O PROCESSO DA REVOLUÇÃO OU A REVOLUÇÃO ENGOLE SEUS MENTORES: FICÇÃO E REALIDADE PELAS LENTES DA SÉTIMA ARTE



Aristides Leo Pardo (UNESPAR / FAFIUV)[1]



RESUMO: Passados apenas dois anos da eclosão da Revolução Francesa, quando um dos líderes revolucionários, Jean Paul Marat é assassinado, os jacobinos, liderados por Maximillien Robespierre, instalam na França uma fase de poderio quase que absoluto de seu grupo. Esta fase entraria para historia como: “período de terror", pois a radicalização revolucionária dos jacobinos inicia um violento processo político com expurgos, manipulação de julgamentos e uma rotina de execuções pela guilhotina, não poupando nem mesmo seus antigos aliados de revolução, como Danton, que contava com o apoio popular e não poupava severas criticas aos rumos que a mesma tomava, e assim, foi mais uma vítima do próprio sistema que ajudara a instaurar. A película do diretor polonês Andrzej Wajda, “Danton: O Processo da Revolução” mostra esta história e ainda leva de forma indireta, a percepção e a comparação do momento vivido pelo personagem central do filme, que muito bem pode ser comparado com a Polônia, dominada pelo socialismo soviético, guiado com mãos de ferro por Josef Stálin, o Robespierre da trama, mostrando assim, que o cinema e a História caminham de mãos dadas.
Palavras-Chave: Revolução Francesa. Cinema. História


INTRODUÇÃO

A Revolução Francesa foi o principal movimento político e social do século XVIII e marcou não somente a Europa, mas todo o mundo nos séculos seguintes, pois seu caráter democrático e liberal, cujo lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” marcou a queda da monarquia e a ascensão política da classe burguesa, que contou no primeiro momento, com o apoio popular para extirpar os vestígios feudais do Antigo Regime.
Liderada pelos jacobinos, corrente formada pela pequena burguesia, inaugurou a fase popular da revolução, comandados por Robespierre e Saint-Just, sendo precedido do período em que ficaria denominado como “do terror". A França estava sendo governada por uma nova assembléia denominada Convenção, instalada após o assassinato do líder jacobino Jean Paul Marat.
Com a criação do Comitê de Segurança Nacional, que garantia a segurança interna, e o Tribunal Revolucionário, encarregado de julgar supostos contrarrevolucionários, o terror revolucionário se espalhou por toda França, pois os condenados, inevitavelmente iam parar na guilhotina.
 Apesar do regime ditatorial de Robespierre, apoiado por grupos extremistas, defensores das violentas medidas, o país conheceu significativos avanços populares, como a abolição da escravidão nas colônias francesas, o sufrágio universal, a obrigatoriedade do ensino, o aumento dos impostos dos ricos e o confisco de bens dos nobres e dos emigrados. Essas medidas provocaram uma reação, que fora julgada pelo tribunal, como contrarrevolucionária, e seus acusados, condenados a morte. Alguns autores falam na morte de cerca de 20 mil suspeitos de estarem contra o movimento.
Nem mesmo membros da Convenção e mentores do regime, não seriam poupados por suas críticas aos rumos que a revolução estava tomando, e assim, acabariam também condenados à guilhotina, como foi o caso de Georges Danton, antigo companheiro de Robespierre, e que lutava para por fim as perseguições sumárias.
Mostrado no filme, “Danton: O Processo da Revolução” (Wajda, 1983) o personagem título, interpretado por Gérard Depardieu profetizava em sua hora derradeira: “Sem mim a Revolução não dura três meses”. E realmente não tardou para ruir, pois até mesmo os principais mantenedores da prática da degola de opositores, Robespierre e Saint-Just, foram aprisionados, julgados e condenados à mesma guilhotina para a qual mandaram milhares de pessoas. A partir daí, a revolução tomaria novos rumos e agora sob o comando dos Girondinos (representantes da alta burguesia), que assumem o poder Iniciando outra etapa da Revolução Francesa.
A obra fílmica de Wajda (1983) mostra justamente esse período da Revolução, analisado nestas paginas pelo prisma de uma possível visão do diretor sobre a condenação de Danton e a possível transposição da passagem histórica ocorrida na França dos finais do século XVIII, para a realidade vivida pelo diretor da obra, um polonês, que viu seu país ser governado por décadas, pela vontade da União Soviética Stalinista. Seria na visão de Wajda, Danton, o “Povo Polonês” sofrendo pelas decisões de um “Robespierre russo”?

A REVOLUÇÃO E O TERROR REVOLUCIONÁRIO

A palavra revolução vem sendo utilizada nos últimos tempos, para nomear revolta e golpes. Silva; Silva (2010, p. 362) define o termo revolução, como um processo de mudança das estruturas sociais. Os autores dizem que a palavra surgiu no período do Renascimento, como referência ao movimento dos corpos celestes, ganhando significado político apenas no século XVII, com a Revolução Inglesa, e completa:

Nesse período, revolução significava retorno à ordem política anterior que tinha sido alterada por turbulências. Assim, naquele momento, a Revolução Inglesa não foi entendida como uma guerra civil e a ascensão de Cromwell, mas a volta à monarquia. Somente com a Revolução Francesa o termo ganhou o significado que tem hoje: o de uma mudança estrutural, convulsiva e insurrecional. (SILVA; SILVA, 2010, p. 362).

Darton (2010, p. 23) diz que: “Ninguém estava preparado para uma revolução em 1789” e confirma a ideia dos autores acima citados ao afirmar que:
A própria ideia nem sequer existia. Se vocês procurarem a palavra revolução nos dicionários correntes do século XVIII, vão encontrar definições derivadas do verbo revolver, tal como a volta de um planeta ou uma estrela ao mesmo ponto de partida, (DARTON, 2010, p. 23).

A Revolução Francesa se iniciou durante a segunda metade do século XVIII, quando a França passava por uma grave crise econômica devido a inúmeras guerras e luxos da nobreza, que empobreceram o tesouro nacional, sendo necessário à cobrança de altos impostos, além do aumento excessivo dos preços dos alimentos. A fome e miséria estavam por toda a parte.
Como medida para buscar as soluções para a grave crise, Luís XVI convocou os Estados Gerais, porém, este encontro só serviu para o aumento das tensões, pois cada grupo tinha interesses divergentes. Não concordando com a ordem dada pelo rei, de dissolução dos Estados Gerais, o “Terceiro Estado”, representante popular, instaurou a Assembléia Nacional Constituinte, que tinha como objetivo votar uma Constituição que colocasse fim aos poderes e privilégios da nobreza e do clero.
Luis XVI concentrou as tropas reais ao redor de Paris e ordenou a prisão dos deputados rebeldes. Essa atitude originou um movimento popular, que culminou com a tomada da fortaleza da Bastilha, em 14 de Julho de 1789, e posteriormente a criação de uma guarda nacional e a escolha de um novo local para a administração pública. Neste momento iniciava-se a Revolução Francesa.
Silva; Silva (2010, p. 366) discorre que; “talvez nenhum outro episódio histórico tenha sido tão debatido quanto a Revolução Francesa” e segue o raciocínio:

A Revolução Francesa é um desses acontecimentos que suscitam paixões, estimulando debates e polêmicas. Não podia ser de outro modo: trata-se de um fato político da maior relevância para toda uma época. No geral, a Revolução Francesa é reconhecida como o nascimento da democracia moderna, pois enquanto a sociedade do Antigo Regime se fundamentava na desigualdade entre os homens, surgiu pela primeira vez na história uma revolução que tinha como bandeira a igualdade, a soberania do povo, a liberdade, a ideia de Direitos do Homem. (SILVA; SILVA, 2010, p. 362).

Com o poder nas mãos dos revolucionários, o país assistiu a significativas mudanças sociais, que visavam minar imediatamente, o poder da Igreja, que viram abolidos seus privilégios feudais, assim como a nobreza, que perdeu seus títulos e brasões. Darnton (2010, p. 29) mostra-nos que aos cidadãos são dados direitos, “até então inimagináveis, como: a autorização ao divórcio, reconhecimento de filhos ilegítimos, abolição do direito de primogenitura, liberdade civil, igualdade perante a lei, entre outras”.
As fronteiras entre a vida privada e a vida pública foram praticamente rompidas, pois qualquer interesse particular que não fossem em prol do nascente regime ou do povo, era rotulado como traição ou contrarrevolucionário. Hunt (2009, p. 18) diz que: “Durante a Revolução, as fronteiras entre a vida pública e a vida privada mostraram uma grande flutuação. A coisa pública, o espírito público, invadiu os domínios habitualmente privados da vida” e prossegue afirmando que:

Nada que fosse particular (e todos os interesses eram particulares por definição) deveria prejudicar a vontade geral da nação. (...) a política de grupos privados e de particulares – viraram sinônimo de conspiração, e os “interesses” significavam “traição à nação”. (HUNT, 2009, p. 18).

Todos os aspectos da vida privada eram cuidados pelo interesse público, incluindo também questões de comportamento e a preocupação com o vestuário, como apresenta Hunt (2009, p. 21) na seguinte passagem: “Desde a abertura dos Estados Gerais, em 1789, a roupa possui um significado político (...). Ela revelava o significado público do homem privado. Os moderados e os aristocratas eram identificados por sua recusa em usar a roseta”.
Aprovada pela Assembleia Nacional, em agosto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que baseada nas idéias de “Liberté, Igualité e Fraternité” trazia em seu artigo primeiro a seguinte sentença: “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, deixando clara a diferença da nova realidade, para o período em que uma pequena parcela da população, formada por nobres e religiosos recebiam tratamento diferenciado. O mesmo texto ainda traria outros pontos, que a primeira vista, beneficiaria a toda população:

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.
Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.
Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
(...)
Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
(...)
Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.

É possível perceber que o documento pregava a igualdade entre os cidadãos e os interesses do estado acima de todos os outros, embora seus artigos pudessem levar a várias interpretações que poderiam ser usadas pelos que detinham o poder. E eles a usaram, de maneira muito eficaz, para prevalecerem seus interesses particulares deixando de modo claro para o povo, que desde o início, que aquele regime também não teria eles como prioridade, apesar dos belos textos da Declaração.



Após o assassinato de Marat, o regime de extermínio dos opositores da revolução aumenta desenfreadamente, chegando ao número de vinte mil condenados, segundo alguns autores.
O poder está oficialmente nas mãos da Convenção, mas o todo poderoso desta fase é Robespierre, que comanda a fase da revolução que é conhecida como “Período do Terror” e segundo diz Darton (2010, p. 33), “O terror foi terrível. Apontou a via para o totalitarismo. Foi o trauma que marcou a história moderna em seu nascimento.” E prossegue seu raciocínio dizendo que: “Seria ótimo se pudéssemos associar a Revolução exclusivamente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas ela nasceu na violência e imprimiu seus princípios num mundo violento”. (DARTON, 2010, p. 33).
Foi diante deste quadro de drásticas transformações que o advogado Georges Jacques Danton começa a se destacar no processo revolucionário, sendo um dos mais ativos membros de um dos principais grupos políticos que atuaram na Assembléia Constituinte, a Sociedade dos Amigos da Constituição, que se reuniam no refeitório do convento dos Jacobinos e que se tornaria a ala mais radical da revolução e que instituiria o período do terror, como forma de eliminar opositores, mas estas medidas ironicamente levaram seus próprios criadores para a guilhotina.
Danton surge como uma querida figura com amplo apoio popular e com o desejo de combater as execuções sumárias, que ele mesmo ajudou a instituir, se contrapondo assim, com seu antigo companheiro de revolução, Robespierre. A notabilidade com as massas e suas idéias contra o regime instituído, faz com que Danton se torne um inimigo inconveniente e um grande obstáculo ao projeto de poder de Robespierre.
O povo também agia de forma a garantir seus mínimos vitais, mesmo sob o medo de serem detidos e julgados sumariamente, mas a fome era um “fantasma” que “assombrava” a toda população. Darton (2010, p. 33) cita a seguinte passagem que exemplifica as atitudes populares, envolta a boatos e incertezas: “Uma semana depois, num paroxismo de fúria pelos altos preços do pão e boatos sobre conspirações para matar os pobres de fome, uma multidão linchou um funcionário do Ministério da Guerra”.
Por suas atitudes combativas, Danton e seus partidários são aprisionados e julgados pelo tribunal revolucionário, em mais uma “encenação” de julgamento, pois todos sabiam que seriam condenados inevitavelmente à pena capital, como muitos outros foram, porém, Danton pensou que ainda poderia insuflar a população a seu favor, livrando-se da guilhotina e ao mesmo tempo colocando as massas contra Robespierre.
Essa estratégia não surtiu efeito, pois as classes populares, por mais que apoiassem Danton, também temiam ter o mesmo fim.



O PROCESSO DA REVOLUÇÃO AOS OLHOS DA SÉTIMA ARTE

Recentemente reconhecido pela academia como um importante documento de pesquisa histórica, o cinema (inclui-se filmes e documentários), desde seus passos iniciais, sempre buscou o resgate dos temas históricos, mesmo com uma versão romanceada, seja por motivos mercadológicos ou ideológicos, se transformou em importante e eficiente objeto de análise, nem tanto pela trama apresentada em si, mas como produto da sociedade que produziu. Mas nem sempre foi assim, como mostra Mocellin (2002, p. 8).

No início do século XX, o filme não era visto como objeto cultural. Afirmava-se que algo produzido por uma máquina não poderia ser uma obra de arte. O “homem da câmera” era considerado um simples caçador de imagens, portanto não pertencia ao mundo dos letrados. Havia, da parte das classes dirigentes, certo desdém, quando não desprezo por esses “caçadores de imagens”. (MOCELLIN, 2002, p. 8).

Mocellin (2002, p. 8) segue informando, que foi o escritor italiano de cultura francesa, Ricciotto Canuto, por volta de 1911, quem primeiro compreendeu o potencial do cinema. Para Canuto, o cinema vinha somar-se às artes tradicionais de então, como: a arquitetura, a música, a pintura, a escultura, a poesia e a dança. “Foi ele quem usou pela primeira vez a expressão ‘A Sétima Arte’”.
 Precisamos de alguns cuidados ao analisar uma obra fílmica de caráter histórico, pois Mocellin (2002, p. 6) nos alerta que:

Os filmes estão impregnados de valores da época em que foram produzidos. É preciso ter em mente que os filmes históricos ou documentários tentam recriar e reconstruir cenários históricos nos quais as intenções, e, sobretudo, a ideologia (explícita ou dissimulada), tanto dos diretores, produtores, pesquisadores e cenógrafos quanto dos atores, devem ser avaliadas. É preciso, portanto, conhecer a sociedade que produz o filme, para torná-lo operacional, eficaz para a sociedade que o recepciona. Mocellin (2002, p. 6)

O filme aqui trabalhado retrata de maneira explícita, que a República estabelecida na França em fins do século XVII negou ao povo, suas principais essências, já que a liberdade de expressão para o povo não era permitida para que não houvesse contestação dos líderes revolucionários, sob pena de acabarem presos julgados e inevitavelmente condenados à morte, em acusações de serem contrarrevolucionários.
A igualdade e fraternidade também só ficaram na Declaração dos Direitos do Homem, pois a França passava por grandes crises econômicas e escassez de alimentos, com o povo vivendo na miséria e sendo relegados ao segundo plano em detrimento dos interesses da nova burguesia que tomara o poder e eliminava seus opositores.
Logo nas cenas iniciais do filme vê-se um menino tomando banho e sendo sabatinado acerca dos artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e a cada falha, recebe uma palmatória, que nos remete a obrigatoriedade de se conhecer e cumprir as novas regras que agora estavam acima de tudo e de todos. Podemos pensar se o menino pelado poderia representar o povo, obrigado a acatar e a obedecer aos novos dogmas, e ainda o banho nos remeter a uma “lavagem” alusiva ao antigo regime, derrubado pela recente república, que se propôs “limpar” a França dos resquícios feudais e absolutistas.   
Wajda (1983) mostra em sua obra fílmica o fato de que Robespierre agia acima das leis, ditando regras a seu bel prazer, sem se preocupar com a Convenção, desrespeitando nitidamente o processo de institucionalização, sendo assim, logo foi perdendo a confiança popular, que passou a ver o novo regime ganhando semelhanças com a monarquia recém-destituída.
Colocando em oposição os dois principais personagens daquele período da Revolução, que outrora foram aliados e juntos contribuíram para a instalação republicana, o filme mostra de um lado Danton “arrependido” do monstro que ajudara a criar e que luta para o fim dos julgamentos e execuções sumárias, e do outro, um Robespierre, que agora no centro do poder, faz de tudo para manter sua posição e garantir o processo revolucionário segundo sua ótica e interesses próprios, e de seus principais aliados, também temerosos de punição em caso se oposição.




 Em uma das cenas de debates na Assembleia Nacional vemos a dualidade entre os apoiadores de Danton e os seguidores de Robespierre. Foi neste período que nasceram os termos amplamente utilizados até hoje na política, “direita” e “esquerda”, como aponta Darton (2010, p. 24) na seguinte passagem: “Desenvolveram novas categorias básicas, como “esquerda” e “direita” e que derivam da disposição dos lugares na Assembleia Nacional”.
Através da película é possível observar como se dava as reuniões da cúpula revolucionária, temerosa com a popularidade de Danton, mas receosos de levá-lo a julgamento, pois se tornara uma “pedra no sapato” dos caminhos da revolução, mas detinha o apoio do povo.
Essa passagem mostra bem a preocupação com a opinião pública e a importância atribuída à imprensa, pois vemos também a destruição da gráfica de Camille Desmoulins, que edita o jornal “Le Vieux Cordelier”, que apoia Danton no combate ao terror; e a cooptação do jornalista para a propaganda revolucionária, assim como a proibição da imprensa de retratar fidedignamente o julgamento de Danton e seus aliados, quando os jornalistas foram proibidos de fazerem qualquer tipo de anotação.
Lembramos que um dos líderes revolucionários, Jean Paul Marat, editava o jornal “Amigo do Povo”, que insuflou a decapitação de milhares de pessoas acusadas de estarem conspirando contra o regime.
Após a execução de Danton, o mesmo menino do início do filme, também o encerra, declamando mais uma vez a Declaração dos Direitos do Homem, mostrando que ao menos o princípio de igualdade, em certo ponto fora atingido, pois o mesmo grupo que construiu todo o processo revolucionário foi igualmente por ela, “devorado”.

DANTON, O POVO POLONÊS?

Ao analisarmos uma reprodução de um fato histórico, seja eles, uma foto, um texto, um filme, ou outras fontes, precisamos ter em mente os ensinamentos de Veyne (1998, 35 p.) que nos diz que: “quando dirigimos nossos olhares para o arcaico não conseguimos trazer a história em sua totalidade, mas apenas seus fragmentos” e completa, dizendo que as lacunas abertas, são o trabalho dos historiadores que preenchem e interpretam os fatos narrados pelas fontes.
Mocellin (2002, p. 32) também trilha por esse caminho ao dizer que as reproduções históricas do cinema, estão impregnadas de valores da sociedade que a produziu, portanto, é fundamental verificar a “A Sociedade que produz e a sociedade que recebe o filme”.  E continua dizendo que: “É bom lembrar que um filme é apenas a representação de uma época e que não tem necessariamente maiores compromissos com o que aconteceu de fato”. (MOCELLIN, 2002, p. 36), pois o filme aqui apresentado é uma coparticipação de representantes do cinema francês e polonês, sobre um acontecimento histórico de quase duzentos anos antes, e conclui com a seguinte afirmativa:

É ingenuidade acreditar que, ao assistir um filme sobre um determinado tema, você estará apto a discutir o assunto. Um filme sobre a Revolução Francesa, como por exemplo, “Danton: O Processo da Revolução” apresenta uma leitura fragmentada da Revolução, segundo a ótica de um cineasta, e não reflete necessariamente aquilo que de fato aconteceu. É uma tentativa de reconstrução do passado que não coincide com a visão de boa parte dos historiadores. (MOCELLIN, 2002, p. 37)

Em algumas cenas do filme podemos notar que de maneira sutil, o diretor da obra cinematográfica, o polonês Andrzej Wajda, faz críticas ao período em que a União Soviética dominou seu país. Podemos a partir desta ideia, supor que o personagem de Danton pudesse representar o povo polonês, sufocado pela tirania do líder russo, representado por Robespierre.
As condições da grande massa da população francesa retratada no filme podem ser também alusivas à situação vivida pelo povo polonês durante o domínio soviético.


Mas a passagem mais clara de que o diretor insinua suas críticas aos opressores é o momento em que Robespierre está posando para uma foto em um estúdio e é interrompido pelo juiz do tribunal, que está encontrando dificuldades no julgamento de Danton e seus pares, faz com que o líder revolucionário olhe para uma tela que está sendo pintada representando uma cena da revolução e nota a presença de Fabre, e manda de imediato, o artista retirar a imagem do revolucionário da pintura, pois o mesmo é um dos aliados de Danton que está sendo julgado no mesmo caso.
Este fato pode ser passado despercebido por muitos, mas nos remete claramente ao momento em que o líder Josef Stálin, manipula toda a historiografia soviética, com a finalidade de apagar a imagem de antigos aliados, que passaram a fazer oposição ao seu governo, sendo o mais famoso destes casos, a figura do criador do Exército Vermelho, Léon Trotski. 
Mocellin (2002, p. 37) diz que:

O Uso do cinema como veículo de propaganda, doutrinação e falseamento do passado vem de longe. O cinema soviético (glorificando o socialismo), o cinema nazista (antissemita e belicista, porém de ótima qualidade estética) e o cinema americano (sofisticada máquina de alienação) muito contribuíram para fins políticos e contrabandos ideológicos.


E é justamente nesse caminho que podemos suspeitar de que a intenção do diretor ao imaginar as cenas do seu filme, possa, de forma discreta, ter levado para a “grande tela”, parte de suas percepções pessoais e suas angústias, como parte atuante do povo polonês, representado na trama, por Depardieu e seu Danton. 

CONCLUSÃO

Através da análise atenta da obra cinematográfica de Andrzej Wajda, amparados pelas referências bibliográficas citadas no espaço oportuno é possível verificar parte da reconstrução da história de acordo com a ótica dos produtores de tais materiais e dos interesses e ideologias dos mesmos.
A construção da imagem de grande herói revolucionário, atribuída a Danton na obra cinematográfica pode ter sido influência da parte francesa produtora do filme, de acordo com suas visões e concepções de sua própria história, ou mesmo, influência do diretor polonês de querer suscitar comparações entre o personagem central e o povo da polônia, no qual se inclui.
Mas pouco se fala no filme, de que o regime de terror imposto na França foi elaborado por todo grupo revolucionário, incluindo Danton e seus correligionários, que com ele são julgados e posteriormente condenados.
Portanto, a aura de heroísmo imposta ao personagem em questão é um tanto forçada e derivada de um determinado ponto de vista, pois quais seriam as reais intenções dele? Simplesmente por fim ao terror ou simplesmente ascender o poder? São fatores que devem ser lembrados e levados em conta.
Veyne (1998, p. 26) nos fala acerca dos livros de história, mas que pode ser transferido para o universo fílmico quando diz que:

Por baixo da superfície tranquila da narrativa, o leitor, a partir do que parece dar a este ou aquele tipo de fato, sabe inferir a natureza das fontes utilizadas, assim como as suas lacunas e essa reconstituição acaba por tornar-se um verdadeiro reflexo; Ele adivinha o lugar das lacunas mal preenchidas, não ignora que o número de páginas concedidas pelo autor aos diferentes momentos e aos diversos aspectos do passado é uma média entre a importância que estes aspectos têm a seus olhos e a abundância da documentação. (VEYNE, 1998, p. 26)

As ações de um ou outro personagem de um filme são fruto da intenção das mensagens que seus produtores querem passar, de acordo com suas percepções ou interesses e como diz Carvalho (2000, p. 13), que: “O passado serve ao futuro no presente, por quê? Porque todo julgamento infalivelmente depende de comparação. Ora, haverá melhor parâmetro do que o registro das ações, fruto do comportamento humano”.
Mocellin (2002, p. 37) nos alerta que precisamos sempre nos atentar nos detalhes das produções cinematográficas e analisá-las com olhos críticos, e completa que: “Saber discernir o que é ficção do que é histórico e perceber a real intenção dos cineastas ao produzir um filme é fundamental para quem pretende utilizar o cinema como um recurso paradidático”.
As críticas supracitadas em momento algum pretendem tirar os méritos do filme, que apesar de representar a visão dos produtores do mesmo, acerca da Revolução Francesa, se torna um documento de grande importância para se conhecer e analisar esta marcante passagem de nossa história, que se tornou marco e espelho de toda a vida contemporânea, pois levantar questionamentos e debates como os mostrados nestas páginas é objetivo central de toda produção historiográfica.



FONTES:

WAJDA, Andrzej. Danton: O Processo da Revolução. França/Polônia: Pole Vídeo, 1983, 121min.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Waldir P. Campos Depois do Centenário, 2. ed. v. 3. Campos dos Goytacazes: Vionetos e Filhas, 2000.

DARTON, Robert. O Beijo de Lamouriette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HUNT, Lynn. A Revolução Francesa e a vida privada. In PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada 4: Da revolução Francesa à Primeira Guerra, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MOCELLIN, Renato. O Cinema e o Ensino da História. Coleção Revisitando a História. Curitiba: Nova Didática, 2002.

SILVA, Kalina; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2009.

VEYNE, Paul. Como se Escreve a Historia e Foucault Revoluciona a Historia. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 1998.


[1] Jornalista formado pelo UNIFLU, Campus FAFIC, em Campos dos Goytacazes/RJ (2007), Especialista em História: Cultura, Memória e Patrimônio (2014), pela UNESPAR, campus FAFIUV, de União da Vitória/PR e Graduando do 4º ano do Curso de História na mesma instituição.