al extranjero también debe ser, por cierto, experimentar su intrusión.

De entrada, frisa-se que Nancy liga o intruso ao estrangeiro, na medida em que a chegada do estrangeiro é carregada de intrusão. O intruso está no estrangeiro, assim como o estrangeiro está no intruso. Uma chegada que não se dá amistosamente nem é recebida com preparativos antecipados, mas uma chegada que não cessa, que não cansa de chegar e, ao chegar, desestabiliza, por meio da falta de familiaridade e de direito, o centro da intimidade. O importante, portanto, é marcar como logo na abertura do livro Nancy aproxima o intruso do estrangeiro, este último figura central na obra citada de Derrida. Estrangeiro que vem de fora, sem aviso, que entra sem bater. Neste sentido, a relação com o texto de Derrida torna-se evidente: falar do estrangeiro, da chegada (ou intrusão) do estrangeiro é falar de hospitalidade. Afinal, a questão será também a de perceber como se recebe o estrangeiro (intruso), ou seja, que tipo de hospitalidade entra em jogo quando o estrangeiro bate à porta ou quando o estrangeiro se intromete, como se viu em Nancy, por meio da astúcia, da surpresa ou da força – nunca por meio de direito estabelecido de antemão. É o que explica Derrida quando fala de Sócrates que, julgado pelos atenienses, afirma-se estrangeiro a fim de conseguir piedade, já que não fala a língua dos juízes. Como lembra Derrida (2003, p. 15), o estrangeiro é “estranho à língua do direito na qual está formulado o direito de hospitalidade” e deve, portanto, “pedir a hospitalidade numa língua que, por definição, não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc” (DERRIDA, 2003, p. 15). A questão tem início neste ponto: de que hospitalidade se fala quando da chegada do estrangeiro:

A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale a nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre nós? Se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em asilo e em hospitalidade? (DERRIDA, 2003, p. 15)

Desta forma, Derrida parece corroborar com o que fala Nancy a respeito do estrangeiro. Caso o estrangeiro nos fosse familiar, deixaria a condição de estrangeiro. O que o define é justamente a possibilidade de manter-se estrangeiro, o que demanda, do lado do hospedeiro, um gesto de abertura ao que vem de fora, àquele do qual não se sabe a procedência, mas que tampouco deve ser eliminado pela qualidade de desconhecido. Nestes termos, trata-se de uma hospitalidade que foge do padrão comum do hospedeiro solícito que recebe com as devidas honrarias o visitante ilustre. Padrão comum que ainda delimita com clareza as categorias do hospedeiro e do hóspede, do dono (senhor) da casa e do hóspede. Padrão que, na esteira de Derrida, levaria apenas em conta a força do nome próprio, da linhagem, da hereditariedade. A hospitalidade, segundo comumente a conhecemos, é aquela que não “oferece hospitalidade ao que chega anônimo e a qualquer um que não tenha nome próprio, nem patronímico, nem família, nem estatuto social...” (DERRIDA, 2003, p. 23). Derrida diferencia, assim, o estrangeiro do bárbaro, o estrangeiro do outro absoluto. É aqui que ele fala de “hospitalidade absoluta ou incondicional” (DERRIDA, 2003, p. 23), aquela que rompe com a “hospitalidade no sentido corrente, com a hospitalidade condicional, com o direito ou o pacto de hospitalidade” (DERRIDA, 2003, p. 23).

Em outros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de nome, de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (entrada num pacto), nem mesmo seu nome. A lei da hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade de direito, com a lei ou a justiça como direito. A hospitalidade justa rompe com a hospitalidade de direito; não que ela a condene ou se lhe oponha, mas pode, ao contrário, colocá-la e mantê-la num movimento incessante de progresso; mas também lhe é tão estranhamente heterogênea quanto a justiça é heterogênea no direito do qual, no entanto, está tão próxima (na verdade, indissociável) (DERRIDA, 2003, p. 23-25).

Portanto, há uma hospitalidade absoluta que rompe com a hospitalidade tradicional. Uma hospitalidade que, no contexto de Nancy, quase não dá opção ao hospedeiro – hospitalidade que invade e tem lugar desde a chegada, ainda que um lugar indefinido. Mas, ao desenvolver o conceito de hospitalidade absoluta, Derrida enseja, no encerramento do parágrafo mencionado, que a hospitalidade absoluta permanece atrelada ao direito com o qual rompe, ainda que, diante deste, mantenha contato heterogêneo, no que o autor chama de “movimento incessante de progresso”. A hospitalidade absoluta tenta distanciar-se do direito (da relação jurídica), mas esta sempre parece alcançá-la, ou ao menos tocá-la no momento do distanciamento. “No fundo, não existe ksénos, não existe estrangeiro antes ou fora de ksenía, desse pacto ou troca com um grupo, mais exatamente com uma linhagem” (DERRIDA, 2003, p. 27).
Assim, torna-se difícil conceber o estrangeiro fora do pacto. Enfim, fora das relações de força, de poder, de direito e de jurisdição. A questão essencial, porém, é detectar os limiares de tais relações de poder e de direito, a contaminação mútua entre as forças em atuação. Atentar para os momentos em que as relações de poder se afrouxam ou, ao contrário, se acirram. De qualquer maneira, e no mínimo, atestar que tais relações existem, que não estão imunes de contato; não naturalizá-las. Esse último ponto é fundamental em Nancy. Quando ele é informado de que será necessário realizar o transplante, as bases vacilam. “...la sensación física de un vacío ya abierto en el pecho, con una suerte de apnea en la que nada, estrictamente nada, todavía hoy, podría separar en mí lo orgánico, lo simbólico y lo imaginario…” (NANCY, 2006, p. 16). De súbito, Nancy deveria imaginar o órgão vermelho, cheio de tubos, “tan ausente hasta entonces como la planta de mis pies durante la marcha” (2006, p. 17). É o momento em que Nancy é tocado pelas menores sensações – momento em que as palpitações que já o acompanhavam recebem outra conotação, é quando “desaparece entonces la evidencia poderosa y muda que mantenía el conjunto unido” (2006, p. 18). É como se Nancy tomasse distância de si mesmo, mas não no sentido de reencontrar-se, de retomar a subjetividade perdida, mas de vê-la ruir, dispersar-se. Ao saber do transplante, o autor francês diz que “mi corazón se convertia en mi extranjero: justamente extranjero porque estaba adentro” (2006, p. 18). “Aquí, el espíritu tropieza con un objeto nulo: nada que saber, nada que comprender, nada que sentir. La intrusión de un cuerpo ajeno al pensamiento. Ese blanco permanecerá en mí como el pensamiento mismo y su contrario al mismo tiempo” (2006, p. 18-19).   
A questão passa, portanto, por reconhecer a impureza tanto do intruso que chega quanto do hospedeiro que acolhe. Assim como Nancy vê desmontar-se a categoria do próprio, a ponto de se perguntar se ainda poderia chamar de “seu” o coração debilitado, Derrida explica o conflito intenso que permeia a relação entre hospedeiro e hóspede, já que um não faz sentido sem o outro. Tal relação dá-se, segundo Derrida, no conflito entre a Lei, com L maiúsculo, que designaria a Lei Absoluta, a hospitalidade absoluta, aquela que não pergunta o nome de quem bate à porta, mas manda entrar, e as leis, com l minúsculo, que designariam os conflitos (de direito, legais, morais, físicos, de nação, de identidade) que integram o pacto da hospitalidade. Segundo Derrida, “existe aí uma estranha hierarquia. A Lei está acima das leis. Portanto, ela é ilegal, transgressiva, fora-da-lei” (DERRIDA, 2003, p. 71), mas, ao mesmo tempo, “a lei incondicional necessita das leis, ela as requer. Essa exigência é constitutiva” (2003, p. 71). Sem as leis e sem a possibilidade de “tornar-se efetiva, concreta, determinada” (2003, p. 71), a lei incondicional poderia ser tomada como “abstrata, utópica, ilusória, e, portanto, a voltar-se em seu contrário” (2003, p. 71). Em suma, há uma Lei, com L, que se encontra acima das leis, com l. Mas essa Lei necessita das leis, pois, sem estas, não encontra base plausível para se estabelecer – é aqui que se falará em direito à hospitalidade. Da mesma forma como a Lei é ameaçada, negada e pervertida pelas leis (e deve sempre poder fazê-lo, lembra Derrida), “as leis condicionais deixariam de ser leis da hospitalidade se não fossem guiadas, inspiradas, aspiradas, exigidas mesmo pela lei da hospitalidade incondicional” (2003, p. 71). A este conflito irreconciliável, mas igualmente inseparável, entre a Lei incondicional e as leis condicionais, Derrida remete o termo antinomia2.

Dito de outra forma, haveria antinomia, antinomia insolúvel, antinomia não-dialetizável entre, de um lado, A lei da hospitalidade, a lei incondicional da hospitalidade ilimitada (oferecer a quem chega todo o seu chez-soi e seu si, oferecer-lhe seu próprio, nosso próprio, sem pedir a ele nem seu nome, nem contrapartida, nem preencher a mínima condição) e, de outro, as leis da hospitalidade, esses direitos e deveres sempre condicionados e condicionais, tais como os definem a tradição greco-latina, mais ainda a judaica-cristã, todo o direito e toda a filosofia do direito até Kant e em particular Hegel, através da família, da sociedade civil e do Estado (2003, p. 69).

Assim como não há hospedeiro sem hóspede, não há Lei sem as leis, uma depende da ou das outras, há uma indissociabilidade entre ambas. Em outros termos, pode-se dizer que não há hospitalidade sem hostilidade, a ponto de Derrida propor o neologismo “hostipitalidade” (2003, p. 41). Toda ato de hospitalidade é um ato de violência. “Não há hospitalidade, no sentido clássico, sem soberania de si para consigo, mas, como também não há hospitalidade sem finitude, a soberania só pode ser exercida filtrando-se, escolhendo-se, portanto excluindo e praticando-se violência” (2003, p. 49). Nem a hospitalidade absoluta, que não pergunta o nome e não exige carteira de identidade, nem puro direito, pura lei, mas um processo de violência constante entre hospedeiro e hóspede. Derrida diz, como já se falou, que a Lei, essa com L maiúsculo, está acima das leis. Mas acima apenas na medida em que se permite ser pervertida; nunca algo que se coloca acima para se livrar do contágio e da violação – a Lei é fundamentada pela e fundamenta as leis.
O problema central que este trabalho levanta tem a ver com o desmembramento da categoria do próprio – a violação da intimidade. Nem o hospedeiro nem o hóspede sentem-se completamente à vontade e estáticos um à presença do outro. Nem o hospedeiro nem o hóspede apresentam-se como categorias estáveis segundo são observados pela ótica do conceito de hospitalidade de Derrida. Na mesma linha, é o que diz Nancy sobre o transplante, que lhe “impone la imagen de un pasaje a través de la nada, una salida hacia un espacio vaciado de toda propiedad o toda intimidad, o, muy por el contrario, de la intrusión en mí de este espacio: tubos, pinzas, suturas y sondas” (NANCY, 2006, p. 27). O intruso desestabiliza a categoria do próprio, expõe a dessintonia entre pensamento e corpo, exibe a falta de coesão (fissão insolúvel) entre linguagem e mundo. Tais questionamentos levam Nancy a tecer proposições radicais: “Qué es esta vida ‘propria’ que se trata de salvar? Se revela entonces, al menos, que esta propiedad no reside en nada en ‘mi’ cuerpo. No se sitúa en ninguna parte, ni en ese órgano cuya reputación simbólica ya no hay que construir” (2006, p. 28).
Assumindo momentaneamente o ponto de vista do hóspede (do estrangeiro, do intruso ou do coração transplantado), nota-se que a intrusão afeta o hospedeiro no que pode haver de mais próprio, de mais familiar. O intruso faz o hospedeiro sentir-se incomodado e fora de posição dentro da própria casa; em suma e no limite, a intrusão do que vem de fora converte o hospedeiro em hóspede, talvez no momento em que as categorias entram em estado de suspensão e o hospedeiro, senhor da situação, vê-se deslocado. No caso de Nancy (como já se viu, ele mesmo diz que as condições do transplante o tornam estrangeiro de si mesmo), é curioso perceber como não há a necessidade da participação de um segundo sujeito para que tal inversão ocorra, como correntemente poder-se-ia imaginar na relação entre hospedeiro e hóspede. Não se trata de um sujeito A, o hospedeiro, que diante do sujeito B, o hóspede, tem a intimidade desvelada. Mas o próprio sujeito A, e apenas ele, que de diversas maneiras, quase num movimento pendular, vai de hospedeiro à hóspede, de hóspede à hospedeiro. Não será sobre isso que fala Nancy no fim do livro, já no pós-escrito, quando se refere ao quadro de absoluta contingência em que parece inserido, uma contingência atravessada por fatores de ordem ampla, como a medicina, a operação bem-sucedida, a eventualidade de ter necessitado do transplante no momento em que a técnica médica dominava tal operação (ele morreria se tivesse nascido na década de 50, por exemplo), no prazo de validade indefinível do “novo” coração e por aí afora?

...: la ajenidad de mi propia identidad, que, sin embargo, siempre me fue tan viva, nunca me toco con esta acuidad. “Yo” se convirtió claramente en el índice formal de un encadenamiento inverificable e impalpable. Entre yo y yo, siempre hubo espacio-tiempo: pero hoy existe la abertura de una incisión y lo irreconciliable de una inmunidad contrariada (2006, p. 37).

O caso de Nancy torna-se mais ilustrativo se pensado sob o aspecto impossível de negligenciar que a chegada do intruso inscreve-se no próprio corpo. Corpo que poderia ser pensado como aquilo que nos é mais próprio, mas ao mesmo tempo o que nos é mais estrangeiro, na medida em que representa o que pode haver de mais incontrolável. Ao analisar em detalhes o texto de Nancy, nota-se que o processo não se resume a uma intrusão, mas a várias. Ao menos quatro delas podem ser enumeradas sem grande esforço: a) o momento em que Nancy percebe que o coração “original”, se ironicamente assim se puder nomeá-lo, dá sinais de fraquejamento: Nancy sofre palpitações e tem dificuldade para realizar esforços físicos mínimos. É como se, nas palavras dele, o peito já estivesse aberto antes mesmo da operação; b) o momento em que recebe o coração do doador (doador desconhecido, e aí Nancy desenvolve uma série de questionamentos, como por exemplo quais seriam os critérios que definiriam a escolha dos transplantados, as razões técnicas, políticas e morais que apontariam para a necessidade do transplante, os motivos que levariam ao prolongamento de uma vida, etc); c) o rechaço apresentado pelo organismo de Nancy diante do novo coração, o que o obriga a tomar uma série infinita de medicamentos a fim de adaptar-se ao órgão transplantado; d) e para encerrar esta sucessão de intrusões que poderia ser estendida longamente, o câncer que acomete Nancy como efeito colateral em razão, justamente, dos medicamentos que é obrigado a ingerir para atenuar o rechaço ao novo coração. Atravessado por uma infinita quantidade de intrusões, pela chegada incessante do estrangeiro (um peito que permanece aberto mesmo depois de fechado), Nancy se vê impossibilitado de dizer eu. A sua existência depende de fatores absolutamente alheios, de ordem preponderantemente técnica, que fogem do controle. Controle que tampouco passou das suas mãos para o domínio de outros sujeitos localizáveis, como a equipe médica que lhe presta serviço. Não se trata de transferir o controle racional da situação de um ponto a outro, mas de expor o fator contingencial que permite a Nancy ainda estar vivo; ou permanecer na condição de “morto-vivo” (2006, p. 43), como dirá seu filho mais novo.
Nesta linha, o caminho (válido, evidentemente) para o qual aponta as teorizações de Nancy parece aproximar-se daquilo que Peter Sloterdijk, em Regras para o Parque Humano (2000), chama de “antropotécnica”. Nesta obra, Sloterdijk aborda criticamente o humanismo. A tentativa do Humanismo, segundo Sloterdijk, foi fixar, ao longo da história, remetente e destinatário. Foi confiar que as palavras difusas ditas em tempos remotos pelos mestres deveriam ser lidas no presente e remetidas a um futuro, numa transmissão continuada de cartas que teria como objetivo a formação de uma comunidade solidária entre os que foram eleitos para ler, o que apontaria para certa docilidade do pensamento filosófico. Em suma: a tradição humanista incumbe-se da tarefa de desembrutecer o ser humano. E, para isso, se utiliza da escrita e da leitura. Contra as forças bestiais e desinibidoras, o remédio infalível da leitura do livro sagrado (a bíblia ou qualquer outro) e do distanciamento intelectual. À comunidade de leitores sonhada pelo humanismo, Sloterdijk passa para a crítica elaborada por Nietzsche, a partir do Zaratustra, à aparente inofensividade do humanismo. Na autogestão humana, na criação do homem pelo homem, sempre há os que levarão vantagem, sempre há o lado para o qual a balança tenderá a pesar. No caso da crítica nietzschiana, possivelmente o lado favorecido será o do pastor do rebanho. Tendo como base os avanços da técnica moderna, Sloterdijk chega à antropotécnica, ao parque humano em pleno equilíbrio; mas, neste caso, trata-se de “uma criação sem criadores, um impulso biocultural sem sujeitos” (SLOTERDIJK, 2000, p. 43), um automatismo regido pela burocracia tecnocrática. A vida de Nancy como um barco à deriva, uma vida entregue a possibilidades que extrapolam completamente os limites do controle pessoal e racional de quem vive permite aproximar a reflexão que se propõe aqui da antropotécnica esboçada por Sloterdijk. Ou seja, uma vida que depende de fatores de ordem técnica não dominados pelo cidadão comum e que o colocam na posição insuperável de refém3. Este mesmo termo é empregado por Derrida quando descreve as mudanças de posição constantes na relação entre hospedeiro e hóspede. “Essas substituições fazem de todos e de cada um refém do outro. Tais são as leis da hospitalidade” (DERRIDA, 2003, p. 109).
Os apontamentos acima demonstram a validade da aproximação com a antropotécnica de Sloterdijk, mas já começam a apontar para vieses menos evidentes e que trazem à tona a potência que pode emergir da desmontagem do próprio. Diz Nancy (2006, p. 15-16):

Se produce un cruce entre una contingencia personal y una contingencia en la historia de las técnicas. Antes, yo habría muerto; más adelante sería, por el contrario, un sobreviviente. Pero siempre ese “yo” se encuentra estrechamente aprisionado en un nicho de posibilidades técnicas. Por eso es vano el debate que he visto desplegarse entre quienes pretendían que fuera una aventura metafísica y quienes lo concebían como una proezatécnica: se trata por cierto de ambas, una dentro de otra.

A fala de Nancy é esclarecedora. O “nicho de possibilidades técnicas” não exclui a contingência pessoal. A contingência histórica da técnica (que faz com que Nancy tenha a vida prolongada, o que não aconteceria caso ele vivesse no século anterior) atravessa e é atravessada pela contingência pessoal. A questão não é nem puramente metafísica, nem unicamente técnica. Novamente, estamos diante da antinomia proposta por Derrida, do jogo incessante entre a Lei absoluta e as leis, do conflito interminável entre hospedeiro e hóspede. O que parece fundamental neste jogo de contingências exposto por Nancy é que ele nunca deixa de lado a contingência pessoal, por mais pungente e dominadora que a proeza técnica se apresente. Pode-se pensar que a proeza técnica sempre deixa resto. A contingência técnica não esgota a contingência pessoal, assim como as leis do direito não esgotam a hospitalidade absoluta.
É possível insistir com a técnica. Quando trata da hospitalidade, Derrida pensa como as possibilidades oferecidas pela internet confundem ou embaralham os domínios do público e do privado. Numa sociedade midiatizada, talvez esta seja uma das discussões em voga. Derrida lembra que se avançou do sistema epistolar (a carta tradicional) para o sistema de correio eletrônico (o e-mail). Ou poder-se-ia pensar ainda o telefone. Para Derrida, caso se mantivesse a mesma lógica, a da comunicação interpessoal entre sujeitos que assim o desejam (contatos amorosos, profissionais, etc), o e-mail nada seria do que uma carta sem papel e que poderia ser “enviada” ao interlocutor a uma velocidade infinitamente superior; neste caso, o e-mail seria um facilitador para quem se interessasse em trocar mensagens pessoais com maior agilidade. A questão, no entanto, é que o e-mail está inserido na rede, na internet, um espaço virtualizado que carece de legislação bem definida, que carece de domínio. Aí surgem as interceptações telefônicas, as violações de correios eletrônicos, o armazenamento de informações pessoais dos usuários por parte de empresas ou organizações de controle (criminosas ou não), etc. Enfim, as possibilidades tecnocientíficas abalam as categorias do público e do privado. Não seria bem visto que o Estado invadisse a bel prazer os dados pessoais dos usuários comuns, mas ao mesmo tempo não geraria grande alarde caso esta invasão fosse necessária para desvendar crimes de pedofilia – está-se, quem sabe, como aponta Derrida, diante da interminável discussão a respeito da democratização da informação que, no seu centro, encara a figura do Estado de maneira dúbia, já que ele muda constantemente de papel, alternando entre a figura do censurador (violador) e a do regulador, aquele que deve oferecer o acesso ilimitado e democrático, mas ao mesmo tempo não pode exagerar no controle. Na linha de Derrida, está-se diante da inviolabilidade do “em casa”.

Todas essas possibilidades tecnocientíficas ameaçam a interioridade do em-casa (“não se consegue mais estar sossegado em casa!”) e, na verdade, a própria integridade do ente, da ipseidade. Todas essas possibilidades são sentidas como ameaças que pesam sobre o território próprio do próprio e sobre o direito de propriedade privada (DERRIDA, 2003, p. 47).

Não se trata de provar que a força opressora e controladora do Estado invade o domínio íntimo do cidadão. O próprio Derrida mostra que as incalculáveis ramificações da técnica moderna, os microcosmos da informação na internet, a virtualidade impalpável da comunicação em rede ameaçam, de igual maneira, o controle do Estado.

O Estado, cada vez menor, mais fraco do que essas potências privadas anestatais ao mesmo tempo infra e supra-estatais, o Estado clássico – ou a cooperação de Estados clássicos – faz esforços gigantescos para agarrar e vigiar, conter e reapropriar-se daquilo que se lhe escapa velozmente (DERRIDA, 2003, p. 51).

Não parece que seja o momento, no entanto, de avaliar até que ponto as possibilidades oferecidas pela internet (ou pela técnica em geral) contribuem para a subversão das forças do Estado ou apenas circulam alienadamente entre os tentáculos que dele se desprendem e por ele são controlados. Num primeiro momento, e este é ponto a ser enfatizado, o exemplo que traz Derrida do correio eletrônico – talvez num esforço de aproximar a discussão de elementos contemporâneos – aponta para o conflito entre o público e o privado, o dentro e o fora, o hospedeiro e o hóspede, o dono da casa e o intruso, o coração enfraquecido e o coração transplantado.

Hoje em dia, uma reflexão sobre a hospitalidade pressupõe, entre outras coisas, a possibilidade de uma delimitação rigorosa das soleiras ou fronteiras: entre o familiar e o não-familiar, entre o estrangeiro e o não-estrangeiro, entre o cidadão e o não-cidadão. Mas primeiramente entre o privado e o público, o direito privado e o direito público, etc (DERRIDA, 2003, p. 43).

Mais do que pensar especificamente no público ou no privado, mais do que supor quem leva vantagem – se o público (que poderia ser traduzido neste caso peculiar pela força do estado) invade o domínio do privado ou, ao contrário, se o privado mantém traços indomináveis – é preciso pensar a fronteira, o limiar, a soleira. Fronteira que, menos do que segregar e impor barreiras, fragiliza-se e permite o contato. “A fronteira é presa de uma turbulência jurídico-política em vias de desestruturação-estruturação, desafiando o direito existente e as normas estabelecidas” (DERRIDA, 2003, p. 45). De volta à Nancy, pode-se pensar no próprio corpo do autor como esse espaço público-privado, espaço que é próprio (o texto evidencia o sofrimento de Nancy e expõe as dificuldades e complicações de um tratamento desta complexidade), mas que precisa ser invadido (violado) constantemente para o aferimento dos processos vitais e para a manutenção do estado saudável do paciente. Na situação do transplantado, as invasões são diárias e as limitações impostas são inúmeras.
Na hospitalidade de Derrida, o que reclama na chegada do intruso é justamente o que há de mais familiar no hospedeiro, o seu “em casa”. Em Nancy, a presença do “extranjero múltiple” (2006, p. 26) provoca a “suspensión del continuum de ser, una escansión en la que ‘yo’ no tiene/no tengo demasiado que hacer. La revuelta y la aceptación son igualmente ajenas a la situación” (2006, p. 26). Como já foi dito, Nancy transforma-se em intruso de si mesmo. E isso é exposto, mais uma vez, no próprio corpo de Nancy. Inicialmente, seu organismo apresenta rechaço em relação ao novo coração transplantado, o que o leva a tomar uma série de medicações a fim de que resista ao transplante. O corpo de Nancy passa a ter os aspectos imunológicos radicalmente alterados, já que seu organismo precisa adaptar-se ao novo órgão. Ainda assim, “los enemigos más vivos están en el interior: los viejos virus agazapados desde siempre a la sombra de la inmunidad, los intrusos de siempre, puesto que siempre los hubo” (2006, p. 34). Desta forma, o fato de Nancy transformar-se em estrangeiro para si mesmo “no me acerca al intruso” (2006, p. 32) e “una ajenidad se revela ‘en el corazón’ de lo más familiar” (2006, p. 19). O fato de Nancy transformar-se em intruso de si mesmo, o fato de perceber a estranheza no que lhe há de mais familiar não o faz encontrar-se ou descobrir o “eu” essencial e subjetivo. Se alguma subjetividade surge através desta invasão ao seio do familiar, ela se dá por meio da dessubjetivação. Sobre isso, e para concluir este trabalho, chega-se em Giorgio Agamben.
Em O que resta de Auschwitz (2008), Agamben lembra que “o campo é, de fato, o lugar em que desaparece radicalmente toda distinção entre próprio e impróprio, entre possível e impossível” (AGAMBEN, 2008, p. 82), já que, entre outras questões levantadas no centro desse lugar-limite, ocorre a criação do muçulmano, que introduz o inumano no humano e desloca as categorias próprias daquilo que poderia constituir o homem ou o ser humano. A figura do muçulmano confundiria igualmente as categorias da vida e da morte, já que o prisioneiro em tal condição não responderia mais a estímulos psíquicos ou sensoriais, mas apenas manteria uma vida fisiológica, entregue, nas palavras de Agamben, a uma vida nua. A partir daí, está exposta a cesura incontornável que carrega a falta de coincidência entre o ser biológico e o ser pensante, entre o ser que sonha e o ser em vigília.

Nada parece consentir tal coincidência, tanto no desenvolvimento cíclico dos processos corpóreos, quanto na série dos atos intencionais da consciência. Pelo contrário, eu significa precisamente a separação irredutível entre funções vitais e história interior, entre tornar-se falante do ser vivo e o sentir-se vivo do ser falante. Certamente as duas séries caminham uma ao lado da outra e, por assim dizer, em absoluta intimidade (AGAMBEN, 2008, p. 128).

Mas é a definição de vergonha de Agamben, que ele desenvolve principalmente a partir de Emanuel Levinas e Martin Heidegger, que permite fechar a reflexão proposta neste trabalho. Segundo Agamben, a vergonha, ao contrário do que se costuma entender em sentido comum, não estaria ligada ao sentimento de culpa ou a uma imperfeição do sujeito que este precisaria esconder dos outros. A vergonha seria “a presença do eu a si mesmo”, momento em que, “superado pela sua própria passividade, pela sua sensibilidade mais própria”, o ser é “entregue a um inassumível” (AGAMBEN, 2008, p. 102) que não provém do exterior mas da própria intimidade, daí os exemplos das necessidades fisiológicas ou da nudez. A vergonha seria a exposição inevitável daquilo que o sujeito não tem condição de esconder.

É como se nossa consciência desabasse e nos escapasse por todos os lados e, ao mesmo tempo, fosse convocada, por um decreto irrecusável, a assistir, sem remédio, ao próprio desmantelamento, ao fato de já não ser meu tudo o que me é absolutamente próprio. Na vergonha, o sujeito não tem outro conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do próprio desconcerto, da própria perda de si como sujeito. Esse duplo movimento, de subjetivação e de dessubjetivação, é a vergonha (AGAMBEN, 2008, p. 110).

Não é isso que faz Nancy, testemunhar a própria dessubjetivação? Na medida em que tem o que pode haver de mais próprio (e impróprio) descoberto, o seu corpo, Nancy experimenta esse afastamento de si mesmo e, na linha de Agamben, não tem outra saída senão acompanhar, como testemunha privilegiada, as intervenções que lhe acometem o corpo. Atravessado por tubos e válvulas, supervisionado periodicamente pelos médicos e tendo a necessidade de ingerir medicamentos regularmente, Nancy não se sente mais à vontade para dizer “eu”. Ele sente ruir a categoria do próprio, numa existência contingencial que extrapola os limites da explicação racional. Mas, ao mesmo tempo em que tem a subjetividade dissolvida, só lhe resta a inevitável alternativa de testemunhar a própria dessubjetivação. Embora Nancy não utilize o termo vergonha em El intruso, a ligação com o conceito de vergonha de Agamben, enquanto “sentimento fundamental do ser sujeito” (2008, p. 112), que abarca os dois sentidos opostos do sujeito, “ser sujeitado e ser soberano” (2008, p. 112), é permitida a partir da ideia de uma abertura (no caso de Nancy a do próprio peito) da própria intimidade ou do próprio. “Ela (a vergonha) é o que se produz na absoluta concomitância entre uma subjetivação e uma dessubjetivação, entre um perder-se e um possuir-se, entre uma servidão e uma soberania” (2008, p. 112). Após todo o processo que envolve o transplante, Nancy diz que “la  relación consigo mismo se convierte en un problema, una dificultad o una opacidad: se da a través del mal o del miedo, ya no hay nada inmediato, e las mediaciones cansan” (NANCY, 2006, p. 40). El intruso poderia ser resumido como um esforço poético de Nancy na tentativa de expor o próprio processo de dessubjetivação.

Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad.: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção (Homo Sacer II, I). Trad.: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jaques Derrida a falar Da Hospitalidade/Jacques Derrida [Entrevistado]; Anne Dufourmantelle. Trad.: Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.
NANCY, Jean-Luc. El intruso. Trad.: Margarita Martínez. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.: José Oscar Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 53.

Notas
1 O texto foi publicado pela primeira vez na revista Dédale, no número intitulado La venue de l’étranger, a convite de Abdelwahab Meddeb (número 9-10, París: Maisonneuve et Larose, 1999).
2 É com a mesma expressão, aliás, antinomia, que Agamben, no livro Estado de exceção: Homo Sacer II, I, fala da ausência de vínculo lógico e racional, no direito, entre a lei e sua aplicação; a incapacidade da lei de enquadrar todos os aspectos possíveis e eventuais que transcorrem na vida cotidiana. Tal antinomia, que expõe a falta de uma conexão sem falhas entre lei e aplicação, entre texto e evento, abre a brecha para a instauração do estado de exceção, que prescinde das leis e elege a arbitrariedade como elo condutor na tomada de decisão do estado totalitário. Ver referência completa da obra no final deste trabalho.
3 É possível evocar o exemplo do personagem Josef K., protagonista do romance O processo, de Kafka, eterno refém da burocracia estatal. Josef parece condenado por um crime que não cometeu e, além de tudo, não tem sequer direito à defesa e nem pode ler os autos do processo. Acusado de não sabe o quê, não resta alternativa ao bancário que não seja caminhar até a morte. Aqui, também as categorias de processo e punição poderiam ser pensadas sob um ponto de vista indiscernível.