Juan
Manuel Terenzi
Mestre
em Literatura (UFSC)
jmterenzi@hotmail.com
RESUMO:
A origem mostra-se como um enigma desde que o ser humano decidiu lançar-se ao
encontro dela. Entretanto, esta busca arriscada pode levá-lo ao abismo do
sem-fundamento, além de não obter respostas convincentes. Se por um lado o Big Bang tenta explicar a origem do
universo, no escopo das artes visuais a caverna de Lascaux é considerada hoje o
ponto da ‘explosão estética’. Neste trabalho iremos partir de Lascaux e as
leituras teóricas efetuadas por Georges Bataille e Jean-Luc Nancy, para em
seguida abordar o problema da origem da deusa da beleza, Afrodite. Por fim,
propomos a leitura que Blanchot faz do Livro de Mallarmé e as múltiplas
implicações que dela derivam. Sem buscar respostas definitivas, propomos apenas
que o triplo caminho da errância nos convide ao seu percurso.
Palavras-chave:
origem, Lascaux, Afrodite, Livro, errância.
O
que atrai o escritor, o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é
sua busca, o movimento que conduz a ela, a aproximação que torna a obra
possível: a arte, a literatura e o que essas duas palavras dissimulam. Por isso
um pintor, a um quadro, prefere os diversos estados desse quadro. E o escritor,
frequentemente, não deseja acabar quase nada, deixando em estado de fragmentos
cem narrativas que tiveram a função de conduzi-lo a determinado ponto, e que
ele deve abandonar para tentar ir além desse ponto.
Maurice
Blanchot
1.
Obscuro início da arte: Lascaux e o surgimento do homo ludens
Em meados do século XX
o ser humano deparou-se com o mistério da caverna de Lascaux[1],
cujo interior alberga uma quantidade enorme de desenhos e pinturas
representando principalmente o enfrentamento do homem com animais selvagens, e
que de forma alguma iremos nesta pesquisa classificá-las de primitivas. Assim,
apresentou-se diante de nós o enigma da origem.
Ao tratarmos de origem ingressamos no campo da mistura, termo este que se vincula com o turbilhão proposto por Walter Benjamin. O homem de Lascaux
valendo-se de inúmeros materiais para dar vazão ao impulso de deixar uma marca
na caverna, inclusive utilizando o próprio sangue, deixa-nos a memória, em meio
a tantas preciosidades, da famosa representação do homem com cabeça de pássaro
e pênis ereto confrontado com um bisonte provavelmente morto. As figuras itifálicas abundam no interior da caverna:
El arte (la representación), que no aparece en la
época del hombre de Neandertal, comienza con el Homo sapiens, que por otra parte nos ha dejado escasas imágenes de
sí mismo. Esas
imágenes son en principio itifálicas. (BATAILLE, 1960, p.47)
Bataille, em Les larmes d’Eros (1961) se detém
especificamente nesta figura e aborda uma relação fundamental que perpassa boa
parte de seu pensamento crítico e literário: a morte e o erotismo. Eros e
Thanatos caminham juntos nesta fruição pictórica. O pensador francês observa a
relação entre esta pintura e o tema bíblico do pecado original:
“el tema del pecado original!, el tema de la leyenda bíblica!, la muerte
vinculada al pecado, a la exaltación sexual, al erotismo!” (BATAILLE, 2002, p.52). No parágrafo
seguinte Bataille reforça a ideia de enigma: “Sea como sea, esta cueva plantea,
en una especie de pozo que no es sino una cavidad natural, un enigma
desconcertante”. (ibid., p.53)
Associa-se a caverna a
um poço e, por surpreendente que possa parecer, a uma cavidade natural que
retém em si a fecundidade da arte. Não podemos deixar de mencionar o aspecto de
nascimento que aqui se apresenta, e Lascaux irromperia como um útero fértil em
imagens. O pensador
francês, Jean-Luc Nancy, compartilha deste pensamento e aponta para o aspecto
ontológico de Lascaux quando diz que: “Así, la pintura que comienza en las
grutas [...] es en primer lugar la mostración del comienzo del ser, antes de
ser el inicio de la pintura” (NANCY, 2008, p.103). Também
podemos ponderar a respeito do conceito de jogo que se encontra relacionado com
a arte, se continuarmos acompanhando a reflexão de Bataille proposta em Les Larmes d’Eros, quando ele aponta
para a distinção entre trabalho e atividade lúdica:
En
el momento en que, vacilante, apareció la obra de arte, el trabajo era, desde
hacía cientos de miles de años, la obra principal de la especie humana. Al fin
y al cabo, no es el trabajo, sino el juego, el que tuvo un papel decisivo en la
realización de la obra de arte y en el hecho de que el trabajo se convirtiera,
en aquellas auténticas obras de arte, en algo más que una respuesta a la
preocupación por la utilidad (BATAILLE, 2003, p.20)
A fim de que o homem
pudesse desenvolver uma atividade artística é necessária uma equação
fundamental de acordo com Bataille. Se por um lado tínhamos o Homo Faber, responsável pela manufatura
das ferramentas primárias para caçar e poder sobreviver em meio a tanta
competição selvagem, deve-se ter o aporte do Homo Sapiens, para que este contribua na formação e consolidação do
que Huizinga denominara de Homo Ludens
e que Bataille utiliza para enriquecer a sua reflexão. Com o Homo Faber não tínhamos ainda a
possibilidade de regozijar-nos no jogo, e embora as ferramentas sejam obras do Homo Faber que “no siendo ya animal,
tampoco era completamente el hombre de hoy” (ibid., p.37), é preciso que
surja o Homo Sapiens, pois “Denominamos
Homo Sapiens al hombre que abrió el
estrecho mundo del Homo Faber” (ibid.,
p.50). Talvez haja um exagero na equação de Bataille, já que
poderíamos pensar que a fabricação mesma dos objetos, que mais tarde serão
utilizados como protótipos de ferramentas artísticas nas cavernas, possa ser
considerada e estimada como obra de arte. O período obscuro que antecede ao Homo Ludens é visto como algo temível:
“un sentimento de maldición se estabelece con la idea de estos primeros
hombres”
(ibid., p.33). Contudo, gostaríamos de assinalar que a
importância do surgimento do homem de Lascaux, ou Homo Ludens como agora podemos denominá-lo, representa um momento
importantíssimo na história da arte, pelo motivo de que talvez nele esteja
concentrada a mistura da origem vinculada com a arte, mas igualmente do ser
humano tal qual o conhecemos hoje: “Homo
Ludens no tipifica tan sólo aquel hombre cuyas obras dieron a la verdade
humana la virtud y el brillo del arte, sino señala a la humanidad entera” (ibid.,
p.50). E se o Homo Ludens
entra na caverna para deixar a sua marca, esta atitude revela o ritual que deve
ser preparado para que a pintura surja, tal como destaca Nancy quando diz que
“es preciso escuchar al primer cantante acompañar al primer cantor” (NANCY,
2008, p.101)
Empreendendo uma
leitura heideggeriana do que seria a caverna para aqueles homens, Nancy atribui
a esta o caráter de desempenhar o papel do aí[2]
cujo sentido está negado justamente por não ter sentido. Segundo o pensador francês “el ahí es siempre una gruta” (ibid., p.103)
Outro aspecto crucial
para que Lascaux mantivesse vivas as pinturas refere-se à umidade e temperatura
desta imponente caverna que conservaram as “obras de arte” e hoje as paredes podem
ser vistas como molduras do enorme quadro que se apresenta diante de nosso
olhar, sem que elas delimitem e encerrem a intepretação num escopo restrito,
mas sim a potencializem ao máximo, gerando a errância hermenêutica.
O historiador de arte
austríaco Gombrich afirma que “We do not know how art began any more than we
know how language started” (GOMBRICH, 2007, p.39), e mais
adiante no mesmo capítulo intitulado “Strange Beginnings” (claramente mostrando
quão complexa é a nossa relação tanto com aquele ser humano quanto com o
nascimento mesmo da arte), ele ressalta o poder atribuído à imagem pelos homens
de Lascaux:
The most likely explanation of these finds is still
that they are the older relics of that universal belief in the power of
picture-making; in other words, that these primitive hunters thought that if
they only made a picture of their pray – and perhaps belaboured it with their
spears or stone axes – the real animals would succumb to their power. (ibid., p.42)
Entretanto, apesar de
atribuir-se a estas pinturas o propósito protagônico de fornecer uma boa caça,
ou até mesmo representar a caça efetuada com o intuito de agradecimento
(caracterizando um sacrifício), ao mesmo tempo afugentando o medo e a angústia,
optamos por alargar esta leitura e acompanhar as propostas de Bataille e Nancy.
A leitura de Gombrich salienta o primitivismo destes homens, aludindo apenas o
benefício trazido pelas imagens representadas na caverna, sem considerar o
tratamento estético dado a estas imagens:
En
el espíritu de los hombres de Lascaux, la magia debió tener una importancia
semejante a la que tenía en los pueblos estudiados por la historia antigua y la
etnografía. Es sin embargo sano alzarse contra el hábito de querer atribuirles
mucho sentido a dicha voluntad de acción eficaz. (BATAILLE, 2003, p.48)
Permitindo à obra
manifestar-se com toda a sua intensidade, é preferível que Lascaux mantenha-se
sob a insígnia de um enigma. Qualquer tentativa de explicar racionalmente estas
pinturas seria frustrada, é necessário que ela atue da mesma forma que a figura
do homem com cabeça de pássaro confrontado com o bisonte atuaram em Bataille:
“Se revela y, sin embargo, se oculta” (id., 2002, p.70). Permanecer
neste cenário de lusco-fusco, em que um passo parece seguir o caminho da
revelação, enquanto o outro retoma a senda da incerteza multiplicando o
ininterrupto jogo de luz e sombra. O interesse desta primeira aproximação é
constatar que o Homo Ludens inicia
seu jogo, lança os dados e os dedos no interior de uma caverna e adere ao
sensível como aspecto de sua existência.
2.
Do Caos à espuma: Afrodite enlouquecida
Sim
bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos
sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do
Olimpo nevado,
[...] (HESÍODO,
2007, p.109 116-118)
Após Hesíodo invocar as
Musas e render-lhes cento e quinze versos para auxiliá-lo no canto dedicado à
gênese dos deuses, irrompe no poema o ponto negro da origem. Com um enfático
“sim”, que em grego arcaico se diz ἤτοι e que semanticamente assinala a certeza
do que vem dito a seguir, o poeta assegura-nos de que antes de tudo nascera
Caos:
“Ἢτοι μὲν πρώτιστα Χάος γένει” (ibid., p.108 116). Mas
há ainda uma origem por trás de Caos, conforme o verbo empregado para demarcar
a sua proveniência. Caos nasce
primeiro. Permanece a questão: de quem ele nasce? Isto Hesíodo não nos
responde, ou melhor, nos aflige com a incerteza da origem.
Antonin Artaud ao discorrer sobre o que ele denomina de crueldade na
carta escrita a A. M. R. de R. revela que: “El bien está siempre en la cara
exterior, pero la cara interior es el mal. Mal que eventualmente será reducido,
pero sólo en el instante supremo, cuando todo aquello que fue forma se
encuentre a punto de retornar al caos.” (ARTAUD, 2001, p.104).
O ponto de vista ‘caótico’ de Artaud abole a passividade advinda da ordem, do kosmos, cujo significado em grego remete
à beleza e ao ordenamento. A arte estaria desta forma preocupada não em
desvendar o segredo do início de tudo, restabelecendo por sua vez a certeza de
um ponto original, pelo contrário, ela se alimenta da voracidade do Caos,
ciente de que na sua incerteza habita a infinidade de possibilidades. Nietzsche
pode ser visto como o primeiro filósofo a romper as ataduras que prendiam a
filosofia, desde Aristóteles, à causa primeira[3].
Em Além do bem e do Mal, no final do
fragmento 205, o filósofo alemão descreve o que ele entende pela expressão
‘verdadeiro filósofo’:
Mas o verdadeiro filósofo – pelo
menos assim nos parece, não é mesmo, meus amigos? – vive de um modo
“não-filosófico”, não-sábio”, e sobretudo imprudentemente.
E sente o fardo e o dever de inumeráveis tentativas e tentações da vida.
Arrisca-se constantemente. Joga o grande jogo. (NIETZSCHE,
2006, p.102)
No
fragmento escolhido a vida é posta na condição de jogo, mais ainda, ela é
considerada como o ‘grande jogo’. É muito provável que Nietzsche esteja
seguindo uma linha de raciocínio fortemente influenciada por Heráclito que no
fragmento 52 relaciona o tempo (ἀιὼν), que entre outros significados destaca-se
a ideia de tempo vital, com o jogo de uma criança, constituindo, assim, seu
reino (παιδὸς ἡ βασιληίη): “El tiempo
vital es un niño que juega tirando los dados; el reino de un niño” (HERÁCLITO,
2008, p.221). O fragmento de Heráclito também se relaciona com o
poema de Mallarmé “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” pelo aspecto
lúdico presente no poema. O poeta lança as palavras no espaço limitado das
páginas à maneira de dados, desafiando a leitura linear do leitor ingênuo.
Retomando o
pensamento de Nietzsche, ressoam em suas palavras o vigor das pinturas
encontradas em Lascaux, e percebemos a dança rítmica que delas emana. Vida e
arte encontram-se unidas de tal forma em Nietzsche que torna-se difícil
dissociar a faceta autobiográfica de seus escritos. Outro detalhe particular
deste filósofo-artista é que ele recorrentemente assume uma postura distanciada
das comodidades do pensamento e, assim, pertenceria às ‘alturas gélidas’ da
reflexão especulativa, “Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um
ar das alturas, um ar forte”
(NIETZSCHE, 2008, p.16). Além de ver-se apoiado constantemente na
certeza que dele emerge, adota um pensamento que de certa forma vai contra o
cunho científico proposto pela filosofia aristotélica e que até hoje serve de
modelo à Ciência. O pensamento nietzschiano reivindica preferencialmente
determinados filósofos gregos, a saber: “É preciso coragem para admitir que o
mundo moderno se ressente da falta de filósofos como Heráclito, Platão,
Empédocles, e de todos os outros sublimes eremitas do espírito” (id.,
2006, p.100). Nietzsche se volta aos primeiros pensadores na
tentativa de lá encontrar os ares frescos do pensamento, embora seja um caminho
árduo. Em nossa tentativa de visualizar a herança do mundo antigo, os versos de
Hesíodo dão testemunho da dificuldade encontrada pelo poeta em revelar esse
ponto negro de nossa identidade, ponto este, que de acordo com Bataille,
associar-se-ia com o opúsculo escrito por ele em 1927, L’anus solaire. Neste pequeno texto a dimensão poética perpassa as palavras e já
identificamos no jovem Bataille a interessante associação entre o erotismo
cósmico tendo o Sol como figura fálica e a natureza ávida em procriar-se e
direcionar-se rumo a essa fonte de luz espermática. De acordo com Bataille, uma
das fraquezas do homem está na impossibilidade de fitar o Sol com os olhos nus.
Esta leitura batailliana mostra-se em íntimo contato com o livro VII da República de Platão, quando é discutido
o mito da caverna e o nosso mundo como sendo aquele imerso nas densas sombras
da incerteza. A verdade (ἀλήθεια)
revela-se graças ao auxílio da ‘luz original’ emanada do corpo solar permitindo
que os objetos sejam vistos na sua maior perfeição possível; para isto o
filósofo deve abandonar a caverna para posteriormente instruir os ignorantes
que se iludem no mundo das sombras, acreditando que estas mesmas sombras
representariam os verdadeiros objetos do mundo. Outra associação encontrada na República é entre o olho humano e o
formato do Sol discutida no diálogo entre Glauco e Sócrates:
– No es sol la vista en sí ni tampoco el órgano en que se produce, al cual
llamamos ojo.
– No en efecto.
– Pero éste es, por lo menos, el más parecido al sol, creo yo, de entre
los órganos de los sentidos. (PLATÓN, 2005, p.396)
Ainda
situando-nos no mundo grego antigo, Aristóteles, discípulo de Platão inicia o
livro A da Metafísica com a conhecida
frase:
Todos los hombres desean por naturaleza saber. Así lo indica el amor a
los sentidos; pues, al margen de su utilidad, son amados a causa de sí mismos,
y el que más de todos, el de la vista. [...] éste es el que nos hace conocer
más, y nos muestra muchas diferencias. (ARISTÓTELES, 1982, p.2)
Aristóteles
não apenas realça a visão ao dizer que ela é a mais amada de todos os sentidos
(καὶ μάλιστα τῶν ἄλλων ἡ διὰ τῶν ὀμμάτον), mas destaca o caráter que ela tem de
nos instruir melhor, mostrando-nos as diferenças dos entes. Conjuga-se todo um
embasamento reflexivo metafísico amparado na importância do olhar. O olho
mostra-se desde os primeiros momentos da reflexão literário-filosófica como
fundamental para a apreensão do mundo. O olho é aquele que nos coloca no mundo,
revelando-nos ao mesmo tempo em que duvidamos do que vemos. Neste apelo da
importância do olho, quase erótico, descortina-se incessantemente o que nos
circunda, enquanto que para deixar de ver necessita-se de um ato aparentemente
simples: fechar os olhos. Se em Sócrates já havia certa alusão à visão como
sentido prioritário para o conhecimento na concisa fórmula “só sei que nada
sei”, cuja tradução ao pé da letra seria “só vi que nada vi”, ainda assim o seu
nome encontra-se ligado ao método da dialética socrática, conhecida também por
maiêutica, em que o interlocutor de Sócrates chega à verdade através das
próprias conclusões que vai obtendo. Pelo discurso, então, chegar-se-ia à
elucidação ou manter-se-ia na dúvida inicial, configurando o que se denomina de
aporia. Logo, o ouvido seria o órgão de destaque para Sócrates. O olho ganharia
destaque notório apenas com Platão, como mostramos aqui.
Para
citarmos uma nova abordagem do olho mais próxima de nós e que se relaciona com
a pesquisa desenvolvida, somos transportados ao olho que percorre todo o relato
de Histoire de l’oeil (1928) de
Bataille que associa o olho ao ovo. O conto de Edgar Allan Poe “The
tell-tale heart” talvez tenha sido uma das influências literárias para a
elaboração do relato de Bataille, embora não haja nenhuma referência explícita
a este conto. No texto de Poe o narrador, como ocorre frequentemente, certifica
o leitor de que sua condição mental não encontra-se abalada: “[...] but why will you say that I am mad? The disease had sharpened my senses – not destroyed –
not dulled them” (POE, 2004, p.245), e o terror que o subjuga provém do
olho de um cego que se parece com o olho de um urubu: “One of his eyes
resembled that of a vulture – a pale blue eye, with a film over it.” (ibid.,
p.245). Em resumo, o narrador deve matar esse homem simplesmente
porque possui um olho demoníaco: “[...] for it was not the old man who vexed
me, but his Evil Eye.” (ibid., p.245).
O olho da metafísica sofre mutações e revela a escuridão que nele se
escamoteia.
O olho do
crítico pode ser visto como aquele que persegue seu objeto de desejo erótico
sem nunca satisfazer-se com a sua leitura. Seguindo um fluxo aparentemente
contrário ao apresentado no mito da caverna platônico, necessitamos no início
deste percurso adentrar na caverna de Lascaux para dela extrair ao menos um
tênue feixe de luz. O passo seguinte será olhar o nascimento de Afrodite.
Didi-Huberman, ao
analisar detidamente o que caracteriza a espuma e a sua forma, destaca o amorfo
de sua composição físico-química: “[...] c’est la partie la plus vile et la
plus informe de tout ensemble” (DIDI-HUBERMAN, 2007, p.74). Por
sua vez, o nascimento de Afrodite está intimamente relacionado com a espuma,
espécie de esperma do mar que não cessa de agitar-se.
Na Teogonia de Hesíodo lemos o nascimento dos deuses, e entre eles a
conturbada relação de Terra e Céu. Crono, filho de ambos, será destinado a
exterminar o próprio pai, cujo ódio direcionado aos filhos os privava de ver a
luz. O resultado deste parricídio será cantado em uma passagem que conserva o seu
frescor pela violência do crime cometido, ao mesmo tempo que permite aflorar
das águas o máximo expoente da beleza grega. Acompanhemos as palavras do poeta:
Veio com a noite o grande Céu, ao
redor da Terra
desejando amor sobrepairou e
estendeu-se
a
tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão
esquerda, com a destra pegou a
prodigiosa foice
longa e dentada. E do pai o pênis
ceifou com ímpeto e lançou-o a
esmo
para trás. Mas nada inerte
escapou da mão:
quantos salpicos respingaram
sanguíneos
a
todos recebeu-os a Terra; (HESÍODO, 2007, pp. 111-113)
Nesta passagem somos
testemunhas do crime cometido pelo grande Crono de curvo pensar em colaboração
com a mãe Terra, e alguns versos mais adiante presenciaremos o nascimento de
Afrodite a partir do membro decepado:
O pênis, tão logo cortando-o com
o aço
atirou do continente no undoso
mar,
aí muito boiou na planície, ao
redor branca
espuma da imortal carne
ejaculava-se, dela
uma virgem criou-se. Primeiro
Citera divina
atingiu, depois foi à
circunfluída Chipre
e saiu veneranda bela Deusa, ao
redor relva
crescia sob esbeltos pés. A ela.
Afrodite
Deusa nascida da espuma e
bem-coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, [...]
(HESÍODO, 2007,p.113)
Em grego espuma se diz ἀφρός
(aphrós), derivando o adjetivo ἄφρων
(aphroon) que para o português
poderia ser traduzido por louco, demente, insensato. Portanto, ao nascimento de
Afrodite, que para Didi-Huberman é “la naissance de la Beauté même” (DIDI-HUBERMAN,
2007, p.75), vincula-se o arrebatamento irrefreável da loucura. Hesíodo
forja-lhe, inclusive, um epíteto: ἀφρογενέα (afrogenéa), a Deusa nascida da espuma. Mas não apenas da espuma, a
semente cultivada nesta espuma é o pênis ceifado de Céu. E para dar cabo de
tantas peculiaridades, Hesíodo engenhosamente a denomina também de φιλομμηδήα (philomedéa), aquela que cultiva o
amor-ao-pênis. Vida, morte, desejo e beleza, uma mescla que Bataille certamente
apreciaria, equivalendo tudo isto ao nascimento da deusa mais apreciada e
cultuada no mundo antigo. Vênus, vertida ao latim, cativa os romanos que lhe
continuam rendendo homenagens e belas estátuas. Emanando do mundo grego e
ampliando a sua esfera de ação, o ardor por esta deusa é tanto que até mesmo
uma pintura sua jamais vista é eloquente em suas cores e beleza graças aos
textos gregos e latinos legados pelos antigos, principalmente através de
Plínio, o Velho. O quadro em questão é a Afrodite
Anadyomena, pintado por Apelles.
A análise
crítica de Didi-Huberman colabora para compreender melhor o seu significado
histórico dentro do contexto da história da arte. Justamente pelo fato de ser
uma pintura inacessível a nossa contemplação in locu, ela se destaca como chef-d’oeuvre,
e os fiapos de texto (écheveau de textes)
são os únicos intermediários entre nós e a pintura. A relação entre pintura e
escrita é posta em cheque; pode-se ver um quadro lendo apenas um punhado de
palavras? Horácio, em sua poética[4], afirma que:
Poesia é como
pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se te pões mais
longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em plena luz,
porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa
outra, dez vezes repetida, agradará sempre. (HORÁCIO, 2005, p.65)
Ut pictura poesis é o topos abordado por Horácio na sua Poética, estabelecendo poesia e pintura
como atividades artísticas próximas. Escrito há mais de dois mil anos, este topos ainda pode ser apreciado quando
nos deparamos com esta pintura invisível. Se por um lado Gombrich interpreta
esta pintura desaparecida como uma lacuna irreparável na história da arte: –
There
is one gap in our knowledge which every lover of Greek art feels most keenly.
We do not know the Works of their great painters about which the ancient
authors wrote with such enthusiasm. The name of Appeles, who lived at the time
of Alexander the Great, for instance, remained proverbial, but we have no work
by his hand. (GOMBRICH,
2007, pp. 631-633)
– por
outro, acreditamos ser possível retomar esta pintura pela palavra escrita. O
corpo de Afrodite molda-se na composição verbal, sanando a sua ausência por
meio do corpo textual que lhe restitui o poder de apresentação. Entre os escritos sobre este quadro, destacamos o
caráter que lhe foi atribuído de summum
dito por Propércio. Estamos diante de um quadro perdido para o nosso olhar,
corporificado somente na letra impressa. Afrodite encontra-se vagando incessantemente através dos
textos:
[...] l’écume dont nous
éclabousse l’Aphrodite d’Apelle, cette écume ne cesse-t-elle – pas de se
répandre – car elle circule, elle passe de texte en texte – comme un mythe
théorique, hyperbolique en tant que myhte, mais pas <<faux>> pour
autant: un mythe relatif aux fins et aux moyens mêmes de la peinture. Elle en
déploie aussi, nouée aux fins, comme une récitation des origines.
(DIDI-HUBERMAN, 2007, p.73)
A recitação da origem,
a perene busca pelo que vem sem provir de nada. Ou, ponderando de modo menos
habitual, a busca pelo nada, pelo não-ser que já encontra-se exposto no poema
de Hesíodo. Desde o Banquete de
Platão, diálogo centrado na figura de Eros e os elogios a ele dirigidos pelos
convivas, a questão concernente a Afrodite ganhou destaque e manifestou-se, por
conseguinte, o seu aspecto duplo:
Todos sabemos que não existe
Afrodite sem Eros. Se Afrodite fosse uma só, um só seria Eros. Havendo, porém,
duas, há necessariamente dois Erótes. Como assim, duas? A mais velha, a sem
mãe, é filha de Urano, a que chamamos Urânia. Atribuímos à mais nova, filha de
Zeus e de Dione, o nome de Pandêmia. (PLATÃO, 2012, p.43)
A Afrodite que Platão
denomina como sendo a mais velha e sem mãe (που πρεσβυτέρα καί ἀμήτωρ) designa
a Afrodite oriunda da espuma e do pênis ceifado. Ela é renomeada e passa a se
chamar Urânia. Sua condição de órfã materna intensifica ainda mais a sua
ligação com o crime cometido, pois Platão a vincula ainda de maneira mais forte
com seu pai Urano. O peso do parricídio não abala Afrodite, e a leitura que
dela farão os pensadores, filósofos, pintores e demais artistas consolidará sua
presença sedutora e fechada no círculo de seu enigma.
Como proposta de uma
leitura possível, analisaremos como ao longo dos séculos Afrodite foi tema de
inúmeros pintores e o seu nascimento atraiu a atenção e foi retratada de
diversas maneiras principalmente durante o Renascimento. Afrodite
metamorfoseia-se, mantendo sua ambiguidade.
Em Ouvrir Venus. Nudité, rêve, cruauté Didi-Huberman irá efetuar uma
leitura desde a Vênus de Botticelli
até Madame Edwarda, de Bataille, publicado
sob o pseudônimo de Pierre Angélique durante a 2ª guerra. As diversas
interpretações de Afrodite serão revisitadas por Didi-Huberman, trazendo à tona
questões esquecidas e pouco discutidas. Nas primeiras páginas lemos a retomada
do caráter duplo de Afrodite (Venus
Coelestis e Venus Naturalis) no
século XV, e a consciência desta duplicidade por parte de Sandro Botticelli. Se
o seu quadro O nascimento de Vênus
aparenta salientar e retratar apenas os traços delicados, destacando o caráter
sereno da Vênus Coelestis, tal
leitura reforça o lado ingênuo do espectador, pois segundo o teórico francês,
Botticelli representa em inúmeros quadros a crueldade, bem como o erotismo. A
reflexão de Didi-Huberman corrobora que a deusa da beleza está repleta de
aspectos múltiplos (discutidos desde Hesíodo, e mais tarde por Platão), e se
para ele o aspecto duplo revela-se ser a primeira impureza, isto se deve ao
modo como ela foi concebida. Falar de Vênus celestial seria um eufemismo, pois
ela surge da castração do Céu.
Os quadros analisados
por Didi-Huberman concentram-se em Botticelli e Clemente Susini, este último
tendo representado a Venus desventrada
no século XVIII modelada com cera colorida. Contemplar esta Vênus causa
vertigem, nossos olhos captam toda a massa interior de seu corpo e a beleza que
ela nos transmite esgota-se na sua interioridade. A representação não está nas
linhas e no contorno exterior; a eloquência pertence às entranhas. O dentro
expõe o corpo proibido aos olhos. O amor de Vênus por Marte explode na cera de
Susini, e toda a contradição é manifestada, rasgada. A deusa nos erotiza pelo
que ela tem de humano, mortal e asqueroso.
Porém,
ainda devemos ver uma das últimas ‘Afrodites’ analisadas por Didi-Huberman: Madame Edwarda. Lemos que “[...] el relato de Madame Edwarda se sitúa en muchos
aspectos en los antípodas del mundo humanista de Boccaccio o de Botticelli.”
(DIDI-HUBERMAN, 2005, p.110). Bataille situa Madame
Edwarda no centro de uma Paris tumultuada, ávida por diversão e escândalos
noturnos. O périplo de Madame Edwarda resume-se a satisfazer o chamado carnal,
e para lográ-lo ela deve liberar-se do peso das roupas. Ela se exibe na nudez
crua de seu ser. Ao longo do relato ela se identifica com Deus, e persuade o
narrador a contemplar seu sexo:
‘¿Por qué haces eso?’
‘Ya vês – dijo –, soy DIOS.
‘Estoy loco...’
‘ – No es verdad; debes mirar: ¡Mira! (BATAILLE, 2008, p.10)
Estas palavras podem
ser vistas dialogando com o quadro de Gustave Courbet (L’origine du monde – 1866), enquanto identificamos a importância
que se dá ao olhar, pois Madame Edwarda reforça que ele deve ater-se ao centro
de seu corpo. No quadro de Courbet a nudez não se associa exclusivamente ao
aspecto erótico, contrariamente ao relato de Bataille. O próprio título da obra
destaca a origem do mundo e não do homem; ao contemplar L’origine du monde não
desejamos penetrar aquele corpo feminino, está-se diante da origem cósmica.
Entretanto, em Bataille e Courbet o olho do espectador é transportado ao mesmo
ponto central.
3.
O livro nômade. Errância do logos
Errância provém do
latim erro, erras, erravi, erratum, errare
(vagar sem rumo como os viajantes perdidos, por exemplo) e se refere ao caráter
de não pertença a um lugar fixo e pré-definido. A escritura, deste modo, seria
o “lugar de movência”, assumindo uma natureza nômade. Havendo escolhido como
ponto de partida para a presente investigação a discussão de Bataille acerca de
Lascaux, e avançando nossa investigação através da leitura do artigo de Jean
Luc-Nancy “Pintura en la gruta”, importante texto que dialoga, apesar de
publicado quase quarenta anos depois, com Lascaux
ou la naissance de l’art e adentrando em mares gregos para ver surgir
Afrodite em meio a sangue, espuma e parricídio, passando por quadros que a
representam ao longo dos séculos acompanhando a leitura crítica de Nancy e
Didi-Huberman, seguimos a proposta aqui estabelecida e passamos a averiguar
como a problematização da origem e da totalização da obra de arte é discutida
no âmbito da escrita por Blanchot em alguns dos artigos publicados em Le livre à venir (1959). Nestes artigos,
a influência de Mallarmé no pensamento blanchotiano contribui para que a noção
de Livro seja posta em discussão.
Mas antes de ler estes
artigos e ainda retendo a água como locus
da mobilidade, recordamos que frequentemente considera-se a água como um
símbolo da loucura, e o mar muitas vezes captura-nos por horas e diante dele
pressentimos a nossa pequenez no mundo. Quanto a esta condição de loucura entre
o homem e o mar pensamos no nome de Michel Foucault que no primeiro capítulo da
Histoire de la folie à l’âge classique (1964) irá traçar
uma relação entre o final das cruzadas por volta do século XV e a erradicação
da lepra, que dizimara boa parte da população europeia, e o consequente esvaziamento
dos leprosários, com o tratamento dado aos ‘loucos’. Tanto os leprosos quanto
os loucos revelam-se para Foucault sujeitos-vítimas pertencentes aos
denominados ‘mecanismos de exclusão’, e por uso de uma analogia é possível
compor uma análise que detecta que leprosos e ‘loucos’ são postos fora do
círculo social, excluídos e sem possibilidade alguma de inserção. Foucault
identifica o surgimento da loucura como o sucessor da lepra, e para afastar o
sujeito tido por louco é necessário exilá-lo de sua cidade e até mesmo de seu
país, pois o Estado deve livrar-se de pessoas não adaptadas à sociedade
vigente, e que atrapalharia a boa convivência dos demais cidadãos. Trata-se de
uma limpeza da cidade de seus habitantes indesejáveis. Em vistas disso o local
escolhido para permitir ao louco uma errância perpétua situa-se no infinito
mar. Lá ele é cidadão das águas salgadas e não deambularia por nenhum solo. Surge, portanto, a Nau
dos loucos:
Empecemos por la más sencilla de esas figuras, también
la más simbólica. Un objeto nuevo acaba de aparecer en el paisaje imaginario
del Renacimiento; en breve, ocupará un lugar privilegiado: es la Nef des Fous, la nave de los locos,
extraño barco ébrio que navega por los ríos tranquilos de Renania y los canales
flamencos. (FOUCAULT, 2010, pp.20-21)
Esta Nau dos loucos recorda o barco grego dos
argonautas[5],
denominado Argo, que precisou desafiar o canto das sereias da mesma forma que
Ulisses. O mar mostra-se como um espaço de desafio para estes heróis gregos no
que tange ao encontro com as sereias.
Blanchot ao escrever um
belíssimo ensaio sobre a trilogia beckettiana (Molloy, Malone dies, The unnamable), cita um trecho do último
livro da trilogia que acompanha o exposto aqui.
Palavras de
Beckett citadas por Blanchot: “[...] I have the sea to drink, so there is a
sea”
(BLANCHOT, 2003, p.214).
Se
bebermos o mar morremos, o sal que nele existe impede que o possamos beber sem
causar um dano fatal; estamos, assim, lançados
ao mundo para valer-nos de uma expressão cara à filosofia de Heidegger sem outra alternativa senão
experienciar a vida. Um fragmento de Heráclito, que devido a sua linguagem
hermética e enigmática foi nomeado de ‘O Obscuro’, reflete bem o que aqui
expomos: “El mar (es) agua purísima y contaminadísima; para los peces,
ciertamente, potable y salvadora, para los hombres, en cambio, no-potable y
destructora.” (HERÁCLITO, 2008, p.231). O mar pode ser metaforicamente abordado
como o universo potencialmente disponível das palavras, como Beckett afirma.
Por outro lado, o poeta Haroldo de Campos, ao intitular de Galáxias o fluxo de palavras poetificadas no suporte do papel,
ambienta o leitor na infinitude proveniente da leitura de um texto literário.
As palavras jogam e se deixam lançar no papel, convidando o leitor a desempenhar
um papel ativo nessa vertiginosa ameaça verbal; pressente-se que a caverna de
Lascaux assoma novamente e a arte continua desempenhando o seu caráter lúdico.
As palavras são acopladas, idiomas se entrecruzam e deambulam ao longo das
páginas. A epígrafe emprestada de Mallarmé colabora para submergir-nos no jogo:
La fiction affleurera et se dissipera,
vite, d’après la mobilité de l’écrit. O movimento da escrita persegue o
jogo da ficção.
Não obstante, como
havíamos enfatizado anteriormente, interessa-nos a leitura não só deste, mas de
outros artigos publicados em Le livre à
venir. No capítulo de abertura Blanchot retoma o canto XII da Odisseia, destacando a sua localização
dentro da epopeia, bem como o fascinante canto das sereias como atração
central. Blanchot nos recorda que a canção das sereias destinava-se somente aos
bravios marinheiros:
Não devemos esquecer que esse
canto se destinava a navegadores, homens do risco e do movimento ousado, e era
também ele uma navegação: era uma distância, e o que revelava era a
possibilidade de percorrer essa distância de fazer, do canto, o movimento em
direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior desejo. (BLANCHOT,
2005, p.4).
Ulisses faz parte
destes marinheiros ousados, afinal seu epíteto ao longo do poema homérico é
astuto, e cabe a ele encontrar uma alternativa para não ser arrastado à loucura
pelo cantos das sereias. Os tripulantes devem colocar cera nos ouvidos para
evitar o canto fatal, enquanto Ulisses exige aos seus comandados que o amarrem
fortemente ao mastro, liberando-o das amarras apenas quando o canto já não for
mais audível. Mesmo assim o poder de atração se converte em desespero para
Ulisses, pois as Sereias o seduzem:
“Entoam,
então, doce canção:
‘Pra
perto, preclaro Odisseu, pra perto, brilhante
Aqueu,
nosso hino delicie de perto o teu coração.
Todos
nos ouvem. É a regra. Sem nos
Ouvir
ninguém passou aqui em nau negra.
Como
nosso saber prossegue mais pleno.
(HOMERO, 2011, p.225)
O
canto captura Ulisses; impossibilitado de falar, ele gesticula aos seus para
ser liberado: “Quero que os companheiros afrouxem/ as cordas. Com o cenho
aceno./ Porém mais rápido movem-se os remos.” (HOMERO, 2011, p.225) Esta passagem pelas sereias dura pouco, pois o barco
se distancia e todos eles se vem finalmente afastados do perigo: “[...] when we
could hear no more the Sirens’ voice nor any singing, quickly my trusty crew
removed the wax with which I stopped their ears, and set me free from bondage.”
(HOMERO,
2011, p.151).
Este apelo das sereias
situado exatamente na metade da narrativa homérica permite que Blanchot o
caracterize como exemplar de toda criação literária que opera em torno a este
centro impossível de ser capturado: “Há uma luta muito obscura travada entre
toda narrativa e o encontro com as Sereias, aquele canto enigmático que é
poderoso graças a seu defeito. [...] O que chamamos de romance nasceu dessa
luta.” (BLANCHOT,
2005, p.5)
Uma das influências
literárias mais citadas e comentadas por Blanchot é Mallarmé. O poeta francês
problematiza diversas questões caras ao pensamento blanchotiano, como por
exemplo a separação entre a linguagem lógica (conhecimento, trabalho) e a
linguagem do poema e da literatura, além de levantar a hipótese da existência
de um livro, caracterizado de “o Livro”, tido por objeto teleológico de tudo o
que existe no universo. Quanto a este último aspecto, deixemos o poeta
manifestar-se:
Uma proposição que emana de mim –
tão, diversamente, citada em meu elogio ou por censura – reivindico-a com
aquelas que se comprimirão aqui – sumária quer, que tudo, no mundo, existe para
culminar num livro. (MALLARMÉ, 2010, p.180)
Com propostas
similares, Borges e Mallarmé desafiam a vertigem do infinito, e o escritor
argentino será escolhido como ‘modelo do escritor sobre o infinito’ para
Blanchot escrever um pequeno artigo sobre o conto “El Aleph”. A escritura
labiríntica de Borges, associada com a constante retomada de temas literários e
filosóficos, colaboram para que ele seja mundialmente estimado como um escritor
cujo universo referencial encontra-se no interior da literatura mesmo, isto é,
dentro de livros. Sabe-se que Borges, ao longo dos anos, foi perdendo
gradativamente a capacidade de ver, e seu olho de carne foi então
distanciando-se da página que suas mãos retinham. Esta perda sensitiva não
tornou-se um obstáculo para que Borges continuasse errando pelas páginas,
deixando-se levar pelo infinito ato de leitura. Blanchot, valendo-se do nome e
do trabalho literário de Borges, diz: “A verdade da literatura estaria no erro
do infinito.” (BLANCHOT, 2005, p.136). E
continua: “O mundo onde vivemos, tal como o vivemos, é felizmente limitado.”
(ibid., p.136). Blanchot enfatiza que o mundo factível é finito, repleto de
limitações que barram a possibilidade de errar indeterminadamente, fato este
que pode ser obtido ao forjar o infinito quando não cessamos de fazer alguma
atividade: “A errância, o fato de estarmos a caminho sem poder jamais nos
deter, transformam o finito em infinito.” (ibid., p.137). Por isto, a
literatura revela-se monstruosa, pois a sua incessante busca jamais encontra
término, sua errância é infinita, exibindo, justamente por esta infinitude, a
prisão que a encerra, já que “[...] do finito, que é no entanto fechado,
podemos sempre esperar sair, enquanto a vastidão infinita é a prisão, porque é
sem saída; da mesma forma, todo lugar absolutamente sem saída se torna
infinito.” (ibid., p.137).
Gostaríamos de destacar
outro conto de Borges para ilustrar a ideia proposta do Livro de Mallarmé, “El
libro de arena”, publicado no livro homônimo narra a história de um personagem
que se vê ameaçado por um livro denominado ‘El libro de arena’, porque, segundo
lemos, “[...] ni el libro ni la arena tienen ni principio ni fin” (BORGES,
2005, p.161). O enredo, porém, destila suspense, pois o narrador, que desde o
início do relato nos afirma que tudo o que será narrado encontra-se no plano do
verídico, é interrompido por um golpe na porta. Um homem anuncia-se como
vendedor de Bíblias, e além destes exemplares possui o já mencionado livro infinito.
Este objeto, após ser folheado e constatado o seu caráter interminável e sempre
novo, seduz o narrador e a oferta de troca é prontamente sugerida por este:
- Le
propongo un canje – le dije –. Usted obtuvo este volumen por unas rupias y por la Escritura
Sagrada; yo le ofrezco el monto de mi jubilación, que acabo de cobrar, y la
Biblia de Wiclif en letra gótica. La
heredé de mis padres. (ibid.,
p.163)
O vendedor não
titubeia, aceita a troca, ampliando a sua coleção de Bíblias. O livro de areia
pode ser visto como uma maldição impelindo a pessoa que o retém a livrar-se
rapidamente dele a qualquer custo. O infinito instala o pânico no narrador, e o
que era felicidade no início transforma-se na idolatria absoluta ao livro. Ele
passa a dedicar-se inteiramente ao que o livro infinito lhe oferece:
“Prisionero del libro, casi no me asomaba a la calle” (ibid.,
p.164). A metáfora utilizada por Borges é a mesma de Blanchot: o
livro torna prisioneiro o seu detentor. Cada vez mais o narrador sente o poder
daquele objeto: “Sentí que era un objeto de pesadilla, una cosa obscena que
infamaba y corrompía la realidad” (ibid., p.165). Uma palavra rara no
vocabulário utilizado por Borges aparece aqui para definir o próprio livro: obsceno. O livro é obsceno pelo seu conteúdo
que transmite a infinitude, pela sua errância esquizofrênica incapaz de frear
os impulsos da palavra, atendo-se ao que outrora dissera Heidegger: “a
linguagem fala”, e o homem transmite, como intermediário, esse falar
desenfreado.
Certamente poderia ter-se selecionado outros escritores para
exemplificar esta mobilidade perpétua da escrita e a impossibilidade de atingir
o fim definitivo. Kafka e Beckett, dois nomes que marcam presença forte na
crítica blanchotiana, exploram esta faceta da literatura de forma única.
Inclusive os próprios romances e récits
de Blanchot destacam a morte como uma experiência inatingível enquanto
habitamos o mundo, ou seja, compreendendo a morte como inapreensível pela sua
infinita distância de nós[6].
Contudo,
acreditamos que com esta breve apresentação, e tendo escolhido por último o
conto do escritor argentino Jorge Luis Borges com o intuito de discutir algumas
possibilidades da literatura e o confronto com o seu caráter labiríntico,
possamos ter acedido a esta problemática da origem, tendo escolhido para isto
três etapas investigativas fundamentais para o nosso desejo investigativo:
Lascaux, Afrodite e o Livro.
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Charlotte Mandell. California: Stanford, 2003.
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POE, Edgar
Allan. The complete illustrated works of
Edgar Allan Poe. London:
Bounty Books, 2004.
[1] A caverna de Lascaux, atualmente
localizada em território francês, é tida como um dos mais antigos locais a dar
testemunho da atividade artística do ser humano. Sua descoberta deu-se ao
acaso, quando dois jovens franceses a descobriram no dia 12 de setembro de
1940. Outra caverna tão importante quanto Lascaux pelas descobertas artísticas
que nelas hoje podemos apreciar é a caverna de Altamira. Em território
brasileiro temos a sítio arqueológico Pedra Furada, localizado na Serra da
Capivara – Piauí. Florianópolis, igualmente, abriga importantes inscrições
rupestres na ilha do Campeche, Santo Antônio de Lisboa e Costão do Santinho.
[2] Na filosofia de Heidegger, o homem
estaria lançado ao mundo e seria um
sujeito no mundo (in-der-Welt-sein).
A palavra alemã Dasein, que Heidegger
a significa dentro de seu construto filosófico como “o ente que nós próprios
somos”, carrega em si a duplicidade do sujeito (sein) e do espaço ocupado por este sujeito (da), e assim, Nancy compreende esta partícula “da” como espaço ocupado
por uma caverna e toda a escuridão que ela abarca.
[3] Aristóteles ao encerrar o livro Γ
da Metafísica identifica a causa
primeira com Deus (τὸ πρωτον κινοῦν ἀκίνητον αὐτό, p.214 1012b31),
aquele que move todos os demais entes (pois ele seria desejado), sem ele
próprio ser movível por nada. “[...]
pues hay algo que siempre mueve las cosas que se mueven, y el primer Motor es
inmóvil él mismo” in: ARISTÓTELES. Metafísica.
Edición trilingüe, traducción de Valentín García Yebra. Madrid: Gredos, 1982,
p.215.
[4] Na verdade trata-se de uma
epístola dirigida aos Pisões (Epistula ad
Pisones) em que Horácio dá conselhos e pareceres acerca do ofício do poeta.
[5] Os argonautas juntamente com Jasão
foram determinantes para a obtenção do velocínio de ouro. O barco e a sua tripulação consistiam em: “The
ship’s timbers included planks taken from a sacred oak tree at the oracle of
Zeus at Dodona, making the vessel specially strong. Jason persuaded many of
Greece’s greatest heroes, including Heracles, Polydeuces, Peleus and Orpheus,
to join him on the Argo.” In: Wilkinson, Philip. Myths & Legends. London: DK, 2009, p.72.
[6] Em Thomas l’obscur (1941),
L’arrêt de mort (1948) e L’instant de
ma mort (1994), Blanchot evidencia a impossibilidade de experienciar a
morte como evento factível. A narrativa de Blanchot é densa, esquiva-se dos
comodismos sintáticos, e demanda a atenção constante do leitor. Muitas vezes o
que se narra não é uma história, mas um événément,
isto é, o próprio evento e a não a realização deste narrado a posteriori. Adentrar neste terreno
demandaria outras tantas páginas.